Nabil Bonduki

A cidade como arena da guerra política no 7 de Setembro

Imagens do povo nas ruas marcarão novo ponto de inflexão no país

Nabil Bonduki / Folha de S. Paulo

Para comemorar os dois anos do Manifesto Integralista, versão brasileira do fascismo italiano que se espalhava pelo mundo nos anos 1930, a Aliança Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado, marcou uma manifestação na praça da Sé no dia 7 de outubro de 1934.

O ato objetivava mostrar a força dos integralistas, agremiação de extrema direita que queria influenciar o governo Vargas e se fortalecer para disputar diretamente o poder. Os tempos eram outros, mas nem tanto...

Informados do ato, diferentes agrupamentos políticos “antifascistas” se organizaram e mobilizaram seus militantes para impedir que o coração da cidade fosse ocupado pelos seguidores de Salgado. O confronto ficou conhecido como a Batalha da Sé.

Quando a praça começou a ser ocupada pelos “galinhas verdes”, uniformizados e com suas bandeiras com o sigma (Σ), símbolo dos integralistas, os antifascistas, militantes socialistas, anarquistas e comunistas, entraram na praça dispostos a ocupá-la e melar a manifestação fascista.

Impulsionado pela intervenção policial, que atacou os esquerdistas, o conflito tomou grandes proporções, pois ambos os lados estavam armados, gerando uma batalha campal que deixou sete mortos e 30 feridos a bala.

Naquela época, como agora e em muitos outros momentos da história, a ocupação política dos espaços públicos, em datas e lugares simbólicos das cidades, é muito importante nas disputas entre as tendências autoritárias e democráticas.

O fenômeno se repete na atual conjuntura, por enquanto com um pouco mais de civilidade, embora o crescente apelo armamentista dos apoiadores do presidente, inclusive com a convocação de policiais para participarem de seus atos, gere muita preocupação.

É ao que estamos assistindo na guerra de lugares para as manifestações do 7 de setembro de 2021. Em São Paulo, a avenida Paulista e o Dia da Independência tornaram-se o foco dessa guerra simbólica entre os bolsonaristas, com sua pauta antidemocrática (voto impresso, ataque ao STF), e a Campanha Fora Bolsonaro, com uma agenda democrática e social.

Ocupar a avenida Paulista, demonstrando força e capacidade de mobilização, tornou-se objeto de desejo das organizações políticas.

Desde os atos contra a presidenta Dilma, em 2015 e 2016, a avenida se transformou em palco de competição no estilo “quem leva mais gente”, “quem ocupa mais quarteirões”. De certa forma, isso se tornou uma versão “civilizada e democrática” da Batalha da Sé.

Tradicionalmente, as organizações populares promovem no 7 de Setembro na avenida Paulista, o Grito dos Excluídos, que neste ano se juntou ao 4º ato da Campanha Fora Bolsonaro. Mas os apoiadores do presidente também marcaram uma manifestação no mesmo dia e local, que assumiu um ar golpista, sobretudo após a divulgação do vídeo protagonizado pelo cantor Sérgio Reis.

É quase consensual (exceto para quem quer levar a atual disputa política para um conflito armado) que é extremamente imprudente ocorrerem as duas manifestações com pautas opostas no mesmo dia e local. O Ministério Público, em 2020, já havia determinado essa cautela.

A questão é quem tem direito ao privilégio de ocupar a Paulista no Dia da Independência e que critério deve ser utilizado para resolver a disputa. O convívio democrático e o direito à manifestação e à cidade requerem que isso seja regulamentado que forma equilibrada e justa.

Talvez um sorteio fosse a saída mais democrática. Mas o governador Doria resolveu a questão da pior maneira possível. Decidiu que a Paulista seria concedida para a manifestação pró-Bolsonaro e proibiu que o ato da oposição fosse realizado em qualquer lugar da cidade no simbólico 7 de Setembro.

A preocupação com conflitos é real, mas a questão não pode ser resolvida dessa maneira. Sob protesto, as organizações de oposição ao presidente resolveram transferir o ato para o Vale do Anhangabaú, o que também foi negado pelo governador.

Como se ele fosse o tutor das manifestações populares, determinou que o ato Fora Bolsonaro deveria ser realizado no dia 12 de setembro, quando está programada uma outra manifestação contra o presidente, organizada por seus ex-apoiadores, que têm uma agenda diferente da Campanha Fora Bolsonaro.

O imbróglio foi resolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que, em liminar, determinou que ambos os protestos podem acontecer simultaneamente desde que ocorram em pontos diferentes da cidade e que não se cruzem.

Essa disputa mostra que o espaço público continua a ter um papel essencial nas disputas políticas. Apesar da crescente importância das redes sociais, a pólis, palavra em grego que significa cidade mas também o exercício político no espaço público, continua a exercer um imenso fascínio.

Ao longo da história, a cidade tem sido palco de manifestações que derrubam ou fortalecem governos, geram revoluções ou fornecem pretextos para os governos darem autogolpes contra as instituições democráticas, sofrem repressão das forças policiais, mas também resistem aos governos totalitários.

A história recente do Brasil mostra que todas as principais inflexões políticas foram acompanhadas de grande manifestações urbanas.

Ao Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, de apoio a Jango, se seguiu a Marcha Por Deus, pela Família e pela Liberdade, que pavimentou o caminho civil para o golpe militar. As manifestações de ruas foram a essência das Diretas Já, que enterrou a ditadura militar.

Collor pediu apoio em verde-amarelo, mas população saiu às ruas de preto e surgiram os caras-pintadas, essenciais para o impeachment do presidente. As espetaculares e ainda mal entendidas Jornadas de Junho” foram o início do retrocesso conservador, consolidado nas colossais ocupações Pato Amarelo da Paulista, que culminaram no impeachment de Dilma.

Embora o Congresso, o STF e demais instituições democráticas sejam essenciais, é nas ruas que se travará uma das principais disputas pela preservação da democracia. As imagens aéreas da avenida Paulista e do Vale do Anhangabaú no 7 de Setembro serão vitrines de uma luta que poderá marcar mais uma inflexão política no país.

*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nabil-bonduki/2021/08/a-cidade-como-arena-da-guerra-politica-no-7-de-setembro.shtml


Nabil Bonduki: Bolsonaro quer dar um autogolpe?

A história mostra que inúmeros autogolpes que geraram regimes autoritários foram justificados por supostas tentativas de golpes

Em 16 de março, após o presidente participar de atos contra o Congresso e o STF, e se misturar com os manifestantes, quando se iniciava o isolamento social e ainda não tínhamos nenhum morto por coronavírus no país, escrevi uma coluna com o título “Crimes de responsabilidade de Bolsonaro não podem ficar sem resposta”. Ficaram, pois o país vive um impasse político onde nem o presidente nem os que a ele se opõem têm força suficiente para se impor.

Cinco semanas depois, quando o país registra, pelos subestimados dados oficiais, 2,5 mil mortes e mais de 30 mil casos, ainda longe de atingir o pico, ele dobrou a aposta em uma manifestação claramente golpista. Nesse domingo (19), enquanto carreatas percorriam as ruas de várias cidades em seu apoio, Bolsonaro afrontou a democracia junto com manifestantes que pediam intervenção militar e AI-5. Incitou o povo contra a chamada “velha política” e sinalizou um autogolpe autoritário, falando em “fazer o possível para mudar o destino do Brasil”. E, ainda, defendeu o fim do isolamento, única forma de proteger a vida de pessoas frente ao inevitável avanço da Covid 19.

Embora esteja contrariando as recomendações do OMS, do Ministério da Saúde e dos especialistas e isolado politicamente, em conflito com governadores e parte significativa da classe política, limitado pelo STF, questionado por quase toda a mídia e entidades tradicionais da sociedade civil e sofrendo uma oposição de amplo leque político da centro direita à esquerda, com panelaços diários, Bolsonaro continua contando com expressivo apoio popular.

Pesquisa do Datafolha de 17/4 mostrou que 36% dos brasileiros consideram “ótimo e bom” seu desempenho em relação ao coronavírus enquanto que 23% consideram regular. E mais: 52% acreditam que ele tem capacidade de liderar o país. É necessário reconhecer que o discurso do presidente na crise sanitária sensibiliza segmentos expressivos da sociedade. Nada menos do que 52% dos empresários apoiam seu desempenho, enquanto que seu discurso agrada os que estão descontentes com o fechamento do comercio e com a falta de trabalho e renda.

Por outro lado, é forte o sentimento do “Fora Bolsonaro”, que une os que sempre o rejeitaram com os que se arrependeram do voto. Além de representar um risco à democracia e ao combate à pandemia, o presidente já cometeu crimes de responsabilidade suficientes para justificar a abertura de um processo de impeachment. Mas, com esse apoio popular, é uma temeridade falar, nesse momento, em impeachment.

Ademais, ele conta com o apoio de vários segmentos das forças de segurança, como as policiais militares e as patentes inferiores do exército, além das milícias, todos bastante contaminados pelo “bolsonavirus”. Frequenta com assiduidade os quartéis e não se intimidou em atacar a democracia em frente ao Quartel General do Exército. Inúmeros generais ocupam cargos de alto escalão no governo, embora não se saiba bem qual seria a posição da cúpula do exército no caso de uma crise aguda.

Não por acaso, na semana passada, Bolsonaro acusou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o governador de São Paulo, João Dória, e o STF de estarem preparando um golpe para tirá-lo do governo. Estaria buscando um pretexto para dar um autogolpe? A história revela que inúmeros autogolpes que geraram regimes autoritários foram justificados por supostas tentativas de golpes contra os governantes.

Em 1933, Hitler, recém empossado chanceler, utilizou o incêndio do parlamento alemão como pretexto para acusar uma suposta ameaça comunista e eliminar a democracia. As liberdades foram abolidas e 25 mil pessoas foram presas. 0 governo ganhou poderes para intervir nos estados.

Recentemente, em 2015, o presidente turco, Erdogan, usou uma tentativa frustrada de golpe para criar um estado de emergência, eliminar a liberdade de imprensa e reprimir a oposição. Cerca de 150 mil pessoas foram demitidas do serviço público e 50 mil foram detidas.

Entre nós, o presidente Getúlio Vargas, em 1937, acusou os comunistas de estarem preparando um golpe (Plano Cohen) como pretexto para permanecer no governo e acabar com a frágil democracia. Todos os legislativos do país foram fechados, a liberdade de expressão suprimida e foi decretada a intervenção nos estados. Foi como nasceu o Estado Novo.

Um processo de impeachment mal articulado pode servir de pretexto para uma aventura autoritária. O país está conflagrado, em um impasse político. O presidente não tem força para impor suas concepções antidemocráticas mas, por outro lado, sem maior apoio popular e sem coesão das forças políticas que a ele se opõem, não há possibilidade de removê-lo, ainda mais em meio a uma pandemia.

Mais do que nunca uma frente ampla democrática é essencial para o país se contrapor a qualquer tentativa autoritária.

A pandemia avança sem que haja uma coordenação nacional capaz de enfrentar a crise sanitária e econômica. A situação exige que se estruture formas de governança inovadoras que possam, ao menos parcialmente, cumprir tarefas que caberiam ao governo federal.

O bem sucedido consórcio dos governos estaduais do Nordeste talvez possa servir de referência para um consorcio mais amplo, que reúna todos os estados, para estruturar uma estratégia e uma ação coordenada para enfrentar a pandemia, como a compra de equipamentos e uma cooperação intergovernamental. Algo semelhante poderia ser pensado em relação à inevitável crise econômica. A nível nacional, o protagonismo do Congresso é essencial.

Para concretizar essa frente democrática, é necessário maior tolerância em relação às diferenças partidárias e ideológicas, especialmente as que dividem o centro da esquerda. Talvez uma experiência concreta para enfrentar a crise sanitária possa servir de ensaio para uma articulação que torne possível, a médio prazo, eliminar o risco autoritário representado pelo presidente.

*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.


Nabil Bonduki: Enfrentar o bolsonavírus será mais difícil do que vencer a Covid-19

Ao agir de maneira irresponsável, desrespeitando protocolos, Bolsonaro não está pregando no deserto

Uma mulher enfurecida invade a telinha, arranca o microfone do repórter Renato Peters, que estava ao vivo no SPTV (Rede Globo), e com uma agilidade impressionante consegue gritar em exatos três segundos, antes da imagem ser cortada: “A Globo é um lixo, o Bolsonaro tem razão”.

O incidente mostra a existência na sociedade brasileira um vírus ainda mais poderoso que a Covid-19: o “bolsonavírus”. Inicialmente invisível, permaneceu por muito tempo “dentro do armário”, onde cresceu vitaminado pelo preconceito, pelo obscurantismo religioso, pelo poder miliciano e pela sensação de insegurança.

Alimentou-se do desgaste e do elitismo da política institucional, da incapacidade da centro-direita liberal dialogar com as classes populares, das alianças e da convivência com a corrupção dos governos progressistas e do ativismo judicial seletivo que, em conluio com a mídia, desestruturou o sistema político brasileiro. Quando a internet se universalizou, a fake news se tornou um instrumento poderoso para a difusão dessa ideologia.

Considerado, até 2018, um “folclórico”, Jair Messias era a expressão política, quase única, desse “vírus”. Embora possa parecer que tem algum desvio mental, ele não é um transloucado. É o lider de um espectro ideológico que ganhou muitos adeptos.

Machistas, racistas e homofóbicos e negacionistas, mas também gente simples do povo que frequenta cultos na periferia, uma classe média conservadora e, às vezes, mal informada, agentes de segurança, defensores da pena de morte e até um empresariado um pouco selvagem. Virou uma doença crônica que, embora ainda não tenha contaminado majoritariamente o corpo social, ficou tão forte que é difícil contê-la.

Por isso não se deve menosprezar a força e a estratégia do presidente. Ao agir de maneira irresponsável, desrespeitando os protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde e autoridades sanitárias, ele não está pregando no deserto. Ao contrário, apesar dos crimes que comete, tem o respaldo de um contingente expressivo da população.

Isso não só potencializa o risco da pandemia se transformar em um genocídio, como ameaça a democracia, o desenvolvimento científico, os direitos humanos, a tolerância e os valores civilizatórios que galgamos desde a Constituição de 1988.

Mesmo depois de afirmar que a Covid-19 era uma “gripinha”, de gerar aglomerações que contribuem, direta e indiretamente, para a propagação do vírus, e de atacar o isolamento social, universalmente considerado o principal instrumento para deter a propagação do coronavírus, a popularidade do presidente não caiu significativamente.

Segundo o Datafolha, 52% dos brasileiros acham que ele tem capacidade de liderar o país. Frente à sua inapetência em lidar com a crise sanitária e econômica, a enquete é assustadora. Seu desempenho na crise sanitária é considerado “ruim ou péssimo” para apenas 39% da população. A maioria, 58%, não o desaprova: 33% acha que ele faz “bom ou ótimo” trabalho e 25% considera “regular”.

Como interpretar esse expressivo apoio popular em um momento em que o presidente está politicamente isolado, em conflito com o ministro da Saúde, governadores e prefeitos, sem apoio do Congresso, limitado pelo STF, atacado por quase toda a mídia tradicional e pelos blogs alternativos e sofrendo uma oposição de amplo leque político da centro direita à esquerda, com panelaços diários?

A explicação está no fato dele expressar uma concepção que se enraizou em setores expressivos da sociedade, que lhe dá sólida sustentação. Uma visão que despreza, entre outros aspectos, o desenvolvimento científico e os direitos humanos.

As recomendações da Saúde estão respaldadas no conhecimento científico; no entanto, mais de um terço dos brasileiros não acreditam na ciência, como revelou a pesquisa global “Wellcome Global Monitor” da Gallup, publicada na revista Science em 2019.

Ela mostrou que o Brasil ocupa o 111º lugar no ranking dos países que mais confiam na ciência, entre as 144 nações incluídas. O levantamento revelou que 35% dos brasileiros desconfiam da ciência e que 23% acreditam que a produção científica não beneficia a sociedade.

Mais grave: metade dos brasileiros afirmaram que a “a ciência discorda da minha religião” e desses 75% (37,5% do total) disseram que “quando ciência e religião discordam, escolho a religião”.

Não por acaso, o apoio ao presidente é maior entre os evangélicos. Nesse segmento, o desempenho do presidente na crise sanitária é considerado “ótimo e bom” para 41% e “regular” para 29%, enquanto que 60% acha que ele tem condições de liderar o país.

Nas próximas semanas estaremos no pico da pandemia, mas está caindo, em várias cidades, o respeito ao isolamento social. Na 4ª feira, apenas 51% dos paulistanos ficaram em casa, quando o ideal seria 70%. Nas áreas mais periféricas o desrespeito é generalizado; nesse sábado, o comercio estava a toda e vários bailes funk ocorreram em espaços públicos.

A situação é de extrema gravidade. Por um lado, o presidente estimula a retomada das atividades e o fim do isolamento, influenciando tanto trabalhadores informais e micro empresários em dificuldades econômicas, como os já contaminados pelo bolsonavirus, que não acreditam na ciência e, portanto, nas recomendações sanitárias.

Por outro, os mais pobres e vulneráveis se veem obrigados a buscar alguma renda frente à demora e falta de coordenação governamental e federativa em apoiar uma população, cujas condições de vida, moradia e transporte são favoráveis à propagação do Covid 19, como mostrei nas minhas últimas colunas.

Existe uma estratégia sanitária para enfrentar o Covid 19 que, se fosse bem sucedida, poderia reduzir os danos e encurtar a quarentena. Mas se o “bolsonavírus” prevalecer, o sacrifício dos que se isolaram será em vão e uma catástrofe poderá acontecer.

Muitos dos que apoiaram Bolsonaro na eleições de 2018, mesmo sabendo o que ele representava, acharam que seria apenas uma “dorzinha de barriga”. Agora todos estão vendo que é muito mais do que isso. ​

*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.