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Paulo Sotero: Biden não hostilizará o Brasil

Mas o presidente eleito dos EUA não terá tempo para o trumpolavismo de Bolsonaro

O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o País enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos EUA não faz diferença. Já os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o País.

No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles – um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o País tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus em pleno curso no Hemisfério Norte e que, inevitavelmente, chegará ao Brasil.

O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio-92, a convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e da expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.

De imediato caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova administração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior que a Nação. Brasília ajudará se não der palpites sobre a crise potencialmente gravíssima provocada pela resistência de Trump a reconhecer a vitória de Biden e sabotar a transição.

“Estou alarmado” com as ações desse “patife e fora da lei”, afirmou à MSNBC o ex-general Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de exonerar pelo Twitter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem ocorrer no comando da CIA e do FBI, como no Departamento de Segurança Interna. Mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.

Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos – sua especialidade –, tumultuando a recontagem automática de votos nos Estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no Estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara dos Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia.

Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá dando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo “pólvora” se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam – sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas, e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul-União Europeia, já há tempo nas cordas.

Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty, instituição outrora respeitada, a dizer e fazer tolices, como vangloriar-se do novo status de pária internacional do País. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do Brasil na cena internacional deixou de ser indispensável.

*JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON


Hamilton Garcia: Democracia, idiotia e facciosismo

Na medicina, a idiotia é descrita como "atraso mental e/ou intelectual caracterizados pela ausência de linguagem”. Por sua vez, a idiotice é comumente definida como o contrário da perspicácia e da inteligência. Entre ambas as definições existe um leque de arranjos e combinações à disposição da criatividade. É certo, porém, que a contínua revolução das comunicações – da impressa à falada – e da educação escolar foram desenvolvendo um novo idiota: não só apto à linguagem, como possuidor de certa inteligência.

O problema reside justamente no paradoxo: a linguagem e a comunicação encerram, desde seu nascedouro, o desafio do entendimento que, conforme evoluímos, vai se tornando cada vez mais difícil para todos, o que pode nos levar a sérios mal-entendidos. Assim, a idiotice, numa sociedade cada vez mais complexa, informada e democrática, onde todos são instados a se posicionar sobre tudo e todos em tempo real o problema do tempo não deve ser subestimado –, é o fantasma que nos assombra.

No que tange à idiotia política, no caso brasileiro, as coisas ficam sensivelmente piores em meio ao baixo nível da educação formal, o mesmo acontecendo com a idiotice quanto ao mérito funcional da escolarização. Em ambos os casos, as péssimas instituições republicanas que nos governam e deseducam – sobretudo os partidos políticos – nos levam a um desarranjo ainda pior. Caberia ao partido político um papel de antídoto, pelo menos à idiotice, que entre nós é quase desconhecido, selecionando os quadros que irão constituir os vários níveis da elite política dirigente (legislativa e executiva) do Estado.

Fora os partidos de esquerda radical – que, mesmo assim, caíram na idiotice pelo dogma – ou moderada, todos os outros tem graus variados de anomia institucional onde pululam regras discricionárias em benefício de oligarquias (fechadas ou semifechadas) que não toleram o debate de ideias, ignoram o desenvolvimento pessoal e cultivam o desprezo pelo pensamento sistemático (filosófico ou científico); o que também afeta, de alguma maneira, a direita radical e seu (re)aparecimento tardio (olavismo e bolsonarismo) em ruptura com a tradição integralista (Plínio Salgado) e com a crítica ao espírito de clã (Oliveira Vianna) – tão cara ao positivismo militar.

Em tais condições, os quadros políticos são formados fora do sistema político (stricto sensu), o que afeta tanto sua quantidade quanto sua qualidade. Quanto ao primeiro aspecto, não porque sejam poucos os formados no campo associativo, mas porque são poucos aqueles que se dispõem a transitar para a esfera mais complexa e incerta do Estado (poder político). Quanto ao segundo, a formação associativa (corporativa ou particular-expandida) é insuficiente para habilitar o engajado à esfera da política (geral-superior).

No caso da esquerda, tal problema é contornado pelo fato de a esfera corporativa ser intensamente habitada pela partidária, de modo que o militante (sindical, estudantil ou social) já recebe treinamento partidário em paralelo ao seu próprio – como se pode notar no número de políticos provenientes do movimento estudantil, sindical e identitário.

Não é por outro motivo que liberais e conservadores vêm lançando mão de institutos próprios de formação de quadros políticos, alguns deles se posicionando em leque variado de partidos – como fazem os evangélicos. Neste segmento, situado à extrema-direita, o olavismo se coloca como movimento vocacionado para a formação de um bloco histórico de poder em combate aberto com o campo progressista, como outrora, em forma e direção radicalmente diversos, o catolicismo de esquerda (teologia da libertação) pretendeu, na época de ouro do petismo, sem êxito.

O olavismo, em especial, vem sendo associado à idiotice reinante no debate político do país, embora não se possa, quanto ao método, acusá-lo de pioneirismo: a histeria e, pior, a violência verbal – muitas vezes disfarçada de “performance” –, dois aspectos constitutivos da idiotice reinante, foram usadas e abusadas pelo campo progressista muito antes, na época em que "bolsonarismo" não passava de um xingamento assacado contra qualquer crítico do PT depois do Mensalão. A imensa avenida pavimentada pelos petistas – aberta em priscas eras pelos stalinistas – encontra-se hoje tomada por bolsomínions (e seus antípodas siameses) inspirados ou formados pelo “Professor Olavo".

A fonte histórica deste aprendizado da “política de massas”, de onde se origina a explosão participativa  que veio a redimensionar o fenômeno em tela, foi o jacobinismo (francês) do séc. XVIII e o movimento operário (inglês) do XIX, otimistamente percebidos por Marx e Engels como rudeza do aprendizado. É dessa fonte, mais particularmente de Lênin, que Olavo de Carvalho pretende derivar seu método de ação, a partir de sua experiência no PCB dos anos 1970, onde conheceu tais autores.

Lênin, na Russia dos anos 1910, em meio a uma sociedade esmagadoramente camponesa, impactada pelo capitalismo europeu, entrou em rota de colisão com a ortodoxia marxista da II Internacional, de base urbana e sindical, passando a valorizar o protagonismo das massas camponesas exploradas, sob a liderança do operariado, inaugurando uma inédita aliança operário-camponesa-estudantil que derrubaria o regime liberal que sucedera o czarismo e abriria caminho para o socialismo (comunismo de guerra, 1918-1920).

O uso de métodos autoritários e heterodoxos, por parte dos leninistas, para impulsionar tal projeto revolucionário, rendeu à Lênin críticas, tanto à direita (K.Kautsky) como à esquerda (R.Luxemburgo) da social-democracia, em relação ao abandono da perspectiva democrática do movimento operário. Os desdobramentos da vitoriosa Revolução Bolchevique (1917) e sua consolidação pós-Lênin (stalinismo), não deixaram dúvidas quanto ao acerto de tais críticas.

Foi este aspecto da eficiência da técnica do atraso, como nos mostra Thaís Oyama[i], que fascinou Olavo de Carvalho e o fez sustentar seu método na guerra político-cultural contra a esquerda. Argumentando que os adversários ascenderam se valendo da manipulação e da desonestidade intelectual, concluía ele que seria justo que a direita recorresse aos mesmos métodos para derrotá-los.

Daí os ataques abaixo da linha da cintura e as investidas destinadas a desmoralizar os adversários preconizados por ele – que também caracterizaram o terror stalinista na URSS, tendo sido copiado e refinado pelo nacional-socialismo alemão: “Não puxem discussão de ideias”, dizia Carvalho em dezembro de 2018, “investigue alguma sacanagem do sujeito e destrua-o. Essa é a norma de Lênin: nós não discutimos para provar que o adversário está errado. Discutimos para destruí-lo socialmente, psicologicamente, economicamente”[ii].

A batalha cultural do professor de filosofia on-line vem gerando um número surpreendente de militantes fanatizados (idiotas), é verdade – embora não exclusivamente. Mas, isto não se deve ao método, tomado isoladamente. Hoje, como outrora, os riscos derivam do encontro desses métodos com sistemas de dominação em crise, fato que vem sendo sistematicamente negligenciado por setores democráticos do conservadorismo, liberalismo e socialismo, deixando o tema da crítica e das reformas (quase) exclusivamente aos cuidados dos adeptos do método-totalitário.

Persistir em, simplesmente, apontar o dedo contra os agentes idiotizantes ou os próprios idiotas, sem buscar cessar o fomento proporcionado pelo quadro geral onde a idiotia medra – vale dizer, no caso brasileiro, elites despreparadas, instituições (historicamente) carentes de legitimidade, baixa eficiência e altíssimo custo , não deve nos levar a porto seguro.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])

São João da Barra, 09/03/20.

[i] Tormenta – o governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos, ed. Companhia das Lestras, sd, p.198.

[ii] Apud Oyama Idem, p.199.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Revista Política Democrática || Martin Cezar Feijó: AOS QUE VÃO NASCER - Uma política cultural para o século XXI

Brasil vive em tempos sombrios, obscuros, avalia Martin Cezar Feijó. Terra plana, bruxas e conspirações são alguns dos temas que permeiam a mente de alguns brasileiros em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, escreve o articulista

Vivemos em tempos sombrios, lembrando Brecht. Na verdade, obscuros. Quem poderia imaginar que, em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, como o Brasil, com todos seus problemas de desigualdade ainda existentes, se acreditasse em Terra Plana, em bruxas e conspirações satânicas? E não por pessoas comuns, que não tivessem nenhuma educação formal e responsabilidade social, mas por pessoas que ocupam cargos públicos importantes na esfera federal. E, mais ainda, com poder em áreas como a Cultura e a Educação?

Claro que, como dizia o jornalista Paulo Francis, pessoas “que despontam para o anonimato”... Até porque eles passam, todos passarão, e nós, talvez, passarinhos.

E o Brasil é bem maior que qualquer abismo, já dizia o filósofo português Agostinho da Silva, que inspirou o último trabalho poético-musical-filosófico de Jorge Mautner:  Não há abismo que caiba. Mas o quadro é grave, até assustador. Lembra até o período de uma narrativa que marcou os anos 1930-1940: o nazismo. Havia um dirigente alemão nazista que citava um dramaturgo também alemão, também nazista, que dizia o seguinte:

- “Quando ouço a palavra cultura, logo carrego meu revólver”.

Eram tempos sombrios, como definiu uma filósofa alemã judia refugiada, Hannah Arendt. Quando acabou a guerra, um milionário norte-americano, Nelson Rockefeller, tripudiou sobre a fala do nazista:

- “Quando ouço a palavra cultura, logo pego um talão de cheques”.

A cultura é assim, plena de contradições. Principalmente riscos. Mas o maior risco é o de sua instrumentalização. Seja satanizando o rock como causador de aborto e adorador do Diabo, ou questionando a escolha de uma poeta para uma homenagem em um encontro literário em Parati, como o caso de Elisabeth Bishop. Ambos padecem de um mal anunciado, o da confusão entre conhecimento e estética e política no sentido de partidarização e ideologia. Claro que um caso se insere na questão de liberdade de opinião, mas o primeiro se trata de um claro posicionamento, com implicações práticas, como imposição de uma política que abre caminho para cerceamentos e censuras. O pior dos cenários, portanto.

E é disso que se fala aqui, de bases para uma política cultural em um sentido específico. Como pensar uma política cultural para os que vão nascer, ou que nasceram neste século, e vão vivenciar todas as transformações em curso. Uma verdadeira revolução, nunca antes imaginada, ou prevista.

Quem se debruçou sobre este cenário foi o historiador israelense, Yuval Noah Harari, autor dos best-sellers mundiais, Homo Sapiens e Homo Deus, em seu livro 21 Lições para o Século 21, chama a atenção para o fracasso das três narrativas que predominaram no século XX -  fascista, comunista e liberal – e que acabaram por gerar profunda desilusão. E que a revolução em curso, no âmbito da biotecnologia e Big Data, pode comprometer uma das maiores conquistas da narrativa liberal: o regime democrático, sem o qual não há solução possível, independente do lado que se esteja. E nesse aspecto, a cultura tem papel decisivo, seja no âmbito dos empregos, da civilização e do meio-ambiente.

Por isso, a destruição da cultura é o principal aspecto que marca uma emergência do que podemos chamar de neofascista, mesmo que nascida das democráticas urnas. E isto vem ocorrendo em grande parte do mundo, apesar dos alertas de uma imprensa livre, por isso perseguida e atacada pelos fakenews através de milícias digitais; assim como a arte de modo geral, seja no teatro, no cinema, na literatura, nas artes plásticas. Nesse sentido, a cultura passa a ser não apenas um apêndice da política, mas um eixo central na sobrevivência da própria espécie.

E cultura em seu sentido amplo, que envolve não só uma radical liberdade de expressão que garanta uma diversidade plena, mas também um investimento na educação em todos os níveis. Em uma atualização constante, e respeito às nossas crianças, que merecem um mundo melhor, como demonstram os ativismos de jovens como a paquistanesa Malala e a sueca Greta; uma chamada de “pirralha” por um pretenso ditador, e outra levando um tiro no rosto só porque querida estudar. Uma reconhecida com um Nobel, e outra, como Personalidade do Ano pela revista Time. Aí está a promessa de futuro contra as reações que ocorrem!

Uma política cultural para o século XXI deve levar em conta a complexidade do quadro, as ameaças do emprego, as restrições às liberdades e um descrédito do conhecimento científico e filosófico como marca de uma direita agressiva e ativa. Recorrendo mais uma vez aos alertas do historiador israelense:

“O...surgimento da inteligência artificial pode expulsar muitos humanos do mercado de trabalho – inclusive motoristas e guardas de trânsito (quando humanos arruaceiros forem substituídos por algoritmos, guardas de trânsito serão supérfluos). No entanto, poderá haver algumas novas aberturas para os filósofos, haverá subitamente grande demanda por suas qualificações – até agora destituídas de quase todo valor de mercado. Assim, se você for estudar algo que lhe assegure um bom emprego no futuro, talvez a filosofia não se seja uma aposta tão ruim.”

Em outras palavras, seja no âmbito das novas tecnologias, seja no âmbito dos riscos políticos, o conhecimento e a cultura serão decisivos.  E uma política cultural que leve isso em conta será fundamental.

 


Alon Feuerwerker: O que é, na essência, a contradição entre “o olavismo” e “os militares”

É erro político acreditar que alguém conseguirá tutelar um presidente da República recém-instalado e com a popularidade essencialmente preservada. Outro equívoco é imaginar que o presidente, por isso, pode fazer o que dá na telha. Ele decide, mas dentro de limites definidos, em última instância, pela correlação de forças no governo, nos demais poderes e na sociedade.

Costumam levar vantagem nas disputas internas do poder os núcleos mais organizados, disciplinados e dotados de clareza estratégica. E, sempre, mais conectados aos grupos de pressão social influentes. Outro detalhe: é comum a polarização em início de governo ser intestina ao próprio governo. Pois a oposição não carrega expectativa de poder.

O que acontece na administração Bolsonaro? Quadros provenientes das Forças Armadas estão, no popular, comendo pelas beiradas e ganhando espaço. “Os militares” vai propositalmente entre aspas no título desta análise. Não há no Planalto um “Partido Militar” atuando com comando centralizado e hierarquia, paralelamente ao presidente da República.

O bolsonarismo enxerga-se como uma revolução. E toda revolução costuma trazer duas tendências, que em certo momento entram em choque mortal: 1) a revolução precisa e quer expandir-se e 2) o novo poder, para consolidar-se e governar, precisa expurgar seus elementos mais “radicais”. E alguma hora precisa fazer a velha superestrutura trabalhar para o novo status quo.

A crise entre “o olavismo” e “os militares” é indicação de que a segunda tendência vai aos poucos prevalecendo sobre a primeira, e o processo nunca é linear ou indolor. Mas costuma ser irreversível. Num paralelo histórico que talvez desagrade ao bolsonarismo, este parece estar transitando da “revolução permanente” para o “bolsonarismo num só país”.

Não é casual que o choque mais visível e agudo apareça na política externa. O governo precisa decidir se a prioridade é 1) alinhar-se a - ou seguir a diretriz de - uma “internacional trumpista” ou 2) adotar para valer a linha de “o Brasil primeiro”. E isso vem sendo exposto na crise venezuelana. Como já vinha dando as caras em outros temas externos.

O desfecho ideal para o bolsonarismo na Venezuela seria uma “Revolução dos Cravos” de sinal trocado. A cúpula militar degolar o governo bolivariano sem derramamento de sangue, e promover rapidamente a transição pacífica para um regime constitucional alinhado ao “Ocidente”. Mas a coisa não parece estar tão à mão, ainda que cautela analítica em situações voláteis seja bom.

Se tal saída não rolar, até onde o Brasil está disposto a ir na colaboração com o “regime change” em Caracas? A questão, de ordem prática, talvez seja o foco mais emblemático da tensão entre as duas tendências. Que algumas vezes é explicada como oposição entre alas “adulta” e “infantil”, ou “racional” e “irracional”. São descrições insuficientes.

Uns parecem acreditar que a sobrevivência do bolsonarismo depende centralmente de livrar a América do Sul de qualquer núcleo de poder relacionado aos partidos do Foro de São Paulo. Outros talvez achem que é melhor cuidar de consolidar o poder por aqui mesmo, a arriscar um conflito de consequências políticas - regionais e internas - potencialmente desestabilizadoras.

Ambas as correntes têm argumentos. A favor da segunda, há duas coisas que governos precisam pensar muitas vezes antes de fazer: convocar um plebiscito e começar uma guerra. #FicaaDica.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Bruno Boghossian: O olavismo pode atrapalhar as reformas da economia?

Ala populista e nacionalista do governo Bolsonaro pode entrar em conflito com ajustes

Ao tomar posse, Paulo Guedes descreveu o novo governo como “uma aliança entre conservadores nos costumes e liberais na economia”. Embora políticos de direita se apresentem como um cruzamento das duas espécies, o ministro diz estar diante de dois bichos diferentes.

O funcionamento dessa união será testado agora. A pauta de corte de despesas é tradicionalmente impopular porque mexe em investimentos do governo e benefícios como aposentadorias. De outro lado, a agenda conservadora tem apoio oscilante e pode consumir parte do capital político do presidente.

Uma coalizão é sempre um ajuste de interesses. Às vezes, um lado precisa ceder para abrir espaço para o outro. A aliança conservadores-liberais nem sempre será compatível.

No jantar oferecido ao ideólogo Olavo de Carvalho, o estrategista Steve Bannon disse que Guedes poderia atrapalhar o avanço de uma agenda nacionalista. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Bannon perguntou se Olavo conseguiria influenciar o ministro. O brasileiro negou.

Olavo personifica os conservadores da aliança. Ele não ataca a cartilha liberal, mas prioriza a pauta dos costumes, defende o nacionalismo e criticou relações com a China.

Os principais atores políticos do governo Jair Bolsonaro soam mais como Olavo. Aliás, o próprio presidente, seu chefe da Casa Civil e deputados do PSL fizeram críticas recentes à reforma da Previdência.

Os conservadores precisam que a economia se recupere para ganhar fôlego e para aplicarem sua pauta de costumes. Eles também sabem, contudo, que ajustes amargos tendem a causar danos na face populista do governo. O olavismo pode entrar em conflito com a agenda de reformas.

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A Polícia Federal negou o pedido de Lula para participar do sepultamento do irmão. Antes, o vice Hamilton Mourão dissera que a liberação era “uma questão humanitária”. Além de corrigir erros do presidente, o general acerta mais do que o delegado.


El País: Os tentáculos de Olavo de Carvalho sobre 57 milhões de estudantes brasileiros

Três discípulos do filósofo ocupam cargos importantes no Ministério da Educação de Bolsonaro. Ideias do pensador da ultradireita devem influenciar políticas da alfabetização às universidades

Por Beatriz Jucá, do El País

Considerado uma espécie de guru intelectual da direita brasileira, o filósofo Olavo de Carvalho emplacou três discípulos em cargos estratégicos do Ministério da Educação sob o presidente Jair Bolsonaro. Além do próprio titular da pasta, Ricardo Vélez, os seguidores Carlos Nadalim e Murilo Resende ocupam, respectivamente, a Secretaria Especial da Alfabetização e a direção da Avaliação da Educação Básica do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Tratados pelo mentor como "olavistas", Vélez, Nadalim e Resende chegam ao poder afinados com as ideias que aprenderam principalmente nos cursos online oferecidos pelo filósofo direitista, e pelos quais já passaram cerca de 12.000 pessoas.

A primeira pasta inédita do Governo Bolsonaro será comandada por Carlos Nadalim, que é mestre em Educação, defensor da alfabetização domiciliar e coordenador da escola de sua mãe, o colégio Mundo Balão Mágico em Londrina.

As ideias de Carvalho  centradas principalmente no fim da "doutrinação ideológica marxista" que diz existir no ensino público do país  devem influenciar as políticas dos próximos quatro anos nas duas pontas da educação brasileira: da alfabetização ao ensino superior, cujo impacto deve recair sobre os cerca de 48,6 milhões de estudantes matriculados nas escolas da educação básica e sobre os pouco mais de 8,3 milhões de alunos do ensino superior (segundo o último Censo Escolar, de 2017).

No centro do discurso de Olavo de Carvalho, estão críticas ferrenhas a Paulo Freire (1921-1997), o educador e filósofo brasileiro mais referenciado em universidades do mundo, nomeado patrono da educação brasileira em 2012, laureado dezenas de vezes com o título doutor honoris causa fora do Brasil. O pedagogo pernambucano, criticado pelo Governo Bolsonaro, defendia a educação como um ato político, mantendo os alunos em contato constante com os problemas contemporâneos no processo educacional. Ainda que não seja o único teórico no qual se apoiam os professores brasileiros, Paulo Freire é um dos principais alvos de crítica de Olavo e também dos seguidores que agora ocupam secretarias complexas no Governo Federal.

Distante dos espaços acadêmicos, Carvalho se construiu como um filósofo outsider. Não tem título universitário, mas é autor de 19 livros e dissemina suas ideias por cursos online e pelas redes sociais, onde expõe posições fortes e que costumam causar controvérsia entre educadores. Defende, por exemplo, que o Governo perca o papel de educador. A constituição brasileira estabelece que municípios são responsáveis prioritários pela oferta pública de educação infantil e pelo ensino fundamental. Já os Estados são responsáveis pelo ensino médio. Para o filósofo, é preciso desregulamentar a educação e resumir o papel do Governo ao de selecionador, pelo qual seria responsável apenas por testes de aprovação baseados na avaliação de três aptidões básicas: ler, escrever e fazer contas. Nesta perspectiva mais ampla, Olavo de Carvalho  que fez o ensino básico em uma escola mantida pela igreja católica  defende um sistema de fundações privadas que subsidiem essas escolas. "Por que tem que ser tudo subsidiado pelo Governo central ou mesmo pelos governos estaduais?", questionou em um vídeo publicado em agosto do ano passado, intitulado Como salvar a educação no Brasil?.

Neste vídeo, Olavo de Carvalho chega a questionar a necessidade de existência do Ministério da Educação e chama de "mágica" uma proposta apresentada por Bolsonaro na campanha, de ampliar as escolas militares, que segundo o presidente teriam melhor qualidade no ensino que as escolas tradicionais. "Isso é uma bobagem. O erro essencial é a ideia de que o Governo central tem que educar a nação. É uma ideia comunofascista que Getúlio Vargas pôs na cabeça do brasileiro", diz.

As críticas feitas à proposta de Bolsonaro durante a pré-campanha eleitoral não impediram que o presidente desse a ele um amplo poder de influência nas políticas educacionais dos próximos quatro anos. Dos Estados Unidos  onde vive desde 2005, o filósofo indicou três nomes para o MEC, inclusive o chefe da pasta, Ricardo Vélez, que segundo ele, "a pessoa que mais entende de pensamento político-social brasileiro" no mundo. No discurso de posse, o ministro destacou sua relação com o olavismo e a "inspiração liberal e conservadora" que deverá representar nas políticas educativas.

Carlos Nadalim assume a recém criada Secretaria de Alfabetização com a função de enfrentar o problema do analfabetismo em todos os níveis de escolaridade —segundo dados do IBGE de 2017, o Brasil ainda possuía quase 12 milhões de analfabetos. Nadalim já foi apresentado por Olavo de Carvalho em vídeos como um dos poucos que de fato educam no Brasil. Coordenador de uma escola em Londrina chamada Balão Mágico, implantou o método fônico de alfabetização  baseado na relação entre as sílabas e os sons para só depois ler frases completas  a pouco mais de uma centena de alunos e apresentou resultados que lhe renderam o prêmio Darcy Ribeiro, da Câmara dos Deputados. Mantém o blog Como educar seus filhos, onde oferece cursos online. Nele, escreveu que seu projeto é "apenas uma nota de rodapé do imenso trabalho" desenvolvido por Olavo de Carvalho. Agora no Governo, tem defendido a ideia de banir métodos globais de ensinar a ler e escrever (associados à teoria construtivista e a Paulo Freire)  para promover o método fônico. Atualmente, não há um único método de alfabetização nas escolas brasileiras, embora a maioria delas utilize o método construtivista.

Na outra ponta do ensino, está o professor de economia Murilo Resende, 36 anos, novo diretor do Inep. É ele o novo responsável pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a principal porta de entrada nas universidades federais brasileiras. Assim como Nadalim, Resende atribui a Olavo de Carvalho seu "amadurecimento intelectual" e oferece cursos online sobre economia e filosofia política a partir da perspectiva conservadora. Ao ser anunciado ao cargo, foi criticado pela falta de experiência na Educação. O próprio presidente saiu em sua defesa, pelo Twitter. "Murilo Resende, o novo coordenador do Enem, é doutor em economia pela FGV e seus estudos deixam claro a priorização do ensino ignorando a atual promoção da 'lacração', ou seja, enfoque na medição da formação acadêmica e não somente o quanto ele foi doutrinado em salas de aula", afirmou. Depois que assumiu o cargo no Governo, Resende desativou o site onde oferecia seus cursos.

Olavo de Carvalho diz que a esquerda exerce o controle do ensino brasileiro, no qual imporia ideias marxistas, especialmente pela predominância das ideias de Paulo Freire, que defende o poder de assimilação maior do aluno pela relação os problemas sociais em vez de valorizar apenas a técnica. Carvalho vai na contramão. Critica, por exemplo, os métodos de alfabetização "introduzidos por essa mesma turma esquerdista nos anos 1970 e 1980, como o socioconstrutivismo, que cria deficiências estruturais de leitura que não se curam nunca mais". Leva anos insistindo que 50% dos formandos das nossas universidades são analfabetos funcionais. De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) da Ação Educativa, 4% dos que chegam ao ensino superior são de fato considerados analfabetos funcionais, mas apenas 34% alcançam o nível proficiente.