Oscar Vilhena Vieira

Oscar Vilhena Vieira: Legalizando a devastação ambiental

Presidente e seus auxiliares não poupam esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental

Oscar Vilhena Vieira / Folha de S. Paulo

Como era esperado, o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), foi constrangedor. Maquiou dados sobre desmatamento e queimadas, mentiu sobre a corrupção, gabou-se de um inexistente sucesso econômico, além de se auto incriminar pelo apoio ao “tratamento precoce”.

Causaram surpresa, entretanto, os elogios à legislação ambiental brasileira, que “deveria servir de exemplo para outros países”, posto que o presidente e seus auxiliares não têm poupado esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental. Com a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados, o presidente finalmente parece ter encontrado um braço forte disposto a legalizar o que a “exemplar” legislação brasileira hoje considera ilegal.

Entre os projetos de lei com maior potencial de erosão dos direitos socioambientais destacam-se o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 490, voltado a alterar o processo de demarcação de terras indígenas e a imposição de um marco temporal. Ambos atendem predominantemente a interesses da grilagem, do desmatamento e da mineração ilegais.


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O PL 3729, por sua vez, flexibiliza o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta indispensável a um processo sustentável de desenvolvimento, prevenindo desastres ambientais e a transferência às gerações futuras de atividades econômicas presentes. O objetivo original da proposta apresentada em 2004 era unificar a legislação, garantindo maior segurança jurídica, eficiência e agilidade ao licenciamento ambiental.

O texto aprovado pela Câmara e preste a ser analisado pelo Senado Federal vai, no entanto, na direção oposta daquilo que o Brasil precisa. Dispensou o licenciamento ambiental para diversas atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. Para a maioria das atividades licenciáveis, o projeto criou a Licença por Adesão e Compromisso, mecanismo meramente declaratório que, na prática, esvazia a noção de avaliação ambiental, transformando o auto licenciamento em regra e não mais exceção.

Órgãos públicos ligados à preservação ambiental e patrimonial, como o ICMBio, Funai e Iphan perdem espaço no licenciamento ambiental. Na pior tradição brasileira o projeto premia quem descumpriu a lei, isentando de responsabilidade empreendimentos que já operam sem licença ambiental válida, que deverão apenas solicitar um Licenciamento Ambiental Corretivo. Também isenta de responsabilidade instituições de financiamento, como bancos, pelos eventuais danos socioambientais causados pelos empreendimentos que apoiaram.

A OCDE, em relatório lançado em julho, apontou que a política ambiental brasileira já deixa a desejar: dos 48 requisitos legais analisados pela organização, o Brasil foi considerado como total ou parcialmente desalinhado em 29, ou seja, em 60% do total. Caso o PL 3729 seja aprovado, tal como está, o Brasil perderá ainda mais espaço na luta por investimentos e credibilidade internacional. Também testemunharemos mais desastres ambientais, desmatamento na Amazônia e violações aos direitos humanos.


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Cabe ao Senado Federal evitar que mais esse ataque ao nosso sistema de proteção ambiental se consume, se não por respeito ao bem-estar das futuras gerações, ao menos pelo interesse estratégico do Brasil de se reinserir numa posição de liderança num contexto internacional cada vez mais exigente em termos ambientais e climáticos.​

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/09/legalizando-a-devastacao-ambiental-no-brasil.shtml


Oscar Vilhena Vieira: A exceção como regra

Ao nomear como “Exceptis” a operação que invadiu a comunidade de Jacarezinho, na capital fluminense, na última quita feira (6), o governo já deixava claro que a lei não condicionaria a ação dos seus agentes, antecipando o que se converteu numa das maiores chacinas no do Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas.

O fato é que o ideal civilizatório de que todas as pessoas e, em especial, os agentes públicos (civis e militares) devem pautar as suas condutas pela legalidade jamais se consolidou no Brasil. Certamente, os dois regimes de exceção, fundados na ruptura da ordem constitucional, exercidos por meio do arbítrio e coroados pela impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, não contribuíram para fortalecer, em nossa acidentada história republicana, a noção básica de império da lei.

A incompletude do estado de direito no Brasil transcende, porém, os regimes propriamente autoritários. A profunda e persistente desigualdade, o racismo estrutural e a forte hierarquização social têm se demonstrado obstáculos intransponíveis para que todas as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e, portanto, tratadas como igual respeito e consideração.

O que a imagem de corpos sempre pretos ensanguentados a cada nova chacina reforça é a realidade bruta de que a lei, nessas plagas, não é para todos. Que no Jacarezinho e nas demais periferias sociais brasileiras vigora um permanente estado de exceção. Que a “ordem” é determinada pelo arbítrio das milícias, do tráfego e, quando necessário, pelo arbítrio dos agentes do Estado.

Mais de três décadas de democracia não foram suficientes para pôr fim a um regime de exceção permanente que se impõe à grande parte da população. A perda de mais de 1 milhão de vidas, vitimadas por homicídios neste período, e a crueldade das experiências de comunidades dilaceradas pela violência, não foram suficientes para que governos democráticos levassem a cabo um plano de reformas das instituições de aplicação da lei, voltado a expandir o Estado de direito para todos os brasileiros.

Os poucos líderes que se propuseram modernizar as policias e o sistema de segurança e aplicação da lei criminal sucumbiram à resistência de interesses corporativos ilegítimos e políticos irresponsáveis, quando não coniventes ou mesmo beneficiários da deterioração do sistema de justiça criminal. O medo do crime abriu um amplo mercado para milícias e poder para maus policiais. Também rende votos para aqueles que oferecem uma solução rápida, fácil, mas, no entanto, incapaz de reduzir a criminalidade.

As políticas do “bandido bom é bandido morto”, da “Rota na rua”, dos “direitos humanos para humanos direitos” e de “armar o cidadão de bem”, que prevaleceram no Brasil nas últimas décadas, com amplo apoio da direita —como fez questão de deixar claro o general Mourão, ao legitimar a operação “Exceptis”— redundaram num retumbante fracasso. Com raras exceções, a constrangedora omissão de liberais e incompetência da esquerda também contribuíram para o fiasco na segurança pública.

A eleição de Bolsonaro e aliados armados, paradoxalmente, premiou justamente aqueles que mais têm contribuído para que a população se encontre refém da criminalidade e da violência de Estado.

operação “Exceptis” não apenas afronta o Supremo Tribunal Federal, que impediu a realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, mas também deixa clara a indisposição de determinados setores do Estado brasileiro de se submeter ao império da lei.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/05/a-excecao-como-regra.shtml


Oscar Vilhena Vieira: Vandalismo constitucional

Proteger a integridade das eleições será o maior desafio dos que prezam pela democracia

Eleições livres e justas e a alternância no poder são elementos fundamentais à vida democrática. A maioria dos governantes populistas, no entanto, resiste a deixar o poder após uma derrota eleitoral ou mesmo ao término de seus mandatos, como nos alerta Yascha Mounk, autor de “O Povo contra a Democracia”.

Na medida em que o líder populista se define como único e autêntico representante da vontade popular, um eventual resultado desfavorável nas urnas sempre poderá ser atribuindo a falhas no processo eleitoral. Trata-se, portanto, de uma estratégia preventiva de populistas autoritários para buscar se manter indefinidamente no poder.Ao longo de quatro anos na Casa Branca, Trump fez o que pôde para fragilizar e capturar as instituições da democracia constitucional. Empregou as mídias sociais para promover a mentira e a polarização política. Combateu a imprensa livre, fomentou o nacionalismo, as milícias armadas e as mais diversasformas de discriminação contra grupos vulneráveis.

Como outros populistas, desprezou as ameaças da pandemia, promoveu aglomerações, combateu a ciência e o uso da máscara, contribuindo, assim, para a morte de quase 400 mil compatriotas. Tudo isso sob olhar cúmplice de grande parte dos republicanos, de empresas de tecnologia e de outros setores potentes da economia que agora, constrangidos, dele buscam se afastar.

A credibilidade do processo eleitoral nunca saiu da mira da máquina de mentiras de Trump. Na iminência da proclamação da vitória de Joe Biden, não foi difícil incitar seus seguidores mais radicais a empunhar as insígnias da extrema direita norte-americana e marchar sobre o Capitólio e a Constituição.

Ao longo das últimas duas décadas, o Brasil construiu um sistema de votação eletrônico que tem se demonstrado não apenas íntegro, mas extremamente eficiente. As deficiências de nosso sistema eleitoral, como desinformação, “candidaturas laranja”, financiamento ilegal e mesmo a violência, não dizem respeito, em absoluto, ao processo de votação eletrônico.

Jamais se comprovou, desde a implantação da urna eletrônica, qualquer falha relevante que impactasse o resultado de uma eleição. Exigir o voto impresso é uma tentativa de retroagir ao voto de cabresto, em que o eleitor terá que comprovar em quem votou ao miliciano de plantão, além de favorecer uma interminável judicialização do resultado das eleições.

Por não operarem em rede, nossas urnas eletrônicas têm evitado a ação de hackers. Cada urna é auditada antes da votação, para que se certifique que não recebeu nenhum voto antecipadamente. Ao término da votação a urna emite um boletim, impresso, com o número de votos de cada candidato. Partidos, fiscais, OAB e o Ministério Público têm amplo acesso a todo um processo supervisionado pela Justiça Eleitoral. O TSE também convida observadores internacionais, como a Missão de Observação Eleitoral da OEA, para acompanhar nossas eleições.

invasão do Capitólio nos ensina que a persistente tentativa de deslegitimar o sistema de escolha eleitoral por populistas não pode, em hipótese alguma, ser negligenciada. Seu único objetivo é fomentar a subversão democrática.

O maior desafio daqueles que prezam pela democracia no Brasil, não importa em que posição do arco ideológico se encontrem, é construir um amplo pacto de proteção à integridade das eleições de 2022, para que não corramos o risco de submergir num vertiginoso processo de vandalização de nossa democracia constitucional.

*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.


Oscar Vilhena Vieira: Os andaimes da democracia

Organizações civis crescem e se fortalecem sob um governo que quer sufocá-las

Enquanto nosso criptogoverno vai afundando as botas num pântano de obscurantismo, incompetência e hostilidade a padrões mínimos de moralidade, com impacto devastador sobre a vida dos brasileiros e a saúde da própria democracia, a sociedade civil vem recompondo laços esgarçados pela forte polarização política e o estresse institucional em que imergimos a partir de 2013.

Em 1835, Alexis de Tocqueville expressou seu entusiasmo com o papel das “associações civis”, formadas voluntariamente por cidadãos, no florescimento e na sobrevivência da democracia na América. Além de favorecer a solução de problemas concretos da comunidade pela ação coletiva de seus membros, o associativismo contribuiria, por meio “da influência reciproca que uns exerceriam sobre os outros”, para a formação de cidadãos melhores, com ideias “renovadas, corações ampliados e mentes desenvolvidas”.

Desde cedo, portanto, o conceito de sociedade civil adquiriu um sentido positivo, ligado à promoção da liberdade, do pluralismo e da justiça social, não devendo ser confundindo com associações (in)civis, formadas com o propósito de suprimir direitos ou fragilizar a democracia, como a Ku Klux Klan, os Camisas Negras, ou as milícias digitais contemporâneas.

Foi essa sociedade civil, como vetor democrático, que desempenhou um papel central na debacle dos regimes autoritários na América Latina, no Leste Europeu e na África do Sul, no final dos anos 1980. Não deve causar qualquer surpresa, portanto, os ataques que os novos populistas autoritários têm lançado sobre as organizações autônomas que lhes ousem criticar, contestar ou controlar.

A promessa do presidente brasileiro de acabar com toda a forma de ativismo parece, no entanto, estar gerando o efeito inverso. Centenas de novas iniciativas e coalizões no campo da defesa da democracia, do meio ambiente, da luta antirracista e do litígio estratégico surgiram nestes dois anos.

Por outro lado, a condução criminosa da pandemia fez com que vetustas organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Academia Brasileira de Ciências e a Comissão Arns de Direitos Humanos, que há muito não se conversavam, retornassem à mesa para lançar o Pacto pela Vida, em abril de 2020.

No próximo dia 10 de dezembro, data em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 72 anos, essas mesmas organizações irão centrar atenção sobre as questões da desigualdade, da democracia e do direito à vida.

Também temos testemunhado uma revolução de veludo no campo da luta antirracista. O assassinato brutal de Beto Freitas tem catalisado, em torno do movimento negro, uma convergência entre organizações e movimentos com missões muito distintas entre si. Exemplo dessa convergência é a ação de diversas lideranças civis e religiosas para a formação de uma aliança contra o racismo. Pastores, rabinos, babas, mães e pais de santo, bispos, padres e líderes de outras denominações querem deixar claro, por meio de atos inter-religiosos, que “quem tem fé preza a vida”.

Como poeticamente lembra o escritor uruguaio Mario Benedetti, a democracia é uma obra sempre inacabada, que exige andaimes para que possa ser constantemente reparada. As organizações da sociedade civil brasileira vêm, mais uma vez, se colocar como esteios de nossa tão maltratada democracia.

*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.