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Míriam Leitão: Nélida e o risco de o país se perder

Nélida Piñon termina novo livro, protesta contra a censura e diz que o espírito e a unidade do país podem se perder

A escritora Nélida Piñon teme que o Brasil perca a sua essência nos conflitos que vive atualmente e manda um recado ao poder: “É preciso que Brasília entenda, o Estado brasileiro, a Presidência entendam que o Brasil já avançou muito na sua história para retroceder.” A reação vem contra o ambiente de censura que reaparece e que ela conhece bem. Diz que é uma “audácia” censurar Machado de Assis. “É tentar arrancar o Brasil do seu próprio mapa.”

Certa vez, Nélida foi a Brasília levar pessoalmente o recado contra a censura. Foi em 25 de janeiro de 1977 e o destinatário era o então ministro da Justiça Armando Falcão. Foi o “manifesto dos mil”, com 1.047 assinaturas, escrito por várias mãos, inclusive as dela, depois de um encontro de escritores no ano anterior. O movimento foi articulado para ser um ato forte contra o que estava impedindo a publicação de inúmeros livros.

— Nasceu em Porto Alegre. Estávamos todos lá, inclusive Clarice (Lispector). E já voltamos decididos. Em São Paulo, alguns jovens escreveram o primeiro esboço em tom muito insurgente. Mas a grande organização foi no Rio, na casa de Cícero Sandroni, posteriormente na casa de José Louzeiro e Ednalda Tavares. Foi uma aventura libertária extraordinária, parecia que estávamos na Revolução Francesa — conta a escritora.

Hoje é preciso lembrar as velhas histórias da resistência, porque o país entrou num espantoso descaminho. A entrevista que fiz com ela, na Academia Brasileira de Letras, teve por testemunha o busto de Machado de Assis. Um dos seus livros mais geniais, o “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, estava na lista de Rondônia para ser retirado das escolas. O assunto passou, mas ficou como um exemplo do absurdo a que se pode chegar quando o ambiente de censura se instala.

Naquele começo de 1977, o ministro não os recebeu, mas sim o secretário-geral. E estavam na comitiva, além de Nélida, Lygia Fagundes Telles, o historiador Hélio Silva e Jefferson de Andrade. De lembrança do dia ficou uma foto apenas e alguns bilhetes que os autores escreveram. Em gesto que parece hoje totalmente estranho, Nélida levou na sua bolsa martelo e tachinhas. Caso o governo não recebesse o documento, ela tentaria pregar na porta. Como Robin Hood. Perguntei a Nélida o que tudo isso ensina para o momento atual:

— Que você não pode perder o espírito de alerta. O Estado não é amigo incondicional da criação literária, do pensamento. Há sempre uma incompatibilidade muito grande entre quem pensa, quem fabrica e o Estado, que tem seus interesses e pode sacrificar quem seja em nome desses interesses. O que temos que fazer agora é fomentar essa defesa e fortificar nosso espírito.

Para a escritora, a cultura é parte da civilização:

— O país se ampara, se sustenta, não é na cultura só, é na civilização. A cultura é o cimento da civilização. E no Brasil isso vem se esgarçando, inclusive no que é essencial, vem quebrando uma coisa que eu acho que é um casulo no qual está o espírito brasileiro, o mistério de uma nação. É dentro desse casulo que estão os elementos imateriais, transcendentes, que garantem a unidade nacional. Sem isso corremos o risco de um rompimento. Mais do que o rompimento geográfico, mas de nação, de espírito.

O momento em que até Machado de Assis foi censurado foi para ela, uma apaixonada pelo autor, “um choque”:

— Machado congrega o que o Brasil tem de melhor e mais difícil. Era negro mulato, autodidata, gaguejava. Ele nunca foi à Europa. A viagem que fez foi a Friburgo, a 120 quilômetros. Quando contei isso para Susan Sontag ela ficou deslumbrada. É o homem mais universal do Brasil. Moderno, com texto ambíguo. O Brasil inteiro está lá. É o primeiro grande escritor das Américas a tratar o mundo urbano. Então esses homens de repente contestam a grandeza dele e decidem censurá-lo. Acho que eles deveriam pedir perdão à Nação brasileira.

Nélida diz que há outras formas de proibição aparecendo:

— Em nome inclusive de uma moral duvidosa. Que nem é contemporânea. Mas não quero discutir a questão moral, quero falar da questão cívica. Daqueles valores que fazem parte da democracia.

Combatente ainda aos 82 anos, Nélida acaba de concluir seu novo romance. Ela me contou o título, que mostra o valor da busca do conhecimento: “Um dia chegarei a Sagres”.