negociação

Fernando Abrucio: Alimentar o ódio é minar a nação

Democracia Política e Novo Reformismo*

A construção de nações foi uma das tarefas mais complexas da história da humanidade. O primeiro passo é estabelecer os limites territoriais dos países, algo ainda inacabado em parte do mundo, tendo muitas vezes a guerra como solução. Mas o aspecto mais complicado está na produção da identidade nacional. Constituir um povo que conviva com suas diferenças não é nada trivial. Mesmo sendo escandalosamente desigual, o Brasil conseguiu edificar uma sociedade razoavelmente tolerante, com espaços de convívio e respeito mútuo. Só que o ódio entre brasileiros tem sido alimentado cotidianamente. Isso pode afetar o destino de curto e longo prazo da nação.

O ódio social nunca foi uma bússola para construir civilizações. Nos casos mais extremos, produziu-se a barbárie. Assim foi na Alemanha nazista, com a perseguição de vários grupos sociais, especialmente os judeus, com 6 milhões de mortos. O Brasil atual está longe disso, mas o crescimento do neonazismo nas redes sociais e manifestações declaradamente nazistas em universidades e até em escolas particulares de educação básica revelam que há sementes totalitárias sendo plantadas em nossa nação.

Mas o ódio pode ter uma forma mais branda e duradoura, com divisões sociais marcadas pelo rechaço completo entre as forças políticas, transformando a atividade da política em um jogo de mágoas perpétuas. A Argentina tem trilhado essa história desde a Segunda Guerra Mundial, com períodos autoritários muito violentos e com momentos democráticos em que o diálogo tem pouco espaço entre os diferentes. O fato é que o desenvolvimento econômico e social argentino foi barrado por um grau de polarização que dificulta qualquer decisão que resulte da negociação e do respeito mútuo. Esse é o efeito Orloff que o Brasil mais deveria temer.

Nos últimos 15 anos, um novo ciclo internacional de ódio político foi constituído. Ele é a combinação do avanço de redes sociais propositadamente polarizadoras com o discurso da nova extrema direita, caracterizada pela defesa de valores tradicionais, pelo nacionalismo excludente (nem todos os integrantes da nação são legítimos) e pela crítica às instituições impulsionadas a partir do Iluminismo ocidental. Por meio desses dois elementos, construiu-se um movimento baseado na busca da destruição dos inimigos, como a mídia tradicional, os liberais globalistas, a esquerda em seus vários matizes, a ciência e os intelectuais, além de grupos sociais politicamente minoritários (mulheres, negros, LGBTQIA+ etc.), para citar os principais alvos, realizando uma hiperpolitização de todos os espaços da vida humana.

A hiperpolitização significa que nenhum espaço da vida humana pode estar alheio às ideias políticas que norteiam o grupo que se pretende dominante, ou melhor, que pretende eliminar todos os que não concordam com ele. É uma noção similar ao conceito de ideologia usado por Hannah Arendt para descrever os totalitarismos do século XX. Os filmes de Goebbels muitas vezes falavam da vida cotidiana, da higiene que a raça ariana deveria cultivar para se tornar superior. Hoje, a hiperpolitização não define apenas o que se deve fazer na seara política, mas como se comportar na esfera privada.

A política é a atividade mais nobre entre os seres humanos, como já pensavam os clássicos como Aristóteles e Maquiavel, porém, quando tudo vira política, há grandes chances de se criar uma sociedade incapaz de conversar na padaria, de tomar o mesmo ônibus, de se sentar numa mesma sala de aula, de entender que o direito de um termina quando afeta a liberdade do outro - evitar que uma pessoa doente atravesse uma estrada é matar o sentido de uma nação. Será que a Copa do Mundo nos trará a ideia de brasileiros, iguais na sua diferença, de volta?

É muito assustador quando uma sociedade começa a funcionar segundo uma divisão baseada no ódio ao outro, a quem pensa diferentemente ou tem uma origem social distinta. O clima social geral e em todas as organizações fica extremamente pesado. Haverá mais conflitos desnecessários, em algumas situações se chegará à violência, com a possibilidade da morte de um irmão ou irmã não de sangue, mas de identidade nacional. As escolas se tornarão menos suscetíveis ao aprendizado como resultado do diálogo e do compartilhamento de experiências diferentes. As empresas também sofrerão com esse processo de disseminação do ódio, provavelmente reduzindo sua produtividade, porque o sucesso organizacional depende bastante da combinação de talentos e visões de mundo diferentes.

Para exemplificar a que ponto se chegou o ódio alimentado pelo bolsonarismo, basta lembrar que o Brasil precisa do Nordeste para a construção de seu imaginário cultural e de seu sucesso econômico - experimente segregar os estados, e barreiras econômicas nascerão a seguir, perdendo-se mercado consumidor e capital humano. Os meninos da escola privada que trataram seus colegas de forma preconceituosa terão enormes dificuldades de conseguir empregos no futuro, pois as empresas estão demandando diversidade, e quem for contra isso terá menos espaço na economia do século XXI. Voltando à Copa do Mundo, tema que vai ser dominante nas próximas semanas, seria impossível ganhar qualquer um dos cinco títulos que temos se o atual modelo de ódio definisse as convocações.

Aqui vale diferenciar o conceito de pátria do sentido da palavra nação. Ficou na moda em certos círculos sociais se definir como patriota. Gostar da bandeira e do hino nacional unifica as pessoas de um país. Só que a palavra pátria tem a ver mais com o lado oficial do Estado nacional, e relaciona-se menos com o que profundamente liga as pessoas em uma determinada sociedade. A pátria pode ser evocada por ditadores, por gente que mata seus semelhantes em nome de objetivos políticos - muitos dos autoproclamados patriotas que estão nas ruas querem destruir seus inimigos, mesmo que sejam seus vizinhos que um dia os levaram ao hospital ou cuidaram de seus filhos quando estavam fora de casa.

A nacionalidade, ao contrário, vai além da estrutura institucional do poder. Ela está lá também, entretanto, sua principal característica é ser um sentimento profundo e de longo prazo de pertencimento a uma coletividade. A nação unifica sem que se produza a homogeneidade social. Em vez disso, deve garantir a unidade na diversidade, alimentando consensos e gerindo dissensos. O pertencimento a uma nação é a possibilidade de discordar e conviver, como quem torce para times diferentes, discute quem é a melhor equipe, xinga o juiz do jogo, mas ao final aceita as regras e acredita que o futebol só tem graça porque há adversários. O que seria do Corinthians sem o Palmeiras, e vice-versa?

O ódio político está minando os vínculos básicos da nação brasileira. Em termos coletivos e intertemporais, ninguém ganha com isso, a não ser grupos organizados para conquistar o poder por meio da violência política e social. O problema é que esse tipo de extremismo convenceu uma parcela relevante da sociedade brasileira que, inebriada pela hiperpolitização que parece dar respostas a todas as angústias da vida social, mobiliza-se cegamente para a destruição das bases mais amplas da coletividade, colocando em risco o seu presente e, sobretudo, o futuro de seus filhos e netos.

No curto prazo, é preciso construir espaços públicos de diálogo entre os diferentes, mostrando como é possível conviver com a divergência, negociar posições e até mudar de opinião. Claro que aqueles que cometeram crimes contra a democracia, segundo define a lei, podem ser punidos. Todavia, a maioria que está descontente com o resultado eleitoral e acredita nas teorias conspiratórias que são alimentadas pela hiperpolitização pode ser trazida de volta ao debate democrático com suas diferenças em relação ao presidente eleito.

Para isso, é preciso que as principais instituições sociais, como a mídia e a universidade, e o novo governo se guiem pela maior abertura possível para conversar e incorporar demandas de diferentes setores sociais. No caso da terceira gestão presidencial de Lula, ele terá que se vigiar constantemente para evitar o hegemonismo que por muitas vezes acomete o PT. A frente ampla é a única forma de salvar a nação da doença do ódio que cresce no país, e ela será feita de grandes decisões e de pequenos atos, como o relativo à discussão da presidência do BID, quando o petismo se esqueceu das lições recentes e atuou como no passado hegemonista.

A solução estrutural para evitar o crescimento do ódio político e social está na educação. É preciso fazer da diversidade a peça central do ensino, da creche à universidade. Há quase 30 anos formo alunos com ideias diferentes, e sempre estimulei o convívio e o aprendizado entre os divergentes. Já falhei na minha jornada pedagógica, como num episódio recente em que fui desrespeitoso com quem pensava diferentemente de mim. Talvez todos estejamos envoltos em muito ódio, quando precisamos de paciência e de empatia. Por essa razão, dedico este artigo a Danielle Klintowitz, falecida precocemente há algumas semanas. Ela foi minha orientanda e seu doutorado mostrava que uma política pública bem-sucedida depende de negociação e acordos entre os diferentes. E o que vale para ações governamentais, vale para a convivência de todas as pessoas da nossa nação.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Texto publicado originalmente no Democracia Política e Novo Reformismo.


Foto: picture alliance

COP27: Mundo ruma para "inferno climático", alerta Guterres

Made for minds*

"A humanidade tem uma escolha: cooperar ou perecer. Ou fechamos um pacto de solidariedade climática ou um pacto de suicídio coletivo." Com essas palavras, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou os líderes reunidos na abertura da 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP27) que os países enfrentam uma escolha difícil: trabalhar juntos agora para reduzir as emissões ou condenar as gerações futuras à catástrofe climática.

Em seu discurso, Guterres pleiteou que os governos – mesmo que estejam distraídos com a guerra na Ucrânia, a inflação desenfreada e crises energéticas – busquem durante as duas semanas da COP27 selar acordos e estratégias sobre como evitar os piores impactos das mudanças climáticas.

Guterres pediu aos países que concordem em eliminar gradualmente o uso de carvão – um dos combustíveis mais intensos em carbono – até 2040 em todo o mundo, mas acrescentou que os 38 países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) devem buscar atingir essa marca até 2030.

"Estamos numa estrada para o inferno"

De acordo com o secretário-geral da ONU, apesar de décadas de negociações climáticas, o progresso tem sido insuficiente para salvar o planeta do aquecimento excessivo, pois os países estão muito lentos ou relutantes em agir.

"As emissões de gases de efeito estufa continuam crescendo. As temperaturas globais continuam subindo. E nosso planeta está se aproximando rapidamente dos pontos de inflexão que tornarão o caos climático irreversível", disse Guterres. "Estamos numa rodovia rumo ao inferno climático com o pé no acelerador." 

Guterres pediu por um pacto entre os países mais ricos e os mais pobres para acelerar a transição dos combustíveis fósseis para energias renováveis e a entrega do financiamento necessário para garantir que os países mais pobres possam reduzir as emissões e lidar com os impactos inevitáveis que as mudanças climáticas já causaram.

Responsabilidade de EUA e China

"As duas maiores economias – EUA e China – têm uma responsabilidade particular de unir esforços para tornar esse pacto uma realidade", disse Guterres, em Sharm el-Sheikh, no Egito, palco da 27ª edição da cúpula climática da ONU. 

A maioria dos líderes mundiais se reúne no Egito nesta segunda e terça-feira, justamente quando os Estados Unidos estão envolvidos nas eleições de meio de mandato que podem mudar a política americana.

Ademais, os líderes das 20 nações mais ricas do mundo terão a sua cúpula exclusiva poucos dias depois em Bali, na Indonésia. O mandatário do país mais poluente do mundo, o presidente americano, Joe Biden, chegará à COP27 alguns dias depois da maioria dos líderes mundiais, quando estiver a caminho de Bali.

Líderes da China e da Índia – ambos entre os maiores emissores do planeta – aparentam estar se esquivando das negociações climáticas, embora alguns representantes tenham viajado para a COP27 no Egito.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, inicialmente queria evitar a COP27, mas a pressão pública e os planos do antecessor Boris Johnson fizeram-no mudar de ideia. O novo rei Charles 3º, um defensor assíduo do meio ambiente, não comparecerá devido ao seu novo papel como monarca. E o líder da Rússia, Vladimir Putin, também decidiu se abster das negociações climáticas.

Para insatisfação de alguns, líderes mundiais de alguns dos países mais poluidores não comparecerão à COP27 no Egito | Foto: Sedat Suna/EPA-EFE

"Os poluidores históricos não compareceram"

"Sempre queremos mais líderes", disse o chefe da ONU para temas relacionados ao clima, Simon Stiell. "Mas acredito que há lideranças suficientes para termos um resultado produtivo."

A maioria dos participantes da COP27 são líderes do continente africano, cujos países estão pressionando por uma maior responsabilização das nações desenvolvidas.

"Os poluidores históricos que causaram as mudanças climáticas não compareceram", disse Mohammed Adow, da think tank Power Shift Africa. "A África é o menos responsável e o mais vulnerável à questão das mudanças climáticas."  

Nos próximos dias, mais de 100 líderes mundiais discursarão. Grande parte do foco estará em líderes nacionais relatando problemas causados por eventos climáticos extremos, especialmente de países africanos e insulares.

O discurso mais aguardado, no entanto, é o do primeiro-ministro do Paquistão, Muhammad Sharif, cujo país foi atingido por inundações neste ano que causaram ao menos 40 bilhões de dólares em danos e deslocaram milhões de pessoas.

"Minhas expectativas para metas climáticas ambiciosas nestes dois dias são muito baixas", afirmou Niklas Hohne, cientista do NewClimate Institute. Segundo ele, isso se deve especialmente à invasão russa da Ucrânia, que causou uma crise energética e outra alimentar que prejudicaram a ação climática. Muitos países, especialmente na Europa, veem-se forçados a reativar formas mais poluentes de produzir energia.

Os signatários do Acordo de Paris de 2015 se comprometeram a atingir uma meta de longo prazo de impedir que as temperaturas globais subam mais de 1,5 °C em relação à era pré-industrial. Cientistas estabeleceram essa marca como o limite para evitar mudanças climáticas catastróficas.

Texto publicado roiginalmete no portal Made for minds.


Um militar ucraniano ao lado de uma cratera de morteiro em um campo na região de Donetsk, no leste da Ucrânia, em 24 de outubro de 2022. - Dimitar Dilkoff / AFP

Oito meses de guerra: Rússia faz alerta de "bomba suja" em uma estratégia sem horizonte

Serguei Monin*, Brasil de Fato

A recente investida russa é marcada por uma mobilização, anexação de novos territórios e fortes bombardeios por toda a Ucrânia. Kiev, por outro lado, mantém a sua contraofensiva e coloca em xeque o controle de Moscou sobre Kherson, umas das regiões anexadas pela Rússia. Enquanto isso, tímidos acenos para a possibilidade de negociações de paz mantêm o impasse na crise entre Rússia e Ucrânia. 

Esta semana começou com graves acusações por parte da Rússia de que a Ucrânia estaria concluindo a produção de uma arma radiológica chamada de "bomba suja", que combina material radioativo com explosivos convencionais. Na segunda-feira (24), o Ministério da Defesa russo acusou Kiev de planejar usar o armamento no intuito de organizar uma provocação para acusar a Rússia de usar armas de destruição em massa e lançar uma campanha antirussa no mundo.

No mesmo dia, o ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, realizou conversações com altos oficiais militares da Grã -Bretanha e dos EUA para alertar a comunidade internacional sobre a suposta ameaça ucraniana.

“Como resultado da provocação de ‘bomba suja’, a Ucrânia espera intimidar a população local, aumentar o fluxo de refugiados pela Europa e expor a Federação Russa como terrorista nuclear”, afirmou o chefe das tropas de proteção radiológica, química e biológica das Forças Armadas Russas, tenente-general Igor Kirillov.

Em resposta, os EUA, a Grã-Bretanha e a França emitiram uma declaração conjunta, classificando a declaração do Ministério da Defesa russo como uma "insinuação". A Ucrânia negou a produção de uma "bomba suja" e convocou inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica ao país para realizar monitoramento. 

A narrativa russa sobre a suposta ameaça radioativa da Ucrânia é o mais recente desdobramento da atual fase da operação militar da Rússia no país vizinho, que completou oito meses na última segunda-feira (24). As movimentações de Moscou e a reação da comunidade internacional refletem o cenário de impasse que a guerra chegou atualmente.

Em uma primeira etapa da anunciada “operação especial militar” na Ucrânia, em 24 de fevereiro, a Rússia realizou uma tentativa de blietzkrieg, realizando massivos bombardeios no território ucraniano, inclusive nos arredores da capital Kiev. Com amplo apoio internacional e manutenção da resistência mobilizada das forças ucranianas, não foi alcançada a capitulação do governo ucraniano e o Kremlin modulou os seus objetivos, anunciando um recuo das tropas e concentrando as ações militares em Donbass, a região das repúblicas separatistas pró-Rússia.

Nos primeiros meses da guerra, o analista-sênior do International Crisis Group para a Rússia, Oleg Ignatov, em entrevista ao Brasil de Fato, defendeu a tese de que o Kremlin não estava se preparando para uma guerra total, considerando que as tropas executariam uma operação militar rápida. De acordo com ele, o objetivo inicial era realizar uma “operação de intimidação" para forçar uma mudança de regime na Ucrânia.  

Assim, entre março e agosto, a ofensiva das tropas russas no sul e sudeste da Ucrânia foi relativamente bem-sucedida com o foco na tomada de controle de regiões como Donetsk, Lugansk, Kherson, Zaporozhye e Kharkov.

Uma terceira etapa que altera a dinâmica do conflito se inicia no fim de agosto e início de setembro com o anúncio da contraofensiva ucraniana. Em outubro, as forças de Kiev realizaram importantes retomadas de territórios ocupados pela Rússia, principalmente na região de Kharkov.

O contraataque ucraniano levou a uma nova inflexão russa em setembro, marcada pelo anúncio da mobilização de 300 mil novos reservistas para a guerra, a anexação de territórios ocupados na Ucrânia, novos bombardeios massivos em todo o território ucraniano, além das ameaças de uso de armas nucleares. Além disso, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou uma lei marcial nos territórios anexados das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, e nas regiões ocupadas de Kherson e Zaporozhye, na última quarta-feira (19)

Em entrevista ao Brasil de Fato, a cientista política e do Centro de Estudos Russos e do Leste Europeu da Universidade de Helsinque, Margarita Zavadskaya, observa que toda a trajetória da estratégia russa na Ucrânia até aqui aconteceu sem um planejamento adequado.

“Pressupunha-se uma guerra rápida em 24 de fevereiro, e rapidamente ficou claro, nada ia acontecer de acordo com o plano inicial. Então agora, não é uma opinião somente minha, mas também a de muitos colegas que acompanham a situação, a impressão é de que não existe um plano. Não existe uma estratégia, e existem muitas decisões inconsistentes, como declarar um estado de guerra, mas não anunciar que existe uma guerra”, argumenta.

De acordo com a analista, “todas as decisões são tomadas de acordo com a circunstância e isso é uma notícia bem ruim”, porque “é difícil compreender o que quer o lado russo”. “E se nós não entendemos o que a Rússia quer, então é muito difícil realizar com ela quaisquer negociações”, acrescentou.

Enquanto isso, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou nesta terça-feira (25) que a Rússia está pronta para o diálogo com todos os países, incluindo os EUA e o Papa Francisco, a fim de chegar a um acordo na Ucrânia.

“Estamos prontos para discutir tudo isso com os americanos, com os franceses e com o pontífice. Repito mais uma vez: a Rússia está aberta a todos os contatos. Mas devemos partir do fato de que a Ucrânia codificou [por lei] a não continuação das negociações”, disse Dmitry Peskov.

Em 30 de setembro, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky assinou um decreto declarando "a impossibilidade de negociações com o presidente russo Vladimir Putin".

Para a cientista política Margarita Zavadskaya, a possibilidade de haver negociações ou não será determinada pelos desdobramentos no campo de batalha.

Segundo a pesquisadora, entre muitos analistas há uma espécie de "wishful thinking", no qual todos querem que isso tudo termine o mais rápido possível, mas infelizmente a situação atual nos mostra que “pode ser um conflito desagradavelmente prolongado que não se resolverá no decorrer de um mês".

“Como a Ucrânia não pretende iniciar negociações […] e nós não entendemos exatamente o que quer a Rússia, então, no mau sentido, nós temos essa situação de impasse”, completa a cientista política.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Hélio Schwartsman: Reforma trabalhista

Se planejar todos os aspectos da vida econômica resultasse num ordenamento eficiente, os Estados comunistas teriam dado certo. Não deram.

Raciocínio análogo se aplica à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, com mais de 900 artigos, pretende regular nos detalhes as relações entre patrões e empregados.

São reduzidas as chances de esse calhamaço de imposições legais, muitas delas concebidas para lidar com a realidade laboral dos anos 40, que não existe mais, produzir soluções satisfatórias para ambas as partes.

Um exemplo banal. Lembro de já ter sido forçado diversas vezes pela CLT a sair em férias em períodos em que fazê-lo não interessava nem a mim nem à empresa. Ora, uma legislação deixa os dois lados insatisfeitos e não traz nenhum benefício público não tem razão para existir.

É óbvio que nem tudo na CLT são firulas como essa. Alguns de seus artigos (poucos) estabelecem normas que efetivamente protegem o trabalhador, mas não há dúvida de que já passa da hora de promover uma rodada de desregulamentação que nos livre dos anacronismos, ingerências e aposte na capacidade das partes de resolver seus problemas sem a tutela do Estado.

A livre negociação, vale lembrar, está na base da democracia e é um dos principais elementos que explicam o melhor desempenho da economia de mercado sobre outras formas de organização social.

É difícil dizer se a reforma proposta pelo governo é a ideal. Ela até caminha na direção correta, mas só saberemos se não contém exageros depois que ela for colocada em prática e produzir resultados.

Se surgirem efeitos deletérios provocados pela mudança na legislação e não pela crise econômica (é fácil confundir as duas coisas), não será complicado voltar atrás. Parlamentares não hesitam muito antes de aprovar “direitos”. É em parte por causa dessa tendência que nos metemos na enrascada fiscal em que estamos.