olavo de carvalho

El País: 'Destruição é a agenda do Tradicionalismo', a ideologia por trás de Bolsonaro e Trump

Benjamin Teitelbaum passou 15 meses entrevistando os principais ideólogos conservadores atuais para escrever ‘Guerra pela eternidade’, que mostra a relação entre os gurus Olavo de Carvalho e Steve Bannon com esta ideologia antimodernista e de fundamentos religiosos

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a escalada populista com flerte autoritário dos Governos de Jair Bolsonaro Donald Trump suscita comparações com o fascismo. Mas para o pesquisador da extrema direita e etnógrafo norte-americano Benjamin Teitelbaum, autor do livro Guerra pela rternidade (Editora da Unicamp, War for eternity: inside Bannon’s far-right circle ―no título original, em inglês), a cruzada em curso contra valores modernos e democráticos nos dois países pode ser melhor compreendida a partir de uma outra doutrina menos conhecida, o Tradicionalismo (com ‘T’ maiúsculo, para diferenciá-lo do conservadorismo tradicional). Não que a alternativa seja melhor, o autor se apressa em esclarecer.

Baseado em mais de 15 meses de pesquisa e entrevistas com ideólogos conservadores como o ex-estrategista da Casa Branca Steve Bannon, o guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, e o conselheiro do presidente russo Vladimir Putin, Aleksandr Dugin, Teitelbaum descreve em seu livro como essa teoria obscura seguida por eles têm influenciando os governos dos Estados Unidos, do Brasil e da Rússia.

Nesta entrevista concedida por vídeochamada ao EL PAÍS, o professor de Assuntos Internacionais e Etnomusicologia da Universidade do Colorado (EUA) explica por que ele considera esta ideologia mais radical em suas concepções antimodernistas do que o próprio fascismo. “Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo”, alerta. Mesmo após a derrota de Trump e a prisão de Bannon (sob acusação de desvio de recursos para a construção do muro entre os EUA e o México), o autor avalia que as forças que eles representam continuarão vivas —e testando as instituições democráticas. Também examina como o Tradicionalismo legitima desde o racismo até a propagação de teorias conspiratórias em relação à pandemia do coronavírus.

Pergunta. Seu livro descreve como o Tradicionalismo, que até pouco tempo era considerada uma doutrina marginal dentro da própria extrema direita, alcançou influência global. Para quem ainda não leu o livro, como o senhor sintetizaria essa doutrina?

Resposta. O Tradicionalismo é originalmente uma escola espiritual filosófica que se tornou política em certo nicho. Os seguidores basicamente acreditam que a humanidade está ao fim de um longo ciclo de declínio e que vai ser concluído com destruição e renascimento. O que foi perdido neste ciclo de declínio foi o conhecimento verdadeiro da religião e também a ordem nas nossas sociedades —incluindo a diferença entre homens e mulheres, posições sociais e espirituais. No lugar disso, teríamos um mundo massificado e secularizado, neste processo de modernização. O Tradicionalismo acredita que é preciso haver um cataclismo para restaurar o que acreditam ser a verdade. Um dos elementos desse Tradicionalismo politizado de direita é acreditar que é preciso restaurar uma hierarquia onde homens arianos e líderes espirituais estão no topo, em oposição a materialistas, não-arianos e mulheres.

P. Quais as principais consequências do Tradicionalismo, e o que mais lhe surpreendeu durante a pesquisa para o livro?

R. Vou começar pelo fim. A grande consequência é que o Tradicionalismo acrescenta uma motivação espiritual para o que poderia ser simplesmente uma agenda política do populismo de direita, antiglobalista, antiprogressista. As pessoas podem aderir a isso por diferentes razões, como ressentimento econômico, racismo, antifeminismo… Mas o Tradicionalismo oferece uma motivação religiosa. E esse é um elemento importante. No caso de Olavo de Carvalho, por exemplo, ele não expressa apenas um ódio às elites, desprezo à ciência, à mídia, às universidades. Existe também a visão, um certo mandato espiritual, com o desejo de destruir grandes organizações, como a União Europeia, as Nações Unidas. A seus olhos, a destruição é uma coisa boa. Isso é assustador e preocupante. Os tradicionalistas acham que essas grandes organizações querem unificar e homogeneizar o mundo com o comunismo, ou com dominação chinesa. Então Olavo quer ver o establishment no Brasil ser quebrado em peças e fraturado: sejam os militares, a universidade, a mídia. Destruição é a agenda.

O que me surpreendeu é que não sei por que isso aconteceu agora. Olavo, Bannon e Dugin são bem diferentes. Não conseguem trabalhar juntos, não é um círculo funcional. Mas o estranho é que essas ideias extremas acabaram vindo à tona basicamente no mesmo momento, e não pelas mãos de Bolsonaro, Trump, e Putin, mas pelas mãos das figuras atrás deles, como uma espécie de Rasputin... os conselheiros místicos, influentes.

P. Desde a publicação do livro nos Estados Unidos, no início deste ano, o cenário político mudou. Bannon foi para a prisão e Trump perdeu as eleições. Como você interpreta essas mudanças?

R. Eu sinto quase como se isso pudesse liberar a verdadeira mensagem do livro, porque o real sujeito do livro não são as ações de Bannon, Olavo e Dugin. É a história mais ampla por trás disso, para entender por que em lugares diferentes, com trajetórias independentes, vimos essa ideologia aparecer. A história não é sobre a ação de indivíduos. É sobre o que está por trás disso tudo, porque nos encontramos em um momento em que as pessoas estão buscando ideologias que parecem destoar tanto do padrão. E essa ideologia não é o comunismo, não é liberalismo, não é fascismo. O Tradicionalismo é tão fora do mapa que nenhum cientista político, nenhuma think tank em Washington, ninguém no Congresso e nenhum candidato à presidência jamais ouviu falar dele. E esse movimento ainda assim se sustenta. Há tanto desencanto, tanta frustração com o status quo, que nós vemos atores buscando alternativas radicais.

P. Vários pesquisadores vêm definindo essa guinada populista de direita que estamos vivendo em países como Brasil e Estados Unidos como uma retomada do fascismo. Você discorda, então?

R. Eu discordo, e isso não é pra dizer que eu acho que é melhor. Essa definição é errada, e há um certo nível de falta de interesse e rigor que leva a essa caracterização como fascismo. Mas o único jeito de compreender essa ideologia é levá-la a sério e ouvir o que ela realmente diz, em vez de olhar apenas a fachada. O Tradicionalismo é anti-progressista num nível que raramente vemos. Muitas pessoas costumam chamar a si mesmas de conservadoras, mas quase todo mundo no campo conservador é basicamente progressista no mundo ocidental. Elas acreditam que, se você reduzir as regulações governamentais do capitalismo e aumentar a liberdade individual sobre a propriedade, você pode criar uma sociedade melhor. Eles não são nostálgicos. O Tradicionalismo vai na direção diametralmente oposta. Eles não acreditam que é possível mudar ou melhorar a história, acham que é preciso desfazer todo o mal feito para as nossas sociedades, e isso não significa voltar apenas décadas para trás, mas séculos.

P. Qual a principal diferença entre o fascismo e o Tradicionalismo?

R. O fascismo é futurista, modernista, a despeito de tudo. Hitler e Mussolini queriam transformar radicalmente suas sociedades, revolucioná-las. O Tradicionalismo vai na direção contrária: quer voltar para trás, num nível que ninguém leva muito a sério. E é nesse ponto que as ideologias se separam. Ambas se opõem ao feminismo, ao multiculturalismo, às políticas emancipatórias contemporâneas. Mas as diferenças são significativas. Há um elemento de destruição no Tradicionalismo que não necessariamente existe no fascismo.

P. Você descreve no livro que certos autores tradicionalistas, como o italiano Julius Evola, colaboraram com o fascismo e com o nazismo. Qual o marco dessa separação ideológica?

R. O fascismo historicamente era amistoso com a ideia de modernização e com o pensamento científico. Quando Evola rompeu com os nazistas, foi justamente quando ele achou que eles estavam sendo materialistas demais, científicos demais. O entendimento de raça dos nazistas era visto como muito modernista e biológico para ele. O grande contexto é que o Tradicionalismo é cético em relação à ciência. E não acho que seja coincidência que pessoas na administração Bolsonaro, como Ernesto Araújo, e o próprio Olavo e pessoas de seu círculo, que leem e celebram o trabalho de autores como Guénon [o francês René Guénon, patriarca do Tradicionalismo] e Julius Evola, sejam também os mais adeptos a teorias da conspiração em relação ao coronavírus. Isso não é muito facilmente explicável olhando para o fascismo. É muito mais fácil de entender pelas lentes do Tradicionalismo.

P. Um ingrediente comum das teorias da conspiração em relação ao coronavírus é culpar a China pela pandemia. Seu livro conta que Bannon recebeu um milhão de dólares para militar contra o Partido Comunista Chinês. Não parece ser coincidência que, antes de ser preso, Bannon também tenha sido um dos primeiros a articular essa narrativa conspiratória do “vírus chinês”. No Brasil, vemos o mesmo discurso contra a China. Por que esta questão é tão crucial?

R. No caso de Bolsonaro, isso parece se justificar por uma oposição ao comunismo. Mas, para Bannon e Ernesto Araújo, há uma questão mais específica: o fato de a China ser secular, antirreligião, e ao mesmo tempo massificante, globalizante, por estar eliminando fronteiras. Isso é um problema para os nacionalistas. Não por acaso, Araújo escreveu em seu blog meses atrás que o maior problema não era o fato de a China ser um país contra o capitalismo, mas por ser contra o espírito. Então, para os tradicionalistas, a China não é uma vilã apenas pela questão econômica, mas é um demônio metafísico.

P. Como você vê o papel do Olavo nesse contexto?

R. Comparando com os outros, Olavo é ao mesmo tempo o mais tradicionalista de todos e também o menos. É mais porque não há um partido tradicionalista oficial, um clube, então o único jeito de ser oficialmente afiliado é ser iniciado em um centro religioso afiliado às ideias de Guénon, por exemplo, que podem ser centros hare krishna ou tariqas muçulmanas sufistas. E Olavo foi iniciado numa dessas linhas muçulmanas. Essas são credenciais tradicionalistas muito antigas, que são passadas por uma longa rede de pessoas. Mas olhando para Olavo hoje, ele não segue o Tradicionalismo de forma ortodoxa. É como se o Tradicionalismo fosse um tempero em seu pensamento. E isso é comum entre os tradicionalistas, pessoas que são inspiradas por essas ideias, mas as misturam com outras. E esse parece ser o caso de Olavo.

P. Depois da publicação, o Olavo atacou você, classificando-o como mentiroso.

R. Olavo disse que eu era um mentiroso, mas ele nunca respondeu quando eu enviei para ele um capítulo do livro antes da publicação. Os documentos que reuni mostram basicamente que Olavo se converteu ao islã, era chamado de Sidi Muhammad. E eu acredito que ele ainda seja, de acordo com algumas tradições religiosas.

P. Você disse que Olavo foi o “pior” dos seus entrevistados, o que reagiu de forma mais furiosa à publicação do livro. Por que você acha que Olavo teve a pior reação?

R. Eu acho que há duas coisas: primeiro, que ele ficou um pouco envergonhado de eu expor sua ligação com a tariqa do Schuon [Frithjof Schuon, herdeiro intelectual de Guénon], porque isso contradiz a imagem que ele projeta hoje, de um cristão zeloso. E ele fala e escreve melhor baseado em uma posição de vitimização. É mais fácil me chamar de mentiroso, em vez de ter revisado os materiais que eu havia mandado para ele com antecedência. E há uma questão de personalidade. Eu não quero fazer uma psicanálise, mas nenhum dos outros personagens pareceu tão desapontado.

P. Quando eu entrevistei Olavo, ele me disse que não tinha projeto para a sociedade, que ele só sabia o que ele era contra, não o que era a favor. Isso parece reforçar essa lógica tradicionalista de destruição.

R. Interessante você mencionar isso, porque uma das coisas mais perspicazes que o Olavo me disse durante sua entrevista foi uma frase sobre o tradicionalista René Guénon. Ele disse que Guénon estava certo em tudo o que ele rejeitava e errado sobre tudo o que ele apoiava. E, de certa forma, senti quase como se o Olavo estivesse falando de si mesmo quando estava falando isso. Ele pode criticar , mas não há meta alguma. Não há muito o que construir, é tudo sobre destruição. E se você pensar historicamente, a crítica é muito fácil. A construção de algo é que é difícil. Olhando para o pensamento conservador, a crítica que fazem ao marxismo é justamente o fato de Marx criticar tanto o capitalismo e não conseguir imaginar muito o que colocar no seu lugar.

P. Como o senhor imagina o futuro do Tradicionalismo?

R. Eu não sei quantas pessoas vão se identificar como tradicionalistas. O que eu sei é que muitos republicanos bem posicionados, trabalhando para organizações nacionais, estão mais sintonizados com o Tradicionalismo do que eu jamais imaginaria. O Tradicionalismo está circulando, e isso vem de leituras da alt right. Não é necessário que haja uma evangelização, não precisa. Steve Bannon nunca pensou em fazer isso. Essas são ideias circulando entre a direita intelectual dissidente, pessoas que querem tomar o lugar dos conservadores nos Estados Unidos. Então essas ideias são atraentes para pessoas que se consideram intelectuais e ideólogos. Mas eu acredito que isso é o sintoma de algo maior. Há uma frustração e uma insatisfação política que vai fazer com que essas pessoas continuem procurando ideólogos e pensadores que querem alternativas e mudanças radicais, que querem repensar nossa democracia. E isso pode acontecer via Tradicionalismo ou outra ideologia, mas eu acredito que continuaremos vendo essa tendência.

P. Como a derrota de Trump afeta essa tendência? O movimento se enfraquece?

R. Trump perdeu, mas ele continua sendo incrivelmente popular entre a direita. Não há nada parecido, nenhum republicano jamais recebeu tantos votos nos Estados Unidos. E além disso os republicanos ainda foram muito bem nas votações do Senado, no Congresso. Eles têm uma penetração crescente entre grupos minoritários e pessoas sem diploma. Tenho entrevistado muitos jovens republicanos e eles seguem a cartilha de Trump. Eles acreditam que Trump mostrou que, se conseguirem combinar políticas econômicas liberais com políticas sociais conservadoras, eles podem vencer os democratas. Isso deve manter a ideologia trumpista viva.

P. E como o senhor vê as perspectivas para Bolsonaro, um dos maiores aliados de Trump, após a vitória de Biden?

R. Bolsonaro tem um problema real, não vejo o mesmo potencial para ele. Me parece que ele se antecipou ao se aliar aos Estados Unidos e virar as costas para a China. Agora que os Estados Unidos subitamente se transformaram e não o querem mais como parceiro, quem serão os amigos de Bolsonaro? Acho que o que salva Bolsonaro é que nem todos os seus subordinados no setor público levam tão a sério suas ameaças à China e seguem fazendo seu trabalho para manter as relações. Se tudo o que ele diz fosse levado à risca, o Brasil estaria realmente em apuros.

Antes também tínhamos Bannon, que fazia uma boa interlocução com o governo Bolsonaro. Havia um círculo, formado por Araújo, Bannon, Olavo, o embaixador brasileiro, e Gerald Brant. Eles tinham jantares juntos, confraternizaram frequentemente, em todas as visitas, mesmo Bannon não tendo cargo oficial no Governo Trump. Agora que tudo isso implodiu, é difícil saber quem manterá o entusiasmo por Bolsonaro em Washington. Trump não se importa muito.

P. O senhor tem formação em música. Como começou a pesquisar a extrema direita?

R. Eu era um etnomusicólogo e estava estudando a relação entre música e cultura. Estava na Suécia e ia escrever uma dissertação sobre um ritmo assimétrico na música folk sueca. Ninguém no mundo ia ler isso (risos), mas enquanto eu estava lá a extrema direita assumiu o poder no país, e eles disseram que iriam investir na música folk sueca. Achei isso interessante, e decidi entrevistá-los sobre isso. Percebi que isso significava uma grande mudança para eles. Historicamente, a extrema direita era associada à música metal skinhead white power, mas, assim que tomaram o poder, queriam transformar sua imagem. Então havia uma história ali, a história de como estavam tentando reconstruir sua imagem não pela política, mas pela música.

Esse foi o começo, há mais de uma década. O interessante é que quando eu dizia para as pessoas que era um pesquisador de música, as pessoas falavam comigo. Se eu dissesse que era jornalista, historiador, ou cientista político, certamente ficariam mais desconfiados. Quando você chega perguntando sobre sua agenda política, eles se assustam. Mas se você chega perguntando que tipo de música eles mais gostam, eles se abrem.

P. Uma pergunta que ouço com frequência é por que devemos estudar pessoas como Olavo de Carvalho, ou Bannon. Há quem diga que são malucos, radicais, e que ao escrever sobre eles estaríamos dando plataforma. Por que, na sua opinião, é importante estudá-los?

R. Eu sou um acadêmico. Sou um etnógrafo, um antropólogo. E antropólogos estudam pessoas. Acreditam que todos merecem ser estudados. Meu editor tem uma explicação diferente. Ele diz que essas pessoas geram consequências, e que por isso precisamos compreendê-las. Acho que há um outro aspecto importante: muita análise que se faz da extrema direita é realmente ruim, simplista. Existe tanto medo em contribuir para a criação de mitos que a resposta acaba sendo muito simplista, com rótulos como ‘eles são racistas’, ‘eles são nazistas’. Mas devemos prestar atenção para o fato de que esse discurso também é anti-intelectual. As pessoas ficam com medo dos detalhes, das nuances. E a consequência acaba sendo uma falta de entendimento, se perde o grande contexto. Quando você estuda um fenômeno social, as questões precisam ser bem mais amplas do que se isso é bom ou ruim.


Elio Gaspari: Foi o dedo de Frei Orlando

A fala de Pujol, acompanhada por manifestações dos comandantes da Marinha e da Força Aérea, foi um sinal necessário

Três dias antes do naufrágio eleitoral da jangada de Jair Bolsonaro, o comandante do Exército, general Edson Pujol, disse que a tropa não se mete na política e que a política não deve entrar nos quartéis. Essa coincidência só pode ser atribuída a uma interferência de Frei Orlando, o capelão franciscano do 11º Regimento de Infantaria que tomou um tiro na Itália em fevereiro de 1945, dias antes do ataque a Monte Castelo, e tornou-se patrono da assistência religiosa do Exército. Se Pujol tivesse dito o que disse quatro dias depois da eleição de domingo, a leitura seria toda outra.

Em dois anos de governo, Bolsonaro levou as Forças Armadas do paraíso ao purgatório. Décadas de distanciamento e relativo silêncio foram substituídas por militâncias desconexas em torno de um presidente errático, nepotista, com um pé na superstição. Laboratórios do Exército receberam ordem para fabricar cloroquina. Felizmente, o capitão desistiu da promessa de visitar, nos Estados Unidos, a empresa de militares aposentados que pesquisava a transmissão de energia elétrica sem fio. Para quem acredita em lendas da floresta, essa mágica teria impedido o apagão do Amapá.

A fala de Pujol, acompanhada por manifestações dos comandantes da Marinha e da Força Aérea, foi um sinal necessário, cuja eficácia dependerá do prosseguimento de um exercício diário de chefia e disciplina.

O vírus da atividade política entrou nas Forças Armadas, sobretudo no Exército, durante o governo de Michel Temer e o comando do general Eduardo Villas Bôas. Naqueles dois anos tumultuados, ele teve mais protagonismo público que seu antecessor, Enzo Peri, em oito.

Pujol teve o apoio do vice-presidente Hamilton Mourão. Bom sinal, vindo dele. Em 2015, Mourão perdeu o importante comando do Sul e foi mandado por Enzo Peri para a mesa da Diretoria de Finanças porque se meteu em política. Em 2017, quando reincidiu, foi poupado por Villas Bôas. Mourão destacou-se defendendo ou justificando extravagâncias. Associando-se ao deputado Jair Bolsonaro, ele e 57 milhões de eleitores aderiram a uma candidatura que prometia muitas coisas, sobretudo tirar o PT do palácio. Conseguiu-se, mas o cotidiano produziu um governo que expeliu o juiz Sergio Moro e incorporou negacionismos na saúde pública, no meio ambiente e nas relações internacionais.

Um oficial que ralou nas escolas militares pode apoiar um governo porque não gosta de seus adversários, ou mesmo porque algum amigo ou parente conseguiu um cargo público. Mais difícil é acertar o passo chamando pandemia de “gripezinha” e combatendo a vacinação obrigatória.

Andar para a esquerda é uma coisa, andar para trás, bem outra. A primeira tentativa de imposição da vacina obrigatória contra a varíola foi instituída em 1846, ao tempo de D. Pedro II. Artigo 29 do decreto de 17 de agosto: “Todas as pessoas residentes no Império serão obrigadas a vacinar-se, qualquer que seja a sua idade, sexo, estado, e condição”.

Para azar de quem não se vacinou, o decreto não colou, e 25 anos depois a varíola matou 1.200 pessoas no Rio.

Em 1906, dois anos depois da Revolta da Vacina e da inflexibilidade do presidente Rodrigues Alves e do doutor Oswaldo Cruz, morreram nove.


Como superar retórica do ódio? João Cezar de Castro Rocha sugere ética do diálogo

Em ensaio na revista Política Democrática Online de outubro, professor da Uerj cita que técnica do bolsonarismo pode ser aprendida e transmitida

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Professor Titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ensaísta, João Cezar de Castro Rocha sugere a busca pela ética do diálogo como caminho para superar a retórica do ódio. Em artigo na revista Política Democrática Online de outubro, ele explica que o combustível do bolsonarismo é uma técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. “Caracterizada a retórica do ódio, descritos os seus procedimentos textuais, damos o primeiro passo para sua superação. Isto é, precisamos abraçar a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes”, afirma Rocha.

De acordo com o professor da Uerj, a retórica do ódio, ensinada na pregação de Olavo de Carvalho, é uma técnica e, portanto, pode ser transmitida. “E, como uma técnica, possui elementos próprios. No caso do discurso de Olavo, destacam-se dois procedimentos: a desqualificação nulificadora e a hipérbole descaracterizadora”, afirma o ensaísta.

A esquerda, conforme analisa Rocha, é o alvo expresso da retórica do ódio. Isto porque, acrescenta ele, “é compreendida como bloco monolítico, representante da ‘mentalidade revolucionária’, e um conjunto determinado de recursos, sempre com a finalidade de eliminar o adversário”.

Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica olavista, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de alguém nenhum, segundo Rocha. “O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho”, afirma.

Como se trata de uma técnica, reforça o ensaísta, a desqualificação nulificadora foi apreendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes e deslikes. Além disso, segundo ele, foi traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.

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RPD || Ensaio - João Cezar de Castro Rocha: A desqualificação nulificadora

Ensaio de João Cezar de Castro Rocha analisa a retórica do ódio presente nas pregações do guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Falso silogismo olavista pode - e tem - de ser desmascarado, avalia

Tal como ensinada na pregação de Olavo de Carvalho, a retórica do ódio é uma técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.  

Trata-se de uma técnica — e esse aspecto deve ser sublinhado. Por isso, pode ser ensinada e transmitida. E como uma técnica, possui elementos próprios. No caso do discurso de Olavo, destacam-se dois procedimentos: a desqualificação nulificadora e a hipérbole descaracterizadora. 

A retórica do ódio tem um alvo expresso — a “esquerda”, compreendida como um bloco monolítico, representante da “mentalidade revolucionária” — e um conjunto determinado de recursos — sempre com a finalidade de eliminar o adversário.  

Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica olavista, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de alguém nenhum. O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho. E como se trata de uma técnica, a desqualificação nulificadora foi apreendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes deslikes, e, por fim, traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.  

O primeiro nível da técnica da desqualificação nulificadora não passa de um truque infantil. Olavo de Carvalho principiou o joguete: por que não desqualificar um adversário pela corrupção paródica de seu nome próprio? Não vou me estender muito mais nesse primeiro (des)nível. O historiador Marco Antônio Villa, torna-se Marco Antônio Vil; o pensador Mário Sérgio Cortella, Mário Sérgio Costela. Sem comentários... 

Venho, pois, ao segundo nível da desqualificação nulificadora. Trata-se da estigmatização que converte o outro numa mera caricatura, estimulando o seu sacrifício simbólico — pelo menos numa fase inicial.  

A estigmatização tem um alvo preciso, aliás, ponto de interseção entre olavismo e bolsonarismo: 

       Cada vez mais me convenço de que o movimento comunista tem sido a ÚNICA força agente no cenário mundial. O resto é apenas “reação”, termo com que os próprios comunistas o descrevem   com notável exatidão. (Facebook, 25 de setembro de 2016, grifos meus).  

A sequência da postagem é uma peça inadvertidamente dadaísta: 

       (...) Desde a II Guerra o “establishment” americano, incluindo um exército inteiro         de conservadores, tem como uma de suas principais ocupações acobertar — e             portanto ajudar — a penetração comunista nos altos círculos do governo,         tornando-a tanto mais poderoso e devastadora quanto mais invisível e imencionável. (grifos meus). 

um exército inteiro, não de democratas radicais, porém de conservadores, unidos na improvável missão de propiciar o triunfo do movimento comunista internacional, muito embora a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tenha sido dissolvida sem honra alguma em dezembro de 1991. Pois é... 

Chegamos assim ao terceiro nível da desqualificação nulificadora: eliminação do outro, pois no âmbito da retórica do ódio, o adversário é um inimigo a ser eliminado. 

Não exagero: leia esta postagem de 2018: 

       Quebrada a hegemonia intelectuala guerra cultural começa com a desocupação de espaços. Botar         para fora, da maneira mais humilhante possível, os farsantes e usurpadores. Isso exige militância organizada e PRESENÇA FÍSICA. (Facebook, 20 de março de 2018, grifos meus).  

PRESENÇA FÍSICA? Ameaçadoras letras maiúsculas, associadas à ideia belicosa de uma militância organizada? Compreende-se que a noção de guerra cultural pouco tem de metafórica, sendo antes a expressão de um desejo nada obscuro, explicitada por verbos como quebrarvarrereliminarapagar. Mais uma vez, o fantasma da hegemonia intelectual da esquerda é um falso passaporte que pretende legitimar toda forma de violência simbólica, que, agora sabemos, é o prelúdio cinzento da PRESENÇA FÍSICA — violenta, por óbvio.  

A desqualificação nulificadora é o meio através do qual a retórica do ódio e a Doutrina de Segurança Nacional vivem em permanente lua de mel, inventando inimigos em série. Esse é o passo mais importante na caracterização da retórica do ódio. Contudo, precisamos ainda descrever um segundo procedimento padrão da mentalidade revolucionária olavista, a hipérbole descaracterizadora. Se entendermos seu alcance, o castelo de cartas marcadas do sistema de crenças Olavo de Carvalho terá os dias contados.  

Hipérbole descaracterizadora  

A marca d’água da mentalidade olavista é o cacoete da redundância, que pretende, por assim dizer, manipular a consciência do leitor, já que a reiteração sistemática do que se acabou de dizer almeja, conscientemente ou não, paralisar o receptor, que assediado pelo mesmo sentido, confundindo a reflexão filosófica com a experiência iniciática.  

Comecemos a descrever a hipérbole descaracterizadora com o vídeo O Olavo tem razão 1: quem sou eu. O próprio fala de si. Um artigo que Ruy Fausto dedicou a sua obra serviu de pretexto.[1] Olavo então esclareceu a razão do impacto que produziu na cena brasileira.  

Escutemos: 

       E o que eu escrevi tem mais efeito do que o que ele escreveu, porque eu escrevo mil vezes melhor           do que esses caras, pô! É a coisa mais óbvia do mundo.  Eles             não sabem nem português, são uns             coitados, porra! Então... agora o que eu escrevo é vivo, é engraçado, tem humor, tem sentido, tem           conteúdo; então, é claro que acaba tendo muito mais repercussão. É obvio.[2] (grifos meus) 

A autoproclamação hiperbólica — eu escrevo mil vezes melhor —econfirmatória— o que eu escrevo é vivo, é engraçado, etc. —tornou-se a máscara sem medo usada por Olavo de Carvalho em sua persona nas redes sociais. O efeito é devastador: seus discípulos adotam o truque, embora em geral não disponham de formação sólida em área alguma do conhecimento. Rapidamente, e com invejável ousadia, ministram cursos online com base em dois ou três livros consultados dogmaticamente acerca de um tema aleatório. O resultado é o caos cognitivo que domina o cenário brasileiro contemporâneo.  

Nos textos de Olavo sempre estamos às voltas com o mais vasto empreendimento, envolvendo centenas de militantes-delatores infiltrados nas mais diversas instâncias do estado e na sociedade civil, e, claro, jamais houve na história do Ocidente uma tal empresa; naturalmente, não há nenhum precedente histórico para esse fenômeno, capaz de criar um império universal da impostura, pois, ao fim e ao cabo, um cérebro marxista nunca é normal.  

Ora, tomei frases soltas da trilogia de Olavo de Carvalho, e simplesmente alinhavei uma longa frase, tendo como ponto de fuga a “ameaça vermelha”, pânico que, no campo da direita e sobretudo da extrema-direita, confere verossimilhança às associações mais desconexas e às conclusões mais disparatadas. Inventei assim um aplicativo: o gerador automático de frases do sistema de crenças Olavo de Carvalho. É uma espécie de silogismo aristotélico de Napoleão de hospício. Isto é, no silogismo, digamos, com juízo, duas proposições verdadeiras possibilitam a inferência de uma terceira proposição igualmente válida. A primeira premissa é de caráter mais geral, a segunda, mais restrita, e a conclusão é derivada da relação entre as duas proposições anteriores. No exemplo sempre citado: 

       Todo homem é mortal. 

       Sócrates é homem. 

       Sócrates é mortal.  

Cristalino, não é mesmo? 

Agora, por efeito de contraste, o falso silogismo olavista pode ser desmascarado. Olavo parte sempre da conclusão — “o perigo vermelho” iminente, e, desse modo, pouco importa o conteúdo das proposições, que, logicamente, deveriam anteceder à conclusão. Como ela se encontra determinada à priori e jamais se altera, Olavo inaugurou uma nova modalidade de lógica: trata-se da lógica do vale-tudo. Em 2019, a conclusão pau-para-toda-obra conheceu uma formulação impecável: 

       Nada no mundo se compara à intensidade do ódio no coração de um esquerdista.            É implacável, incessantesem fim. (Twitter, 4 de novembro de 2019, grifos meus).  

A redundância e suas reiterações infinitas: se o ódio é incessante, já se sabe que é sem fim. Se essa é a ilação-matriz, então, literalmente qualquer conteúdo se torna inaceitável; mesmo as afirmações mais absurdas parecem razoáveis.  

Acredite! 

Vejamos alguns exemplos.  

       A tal quarentena é A MAIOR FRAUDE DA HISTÓRIA HUMANA. (Twitter, 20 de abril de 2020,            grifos meus). 

       Para o futuro do Brasil,  a luta contra os comunistas é prioritária. O resto é TUDO desconversa,          oba-oba e carreirismo. TUDO. (Facebook, 15 de setembro de 2020, grifos meus) 

A mentalidade do Messias Bolsonaro ecoa essa lógica do vale-tudo. Recentemente, diante do fracasso óbvio da política econômica de seu governo, o presidente levantou a suspeita da presença de “infiltrados do PT” na equipe econômica.[3]Os ineptos ministros da Educação justificam a inação de suas gestões recorrendo à noção olavista das centenas de militantes infiltrados. O predomínio do silogismo de Napoleão de hospício nas altas esferas da administração pública somente torna ainda mais agudo, quase dramático, o paradoxo: o êxito do bolsonarismo implica o fracasso do governo Bolsonaro. 

hipérbole olavista é descaracterizadora porque ela suprime deliberadamente as mediações entre os pontos tratados num argumento qualquer. Transita-se do alfa ao ômega sem pausa alguma, numa vertigem que impede a reflexão e despreza o conceito. O uso constante de letras maiúsculas apenas dá forma visual ao efeito pretendido, qual seja, a adesão absoluta ao exposto pelo mestre-sabe-TUDO. 

O inquietante é a homologia entre o recurso estilístico olavista e a natureza autoritária do projeto político bolsonarista. Em ambos os casos, o propósito último é o de abolir toda forma de mediação, a fim de estabelecer seja o controle da consciência dos discípulos, seja o estabelecimento de uma “democracia” direta por meio da abolição das mediações institucionais entre poder e cidadania.  

Caracterizada a retórica do ódio, descritos os seus procedimentos textuais, damos o primeiro passo para sua superação. Isto é, precisamos abraçar a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes. 


[1] Ruy Fausto. “Única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões”. Folha de SPaulo, 30 de novembro, 2018: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/unica-coisa-rigorosa-no-discurso-de-olavo-sao-os-palavroes-diz-ruy-fausto.shtml

[2] O Olavo tem razão 1: quem sou eu: https://www.youtube.com/watch?v=5q1FhFgjBhY

[3] Thiago Bronzatto. “Bolsonaro desconfia de ‘infiltrados do PT’ na equipe econômica”. Revista Veja, 27 de setembro de 2020: https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-desconfia-de-infiltrados-do-pt-na-equipe-economica/

https://youtu.be/5q1FhFgjBhY

RPD || João Cezar de Castro Rocha: A mentalidade bolsonarista

A ascensão da direita, articulada desde meados da década de 1980, primeiramente na caserna e depois no movimento civil, preparou a vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018, avalia João Cezar Rocha em seu artigo

Almejo, neste artigo, caracterizar brevemente a mentalidade bolsonarista por meio da guerra cultural, isto é, a ponta de lança de um projeto autoritário, com base no resgate insensato da Doutrina de Segurança Nacional, no alinhamento cego à matriz narrativa conspiratória do Orvil e na adesão náufraga ao sistema de crenças Olavo de Carvalho.

De fato, a ascensão da direita é anterior à emergência do bolsonarismo, o que favoreceu sua possibilidade de êxito. Em boa parte dos estudos acerca do fenômeno, o efeito é tomado como causa. O bolsonarismo não possibilitou o triunfo eleitoral da direita, mas, pelo contrário, a ascensão paulatina da direita, articulada desde meados da década de 1980, preparou a vitória do Messias Bolsonaro no segundo turno, em 2018.

Hora, portanto, de analisar esse fenômeno sem preconceitos, destacando a força incomum da presença de um escritor, metamorfoseado em ativista político no reino encantado do universo digital. Refiro-me a Olavo de Carvalho, artífice de uma retórica do ódio que ameaça levar o país a um esgarçamento inédito.

Debruçar-se sobre o fenômeno é fundamental. De imediato, menciono quatro fatores, cuja inter-relação esclarece o caráter orgânico da ascensão da direita nas últimas duas décadas. A redução desse movimento à vocação golpista, atribuída ao impeachment de 2016, tem paralisado a esquerda, que, assim, se revela incapaz de entender a importância de uma juventude de direita, força decisiva na política brasileira dos últimos anos. Pelo menos desde 2002 – muito antes, portanto, de 2013.

A simples enumeração dos elementos ilumina a incompreensão ainda hoje predominante:

1) a ação de Olavo de Carvalho na década de 1990, ampliando o repertório bibliográfico e fortalecendo a musculatura da direita por meio de polêmicas estratégicas contra ícones da esquerda;

2) uma fissura geracional que escapou aos cálculos da esquerda, em geral, e do Partido dos Trabalhadores, em particular. As quatro eleições presidenciais, legitimamente vencidas pelo PT, possibilitaram a associação automática entre establishment, sistema político e campo da esquerda; daí, pela primeira vez na história republicana brasileira, foi possível considerar-se de oposição por ser de direita;

3) o conflito geracional foi agravado pela difusão da tecnologia digital e sua apropriação criativa e irreverente por uma inédita juventude de direita, cuja presença nas redes sociais materializou-se nas multitudinárias manifestações a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff;

4) por fim, a partir de 2013, no princípio timidamente, porém de forma ostensiva já em 2015, a direita começou a disputar as ruas com o campo da esquerda, um desdobramento surpreendente para qualquer analista, pois as ruas pareciam propriedade simbólica dos que estavam à margem do poder, ou seja, antes do triunfo eleitoral do PT, a própria esquerda. Os 14 anos de permanência do PT no Governo Federal alteraram de maneira profunda a ecologia da política brasileira, sem que tal abalo fosse imediatamente perceptível.

Iniciadas em março de 2015 e ampliadas em abril, agosto e dezembro do mesmo ano, as manifestações de rua da direita explodiram em março de 2016, revelando ao país uma organização sólida de grupos conservadores, com destaque para movimentos articulados nas redes sociais, que, com grande desenvoltura, tomaram os céus de assalto, não para defender a revolução, porém, todo o oposto, para derrubar o único partido de esquerda que chegou à Presidência do Brasil.

Em relação aos quatro fatores que terminei de elencar, o último é o mais visível e muitas vezes o único considerado na ascensão da direita. Por isso, ela é reduzida ao ânimo golpista. E esses dois elementos se encontram: a juventude de direita, ativíssima nas redes sociais, formou sua visão de mundo primariamente por meio do sistema de crenças Olavo de Carvalho, apreendido por meio das mesmas redes sociais — e, aqui, a redundância é o sal da terra.

Para dizê-lo de forma direta: desde meados dos anos 1980, como uma reação à distensão implementada pelo general Ernesto Geisel, na década anterior (1974-1979), e sobretudo à redemocratização, conduzida aos trancos e barrancos pelo general João Batista Figueiredo (1979-1985), um movimento subterrâneo de direita foi articulado, inicialmente na caserna e, posteriormente, na sociedade civil.

O Orvil é o modelo narrativo adotado pelo bolsonarismo. Trata-se de documento-chave que oferece o relato de uma permanente “ameaça comunista”, fortalecendo o discurso da atual extrema-direita no Brasil, pois se trata do livro de cabeceira da família Bolsonaro. Ele foi um livro preparado pelo Exército entre 1986 e 1989, cujo objetivo era denunciar a “ameaça comunista”. A ascensão da direita, um movimento de duas décadas, explodiu em 2015 e 2016, porém sua intensidade foi preparada lentamente por meio da criação de uma linguagem própria, saturada de clichês anticomunistas com ressonâncias anacrônicas da Guerra Fria, ademais do recurso a uma moldura narrativa com base nas tentativas de tomada do poder por parte da esquerda brasileira, “naturalmente” em acordo com o movimento comunista internacional, numa vasta trama de proporções apocalípticas. O próprio subtítulo de Orvil, tentativas de tomada do poder, revela o sentido das teorias conspiratórias que presidem a mentalidade bolsonarista, autêntica matriz de suas obsessões. Por fim, não se negligencie o milagre às avessas da proliferação de teorias conspiratórias involuntariamente dadaístas.

Nas páginas finais do Orvil, o inimigo comum das próximas décadas é identificado: “Entende-se que o ‘partido de Lula’ é o principal resultado da luta da classe operária”.[1] Decifre-se a esfinge: sem um alvo determinado, como manter grupos diversos reunidos num mesmo projeto? Nesses casos, a diferença é subsumida na miragem de um adversário tentacular, convertido em inimigo útil, nada inocente, que assegura a coesão do movimento.

A mentalidade bolsonarista pode então completar-se: trata-se de reduzir o outro ao mero papel de adversário, inimigo a ser eliminado. Por isso, muito mais importante do que somente derrotar o Messias Bolsonaro é superar o próprio bolsonarismo.

*João Cezar de Castro Rocha é professor Titular de Literatura Comparada da UERJ e ensaísta.


Olavo de Carvalho recorre a conceito de Gramsci para atacar esquerda, explica Marcos Sorrilha

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, professor da Unesp analisa pensamento de escritor brasileiro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O escritor Olavo de Carvalho recorre ao conceito de hegemonia de Antonio Gramsci para interpretar o mundo e a construção da Nova Era, apropriando-se do paradigma gramsciano da política-hegemonia. Essa é a análise do historiador Marcos Sorrilha Pinheiro, em artigo de sua autoria publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Professor assistente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Pinheiro diz que a palavra hegemônica é fundamental para entendermos como se daria a construção da Nova Era na versão de Olavo de Carvalho.

“Na verdade, não se trata apenas de uma palavra, mas de um conceito elaborado por Antonio Gramsci no início do século 20. Segundo Gramsci, o conceito de hegemonia retirava o socialismo do plano revolucionário e o trazia para o paradigma político/democrático”, explica o historiador.

Em Gramsci, de acordo com o professor, a construção de uma sociedade igualitária, principalmente no Ocidente, não se daria mais pela revolução, mas pela articulação do campo político, por meio da difusão de valores, tradições e ideias junto ao sistema nervoso das sociedades: a cultura.

Segundo Pinheiro, os partidos e seus intelectuais deveriam atuar como sujeitos articuladores dessa cultura, lançando mão dos aparatos próprios para sua mobilização: a mídia, a escola, as artes etc. “À medida que tais ideias fossem ganhando maior abrangência e concordância entre os cidadãos, seria aberta a possibilidade de que líderes comunistas fossem eleitos pelo voto e, uma vez no comando do Estado, lançariam mão das ferramentas do poder para organizar a sociedade em torno de seus ideais, convertendo-os em uma hegemonia”, diz.

Olavo de Carvalho, de acordo com o professor, recorre ao conceito de hegemonia gramsciano, pois, conforme explica, entende que, com o ocaso da União Soviética, Gramsci se converteu no grande paradigma de atuação da esquerda global. “Por meio de seus métodos (a contaminação da cultura com valores marxistas), foi possível aos intelectuais gramscistas o predomínio junto às principais instituições internacionais responsáveis pela elaboração de estratégias de desenvolvimento global, como a ONU, a OMS, ONGs etc., transformando pautas da esquerda em pautas da própria humanidade”, escreve.

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Bernardo Mello Franco: Olavismo para crianças

O bolsonarismo aparelhou a TV Escola, mantida pelo MEC para formar professores e alunos. Ontem a emissora estreou uma série estrelada pelo guru Olavo de Carvalho

Olavo de Carvalho, quem diria, foi parar no horário nobre. O guru do bolsonarismo é a estrela da série “Brasil: A Última Cruzada”, que começou a ser exibida ontem pela TV Escola. Trata-se de uma emissora pública, mantida pelo Ministério da Educação e dirigida à formação de professores e alunos.

A série apresenta uma visão peculiar da História. Em tom épico, exalta a “coragem” dos colonizadores portugueses e o “amor pelo Brasil” de dom Pedro I. O objetivo, segundo o produtor Filipe Valerim, é “combater ideologias perversas” e “despertar a consciência e o patriotismo” dos telespectadores.

Além de Olavo, o programa dá voz a figuras como Luiz Philippe Orleans e Bragança, deputado do PSL, e Rafael Nogueira, novo presidente da Biblioteca Nacional. Depois de defenderem a ditadura militar, os bolsonaristas agora querem reabilitar a monarquia.

“Isso é negacionismo puro”, diz o historiador Thiago Krause, da UniRio. “A série ouve gente desqualificada e defende teses que não são aceitas por ninguém na academia. Estão usando uma emissora pública para fazer propaganda e fortalecer a visão ideológica do grupo do presidente”, critica.

Não é uma iniciativa isolada. Na semana que vem, a TV Escola começará a exibir a série “Meia Volta, Vou Ler”. A promessa é mostrar “a qualidade das escolas cívico-militares”. Coincidentemente, a maior vitrine da política educacional de Bolsonaro.

A guinada da emissora é conduzida pelo diretor Francisco Câmpera. Ele assumiu o cargo depois de assinar artigos elogiosos ao presidente. Procurado pela coluna, disse que não poderia dar entrevista.

A invasão dos olavistas é vista com perplexidade por funcionários que trabalharam na TV Escola sob diferentes governos. “Estão desmontando tudo o que não vem deste pseudofilósofo”, diz a ex-diretora Regina de Assis. Ela foi demitida em setembro, depois de reclamar do aparelhamento da emissora.

“O que está acontecendo é um retrocesso grave, combinado com o mau uso de recursos do MEC. Isso deveria ser analisado pelo Ministério Público ”, afirma.


Ricardo Noblat: A palavra de ordem do guru

Esqueçam tudo mais

Guru da família Bolsonaro, inimigo dos militares que a cercam, o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho postou um novo vídeo nas redes sociais onde instrui os devotos do capitão, parte deles atônita com o que anda acontecendo.

Esqueçam tudo mais – agenda de costumes, ideologia, combate à corrupção, armas para todos. O que importa, o que só importa neste momento, é apoiar o presidente Jair Bolsonaro. A política, segundo Olavo, não é uma briga de ideias, mas de pessoas, de grupos.

Logo, a hora é de cerrar fileiras. Nada de discussões sobre isso ou aquilo. Deixam as dúvidas para lá. A esquerda continua forte. Ela domina a imprensa, a principal inimiga de Bolsonaro que deve ser enfrentada. Disciplina! Firmeza!. Coesão! Avante!

(Faltou “Anauê“.)

A nova encrenca do capitão

Viajar ou não? Sentado ou deitado?
Se dependesse dos médicos que cuidam dele, o presidente Jair Bolsonaro cancelaria sua viagem a Nova Iorque na próxima sexta-feira para discursar na abertura de mais uma Assembleia Geral da ONU. Bolsonaro teima em viajar assim mesmo.

Mas a ter que ir, os médicos querem que ele viaje deitado na cama que o Boeing presidencial oferece ao seu ocupante mais ilustre. É aí que o bicho pega. Bolsonaro quer viajar sentado como geralmente faz, com direito de convocar quem quiser para uma conversa.

Como se trata de uma longa e cansativa viagem, e como Bolsonaro ainda não se recuperou por completo, os médicos são contra seu desejo. Ou viaja deitado ou eles não se responsabilizam pelo que possa acontecer. É a mais nova encrenca do capitão.

Assessores e familiares de Bolsonaro estão divididos quanto à viagem. Uma parte desaconselha, e não só por causa da saúde, mas porque ele será alvo de protestos dado ao fogo que queima a Amazônia. A parte favorável acha que ele não pode se acovardar.

Golpista acidental

A dupla face de Michel Temer
Um ato falho repetido muitas vezes em curto período de tempo não é um ato falho, mas proposital. Em entrevista na última segunda-feira no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, o ex-presidente Michel Temer chamou de golpe quatro vezes o movimento que depôs a ex-presidente Dilma Rousseff, e somente uma vez de impeachment.

Da vez que chamou de impeachment foi para explicar que a Constituição não prevê golpe. E que, portanto, ao assumir a presidência na condição de vice-presidente eleito, ele o fez depois de um processo de impeachment que seu deu nos termos previstos na Constituição e sob o controle da Justiça.

Então por que quatro vezes falou em golpe? Porque em Temer convivem o jurista que ele é, autor de livros sobre o Direito Constitucional, e o político que sempre foi e que continuará a ser. Sem que ninguém lhe perguntasse, o político contou uma história a título de curiosidade, mas que nada tinha de curiosa.

Contou que um dia procurou Dilma no Palácio do Planalto e lhe disse que Eduardo Cunha (PMDB-RJ), então presidente da Câmara dos Deputados, recebera seis pedidos de impeachment contra ela, sendo que dois eram bastante complicados. Mas que ouvira dele que rejeitaria os seis. Dilma comemorou a informação.

O que Temer, o político, quis dizer com isso? De passagem, como se tratasse de uma mera recordação inocente, quis dizer que Cunha também o enganara. A culpa do impeachment – ou do golpe – deve ser debitada na conta de Cunha, não na dele. Temer sequer “conspirou um pouquinho” para derrubar Dilma, como garantiu…

Jair Bolsonaro é um presidente acidental. Foi eleito por uma conjuntura que jamais se repetirá. Michel Temer foi um golpista acidental. Nada teve a ver com o golpe ou o impeachment, como preferirem. Estava ali como vice-presidente observando tudo à distância quando foi chamado a suceder Dilma. Fazer o quê?


Hélio Schwartsman: Por que Carvalho xinga tanto?

Guru da família Bolsonaro não está só, palavrões são um universal humano

Se há uma marca no pensamento de Olavo de Carvalho, são os palavrões —e não sei se há muita coisa mais. Na última série de críticas que lançou contra os militares que estão no governo, o ideólogo radicado na Virgínia (EUA) aludiu à parte final do tubo digestivo de um general e se referiu a outro pelo nome mais vulgar da matéria fecal. Por que Carvalho xinga tanto?

Nisso o guru da família Bolsonaro não está só. Palavrões são um universal humano. Não há idioma que não conte com um arsenal de palavras-tabu, quase sempre recrutadas da mesma meia dúzia de campos semânticos: sexo (foda, caralho), excrementos (merda, porra), religião (diacho), doenças e morte (lazarento, cretino) e minorias desfavorecidas (bicha, puta).

Como ensina Steven Pinker em “Do Que É Feito o Pensamento”, o que distingue palavrões dos termos mais ordinários da linguagem é a carga emocional que os primeiros encerram. Basta que apareçam numa fala ou mesmo por escrito para que sequestrem nossa atenção. Psicólogos desenvolveram até métodos (uma adaptação do teste Stroop) para medir quanto.

Nosso relacionamento especial com palavrões está tão arraigado no cérebro que o discurso blasfemo parece ocupar vias neuronais exclusivas. Há casos de pessoas que sofrem lesões cerebrais que lhes tiram a faculdade de falar (afasia), mas não afetam a capacidade de praguejar.

Em termos funcionais, o xingamento serve a múltiplos propósitos, que vão da agressividade (provocar o conflito) até a catarse (soltar um “porra” depois de martelar o próprio dedo ou de desperdiçar um pênalti). Em qualquer hipótese, o uso de palavras-tabu se inscreve como uma modalidade de pensamento mágico. É como se a pessoa que recorre ao palavrão estivesse invocando encantamentos que teriam o dom de afetar o mundo. É óbvio que a realidade não funciona assim, mas é um modo de agir que combina bem com quem acredita em astrologia.


O Estado de S. Paulo: ‘Olavo de Carvalho presta enorme desserviço ao País’, diz Villas Bôas

Ex-comandante do Exército afirma que ataques ‘passaram do ponto’ e que escritor ‘se arvora com mandato para querer tutelar País’

Tânia Monteiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Um dos nomes mais respeitados nas Forças Armadas, o ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas quebrou o silêncio que reina na caserna e entre os generais que despacham no Palácio do Planalto para defender, primeiro no Twitter e depois em entrevista ao Estado, os ministros militares dos ataques do guru bolsonarista Olavo de Carvalho e seus seguidores, incluídos os filhos do presidente Jair Bolsonaro. Villas Bôas, que está na reserva e exerce o cargo de assessor especial do ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disse ao Estado que Olavo “passou do ponto”, está agindo com “total desrespeito aos militares e às Forças Armadas” e “presta enorme desserviço ao País”. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Olavo de Carvalho voltou a atacar os militares pelo Twitter. O sr. rebateu. Qual o tamanho do incômodo dos srs.?
Bolsonaro entendeu que trazer militares para trabalhar em setores do governo seria uma cooperação importante para o restabelecimento da capacidade de gestão e a busca de combate à corrupção. Isso não significa que as Forças Armadas estão participando do governo, mas trazendo consigo seus valores. Portanto, os militares exercem uma natural influência que contribui para a estabilidade do País e do governo. Talvez por isso, o sr. Olavo de Carvalho se sinta desprestigiado e queira disputar espaço com os militares, junto à Presidência da República. Isso não dá direito a ele de traçar comentários desairosos a toda uma classe profissional, que representa uma instituição. Desconheço os tipos de valores que animam o sr. Olavo de Carvalho a tecer tais comentários.

Olavo passou do ponto?
Sim. Passou do ponto. Aliás, já vem passando do ponto há muito tempo, agindo com total desrespeito aos militares e às Forças Armadas. E, quando digo respeito, é impressionante que ele, como um homem que se pretende culto e inteligente, desconhece normas elementares de educação. É também muito grave a maneira como ele se refere com impropérios a oficiais da estatura dos generais Mourão (vice-presidente da República), Santos Cruz (ministro da Secretaria de Governo) e Heleno (ministro) e aos militares em geral.

O que fazer diante disso?
Rebater Olavo de Carvalho seria dar a ele a importância e a relevância que não tem e não merece. Ele está prestando um enorme desserviço ao País. Em um momento em que precisamos de convergências, ele está estimulando as desavenças. Às vezes, ele me dá a impressão de ser uma pessoa doente, que se arvora com mandato para querer tutelar o País.

O presidente Bolsonaro está sendo tímido na defesa dos militares? 
O presidente, desde sempre, tem sido enfático ao expressar o seu respeito, a sua admiração e o seu apoio às Forças Armadas, tanto verbalmente como em inúmeras ocasiões. Eu desconheço como é o relacionamento do presidente da República com Olavo. O presidente não me disse diretamente, mas soube que ele já expressou o seu descontentamento com as posturas do sr. Olavo.

Mesmo assim Olavo e filhos do presidente mantêm os ataques...
Isso tudo é resultado de uma certa influência do sr. Olavo num grupo importante de apoiadores de Bolsonaro. O presidente deve estar pesando isso antes de tomar uma decisão (sobre esse assunto).

A que o sr. atribui essa guerra?
Uma patologia muito comum que acomete todos aqueles que se deixam dominar por uma ideologia é a perda da capacidade de enxergar a realidade e a inconformidade de não ver todos os preceitos que ele professa serem implantados na sociedade.

Há uma corrente olavista que acusa os militares de tutelar o presidente...
Absolutamente. O presidente Bolsonaro tem uma personalidade bastante independente na sua maneira de ser. Ele interage com seus assessores, se orienta e se aconselha pelas observações que lhes são apresentadas. Ele sempre foi assim. Mantém absoluta independência de pensamento e na maneira de agir.

Os olavistas levantam teses de que os militares querem assumir o poder em dois anos, com o vice Hamilton Mourão.
Isso é uma inverdade que beira o ridículo. Não passa na nossa maneira de pensar algo desse tipo, porque seria uma deslealdade com o presidente e a lealdade é o valor que os militares tomam como religião. O general Mourão, a quem conheço com profundidade, tampouco se prestaria a participar desse tipo de articulação.

O general Santos Cruz pode deixar o governo? Os militares podem se afastar por conta dos ataques?
Não acredito. Cada um está imbuído em auxiliar o governo e o Santos Cruz expressa isso, a enorme responsabilidade que ele tem, e a sua importância para a articulação política em relação ao que ocorre no Congresso.

Se o governo não der certo, a conta vai para os militares?
Embora o que estejamos vivendo não represente as Forças Armadas no governo, mas pela importante presença dos militares em cargos de chefia, certamente uma parte da conta será debitada aos militares.


Ricardo Noblat: Cresce irritação dos militares com Bolsonaro

Outra tentativa de enquadrar o capitão

Sem que de fato aconteça, quantas vezes mais se escreverá que os militares empregados no governo enquadraram o presidente Jair Bolsonaro, e que desta vez, sim, ele dará um chega para lá nos filhos, e no guru deles, o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho?

Justiça se lhes façam: Olavo só tem essa influência toda sobre os garotos porque o pai concorda com suas ideias. É tanto guru deles como do pai. E os garotos só estão de bola cheia porque Bolsonaro permite. Com frequência se vale deles para dar seus recados.

Escreva-se outra vez, pois: sob pressão da ala militar do governo, Bolsonaro, pela primeira vez, disse por meio do seu porta-voz que Olavo em nada contribui para o sucesso de sua administração com os constantes ataques que faz aos fardados e aos que vestiram farda.

De fato, Olavo tem pesado a mão contra os generais, mais especificamente o vice-presidente Hamilton Mourão. Nas últimas 48 horas, acusou-os de entregar o país “aos comunistas”, e de fazerem “cagada” em cima de “cagada”. Sim, Olavo é um desbocado.

Mourão reagiu um tom ainda abaixo daquele que gostaria de usar: “Acho que Olavo de Carvalho deve limitar-se à função que desempenha bem, que é de astrólogo. Pode continuar a prever as coisas que é bom nisso”. Não, Olavo não é bom de previsão.

Olavo é bom de polêmica. Por isso, apesar da advertência feita por Bolsonaro, não resistiu e na noite de ontem voltou a espicaçar Mourão: “Ele é um adolescente totalmente desqualificado para qualquer debate intelectual sério”. Os garotos comemoraram.

Talvez seja um exagero tratar como advertência o que afirmou Bolsonaro a propósito de Olavo. Primeiro ele o elogiou por ter tido “um papel considerável na exposição das ideias conservadoras que se contrapuseram à mensagem anacrônica cultuada pela esquerda”.

Para só depois dizer como se fizesse um apelo que ““tem convicção de que o professor, com seu espírito patriótico, está tentando contribuir com a mudança e com o futuro do Brasil”. Na verdade, Bolsonaro pela-se de medo de Olavo. Não quer virar alvo de suas críticas.

Quanto aos garotos que tanto irritam os militares, nem uma palavra. Mais de uma vez também já se disse que agora Bolsonaro afastaria os filhos do governo.

Volta-se a dizer. Melhor esperar para conferir. Ele foi candidato para eleger os filhos. Difícil que se afaste deles.

Canta, Queiroz!

Cuide-se, Flávio
O senador Flávio Bolsonaro, que outro dia passou ao ministro Gilmar Mendes a impressão de que anda muito assustado, tem de fato razão de sobra para isso.

O Ministério Público Federal do Rio recebeu a informação de que a cotovia da vez se prepara para cantar. A cotovia é Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio na Assembleia Legislativa do Estado.

Queiroz está se sentindo abandonado pela família Bolsonaro, mas não só. Aperta o cerco a ele. Se não falar, será condenado por uso criminoso de dinheiro de outros funcionários do gabinete de Flávio.


Demétrio Magnoli: Para Paulo entender Olavo

A 'revolução' do guru fuzilaria os liberais junto com os comunistas, se pudesse

"Por que o líder dispara contra a revolução que inspirou?", perguntou um inconformado Paulo Guedes a Olavo de Carvalho no jantar em homenagem a Bolsonaro, em Washington. Na véspera, o Bruxo da Virgínia atirara um petardo contra Hamilton Mourão, responsabilizando-o pela virtual dissolução do governo no horizonte de seis meses. Paulo merece resposta. Ofereço-lhe duas, complementares.

Paulo acalenta a doutrina do liberalismo econômico radical: o Estado Mínimo. Já Olavo interessa-se apenas marginalmente por economia. A "revolução" dele também é um retorno, mas não ao Estado liberal do século 19 e sim a um passado mítico de soberanias estatais absolutas, hierarquias patriarcais fundadas na tradição e respeito às "liberdades naturais" do colono armado. Numa síntese rápida, a fusão do conservadorismo romântico europeu com o nativismo individualista americano.

Olavo não é original. Logo após a Primeira Guerra Mundial, Oswald Spengler anunciou o "declínio do Ocidente", fruto de um longo envenenamento cultural provocado pelas bactérias do Iluminismo. Do nacionalismo conservador e autoritário spengleriano nasceu essa contrafação pós-moderna: o mingau "filosófico" servido pelo Bruxo da Virgínia e, de modo geral, pela alt-right (direita nacionalista) americana. Paulo talvez não se interesse por esse labirinto ideológico, mas deveria prestar atenção à sua implicação.

A alt-right difunde a tese de que os "liberais globalistas" estão associados aos "marxistas" numa conspiração mundial contra os povos. Nessa aliança fantasiosa, Paulo figura no primeiro grupo. A "revolução" de Olavo fuzilaria os liberais junto com os comunistas, se pudesse.

No dia seguinte ao célebre jantar, Bolsonaro prostrou-se aos pés de Trump. Cito, com autorização, a incisão cirúrgica realizada pelo embaixador Marcos Azambuja num debate fechado: "O produto que Bolsonaro tentou vender não tem demanda na Casa Branca. Trump despreza os que o bajulam; ele gosta de Putin e Kim Jong-un, que o confrontam." Acrescento: a "revolução" de Olavo é uma ideia fora de lugar, a importação de um discurso populista estranho aos dilemas brasileiros.

A segunda resposta: a "revolução" de Olavo é uma "revolução permanente", uma guerra sem fim contra moinhos de vento.

O Bruxo da Virgínia precisa conservar seu estatuto de bruxo —ou seja, a condição de guru de uma seita. Para reter a lealdade total de seus seguidores, deve evitar que eles sejam contaminados pelos intercâmbios de interesses e conciliações políticas inerentes a qualquer governo. Por meio da "revolução permanente", o líder impede que seus liderados cedam à tentação de oscilar entre os comandos de dois senhores.

Olavo não é tonto como seus "alunos" que colonizam o Itamaraty e o MEC. Ele sabe que clama por uma utopia: a volta dos ponteiros da História a uma Idade de Ouro imaginária. Sabe, portanto, que qualquer governo está destinado ao fracasso, se a medida do sucesso for a régua maximalista da sua utopia. O líder que não pretende ser desmascarado pela inevitável falência de sua "revolução" precisa identificar e denunciar, previamente, os traidores da causa. Daí, o recurso à "revolução permanente": o líder dispara contra a revolução que inspirou.

A consequência da "revolução permanente" é a perene ingovernabilidade. Sacudido por crônicas guerras intestinas, o governo carece da coesão, da autoridade e da força persuasiva para formar maiorias parlamentares sólidas. O projeto da reforma previdenciária, ato inaugural da "revolução" de Paulo, corre o risco de ser tragado no vórtice da "revolução" de Olavo.

Há algo mais. Entre os "alunos" do Bruxo da Virgínia, contam-se ao menos dois dos filhos do presidente. A "revolução" de Olavo é a de Jair. Anote isso, Paulo.

*Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.