Oscar Niemeyer

Capa do livro De Oscar a Niemeyer, de Ivan Alves Filho

Ivan e Niemeyer: a beleza arquitetônica de uma amizade

Eduardo Rocha*

“A sabedoria se torna loucura, prazer e dor”.

 Gueorgi Plekhanov

“(...) a práxis como atividade material do homem transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano”.

Adolfo Sanches Vasques

Acabei de ler prazerosamente o recente livro do historiador e jornalista Ivan Alves Filho, intitulado De Oscar a Niemeyer: meu convívio com o maior arquiteto contemporâneo. Este meu pobre, modesto e curto texto não cobre, não expressa, com certeza, a grandiosidade humana do texto escrito por este intelectual da mais fina, sensível e bela flor vermelha pecebista - que é autor de vários livros que desnudam alguns e decisivos episódios da realidade histórica brasileira.

Intelectual este com quem tive o prazer de ladeá-lo na mesa durante as comemorações dos gloriosos 100 Anos do PCB, organizadas pelo Cidadania (sucessor legítimo do PCB-PPS) e pela Fundação Astrojildo Pereira, e feitas no clima-calor agradável de 25 de março de 2022 na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, berço físico-político-histórico do PCB – portanto, comemorações estas realizadas na mesma data do primeiro congresso do PCB, onde então estiveram presentes apenas nove delegados representando 73 comunistas de todo Brasil.

Lembro que em 2002 visitei onde fora a “sede” do local onde fora fundado o PCB em 25 de março de 1922 – era, em 1922, uma casa que pertencia à família de Astrojildo Pereira. Foi ali onde se realizou o Primeiro Congresso do PCB. Passaram-se décadas e aquele “espaço” tinha se transformado, lá em Niterói, num estacionamento. Que fim levou este patrimônio histórico!

Mas compreendamos: a vida do PCB nunca foi fácil. Era o ano de 2002. E estávamos, na cidade de Niterói, lançando então a chapa PPS-PDT, composta por Ciro Gomes (presidente) e Leonel Brizola (vice-presidente) para as eleições presidenciais de então.

Lembro que tinha uma placa no muro frente ao estacionamento (e aí tiramos uma foto) que dizia que ali fora fundado o PCB. Tirei até uma foto frente a esta placa ao lado de Salomão Malina, Francisco Inácio Almeida, Roberto Percinoto, Paulo Eliziário, Luzia Ferreira e George Gurgel.

Não sei onde está esta foto.

Deve estar perdida por aí.

Mas está em minha memória. Aproveitando a estadia em Niterói, outros camaradas, após o término da convenção eleitoral, também visitaram a “sede congressual” e também tiraram fotos.

Desta mesa das comemorações dos 100 Anos do PCB, da qual o Cidadania generosamente me convidou a compô-la, estava também, para minha alegria pessoal e também contribuindo para o enriquecimento intelectual-cultural-político do evento, a meu lado e ao lado de Ivan Alves Filho, outro intelectual da matriz de 1922, o camarada Martin Cesar Feijó, autor da biografia do fundador do PCB, intitulada O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. Assinale-se que Martin Cezar Feijó tem também larga e multifacetada produção bibliográfica.

Eu era o expositor menor, o mais simples.

Falei sobre a trajetória da Juventude Comunista na história do PCB.

Foi a tarefa que me incumbiram.

Minha fala foi uma modesta e curta.

Ivan Alves Filho e Martin Cesar Feijó deram um show de história partidária e de reflexões sobre política cultural.

Voltando ao livro.

Em seu mais recente trabalho, narrando sua amizade com Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho (1907-2012), Ivan Alves Filho, transferindo o seu intelecto memorial às letras, expressa muito mais que política, expressa muito mais que as artes da arquitetura, expressa muito mais que as moléculas comprometedoras e decisivas da história brasileira e mundial, expressa muito mais que memórias humano-geográficas diversas e inapagáveis que ele presenciou: expressa, isto sim, uma amizade sincera, carinhosa, leal, afetuosa e de camaradagem (dentro da maravilhosa tradição solidário-humana do Partidão que eu vivi) e relatada com fraternidade, precisão, honestidade e sinceridade num texto extremamente agradável.

A verdade é sempre concreta (ela nunca é abstrata – um elefante não voa, não bate asas!), mas precisará sempre de uma aliada imprescindível para posicionar-se dignamente perante o mundo e vencer a mentira, que roda o mundo mesmo antes da verdade calçar as sua sandálias: a consciência honesta. E a verdade Ivan Alves Filho a tem como companheira desde o berço. Cada letra sua nesta sua obra está assentada materialmente pela verdade histórica realmente vivida por ele.

Seu recente trabalho histórico expressa a beleza e o carinho da arquitetura memorial social-intelectual-humana de uma sólida amizade entre dois seres humanos histórica, inequívoca e irrevogavelmente vinculados à raiz do legado histórico de 1922 – cada um, claro, entrando no PCB a seu tempo, a seu modo, a seu motivo e cada um cumprindo seu papel histórico diante das turbulências vividas pelo PCB.

E ambos (Oscar e Ivan) cumpriram bem seus papeis históricos.

Ivan, por ser mais jovem, ainda tem mais a dar à inteligência histórica brasileira.

É jovem!

E pode ainda mais ajudar a todos os que creem na verdade científico-concreta a sairmos do reino da ignorância-religiosa e entramos na República do conhecimento-científico libertador da humanidade do reino da necessidade.

Não posso deixar de parabenizar Ivan Alves Filho por sua obra, que fala de um inigualável do nosso Partido de origem, o PCB, Oscar Niemeyer e, também, de um inigualável ser humano em todo o mundo.

Não é todo dia que nasce, se forja e se apresenta ao mundo um ser humano com esses atributos humano-intelectuais e, justo dizer, revolucionários: Oscar Niemeyer.

Como nos informa Ivan Alves Filho, Niemeyer sempre, juntamente com sua arte, levantou sua voz a favor dos oprimidos, dos pobres, dos miseráveis, dos explorados, dos excluídos e sempre se posicionou a favor dos que sofrem no regime capitalista.

Niemeyer nunca vacilou.

Sempre teve um lado.

Digno defensor da paz, da democracia e do socialismo.

Defensor da dignidade humana.

A beleza arquitetônica concretizada, objetivada, realmente existente, realiza na prática (desde a arquitetura chinesa, passando pela greco-romana e muito antes os desenhos rupestres de aproximadamente 40.000 anos atrás) a beleza criativa da inteligência humana e proporciona a beleza da contemplação-cognitiva conquistada e apreciada pela humanidade.

A inteligência humana criou belezas arquitetônicas, a exemplo do que fizeram os persas, fenícios, egípcios, hititas, celtas, hebreus, cartagineses e os povos originários da América (sejam os povos da Norte, da Central, do Caribe ou do Sul) , como os incas, astecas, maias, guaranis, tupinambás, apaches, shawees, navajos e, assim como os povos africanos e asiáticos.

A beleza emancipacionista-libertária do espírito rebelde-crítico de Niemeyer, a riqueza de sua alma criativa da beleza humano-arquitetônica, de sua solidariedade ao PCB, de seu domínio da ciência da arte do desenho humano e da natureza, tudo isso é revelado pelas letras conscientes de Ivan Alves Filho, em tão poucas e ricas e nutritivas linhas históricas.

Com seu texto, Ivan Alves Filho não nos fala da fria arquitetura do concreto, não nos fala das fórmulas matemáticas complexas que a presidem (o que, em si, é também uma beleza, desde Pitágoras), e que proporcionaram a construção de grandes obras que a inteligência humana criou nos últimos milênios.

Não!

Ivan Alves Filho, com o seu De Oscar a Niemeyer, não nos leva à frieza e certeira das chamadas ciências duras (física, química, biologia, geologia, astronomia e botânica).

Oscar tanto Niemeyer e quanto Ivan Alves Filho sempre estiveram do mesmo do lado: a favor de todo o multifacético progresso social do ser humano. Por isso, não causa espanto Ivan Alves Filho descrever a beleza da arquitetura humana calorosa de Oscar Niemeyer pela vida, pelo justo, pelo bem, pela amizade sincera, pela solidariedade internacional dos povos.

Oscar Niemeyer projetou arquitetonicamente muitas obras que foram concretamente realizadas, mas seu pensamento concreto foi o de contribuir para a arquitetura humana de uma humanidade pacífica, democrática, harmoniosa, economicamente desenvolvida, ambientalmente humano-sustentável, justa socialmente, culturalmente avançada e universal, cientificamente desenvolvida, humanamente solidária, livre de preconceitos, autoritarismos, ignorâncias, misticismos e obscurantismo.

Seu texto claro, suave, calmo, memorial e sincero nos brinda com informações que expressam não apenas a sua amizade político-histórica-pessoal-familiar vivida com Oscar Niemeyer (um privilégio para poucos), mas revela também momentos cruciais e decisivos da vida nacional brasileira e internacional – e porque também não dizer, de um lado, dos momentos difíceis vividos pela vida real-concreta pelo próprio autor (que sofreu com os dentes e hálitos horrorosos da hiena da ditatura de 64) e, de outro, de momentos que as circunstâncias históricas compensaram  todo o seu sofrimento pessoal – pela sua coerência política, ética e ideológica.

Muitas informações passadas pelo seu livro eu mesmo as desconhecia. O conhecimento não se apreende de supetão, de imediato.  Foi Lenin quem disse que a apreensão da realidade se dá por longas e tortuosas aproximações sucessivas, progressivas à realidade concreta e, partir daí, originam-se interpretações e posições para as ações concretas.  

Não é fácil apreender o real.

Nem todo intelecto ao interpretar a realidade resulta numa posição progressista, pois os interesses de classe, em ultima instância, determinam a consciência e sua relação com o ser social.

Temos nos herdeiros de 1922 (PCB-PPS-Cidadania), uma missão: temos de colaborar para extirpar pela raiz as bases sociais, econômicas, culturais e ideológicas que levam parcelas do povo brasileiro em crerem em “mitos”, sejam eles quais forem – tragédias essas que vitaminam o nazi-fascismo tupiniquim.

E o lulopetismo também não é solução para os gigantes desafios histórico-estruturais que devem ser enfrentados e superados pela democracia brasileira - o lulopetismo é o atraso inverso do bolsonarismo. 

O Brasil precisa de forças democráticas que operem democraticamente transformações estrutural-democráticas dentro da democracia e da República a favor da maioria do nosso povo brasileiro.

Seu texto revela detalhes da solidariedade militante concreta de sua vida pessoal e com o seu internacionalismo impregnado/gestado desde criança por seu pai (Ivan Alves) – não apenas do autor, que se mantém honesta e dignamente na sua posição histórica diante das cruciais curvaturas da vida nacional - mas do nosso maior arquiteto a todos os que se dispuseram a revolucionar democraticamente o Brasil e o mundo; suas linhas escritas expressam a convivência humanista de vida e ideais revolucionários não só entre dois fraternos amigos, mas, complementarmente, entre dois responsáveis camaradas cúmplices de sonhos, lutas, inteligências, articulações, convicções e esperanças empenhadas na construção de um Brasil e de um mundo melhor.

Ivan Alves Filho rememora personagens históricos que projetaram e construíram o concreto teórico-ideológico-político-organizacional material-concreto do PCB e outras forças democráticas que deram corajosa substância humana à conquista da democracia, sepultando assim as trevas inauguradas em 1964, e relembra mesmo personagens – que se tornaram seus amigos - que são caros à conquista da independência da Argélia frente à França, por exemplo.

Ivan Alves Filho, em seu livro, faz uma referência justa e honesta para o imprescindível Francisco Inácio Almeida, secretário de Luís Carlos Prestes em Moscou, na então União Soviética, e um dos mais destacados e competentes dirigentes do PCB-PPS-Cidadania.

Ele diz: “Talvez, em toda a minha vida, eu só tenha convivido com uma outra pessoa com as mesma generosidade de Oscar, o meu querido amigo Francisco Inácio de Almeida, figura fundamental na história das lutas sociais do Brasil, cearense de Baturité”.

Francisco Inácio Almeida é um ser humano solidário que eleva o espírito humano a torna-se universalmente humano-solidário.

O autor revela também seu aprendizado político-humanista recebido pelo artista-humanista de Brasília e da arquitetura do humanismo universal (parece Ivan colocar-se sempre humildemente como um jovem permanente aprendiz diante de um generoso sábio Oscar Niemeyer).

Nas suas linhas descreve os momentos que lhe marcaram pessoalmente – momentos material-políticos difíceis que o autor vivenciou no Brasil e no exílio durante os anos do regime ditatorial vindo às trevas em 1964 até momentos de sofisticação intelectual proporcionado não só pelo amigo, mas pelas suas andanças políticas, culturais e acadêmicas pelos países que conheceu, pelas universidades que cursou, pelos livros que leu, pelos livros que escreveu, pelos acontecimentos que assistiu e com as pessoas das mais diversas matrizes teórico-ideológicas com que conviveu e apreendeu, professou e moldaram sua consciência generosamente humana.

Muitos já escreveram sobre Oscar Niemeyer, um Singular magistralmente Universal, devido sua Particularidade criativa. Esta obra de Ivan Alves Filho não navega nas frias, matematizadas e inanimadas curvas arquitetônicas do concreto projetadas e construídas no Brasil e mundo afora, com o suor de operários, que sempre mereceram seu carinho, amor, e solidariedade militante.

O que encontraremos nesta obra são curvas, linhas, projeções, ângulos, significados imaginário-humanos que Niemeyer objetivou, concretizou, materializou em sua universal subjetividade impregnada da modernidade suave e da beleza da inteligência humanista que ele sempre portou.

As curvas literárias trabalhadas por Ivan Alves Filho são as curvas humano-históricas da vida humana em sua multifacetada beleza e crueldade em momentos difíceis pelos seres humanos que lutaram pela humanidade\ – a contradição da vida, sempre presente até mesmo numa curva, que é a negação da reta!

Marx diz que o gênero humano, agindo sobre a natureza exterior à sua consciência natural-humana e modificando-a materialmente, muda sua própria natureza humana, isto é, ele muda sua natureza física e intelectual e, com  isso, seu próprio mundo social.

A consciência humana, aprendi isso, não age apenas sobre a natureza inorgânica e orgânica – uma necessidade histórica inegociável à preservação da vida humana, há que produzir comida e as condições mínimas para a existência humana -, mas age também sobre a sua própria natureza sócio intelectual, age sobre si mesma, num processo doloroso de luta pela sobrevivência material-intelectual da vida concreta, na luta pelo conhecimento humano-universal contra a ignorância múltipla (repleta de ignorância místico-religiosa) e sedenta de sabedoria científica-libertadora das trevas, que deve enfrentar o ser social material e realmente existente, esta galáxia de pensamentos nada inocentes, pois revelam o grau desigual atingido de consciência social pela humanidade.

Recomendo a leitura de De Oscar a Niemeyer: meu convívio com o maior arquiteto contemporâneo, de  Ivan Alves Filho.

É um belíssimo trabalho que deve ser lido e nutrir as novas gerações que a vida democrática e pluralista vale a pena, que a solidariedade humana vale a pena, que a inteligência científico-criativa vale a pena, que lutar pela transformação do mundo para sair do reino da ignorância e do reino da necessidade para o reino da liberdade vale a pena.

E por fim, para não me alongar e tomar mais o tempo do leitor, a obra de Ivan mostra que a amizade verdadeira, leal, sincera, honesta e real deve ser sempre vivida, lembrada, valorizada e eternizada.

É uma práxis (esta atividade humana intelectual-material) perante a realidade do ser social que cerca o gênero humano e o determina e o leva, sob determinadas circunstâncias, a transformar objetivamente este mundo num mundo que faça a humanidade feliz.

Fica o meu modesto registro de congratulações não só ao autor como também ao eterno camarada Oscar Niemeyer.

Eduardo Rocha, Guarulhos, SP, domingo, 30/07/2023

Referências Bibliográficas

  1. Alves Filho, Ivan. De Oscar a Niemeyer: meu convívio com o maior arquiteto contemporâneo / Ivan Alves Filho, -- 1º ed. – Tiradentes, Minas Gerais, Brasil: Aquarius, 2023. 86 p.

  • Feijó, Martim Cezar. O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. São Paulo. Editora Boitempo Editorial, 2022. 256 p.

Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie, pós-graduado com especialização em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), articulista da Voz da Unidade, órgão oficial de imprensa do PCB, e secretário de Salomão Malina, último secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e dirigente Nacional do Partido Popular Socialista (PPS), sucessor do PCB.


Ivan Alves Filho: Niemeyer, o arquiteto do século XX

Nascido no Rio de Janeiro em 1907, Oscar Niemeyer projetou obras nos mais diferentes pontos do Brasil, do Estado do Rio de Janeiro a Minas Gerais, de São Paulo a Brasília. Fez mais, ainda: levou sua arquitetura para o mundo todo, realizando obras em Paris, Tel-Aviv, Caracas, Nova Iorque, Accra, Argel, Beirute, Milão, Londres. Nenhum arquiteto trabalhou tanto quanto ele no mundo. E com tamanha criatividade.

Nascido apenas duas décadas após o fim da escravidão, Oscar Niemeyer cresceu em um país que buscava desesperadamente romper com o seu passado colonial, vendo na industrialização a chave para superar o terrível atraso em que se encontrava.

A nova arquitetura refletirá as mudanças em marcha. Assim, com a urbanização surgem também os novos materiais, inaugurando a era do domínio quase absoluto dos tijolos e do ferro nas construções. O Brasil ingressava na modernidade, tornava-se, de alguma forma, cosmopolita.

Formado em 1934, pela Escola Nacional de Belas-Artes, Niemeyer integraria, juntamente com Lúcio Costa e Le Corbusier (este último importante arquiteto suíço), o grupo de trabalho que foi responsável pela edificação do então Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio da Cultura, localizado no centro do Rio de Janeiro. A grande contribuição de Niemeyer ao projeto consistiu em elevar ainda mais a base de pilotis do prédio, que passou de quatro para dez metros (“altos, monumentais, criando espaços livres”, conforme definiria o próprio arquiteto). Em 1940, projetaria na histórica cidade de Ouro Preto, berço da Conjuração Mineira, um hotel ao mesmo tempo moderno e respeitoso das linhas arquitetônicas tradicionais do barroco.

Mas o seu trabalho principal, por essa época, é, indiscutivelmente, a Pampulha, o novo bairro que projeta nas cercanias de Belo Horizonte. De tudo que conceberia na Pampulha, destaca-se a Igreja de São Francisco, a surpreender a todos: com essa singularíssima obra, Niemeyer rompia com a chamada “ditadura do ângulo reto”, introduzindo a linha curva, para não dizer ondulada, nesse tipo de construção. “Pampulha foi para mim o começo da minha vida de arquiteto”, escreveria mais tarde, revelando a importância do aprazível bairro de Belo Horizonte para os rumos do seu trabalho. Em 1946, soava a hora da consagração internacional e Oscar Niemeyer projetaria nada mais nada menos do que a sede da Organização das Nações Unidas , em Nova Iorque.

Mas o melhor ainda estaria por vir — Brasília. Oscar Niemeyer concebeu os principais projetos da nova capital brasileira, do Palácio Alvorada ao Palácio do Planalto, do Congresso Nacional à esplendorosa Catedral vazada de luz. Tudo em Brasília é leve, como que flutuando no ar. “Procurei especular no concreto armado”, justificou-se mais tarde Niemeyer, “nos apoios, principalmente, terminando-os em ponta, finos, finíssimos, e os palácios como que apenas tocando o chão”.

Brasília mudou o eixo de desenvolvimento do Brasil, um país até então tradicionalmente voltado para o seu litoral. Niemeyer e seus companheiros de trabalho plantaram uma semente em pleno Cerrado, cabendo ao povo brasileiro fazê-la frutificar. Como quis o crítico Otto Maria Carpeaux, Brasília foi acima de tudo “um ato de afirmação de todo um povo, ao qual não pode faltar o sopro da poesia”. Hoje, parcela considerável da população brasileira — isto é, cerca de 30 milhões de pessoas — tem suas vidas diretamente ligadas a Brasília. São mineiros, goianos, paraenses, cearenses, cariocas, baianos, brasileiros de todos os cantos, como que atestando que sem Brasília faixas imensas do território nacional teriam permanecido despovoadas.

A nova capital empolgou o país e encantou o mundo. O célebre escritor francês André Malraux, então Ministro da Cultura de Charles De Gaulle, não hesitaria em dizer que

as únicas colunas comparáveis em beleza às colunas gregas são as do Palácio do Alvorada.
E isso não é pouco. Mas tem mais: André Malraux intercederia junto ao presidente Charles De Gaulle para que ele concedesse uma licença especial de trabalho para Niemeyer na França. E De Gaulle, consciente da importância do arquiteto brasileiro, prontamente aquiesceu.

Quando Brasília foi inaugurada, Oscar Niemeyer tinha pouco mais de cinquenta anos e já poderia ser considerado um nome internacional. O mundo inteiro o convocava, queria ter uma obra sua. E o arquiteto atende, 'a medida do possível, os novos pedidos, assumindo na prática o papel de embaixador da cultura brasileira. Afinal, nenhum arquiteto traduzia melhor do que ele as necessidades e a própria sensibilidade do homem moderno. Niemeyer expõe em um anexo do Museu do Louvre, em Paris, e é o primeiro arquiteto a fazê-lo. Projeta na África, na Ásia e na Europa.

Com o advento da ditadura militar de 1964, que o persegue por sua condição de membro do Partido Comunista Brasileiro, Oscar Niemeyer busca refúgio no exterior. As portas do mundo se abrem cada vez mais para ele e data dessa época a construção de prédios referenciais, como a sede do Partido Comunista Francês, hoje um ponto turístico de Paris, e a sede da editora Mondadori, em Milão, com seus “arcos assimétricos, suspensos por cabos de aço”, conforme destacou o crítico de artes plásticas e poeta Ferreira Gullar. Com Niemeyer, a própria engenharia brasileira se modernizava e internacionalizava.

Com os novos ventos da democracia, Oscar Niemeyer volta definitivamente ao Brasil. Projeta duas de suas mais importantes obras por essa fase, respectivamente o Hotel Nacional, no Rio de Janeiro, e o Museu de Arte Contemporânea, em Niterói. Esse último, criado em 1996, já recebeu a visita de milhões de pessoas e isso em cidade de pouco mais de quinhentos mil habitantes... Depois disso ainda, o arquiteto inauguraria ainda obras como o Novo Museu do Paraná, em Curitiba (2001) e o Hyde Park Pavillion, em Londres (2003). Por essa última obra, foi considerado, pela imprensa especializada londrina, “o Picasso da arquitetura”.

Uma obra de Oscar Niemeyer, dir-se-ia, vem com selo de garantia de fluxo turístico. O arquiteto atrai multidões hoje. Afinal, tratava-se do último modernista então vivo. Picasso, Chagall, Akira Kurosawa, Le Corbusier, Eisenstein, Chaplin, Modigliani, Cartier-Bresson, todos os grandes gênios modernos já tinha falecido. Niemeyer continuava atuando. Ele, o amigo de Jean Paul Sartre e Juscelino Kubitschek, o irmão de lutas de Luiz Carlos Prestes e Agildo Barata. O comunista. O artista. O solidário. Um homem que viveu o seu tempo como nenhum outro talvez.

E tudo por causa da beleza, sempre ela. Ocorre que Oscar Niemeyer contesta pelo Belo, como a demonstrar que o mundo que imagina para o nosso povo tem de ser melhor do que aquele em que esse mesmo povo leva a sua sofrida existência. É o imaginário re-criando o real, opondo-se às suas asperezas. A realidade imaginada é sempre mais bela — e essa é talvez a grande lição da arte de Niemeyer.

Juntamente com os antigos, Oscar Niemeyer poderia dizer que “de todas as coisas o homem é a medida”. Assim, a finalidade da nossa existência é a justificação das nossas necessidades. E nem poderia ser de outra forma: na arquitetura, contrariamente ao que se dá na pintura ou na escultura, o espaço é apropriado pelo homem e não apenas representado ou figurado por ele. Olhamos e admiramos o espaço de uma tela, mas ocupamos o espaço arquitetônico. A arquitetura é a única arte que possibilita ao homem viver dentro dela. E uma arquitetura só é verdadeiramente humana se o homem de fato a domina, não se deixando esmagar por ela. Foi o que Niemeyer compreendeu — daí construir à escala dos homens.

Para Oscar Niemeyer, o espaço da arquitetura pode e deve unir trabalho e lazer, beleza e afazeres cotidiano. Ou seja, o arquiteto percebeu que nas argamassas das construções também pulsam os nossos corações. Mais: que a alma encantadora das ruas é a mais singela das arquiteturas. Com essa ótica, o espaço existe para ser apropriado pelo homem — ou a arquitetura perde a sua razão de ser. E é justamente essa concepção humanista da arquitetura que Oscar Niemeyer — o arquiteto do século no Brasil, escolhido por unanimidade pelos seus pares do Instituto dos Arquitetos do Brasil, em cerimônia realizada em fevereiro de 2001, no Rio de Janeiro — sempre levou para o mundo para o mundo.

Tenho muitas saudades dele. Das conversas em seus escritórios do Rio de Janeiro e em Paris, do período em que morei em sua casa na Argélia. Na última vez que falei com ele, pouco antes de sua morte, ele me perguntou: "Você está feliz?". Era a sua maneira de nos cumprimentar, de dizer bom dia. Com ele, perdi mais do que um amigo e companheiro de lutas partidárias: perdi também um membro da minha família.

Haja argamassa e haja coração.

* Ivan Alves Filho é historiador.