o primeiro termo passou a se sobrepor ao segundo por conta do culto à personalidade que cerca o ex-presidente Lula

RPD || Luiz Sérgio Henriques: Esquerda lulista e culto à personalidade

Que a política brasileira está impregnada de lideranças personalistas, à direita e à esquerda, é fato mais do que sabido. Getulismo, lacerdismo ou janismo, entre outros “ismos”, comprovam a constante busca do homem providencial e a expectativa de salvação depositada num único personagem, que, de resto, tem dificuldade para contribuir na tarefa de construção de grupos dirigentes mais ou menos extensos, dotados de autonomia e capacidade de ação para além do horizonte de uma biografia individual.

À esquerda, o fenômeno tem nome, posto em circulação há décadas nos círculos comunistas: o culto à personalidade. Stalin foi uma espécie de patrono da categoria, que se replicava nos diferentes contextos nacionais, como Prestes e o velho PCB. Naturalmente, aqui havia um atenuante. O partido comunista passou a maior parte do tempo na ilegalidade e era menos arriscado apontar nas ocasiões eleitorais, quando as circunstâncias permitiam, “o candidato de Prestes”. Ou comemorar como uma data partidária, da forma possível, o aniversário do próprio secretário-geral, que parecia eterno e indissoluvelmente ligado à sigla.

Não é certo que o PT tenha rompido essa arraigada tradição, ainda que surgido impetuosamente, “de baixo para cima”, no contexto da segunda redemocratização. A ambição – legítima – era ocupar a área da esquerda, explorando a crise histórica do comunismo e a insuficiência de outras correntes, como a versão brizolista do trabalhismo ou a social-democracia à brasileira, nascida fora dos sindicatos. Tratava-se de uma formação política nova e poderosa, com enraizamento na sociedade civil, envolvendo seus intelectuais, a Igreja progressista, boa parte do movimento sindical. E uma liderança expressiva, a de Lula, que a partir da sua entronização, há mais de quarenta anos, não mais deixaria o papel de protagonista.

O lulismo e o petismo caminharam juntos por décadas, amparando-se mutuamente, mas é certo que há muito, e talvez definitivamente, o primeiro termo passou a se sobrepor ao segundo. Termos polarizadores agregam eleitores fiéis e militantes dedicados, mas também considerável rejeição. Uma hipótese a ser considerada, para explicar tal rejeição, é que o partido nunca se livrou de um mal de nascença: a ideia de que seu surgimento iluminava de maneira única, e por si só, toda a história brasileira, o passado e o presente, como “nunca antes neste país ”. A autorreferência, assim, tornou-se uma marca e um limite.

Para ir além de si mesmo, um partido – qualquer partido – precisa, entre outros requisitos, desenvolver uma vocação nacional, uma visão peculiar da nação, que não exclua outras visões divergentes e até as requeira. Sem abandonar o grupo original de referência – no caso, os “trabalhadores”, uma imagem que naturalmente se refere aos “de baixo” –, o partido, como figura coletiva, deve pensar estrategicamente os problemas nacionais decisivos, motivar aliados, respeitar adversários e agir lealmente nas instituições. Construir um novo modo de ser e de ver as coisas: plural, articulado, aberto a mudanças. E isso na mesma medida em que se propõe ser arauto de mudanças significativas na política e na sociedade.

Na falta desta construção, ou na presença de uma construção defeituosa, o cimento que liga simpatizantes e eleitores é a adesão irrestrita ao líder, uma adesão que atravessa décadas e ressurge intacta, mesmo quando as condições estão inteiramente mudadas. Expulso pela porta, o culto à personalidade retorna pela janela. Alguns justificarão este retorno com o fato de que é inevitável “fulanizar”, isto é, individualizar ideias e concepções abstratas para ganhar eleições. Ou de que a direita faz coisa muitíssimo pior, bastando ver os gritos irracionais de “mito” que cercam uma figura para lá de equívoca, como a do atual Presidente da República.

Nenhuma das duas justificativas está de todo errada, especialmente a segunda. De fato, a mitificação do líder, à direita, evidencia os enormes riscos que qualquer processo deste tipo implica: uma democracia cancelada, uma cidadania reduzida a pó. Num quadro assim, reativa-se a memória da frente democrática que sitiou e deixou sem ação a ditadura de 1964, até nos levar à Constituição de 1988. Agora, além de garantir as próximas eleições e de vencê-las, será preciso reconstruir um país em ruínas. O lulismo e o petismo terão aqui uma prova de fogo, como nunca tiveram. Para participar daquela frente, que não exclui ninguém, terão de se reinventar e até reescrever boa parte da própria biografia. Não haverá outra ocasião.

Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. Autor de Reformismo de esquerda e democracia política (FAP & Verbena, 2018).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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