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Carlos Andreazza: A eleição delirante

Desqualificar Bolsonaro pelo que não é só nos afastará da pergunta urgente, do mundo real: ele tem competência para governar? Não

Bolsonaro não é fascista, e sua eleição não imporá um regime de exceção. Isso é confortável delírio na boca de perdedor nunca capaz de compreender o adversário, e desespero sem vergonha de quem, representante de um partido para cujo projeto de permanência no poder pilhou-se o Estado, ora se apresenta como merecedor de um voto moralmente superior. Aliás, a pregação do deputado como nazistão serve de gatilho libertador para que muitos constrangidos com a roubalheira lulopetista possam agora votar no PT maquiados de “ele não” e olhar desde cima a forma como os bárbaros, os que não votam no cavalo de presidiário, jogam o país na incerteza.

Que tal botar a bola no chão, baixar a pretensão de que seja possível votar bem em 2018 e entender que a democracia brasileira está desqualificada não por causa de Bolsonaro, mas em decorrência do longo processo de depauperação da política que o tornaria imbatível?

Não sejamos oportunistas. O sujeito não vem para destruir direitos nem para aterrar as instituições — não mais do que os lulopetistas, os que sucatearam a institucionalidade com a sindicalização da máquina pública e com o embuste do tal golpe, e que insistiram numa candidatura impossível apenas para alimentar a narrativa de Lula como vítima, perseguido político, inimigo de juízes e procuradores por cuja cultura jacobinista, afinal, são responsáveis. Ainda assim, sobreviveremos. A democracia sobreviverá. A questão é outra.

Bolsonaro é autoritário e iliberal, defensor de nicho corporativo e de passado avesso ao reformismo, com um histórico de manifestações reacionárias e de realizações inexistentes, que encaixou discurso conservador, moralizador e voluntarista, projetando ser, uma vez eleito, aquilo que jamais foi, em função de quem já se forma uma nova corte, de extração collorida, com familiares como interlocutores privilegiados e uma órbita gulosa e influente de lobistas, e a respeito de quem, portanto, só uma pergunta se deveria fazer — a única que não se faz: tem competência para governar? Alguém é capaz de desenhar o programa bolsonarista de gestão para o país? Ou a agenda será exclusivamente o combate à corrupção, como se tal fosse o principal problema (está longe de ser)? Falo do mundo real, aquele em que as pessoas precisam de emprego e em que o risco não é de venezuelização nem de ascensão do Hitler, mas de se eleger uma nova Dilma.

Em vez de a histeria que anuncia o provável futuro presidente como aquele que virá para cassar a democracia, melhor seria empenhar esforço em compreender o que é orgânico fenômeno político e as limitações de quem o materializa. A ascensão de Bolsonaro, por exemplo, pode ser explicada pelo comportamento de Haddad no segundo turno, dedicado a convencer o eleitor de que, luloposte do líder preso de um projeto partidário de poder que assaltou o Estado por 13 anos, de súbito encarna a esperança democrática do país.

Enquanto se tenta enfiar esse desrespeito à inteligência alheia goela abaixo do brasileiro, Bolsonaro se explica: é o guardião dos sentimentos antilulopetista e antipolítica. Não apenas. A constituição de seu mais antigo discurso — o que radicalizou o senso de urgência à pauta da segurança pública — é aula de engajamento. O deputado jamais se expressou publicamente senão para defender um dos mais sensíveis interesses daqueles a quem pede voto: a propriedade privada. Aí incluído o que se pode chamar de patrimônio imaterial e que abarca família, religião e educação; conjunto de valores caríssimos a uma sociedade que é difusamente conservadora, mas que tem sido desprezada pela imposição de uma agenda elitista-progressista que em nada atende às necessidades mais básicas das gentes que pisam no chão e que, no ambiente da política partidária, une e fulmina PT e PSDB.

Não que Bolsonaro tenha simplesmente identificado vitrines muito óbvias no mercado eleitoral e então exposto seu produto ali. Não. Ele sem dúvida reconhecera o potencial desses espaços, mas não eram óbvios nem pareciam vagos quando os encampou. Grande parte do fenômeno que representa emana disto: o deputado já estava ali quando a consciência social brasileira moveu-se para lá. Não é exagero dizer que seja criação de uma militância espontânea que o descobriu naquele lugar e que passou a recortar suas falas, aquelas em defesa de valores tradicionais, dando-lhes molho pop, a própria origem do “mito”. Esse perfil foi criado por seus admiradores na internet a partir da natureza beligerante da atuação que desenvolveu na Câmara — e ele apenas o assumiu. O Bolsonaro que conhecemos é a incorporação da forma como interpretado por seus potenciais eleitores.

Não é um meme, porém. Ou não somente. Mas a expressão ressentida de uma revolta popular gestada lentamente, a do pai que nunca sabe se a filha chegará em casa. Xingar o mensageiro, pois, é ofender o mesmo cidadão, então virtuoso, que no passado elegeu FHC e Lula. Desqualificá-lo pelo que não é só nos afastará da pergunta urgente, a do mundo real, a da ressaca encomendada: Bolsonaro tem competência para governar?

Não.