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Vera Magalhães: Suprema bagunça

Tudo é lamentável no caso André do Rap, síntese dos nossos vícios recentes

É inútil tentar explicar à grande massa da opinião pública o intrincado novelo legislativo, interpretativo e jurídico que permite que, num intervalo de um dia, um ministro do Supremo Tribunal Federal mande soltar um dos mais perigosos traficantes do País, e outro mande prender. O que salta aos olhos, nesse caso, é a barafunda da mais alta Corte de Justiça do País, uma situação que vem sendo construída a muitas mãos, tijolo a tijolo, ao longo dos últimos anos.

O sabor das conveniências e os alinhamentos de ocasião, políticos e jurídicos têm levado a que o STF aja, sistematicamente, de maneira disforme, disfuncional e, sobretudo, política.

Então, houve um momento em que o vento soprava a favor do punitivismo, e por ele se guiaram antes históricos garantistas.

Veio a Lava Jato, que, por alguns anos gozou de prestígio similar na Corte, mantendo a tendência anti-impunidade e levando a que a operação tivesse confirmadas quase todas as suas principais (e até as mais polêmicas) decisões.

A maré virou, e não adianta negar, depois do impeachment de Dilma Rousseff. Foi só ali, depois de o axioma de Romero Jucá (aquele do acordão com o Supremo, com tudo) se tornar conhecido, que os hoje propalados reparos à Lava Jato vieram à baila e o assim chamado garantismo voltou à moda entre os togados.

A ponto de o tribunal se ver cindido em dois. O grupo antilavajatista colecionou vitórias na gestão Dias Toffoli e graças à composição da Segunda Turma, mas agora o comando trocou de mãos.

Só que os alinhamentos e o movimento do pêndulo não são tão simples. À frente da Corte está Luiz Fux, alguém que não goza de popularidade interna nem entre os antilavajatistas nem particularmente entre os apoiadores da operação.

Há ainda ministros que não jogam fechados em nenhum dos times, como Marco Aurélio Mello, pivô do lamentável episódio André do Rap, a enigmática Rosa Weber e Alexandre de Moraes, que tem sido mais independente em relação a esses grupos.

Além disso, a saída de Celso de Mello e a decisão de retornar ao plenário do STF as questões referentes a inquéritos e ações penais vão necessariamente reconfigurar estratégias e alianças.

Este é o pano de fundo político que permitiu a que se chegasse a um papelão nacional como esse da soltura de André do Rap.

Cheira a cinismo de advogados louvarem o caráter “técnico” da decisão de Marco Aurélio. Mesmo a análise fria do que mandou a lei anticrime, e que agora está consignado no Código de Processo Penal, recomenda deixar para o juiz singular decisão de revogação de prisão preventiva, quando não justificada pelo Ministério Público ou autoridade policial.

Ainda que fosse tecnicamente correta, a decisão não se sustenta diante da periculosidade do traficante e o risco – agora confirmado, com sua óbvia fuga – de sua soltura. E não adianta vir com firulas jurídicas: é, sim, papel do STF zelar pela ordem pública, e não se espera de um magistrado da Corte suprema que esteja de prontidão para, a qualquer cochilo de prazos do Ministério Público, conceder liminar com esse teor num sábado pré-feriado.

O jogo de gato e rato iniciado entre os ministros depois da decisão e de sua revogação por Fux, com direito a indignidades de troças quanto ao penteado do presidente da Corte, é sinal de que foi longe demais o esgarçamento da institucionalidade na cúpula do Judiciário.

É este o retrato do Poder com o qual a sociedade vem contando para, vejam só, colocar freios no presidente com pendores autocráticos. Enquanto uma ala da Corte está confraternizando com ele e opinando sobre indicações para o Supremo, a outra está se engalfinhando numa disputa infantil enquanto um criminoso perigoso foge nas suas barbas. Aterrador.


José Serra: Pôr as cidades nos trilhos

A crise fiscal, agravada pela pandemia, exige a revisão de paradigmas obsoletos

As políticas voltadas para a superação da pobreza e a redução da desigualdade social tendem a promover transferências de renda ou programas setoriais, como os de educação e saúde. Tenho dedicado grande parte da minha vida pública ao fortalecimento das políticas e instituições de saúde. Mas o bem-estar das pessoas não depende apenas disso. A qualidade de vida propiciada pela cidade é igualmente importante.

Na escala do bairro, um espaço bem organizado permite o acesso a pé ou por bicicleta a equipamentos públicos, como praças, escolas, postos de saúde, quadras esportivas e teatros, além de serviços e comércio, que asseguram consumo e empregos próximos à moradia.

Na escala da cidade, a infraestrutura fundamental é a de transporte coletivo, que garante ao cidadão acesso a empregos mais distantes e a equipamentos de maior porte, como hospitais, universidades, estádios de futebol e parques.

É por isso que atualmente se procura, no mundo todo, promover um desenvolvimento urbano mais compacto, em que bairros densos e diversificados se conectam entre si por redes de mobilidade de alta capacidade, como metrôs, trens de superfície, veículos leves sobre trilhos (VLT) e ônibus de trânsito rápido (BRT, de bus rapid transit).

Procura-se garantir que todos os moradores da cidade possam chegar a uma estação de transporte de alta capacidade em até 15 minutos, a pé ou de bicicleta, modelo conhecido pela sigla TOD, de transit-oriented development ou desenvolvimento centrado no transporte. Além de aumentar a densidade de ocupação no entorno das estações, reorganizam-se o sistema viário e o reparcelamento do solo, criam-se ciclovias e calçadas acessíveis – mesmo em detrimento do espaço destinado ao automóvel privado de uso individual –, além de novos imóveis apropriados à infraestrutura de transportes.

Nas metrópoles brasileiras, a expansão dos metrôs avança muito lentamente. Em parte, pelos altos custos envolvidos, que se tornam proibitivos quando financiados exclusivamente com recursos orçamentários. No entanto, o problema também se deve a fatores institucionais.

A doutrina tradicional encara o transporte ferroviário de passageiros como um serviço autocentrado, exclusivamente destinado a deslocar pessoas de um ponto a outro da cidade. Trata-se de uma visão míope. Nos países desenvolvidos o metrô não se limita a implantar e gerenciar linhas férreas, mas reurbaniza seu entorno, com o objetivo de melhorar o aproveitamento dos terrenos próximos, aumentando a densidade da região, criando demanda e receitas aptas a financiar o investimento. Em outros países, como o Japão, essas receitas não tarifárias chegam a 80% do faturamento total.

Aqui desapropriamos apenas o estritamente necessário para a instalar linhas e estações. Nos trechos de superfície, as linhas de trem seccionam o tecido urbano, criando uma separação absoluta entre os dois lados da via, o que degrada o seu entorno. Chega-se ao absurdo de desapropriar partes de imóveis, deixando para os proprietários terrenos imprestáveis, de dimensões inferiores às mínimas exigidas para a construção de uma edificação.

Os planos diretores ampliam o potencial construtivo dos terrenos próximos às estações, a fim de propiciar maior verticalização e o consequente adensamento. Mas essa diretriz acaba sendo frustrada pela fragmentação das propriedades, que tornam inviáveis as incorporações imobiliárias.

Para superar esse desafio o novo marco legal das ferrovias, em tramitação no Senado, contém uma seção voltada para as operações urbanísticas. A implantação de infraestruturas ferroviárias passará a incorporar projeto urbanístico do entorno, destinado a minimizar possíveis impactos negativos, propiciando aproveitamento eficiente do solo urbano. Além disso, prevê-se a captura do valor da terra, que não deve ser vista apenas como uma receita acessória à tarifária, mas como fonte ordinária de financiamento do transporte ferroviário.

Incorporando técnicas internacionais de reparcelamento do solo, a execução desse projeto será promovida pela própria operadora ferroviária, que deverá constituir um fundo de investimento imobiliário aberto à participação dos proprietários de imóveis.

Tendo em vista que muitos imóveis têm pendências fundiárias que impedem sua negociação no mercado, o projeto altera também a lei das desapropriações, para permitir a desapropriação para execução de planos de urbanização ou renovação urbana, com posterior exploração econômica dos imóveis produzidos. Além disso, reconhece os direitos possessórios dos ocupantes de núcleos informais consolidados, que também deverão ser indenizados.

A crise fiscal em que se encontram todos os entes da Federação, agravada pela pandemia de covid-19, exige a revisão de paradigmas obsoletos. No caso do transporte ferroviário, é preciso tratar a instalação de infraestruturas como uma oportunidade de reestruturação abrangente do tecido urbano, capaz de produzir cidades mais justas, acessíveis e sustentáveis.

Chegou a hora de pormos as nossas cidades nos trilhos.

*Senador (PSDB-SP)