Murillo de Aragão

Murillo de Aragão: As crises e as oportunidades

O Brasil foi desarmado para a guerra contra a pandemia

Como disse Pedro Malan, no Brasil até o passado é incerto. Avaliar o debate sobre a PEC Emergencial antes de sua aprovação é temerário. No entanto, quando escrevia esta coluna o Senado já tinha aprovado a proposta de emenda constitucional de forma razoável: abrindo espaço para o auxílio emergencial com a manutenção do teto de gastos. E, em meio a intenso debate, a emenda provavelmente será definitivamente aprovada nesse formato.

A aprovação definitiva da PEC Emergencial respeitando a integridade do conceito de teto de gastos é apenas uma batalha na guerra travada neste momento pelo povo brasileiro. A questão fiscal permanece relevante com o futuro debate do Orçamento da União e o andamento das reformas constitucionais e infraconstitucionais. Mas outras batalhas estão em curso.

Meus leitores sabem que, no fim de janeiro do ano passado, coloquei aqui mesmo minhas preocupações com a epidemia que vinha da China. Alertava que seria um imenso desafio para governos e sociedade. E com repercussões alarmantes, caso se alastrasse. Tempos depois escrevi Ano Zero, livro que traz uma reflexão sobre a economia e a política no pós-pandemia e que está disponível em Veja Insights, no site desta revista.

“O auxílio emergencial foi essencial, mas não houve um programa de retomada do crescimento”

Embora minhas preocupações e as de outros tenham sido transmitidas às autoridades ainda em janeiro, o Brasil partiu desarmado para a guerra contra a pandemia. Eventos tão extraordinários como esta crise sanitária exigem foco, liderança e planificação. Aspectos que foram insuficientes ao longo da evolução da pandemia. Pela capacidade econômica do Brasil, nosso programa de vacinação deveria ter sido iniciado em dezembro do ano passado. Não fosse a “vachina” do Instituto Butantan, a nossa situação seria muito, muito pior. Em tempos de pandemia, cada dia desperdiçado resulta em vidas perdidas e atrasos na retomada das atividades.

No campo econômico, as respostas foram parciais e, de alguma maneira, não houve uma tragédia maior. O auxílio emergencial foi essencial, mas não se traçou um programa estruturado de retomada do crescimento econômico da magnitude que situações como a pandemia exigem. Não há saída de crises profundas sem esforços organizados. Foi assim na Grande Depressão, dos anos 30, no pós-­guerra dos anos 40 e após o crash de 2008.

Todos sabem que as crises também significam oportunidades. Perdemos a chance de debater soluções estruturantes para a miséria, a pobreza, a economia informal, a qualidade da educação e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Ficamos no meio do caminho cuidando da questão fiscal e distribuindo dinheiro para os necessitados. Não basta. Infelizmente, o país não para de validar a frase do economista Roberto Campos: “O Brasil não perde a oportunidade de perder uma oportunidade”.

A pandemia nos dá a possibilidade de encaminhar questões estruturais, que deveriam ser enfrentadas com determinação, organização e patriotismo. Sobraram chiliques, meias verdades, guerra de egos, conflito de competências, indefinição e negacionismo. Milhares de pessoas morreram. E essa tragédia poderia ter sido, pelo menos, minimizada.

Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728


Murillo de Aragão: O papel histórico dos “centrões”

Moderados evitam a ruptura institucional e possibilitam reformas

Amaral Peixoto dizia que as grandes questões institucionais no Brasil tinham sempre o centro político como protagonista. Isso porque aglutinava os moderados da direita e da esquerda para evitar rupturas institucionais graves, para promover avanços. Ou, até mesmo, patrocinar tais rupturas, como no caso do movimento de 1964.

Nos anos 80, no fim do regime militar, o centro político se organizou tanto com os moderados de direita do PDS quanto com os moderados de esquerda do PMDB para conduzir a transição política. Na Assembleia Nacional Constituinte, novamente o centro político reapareceu, minimizando a esquerdização radical proposta pelos setores ditos progressistas.

Na época do Plano Real, os moderados de esquerda do PSDB-­PMDB e o PFL se organizaram para aprovar o plano que eliminou a hiperinflação no país e deu início a um período de intensas reformas. Vale lembrar que o PSDB fora formado, anos antes, pela esquerda do PMDB. Adiante, Lula ganhou a eleição em 2002 quando se movimentou para o centro. Trouxe o empresário José de Alencar para sua chapa e lançou a Carta aos Brasileiros, em que se comprometia a não fazer loucuras na economia.

O governo de Lula foi um sucesso quando marchou da esquerda para o centro, buscou apoio na centro-direita e superou graves crises. Quando elegeu Dilma Rousseff, Lula deixou a fórmula pronta: narrativas de esquerda e gestão centrista. Porém, encantada com a própria mediocridade, ela abandonou o centrismo, encalhou e sofreu o impeachment. Com Michel Temer, o centro se organizou com a direita e reiniciou um processo magnífico de reformas que até hoje ainda dá frutos.

Jair Bolsonaro, aproveitando a destruição da política pelo lavajatismo, chegou ao poder propondo uma nova política que nunca — sequer — conseguiu desenhar. Em março de 2020 passou a construir o seu “novo-­velho” presidencialismo de coalizão, conversando com partidos de centro e dando espaço a políticos em seu governo.

O centro político brasileiro é identificado pela mídia, de forma preconceituosa e errada, como “Centrão”. Como se existisse um Centrão que comandasse de forma harmoniosa os movimentos políticos. O Centrão, como imaginado, é uma ficção, já que se trata de grupos que se juntam e se separam de acordo com as circunstâncias. O rótulo de Centrão vem dos tempos da Constituinte, como forma de sugerir que os grupos que os integram eram “retrógrados” e — pecado supremo — “conservadores”. E, quase sempre, clientelistas, fisiológicos e corruptos. A Lava-Jato provaria que o fisiologismo, o clientelismo, o patrimonialismo e a corrupção não são exclusivos dos que integram o centro político do Brasil.

Com virtudes e defeitos, as forças de centros — quando unidas — formam vetores de reformas importantes. O ano que se inicia apresenta uma agenda espetacular de potenciais avanços, que vão exigir dos integrantes do centro político responsabilidade que está além dos interesses paroquiais, partidários e eleitorais, com vistas aos avanços institucionais de que necessitamos para sair da crise da pandemia.

Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725


Sonia Racy: 'O mundo político funciona no modo crise', diz Murillo de Aragão

Para consultor político e advogado, vitória de Jair Bolsonaro no Congresso lhe dá, enfim, uma base para governar

O período por que passa hoje o Brasil, com idas, vindas e incertezas no trato da pandemia, pode ser entendido como uma espécie de “terceira guerra mundial”, concorda o cientista político, consultor e advogado Murillo de Aragão, da Arko Advice. “O País nunca enfrentou um desafio dessa magnitude”, que “não afeta apenas a saúde, mas também o comércio, o entretenimento, a educação, os hábitos da sociedade”. Mas o pano de fundo, adverte, é “um mundo político que funciona no modo crise”: só quando a coisa fica muito grave, é que se consegue um consenso e uma saída. 

Aragão segue de perto esse circo de acertos e conchavos há cerca de 30 anos, como consultor de bancos e empresas, em contato frequente com a área de investimentos, aqui e no exterior, além de atuar como palestrante. Sobre a vitória política do presidente Jair Bolsonaro, anteontem, com a eleição de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco como presidentes de Câmara e Senado, ele pondera, nesta entrevista para Cenários: “Não significa que a coordenação política esteja feita, ela está só começando. E vai ser afetada pela reforma ministerial que vem por aí.” A seguir, vão os principais trechos da conversa.

A Câmara acaba de eleger, como presidente, Arthur Lira, preferido de Bolsonaro. Como vê essa mudança?

O Arthur Lira venceu pela força do governo e também pelo poder de articulação dele, do Ricardo Barros e do Ciro Nogueira dentro do Congresso. É um conforto para o governo, e também para as agendas da equipe econômica. Mas isso não significa que a coordenação política do governo está feita. Ela está apenas começando. 

E em que consiste essa nova coordenação? O que vai mudar?

É uma nova etapa, onde a presença de um aliado dará ao presidente a tranquilidade para enfrentar os ataques políticos que o governo vem sofrendo no caso da pandemia. Mas essa tranquilidade terá de ser mantida e reforçada por uma coordenação eficiente. E esta vai ser afetada pela reforma ministerial que deve ocorrer em breve. 

E no médio e longo prazo? Como vê as eleições de 2022?

Considerando a máquina pública e a popularidade do presidente, ele é um forte candidato a estar no segundo turno. E até agora não temos uma candidatura forte no outro campo. Aí, existem desafios, e o maior desafio de Bolsonaro é ele mesmo. Porque existe uma narrativa antipolítica e, agora, ele se volta para o mundo político. Mas há outros dois problemas intimamente ligados – a pandemia e a economia.

Como vê a politização da pandemia, a briga entre governos e vacinas?

Olha, na área científica existe uma vaidade enorme... Eu tenho uma passagem pela academia, onde fiz meu doutorado, dou aula, e conheço o universo científico, onde há muita competição. E tem a questão geopolítica da vacina. Podemos fazer um paralelo com a guerra: quem tiver a vacina terá uma arma mais moderna...

Pode-se encarar o atual desafio como uma espécie de terceira guerra mundial, contra um inimigo invisível?

Sim, é como eu vejo. Olha, um ano atrás postei na minha coluna na (revista) Veja um alerta sobre a pandemia, e tudo o que eu mencionei lá atrás mais ou menos se realizou. O País nunca enfrentou um problema dessa magnitude. Ela afeta a todos no Planeta, igualmente. E mais: não afeta apenas a saúde. Afeta os hábitos da sociedade, o comércio, o entretenimento. No livro Ano Zero, que escrevi no ano passado, comparei alguns efeitos da guerra na sociedade. Por exemplo, o número de abortos na Alemanha foi gigantesco, depois da Grande Guerra. Nos Estados Unidos, depois do crash de 1929, famílias foram destruídas, centenas de milhares de pessoas vagavam pelo país como vagabundos... A pandemia pode ter esse mesmo efeito.

Como isso poderia ser resolvido?

O Brasil é um País que funciona no modo crise. Quando a situação piora muito, aí se chega a um consenso. A gente vai marchando entre conchavos e acertos, veja aí a eleição de agora na Câmara e no Senado. Partidos têm um pé no governo e outro fora do governo, a ambiguidade é parte do sistema. Só haveria união se a situação piorasse muito. 

O ministro Paulo Guedes condicionou a volta do auxílio emergencial a um corte de custos que depende do Congresso. Acha isso possível? 

Essa questão tem uma complexidade e uma simplicidade enorme. Vou falar da simplicidade. O Estado aqui é mais forte que a sociedade e o aumento da despesa acaba sendo financiado pelo aumento da arrecadação. Alguém dirá que o teto de gastos cria limites. Mas se a pandemia se tornar mais dramática, ele será flexibilizado, talvez por uma PEC, e acaba caindo na conta do cidadão. Num imposto sobre transações digitais, uma CPMF, uma contribuição social sobre lucro dos bancos, um Bolsa Família vindo de outras fontes. 

Acha possível a união de forças políticas se a pandemia se agravar ainda mais? Acredita num impeachment?

A única razão que me pareceria capaz de unir as forças políticas seria para derrubar o presidente. Mas não vejo nada disso acontecendo. Porque o impeachment tem uma forma. Na Arko Advice a gente fez uma fórmula que foi aplicada no caso Collor, lá de 1992. Você tem de avaliar três fatores. O primeiro é o motivo, e esse é o que menos importa. Segundo, e este importa bastante, é a popularidade. Presidente popular segura um impeachment. Bolsonaro tem hoje popularidade (somando ótima, boa e regular) acima dos 50% e militância muito aguerrida. 

Ele é um político que tem estratégia?

Eu o vejo mais tático do que estratégico. Bolsonaro foi competente ao criar sua candidatura, num momento de descrédito do centro político e da esquerda. Criou uma estratégia para se eleger, mas no governo ele não tem estratégia. O governo foi montado, desmontado, e aí chegou a pandemia. O hiperpresidencialismo deixou de existir e Bolsonaro aprendeu isso na marra. Quando diz “eu não consigo fazer nada, a Justiça não deixa fazer”, é verdade. E isso é o que protege a nossa democracia – e talvez paralise alguns dos nossos avanços. 

Muito se fala num poder exacerbado do STF. Isso é bom para a democracia?

Judiciário foi por muito tempo um Poder opaco, quase chapa branca. De certo modo, continua sendo. Mas o que tivemos desde o mensalão em 2005, com Joaquim Barbosa, foi um crescente protagonismo do Judiciário. O STF virou tribunal recursal da política, toda polêmica termina lá. 

Fala-se a toda hora em governo de esquerda, de direita. Diria que o atual governo é de direita?

Às vezes, o governo é politicamente de direita e economicamente de esquerda.. O atual é politicamente de direita, sim, e economicamente liberal, mas não deixa de ter traços do tenentismo, surgido nos anos 20, e que é intervencionista. Foi o tenentismo que criou a Petrobrás, a Eletrobrás. Então, há traços de direita, de esquerda... O Brasil é assim.

Tem uma frase muito boa do Nizan Guanaes, publicitário, mas que só faz sentido em inglês: não existem mais “left” ou “right”, existem “right” ou “wrong”, certo ou errado...

É uma realidade. O pragmatismo se impõe sobre os fatos e as crenças. Uma vez, meu filho Tiago foi com um grupo à China e, numa palestra que assistiram, na Juventude Comunista do PC Chinês, alguém disse: “Vocês sabem por que a América do Sul não dá certo? É porque vocês não respeitam o mercado!” Os mais esquerdistas, na sala, ficaram horrorizados. O conferencista explicou: “Nós respeitamos o mercado, produzimos o que ele quer”. Esse é o pragmatismo que nós deveríamos ter.

O Fernando Gabeira me disse anos atrás uma frase sobre capitalismo. “Não adianta você mandar o capitalismo para o inferno, que ele há de fazer um bom negócio por lá.” Mas, voltando ao tema, qual seria a reação se o Paulo Guedes pedisse o chapéu?

Em uma ou duas ocasiões, houve rumores de que ele iria embora. Acho que todo ministro deveria ter, não digo uma carta de demissão na gaveta, mas estar preparado para uma eventualidade. Foi mais ou menos o que aconteceu com o Wilson Ferreira, na Eletrobrás, quando sentiu que não ia fazer diferença no processo. E ele fez um belíssimo trabalho de reorganização na Eletrobrás. 

Você acredita num programa de privatização do atual governo?

Acredito sim, principalmente naqueles itens já colocados nas PPIs, que são uma herança do Uma Ponte para o Futuro, projeto do Michel Temer, que deu as bases do programa do ministro Tarcísio de Freitas, na Infraestrutura.

Que recado, enfim, você daria aqui sobre o futuro do País?

Estou há 40 anos em Brasília e diria que o País melhorou muito, sobretudo porque a sociedade se interessou mais pela política. Há hoje uma presença maior das elites empresariais e culturais debatendo o Estado e seu funcionamento. Outro avanço importante é a redução do corporativismo. A reforma política vem sendo feito em fatias. E temos US$ 350 bilhões em reservas, um sistema financeiro saudável e taxas de juros mais realistas. 

Pelo que você diz, continuamos, então, a ser o País do futuro?

Estamos construindo o futuro, ainda que a passo de tartaruga. E acho que vamos continuar avançando. Os embates que tivemos nestes dois anos de governo Bolsonaro revelam uma sociedade democrática e a existência de instituições fortes. Isso é muito importante.

*CEO da Arko Advice, sócio fundador da advocacia Murillo de Aragão, professor adjunto da Columbia University (Nova York), autor de “Reforma política – o debate inadiável.”


Murillo de Aragão: Mudando de ideia para sobreviver

O governo deve deixar claro que a vacinação é, de fato, prioridade

Em política, mudar de ideia é quase inevitável. As circunstâncias e o acaso são os curingas da realidade. Mas, de modo geral, a mudança de ideia não é bem aceita pela opinião publica, sendo vista como um sinal de falta de coerência. Em política, porém, coerência e conveniência andam muito próximas da necessidade. São como os três mosqueteiros de Dumas. E, como na história, existe o quarto mosqueteiro, que é a oportunidade.

Na análise política, identificar os mosqueteiros é essencial para entender o que está acontecendo. A coerência é mantida pela conveniência e pela necessidade diante da conjuntura. Quando as circunstâncias mudam, a coerência é sacrificada e abre-se a oportunidade para mudanças.

Nenhum regime totalitário e dogmático do século passado deixou de mudar de ideia ao longo dos acontecimentos. Ao contrário, mudam com mais facilidade que os democráticos, pois controlam a expressão política da sociedade. Já na democracia, as quebras de paradigma são mais penosas porque o processo decisório é mais abrangente e envolve mais atores.

O governo Jair Bolsonaro viveu em 2020 um processo de mudança de ideias com sinais contraditórios. O ex-­presidente dos EUA Harry S. Truman teria dito “if you can’t convince them, confuse them” (“se não pode convencê-­los, confunda-os”) ao se referir à forma como a oposição tratava o seu mandato perante a opinião pública. Bolsonaro exerceu, de forma muitas vezes rude, o que o americano dizia. Mas não só ele. Lula foi mestre em tecer narrativas contraditórias às suas atitudes.

Há dois processos em curso confundindo o eleitorado. Um é a mudança de ideia materializada nos entendimentos com setores do centro político, prática que Bolsonaro já rejeitou com veemência. A necessidade prevaleceu sobre a coerência. Nada de novo, apesar do estranhamento. O outro processo está indefinido: a questão da imunização contra a Covid-19. Ao mesmo tempo que Bolsonaro diz que não se vacinará, ele já pôs verbas à disposição para os fármacos. Mas o programa de imunização não está posto, ao passo que países menos organizados avançam na questão. A ambiguidade no tratamento do tema pode penalizar a aprovação do governo.

Confundir os adversários com narrativas e atitudes contraditórias depende de mestria, timing e certa simpatia da sociedade. Lula foi popular mesmo negociando com o FMI, praticando um grande arrocho fiscal e operando no submundo da política com o mensalão. Beneficiou-se da tolerância da opinião pública e “daszelite”. Mas não resistiu aos próprios erros. O maior deles foi Dilma Rousseff.

Bolsonaro avançou na reestruturação do presidencialismo de coalizão e demonstrou que sua prioridade era a blindagem política. Mas, no tocante à vacinação, suas atitudes estão obliteradas pela falta de convicção. Ele corre o risco de cometer erros fatais ante os desafios econômicos e sanitários atuais. A questão da imunização deve ser abordada de forma a deixar claro para a opinião pública e, sobretudo, para o mundo econômico que ela é, de fato, prioridade. Sem a vacinação, a economia vai patinar e a aprovação do governo vai encolher. O caminho para o seu sucesso será o de mudar de ideia com mais intensidade. Como disse Churchill, “quem não muda de ideia não muda nada”.


Murillo de Aragão: ‘O maior rival do presidente é o governo dele’

Paula Bonelli, do Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro não saiu enfraquecido do último pleito com a derrota dos candidatos que apoiou – discretamente – como Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio. A opinião é de Murillo de Aragão, mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Leciona ainda na Columbia University como professor adjunto, em Nova York. “Nesta eleição muita gente correu pra dizer que o Bolsonaro perdeu. Acho que houve exagero em relação a isso”, diz o cientista político.

No seu ver, há outro termômetro político para se fazer este tipo de avaliação: partidos do “centrão bolsonarista”, como Republicanos, PP e PSD, tiveram bom desempenho na conquista de prefeituras. “Hoje, o maior rival do presidente é o próprio governo dele. Se Bolsonaro organizar direitinho, é o grande favorito para ganhar a eleição”, acredita. Afirma que o presidente é bem avaliado pela população. “Ele tem quase 70% de aprovação entre ótimo, bom e regular. Ninguém leva pau na faculdade por tirar regular. É importante reconhecer que o presidente atravessou esse ano e manteve um nível elevado de popularidade.”

As candidaturas alternativas a de Bolsonaro, com chances de vitória, ainda são incertas, de acordo com o consultor político que enxerga João Doria com potencial, depois da vitória de Bruno Covas, e Guilherme Boulos se consagrando como liderança da esquerda. A seguir, os principais trechos da entrevista de Aragão concedida à repórter Paula Bonelli.

Nesta eleição, quem saiu fortalecido e quem perdeu?
Tiveram claramente alguns vencedores. O Doria é um porque fez o Bruno Covas que se elegeu. O PSDB conquistou 179 prefeituras em São Paulo. Já o Republicanos teve um aumento extraordinário de prefeitos eleitos, mas perdeu na capital paulista e no Rio de Janeiro. O PP e PSD, do centrão bolsonarista, também venceram várias prefeituras. Outro que ganhou duplamente foi o Boulos.

Ele venceu?
Boulos sai de um papel periférico para o estrelato. E perdeu a eleição o que é bom para ele, se ganhasse era uma roubada. Teria que lidar com essa caminhada que está fazendo da esquerda radical para esquerda racional e administrar invasão de prédio. Isso ia destruir toda a narrativa de ser um prefeito confiável ou teria que renegar o seu passado muito cedo. O Rodrigo Maia é outro que venceu porque se engajou na campanha do Eduardo Paes, no Rio; fez um gesto muito emblemático de visitar o Ciro Gomes em Fortaleza e Doria em São Paulo. Sai fortalecido principalmente tendo em vista sua campanha ou do seu candidato à sucessão da Câmara. Agora, vou falar do Bolsonaro. Dentro desse negócio que eu chamo de “bolsocentrismo” no Brasil, que fica todo mundo olhando para ele. Nesta eleição muita gente correu pra dizer que o Bolsonaro perdeu. Acho que há um exagero em relação a isso. Ele apoiou quase que discretamente o Russomanno e o Marcelo Crivella que perderam. Agora, perderam por causa do Bolsonaro?

O índice de abstenção nesta eleição foi de 29,5%.
A abstenção tem várias razões. A pandemia afetou a presença dos eleitores isso é inquestionável. Além disso, a eleição municipal traz uma agenda que é meio de síndico de prédio. Não foi polarizada como vimos em 2018. E o outro ponto central é que sem a Lava Jato marcando presença forte na mídia, acusando o centro político, desinflamou a polarização que existia. Também houve um certo continuísmo em muitas capitais importantes.

Como avalia os cotados para concorrer à Presidência da República em 2022?
Tem o Lula que juridicamente não pode ser candidato. Consideram que o Fernando Haddad saiu queimado da eleição porque de certa forma se omitiu não sendo candidato. O Ciro Gomes em Fortaleza foi feliz, seu candidato ganhou, o PDT cresceu. Então, são quatro nomes na esquerda: Lula, Haddad, Ciro e Boulos. No centro há dois nomes: Luciano Huck e Doria. O Sergio Moro desagrada os partidos PSDB, PT, o MDB, o DEM por causa da Lava Jato e os bolsonaristas devido a sua passagem pelo governo. O ACM Neto talvez seja um nome para concorrer pela experiência e o recall por causa do avô. Ele sai de Salvador, que é uma prefeitura grande, com uma aprovação incrível. E é do DEM, não tem mandato, pode passar dois anos aí visitando o Brasil.

Acha que Luciano Huck é um bom nome?
As celebridades às vezes não viram votos. O Luciano Huck tem que sustentar politicamente a popularidade dele. Doria, como disse o Fernando Henrique Cardoso, precisa nacionalizar a sua campanha. A do Fernando Henrique foi nacionalizada pelo Plano Real. Ninguém o conhecia. Ele autografava nota de um real a pedido das pessoas nas ruas.

O que vai pesar na decisão dos partidos para definir candidatos?
Essas candidaturas também dependem de como o Bolsonaro vai desempenhar. Vamos imaginar que consiga fazer o PIB crescer 2,5% ao ano e não se meta em nenhuma confusão nova – as confusões que ele tem são as que já estão aí sendo digeridas pelo noticiário – ele pode aglutinar forças em torno da sua reeleição. Hoje, tem quase 70% de aprovação entre ótimo, bom e regular. Ninguém leva pau na faculdade por tirar regular. É importante reconhecer que o presidente atravessou esse ano e manteve um nível elevado de popularidade. Então, se o Bolsonaro vai mal, aí aparece um monte de candidato, se vai muito bem, esse centrão aí, que na verdade são vários partidos que se aglutinam, pensará duas vezes antes de sair contra ele. Será que vale a pena eu ir lá pra ser rabo de tubarão na chapa do Doria, se eu posso ter um lugar vip aqui com o Bolsonaro? Eles são muito pragmáticos. A política no Brasil é muito regionalizada, cada um pensa sobretudo no seu feudo político.

Então, a candidatura alternativa ao presidente ainda é incerta?
Ela ainda não apareceu e vai depender muito do espaço que o Bolsonaro vai dar. Hoje o maior rival do Bolsonaro é o próprio governo dele. Se o presidente organizar direitinho é o grande favorito para ganhar a eleição.

Pela lógica do continuísmo…
É, mas um continuísmo com sucesso. Porque muita gente atribui o continuísmo ao controle da máquina. E não é bem assim. No dia que o Brasil elegeu o Lula pela primeira vez provou que ninguém manda no eleitorado brasileiro.

Acha que as pautas de costume perderam espaço nesta eleição de algum modo?
As pautas de costume continuam sendo apoiada por quase 30% da população brasileira, não são respaldadas pela maioria. O Bolsonaro virou presidente não foi por causa dessa turma, mas em razão do centro, que não queria o PT. Quem elegeu o presidente foram os eleitores de centro. O Brasil é arbitrado pelo centro. Não existe uma cultura partidária no País. A maioria vota no menos pior.

Covas no discurso da vitória falou que a era do negacionismo e do obscurantismo tinha acabado. O que achou?
A política é palco. Covas era um vice-prefeito que virou prefeito, enfrentou uma grave doença e a pandemia. E é eleito. Ele se sente um super-homem e ele é.

Há uma corrida pela vacina contra covid-19 entre Bolsonaro e Doria.
É evidente que há uma preocupação política. Houve aquele momento em que o governo federal ia assinar um protocolo com o Instituto Butantan para comprar a vacina Coronavac, aí Bolsonaro desautoriza o ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Ele pensou que poderia se enfraquecer. Foi uma reação mais intempestiva dele naquele momento, e que ficou ruim. Mas um dia os governos federal e estaduais proporcionarão a vacina para quem quiser, já que o próprio Supremo Tribunal Federal arbitrou que saúde pública é também competência de estados e municípios. Isso dá grande autonomia.

Vetada pela Constituição, a reeleição dos presidentes Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre está sendo julgada no STF. É tapetão?
Claro que é um tapetão, mas a judicialização da política está colocada. Não podemos criticá-la quando é contra o nosso pensamento. Esse chamamento à Justiça para interferir e interpretar medidas que poderiam ser decididas no âmbito legislativo, se transformou em uma realidade no Brasil por conta da fragmentação partidária que dificulta o consenso.

Quais são s pontos negativos do governo Bolsonaro?
As narrativas de meio ambiente, das minorias, equívoco na política externa, mas na economia eles vão bem. E as brigas internas que vazam periodicamente comprometem um pouco a imagem do governo.


Murillo de Aragão: Os meios, os fins e a democracia

A Lava-Jato deve abandonar o “lavajatismo” e operar dentro da lei

Não há dúvida de que a Lava-Jato causou um impacto importante na vida institucional do país. Tampouco existe dúvida de que muitos esquemas de corrupção foram desvendados e punidos a partir do seu trabalho. Sem a operação, bilhões de reais não teriam sido recuperados, nem dezenas de políticos corruptos teriam sido investigados e sentenciados, com outro tanto de pessoas.

No entanto, há pontos polêmicos da operação que foram minimizados por causa do velho chavão de que os fins justificam os meios. E, a partir daí, em alguns aspectos relacionados ao tema, criou-se um vale-tudo que tem como vítimas a Constituição e o direito.

Um dos males foi o de, com o generoso apoio da imprensa, institucionalizar-se como se fosse algo maior e mais importante do que as próprias instituições. Por esse raciocínio, já que suas ações eram contra o establishment, sua atuação poderia propor um novo padrão institucional.

Ironicamente, todo o sucesso deveu-se tanto às leis existentes quanto ao establishment político e institucional, que deu liberdade, algumas vezes exces¬siva, para a Lava-Jato operar.

Outro mal foi testar, sob imensa complacência cívica e institucional, os limites do direito de forma ativa e continuada. E, por meio da midiatização dos processos investigativos e da institucionalização de suas forças-tarefa, constranger as esferas superiores a sancionar suas diretrizes.

O direito comporta divergências e controvérsias, bem como interpretações que mudam o alcance da aplicação da lei. Faz parte do processo civilizatório que as instituições evoluam para novas abordagens e entendimentos. O que não é crível é que no curso de suas atividades se pratiquem atos que se contraponham ao direito e à Constituição, tais como apurações misteriosas, bancos de dados secretos ou pessoas sendo investigadas sem o devido processo legal.

No processo de institucionalização da Lava-Jato criou-se a maior ameaça à sua própria existência: o “lavajatismo”, que é o desbordo de suas atividades em condutas que ultrapassam o limite da lei. Tudo em nome das boas intenções e a partir do pressuposto de que os fins justificam os meios.

Para resolver o desvio, a Lava-Jato e seus sucedâneos devem abandonar o “lavajatismo” e operar dentro dos marcos legais, sem mistérios, sem bancos de dados secretos e sem investigações não legalmente autorizadas.

O Ministério Público é, talvez, a mais nobre das instituições por ter mais poder e independência que os demais poderes e não se vincular a nenhum deles. Tamanho poder deve trazer imensa responsabilidade, o que implica capacidade de contenção e irrestrito respeito ao poder que o criou: a Constituição. Suas decisões devem seguir a forma e o método, bem como a hierarquia constitucional.

Não é adequado ao processo democrático termos “homens de preto” que se arvoram do direito de fazer e acontecer, ao arrepio da lei, por causa de suas vocações reformadoras. É evidente que as investigações devem prosseguir, mas os desvios perseguidos no ativismo da Lava-¬Jato devem ser combatidos. Ao enfrentarmos a corrupção, não podemos fragilizar as instituições nem subverter a hierarquia que há dentro delas.

Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697


Murillo de Aragão: As eleições municipais e 2022

O debate sucessório ainda é prematuro, mas não sai da pauta

Existe uma ansiedade no ar sobre a questão sucessória de 2022. Como se ainda não houvesse três anos pela frente e a agenda em torno do assunto já estivesse posta. Como se o futuro já estivesse escrito, com as reformas avançando, a economia crescendo e o presidente Jair Bolsonaro, dentro do seu estilo, continuando a antagonizar. E por que o debate sucessório está sendo prematuramente trazido ao palco?

Além da questão da agenda dada, existe no ar certo enfado com a “não política” de Bolsonaro. A classe política ainda está se desmamando do presidencialismo de coalizão e o novo modelo até agora não produziu resultados retumbantes. No fundo, existem dúvidas sobre se Bolsonaro será verdadeiramente competitivo em 2022 para tentar a reeleição. Sendo assim, antecipar os movimentos pode parecer inteligente.

No caminho de todos os potenciais candidatos existem as eleições municipais de outubro, que ocuparão um espaço importante na agenda política deste ano. Apesar de as eleições municipais terem como foco questões locais, as disputas nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, ganharão repercussão nacional, podendo fortalecer ou enfraquecer alguns dos protagonistas mencionados.

“As eleições municipais não definem a sucessão presidencial, mas apontam vetores de influência”

As eleições municipais não definem a sucessão presidencial, mas apontam relevantes vetores de influência. Em especial, para os políticos e os partidos mais tradicionais e mais dependentes de máquinas públicas. Em algumas oportunidades, as eleições municipais chegam a antecipar tendências da sucessão presidencial seguinte. Em outras, não.

Em 2000, o PT foi o grande vitorioso nas capitais. Esse resultado, batizado de “onda vermelha”, acabou indicando com antecedência a vitória de Lula na disputa de 2002. Em 2016, tivemos a “onda azul”, com o PSDB se consagrando nas capitais. Já a eleição disruptiva de 2018 acabou não confirmando o esperado potencial eleitoral do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB).

Outra variável interessante destas eleições municipais diz respeito aos atuais atores políticos do cenário nacional. A polarização entre o bolsonarismo e o lulismo vai se manter? O PSDB será bem-sucedido em seu desafiador projeto de se reposicionar no centro? Tais questões, entre outras tantas, só poderão ser respondidas após outubro.

Assim, embora as eleições municipais mantenham os temas regionais no topo da pauta, a repercussão dos resultados saídos das urnas acaba se disseminando por todo o país, principalmente se seus players desde já começam a revelar seus movimentos.

Enquanto o quadro que se desenha neste ano — com crescimento econômico — favorece o presidente Jair Bolsonaro, os demais pretendentes enfrentam desafios adicionais. A esquerda está dividida entre a viabilidade de Luiz Inácio Lula da Silva e a construção de uma nova narrativa. Ciro Gomes, com sua agressividade, afasta potenciais aliados da esquerda e não convence ao centro. Luciano Huck é um projeto de candidato, estimulado por setores da elite, com potencial de crescimento nas classes populares. João Doria e Wilson Witzel ainda dependem de excepcionais resultados em seus estados e de conseguir federalizar suas realizações.

 


Murillo de Aragão: Participação, política e sociedade

O Brasil precisa de mais transparência no sistema partidário

Repousa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um questionamento — amparado pelos partidos PP e Solidariedade — sobre as atividades da Renova BR, uma associação educacional que oferece cursos de formação política e que instruiu diversos candidatos vitoriosos no pleito de 2018.

Os partidos questionam o fato de movimentos como o mencionado coletarem recursos que não são declarados à Justiça Eleitoral e que seriam usados para “destruir os partidos”, conforme afirmou o deputado federal Paulinho da Força, presidente do Solidariedade.

Não é verdade. Usando da liberdade de associação para fins lícitos, vários movimentos se voltaram à formação de cidadãos interessados em atuar na política e disputar eleições. Os movimentos de renovação política, em seu conjunto, estimularam mais de 500 candidatos nas eleições passadas e elegeram 54 deputados federais. Um resultado espetacular em uma sociedade que até bem pouco tempo atrás não revelava maior interesse em participar do processo político.

Ao se organizarem ao largo dos partidos, os movimentos de participação política incomodam profundamente as estruturas tradicionais de poder. Isso porque romperam o monopólio de mobilização e impuseram suas candidaturas a partir do apoio que obtinham na sociedade.

“Ao se organizarem ao largo dos partidos, os movimentos incomodam as estruturas de poder”

Recentemente, a presidente do TSE recebeu a visita de representantes de movimentos e organizações da sociedade civil. Eles haviam ido cobrar do tribunal maior transparência no uso e na distribuição dos recursos dos fundos partidários e eleitorais — tudo o que a maioria das legendas não deseja.

Para quem defende uma democracia robusta, é um grave equívoco considerar os movimentos elementos de destruição de partidos políticos. Pelo contrário. Não é novidade que as siglas vivem uma grave crise de representatividade há tempos e que a maioria se transformou em clubes fechados financiados pelos cofres públicos e com precária fiscalização.

A organização de movimentos que visam à atividade política — seja a partir de mobilização, seja por meio de formação — serve de fonte de atuação e renovação do sistema político nacional. Naturalmente, desde que dentro dos marcos constitucionais. Assim, os partidos deveriam estimular a integração com os movimentos.

No atual estágio de nossa democracia, a participação da sociedade no debate político é essencial. Sem ela, corremos o risco de não passarmos de uma autocracia disfarçada de democracia e controlada por oligarcas de legendas de mentira.

Movimentos de renovação política ameaçam, sim. Mas apenas os maus dirigentes partidários, vale dizer, aqueles que querem o controle opaco de verbas e privilégios. Daí existirem resistências contra tais organizações. Já quando a sociedade se mobiliza de forma genuína, os movimentos de renovação política podem apresentar o mesmo efeito das cheias do Nilo, fertilizando as várzeas e melhorando as colheitas.

O cientista político americano Robert Dahl considera que o ideal em uma democracia é que ela seja sustentada por uma coletividade ampla. É o que ele chama de poliarquia. Os movimentos de renovação política ampliam o número de atores participantes no jogo de poder. Cabe ao Poder Judiciário, portanto, assegurar que recebam a devida proteção nos termos da nossa Constituição, seja no que toca à liberdade de expressão, seja no que se refere aos direitos de associação e de pluralismo de educação.

 


Murillo de Aragão: Novo arranjo institucional

O Legislativo assume o controle da agenda do país

A Presidência da República sempre foi, historicamente, o ponto focal da política brasileira. Os demais poderes atua¬vam, salvo momentos de exceção, como coadjuvantes. Uma soma extraordinária de poderes dava ao presidente uma situação hegemônica.

Além de poder editar medidas provisórias, cuja validade como lei é imediata, o presidente controla não apenas mais de 50% do sistema bancário, como também algumas das maiores empresas do país. Ainda pode nomear mais de 25 000 cargos de confiança e, até há pouco tempo, possuía um elevado poder discricionário sobre o Orçamento da União.

Para assegurar tal hegemonia, afora os instrumentos existentes, as relações políticas eram formatadas por meio do conhecido “presidencialismo de coalizão”, com indicações políticas para cargos, distribuição de verbas e acesso à formulação de políticas públicas.

Quando funcionava bem, o presidente conseguia uma maioria para aprovar parte expressiva de sua agenda e ficar protegido de tentativas de desestabilização. Quando não funcionava, terminava em impasses ou em impeachment.

De alguns anos para cá, contudo, o Congresso Nacional foi ganhando terreno e ocupando espaços políticos predominantes. As liberdades de edição de medidas provisórias foram limadas. As emendas parlamentares ao Orçamento da União, que eram instrumento central do toma lá dá cá, passaram a ter sua implementação obrigatória.

Temos um fato novo na política nacional: dois núcleos de poder que transitaram entre o conflito e o consenso em 2019

Mais recentemente, o Orçamento como um todo passará a ter sua implementação mandatória, o que poderá reduzir ainda mais a liberdade do Executivo. O que for aprovado pelo Congresso terá de ser executado. Em tese, sem uma maioria para proteger seus interesses, toda proposta orçamentária poderá ser modificada pelos parlamentares.

Mas a questão — definida por alguns parlamentares como o reencontro do Legislativo com suas prerrogativas — não para por aí. Historicamente, o Poder Executivo tinha o controle e a iniciativa da agenda. Hoje nem tanto.

Neste ano, o governo Bolsonaro assistiu, imóvel, à perda de validade de oito medidas provisórias e à rejeição de uma. É o maior nível de ineficácia de gestão de medidas provisórias verificado desde a criação do instrumento. O Congresso não estará sempre na mesma página da agenda do governo.

A reforma previdenciária aprovada foi a que o Congresso quis, e não a que o Executivo queria. O mesmo se dará com a reforma tributária e a admi¬nis¬tra-tiva. Ambas serão sobretudo expressão do Congresso a respeito do tema.

Temos um fato novo na política nacional: dois núcleos de poder que, no uso de suas prerrogativas, transitaram entre o conflito e o consenso em 2019. É uma nova realidade, que causa certa estranheza. No entanto, o mesmo quadro deve se apresentar em 2020.

Independentemente de como funciona o novo arranjo institucional, o desejo dos brasileiros é que o equilíbrio e o bom-¬senso prevaleçam nos debates que estão por vir. E que ambos os poderes saibam honrar suas responsabilidades com plena consciência de suas competências e limites e, sobretudo, prossigam na agenda de reformas de que o país tanto necessita.

 


Murillo de Aragão: Os bons frutos da polarização

O melhor dos mundos: reformas com democracia

Muitos no Brasil de hoje se preocupam, corretamente, com as narrativas belicosas e a polarização ideológica. Devem também se preocupar com os ataques à imprensa e o tom raivoso que predomina nas redes sociais. São tempos exacerbados que, sem dúvida, merecem a atenção de todos. Mas o Brasil não é só polarização. E, diferentemente do que se viu em outras épocas, o extremismo que se instalou aqui com o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, veio acompanhado de um virtuoso ciclo de reformas e de modernização, iniciado no governo de Michel Temer (MDB) e com o apoio decisivo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara.

De forma inusitada, as eleições de 2018 trouxeram as reformas estruturais para o centro das discussões. Os principais candidatos presidenciais, em especial Jair Bolsonaro, abordaram temas que antes soavam impopulares e seriam vetados nas campanhas, como a reforma da Previdência, a diminuição do Estado e a redução da burocracia. Houve uma mudança de mentalidade no mundo político.

Ainda pagamos a conta pelo desgoverno da ex-presidente Dilma, em especial no que tange aos aspectos fiscais e regulatórios. Mas, estruturalmente, o Brasil está muito melhor. O saldo das reformas aprovadas na legislatura passada do Congresso é impressionante. Temas espinhosos nunca abordados foram enfrentados sem receio, como o teto de gastos, a Lei da Terceirização, a nova Lei das Estatais e a reforma trabalhista. Os marcos dos setores elétrico e de óleo e gás foram renovados, e iniciou-se, com o apoio do Legislativo e do Judiciário, um intenso programa de concessões e privatizações. Mesmo em meio ao tiroteio político e à polarização exacerbada de posições que continuaram na ordem do dia após as eleições, o que havia ficado pendente em 2018 avançou de forma consistente em 2019. Além da reforma previdenciária, pautas relevantes como a cessão onerosa dos campos de petróleo, uma nova Lei de Telecomunicações, a Lei da Liberdade Econômica e o cadastro positivo foram sancionadas.

Apesar da temperatura elevada, temos instituições fortes e responsáveis

Enfim, o ano que se encerra foi extremamente produtivo para mudanças estruturais que podem inaugurar um ciclo virtuoso de crescimento econômico. A depender, obviamente, de uma boa pilotagem da equipe econômica, tendo em vista assegurar que as reformas aprovadas tragam consequências positivas para o ambiente de investimentos. Sobretudo no capítulo da desburocratização e simplificação do sistema tributário.

O paradoxal de tudo isso é que o avanço das reformas tem se dado em clima de polarização, o que lembra os anos 1950 e o início dos anos 1960, que culminou no movimento que derrubou o governo Goulart. As narrativas radicalizadas autorizam alguns a temer por um retrocesso democrático. Não creio nisso. Apesar da temperatura elevada, temos instituições fortes, atuantes e responsáveis, além de múltiplos atores e agremiações políticas comprometidos com a democracia. Inclusive os militares. O país demonstra maturidade ao avançar nas reformas respeitando a democracia mesmo em ambiente de polarização. E isso, acima de tudo, deve ser reconhecido, valorizado e preservado. Reformas com democracia é do que o país precisa.

 


Murillo de Aragão: Agendas em disputa

O Executivo alforriou o Legislativo, que agora pode exercer seus poderes. São tempos de falta de diálogo. Quem perde é a sociedade

Em seis meses de gestão, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) matou o presidencialismo de coalizão e agora busca o respaldo das ruas para impor sua pauta. Toda ação causa uma reação e, em política, obviamente, não existe espaço vazio. Ao repudiar o presidencialismo de coalizão o governo visa criar um presidencialismo de agenda. Mas o efeito pode ser outro.

Até aqui os resultados positivos foram discretos. O governo avançou pouco em suas prioridades e viu o Legislativo ficar no controle da pauta. Fora a perda do protagonismo de agenda, o governo tem permitido que conflitos permanentes em seu interior fragilizem a narrativa de suas propostas.

Na prática, o que começa a substituir o presidencialismo de coalizão é a gradual transferência do controle da agenda para o Parlamento. Historicamente, o poder do Legislativo vinha sendo anestesiado pelo presidencialismo de coalizão. Ao abandonar a fórmula, o Executivo alforriou o Legislativo, que pode então exercer a plenitude de seus poderes. São tempos novos.

O Brasil não está acostumado a ter o Legislativo no centro do palco da política. Tradicionalmente, esse tem sido o lugar do Executivo. A nova situação causa estranheza entre os que pensam que o Congresso Nacional deveria se submeter ao Executivo. Não é assim. Os dois poderes podem ter iniciativas, desde que dentro dos limites constitucionais. E ambos têm poder de deliberação.

O Congresso promulga emendas constitucionais sem a intervenção do Executivo, derruba vetos e revoga decretos do presidente. Assim, em última instância, a agenda será configurada pelo Legislativo, que, conforme a Constituição, tem um poder mais abrangente que o Executivo. A nova forma de fazer política apontada por Bolsonaro o libera de acordos políticos e das coalizões de outrora. Por outro lado, libera também o Congresso para construir sua própria pauta. Toda ação causa uma reação.

Nos últimos meses, contudo, os parlamentares deram mostra de uma nova realidade institucional. O Orçamento agora será impositivo. As medidas provisórias contarão com regras mais rígidas. O uso de decretos legislativos para revogar atos do Executivo já está sendo mais considerado. Outras medidas podem vir como parte de um pacote “autonomista”. O Legislativo quer fazer a sua Reforma Previdenciária e também a sua Reforma Tributária.

Na prática, estamos diante de conflitos de agenda e de visões políticas. Todavia, sem entendimento e diálogo, teremos uma situação indesejável para a cidadania. Qualquer que seja a política, ou a nova política, sem diálogo não irá funcionar.


Murillo de Aragão: Política e convicção

Mais que um processo legal, a Lava Jato virou um psicodrama que aciona energias baseadas em convencimento. Como resultado, o consenso perde espaço. Resta esperar que o juízo prevaleça

A convicção é a força motriz da ação política. E a política quase sempre é uma operação futuro a descoberto. Promete-se algo a partir de uma convicção e, a partir daí, se recolhem apoios para seguir em frente. A convicção é a pedra angular do processo, sem a qual não se consegue convencer os aliados, nem intimidar os adversários, muito menos derrotar os inimigos.

A convicção, como pressupunha Nietzsche, pode ser uma inimiga da verdade, já que não é, necessariamente, fundamentada nela. A grosso modo, a convicção — quando mais forte que a verdade — tende a ser contaminada por doses elevadas de misticismos, dogmas e crendices.

Os movimentos políticos mais fanáticos tiveram na forte convicção a forma de se alavancar perante às sociedades, quase sempre em torno de uma narrativa emocional. Alguns dos exemplos mais notórios de convicção mentirosa como força de alavancagem política são o nazismo e o stalinismo.

As convicções no Brasil também movem a política, ainda que, na prática, os interesses ganhem acentuada relevância. Todavia, os principais movimentos de transformação política do País nasceram de convicções ideológicas e programáticas bem definidas pelo tenentismo dos anos 1920: a Revolução de 1930, o Estado Novo e o Movimento Cívico-Militar de 1964.

Ainda hoje as influências do tenentismo estão presentes. Há também, como já identificado por mim anteriormente, o ativismo judiciário da República de Curitiba, que surge como uma espécie de neotenentismo. Daí não ser excêntrica a aliança entre o ex-juiz da Operação Lava Jato e hoje ministro Sergio Moro e o presidente Jair Bolsonaro. Ambos partilham de convicções semelhantes cujas raízes se encontram no tenentismo.

A política brasileira passa por um período de exaltação de convicções que tem sua gênese na Lava Jato. Que, em sendo mais do que um processo judicial, também é uma espécie de psicodrama que promove emoções enquanto energias de transformação.

O consenso como convicção perdeu espaço. Em consequência, teremos um acirramento de atritos e disputas como forma de solução para problemas diversos. Considerando o cenário, os cintos de segurança institucionais devem estar a postos. E o juízo deve prevalecer no silêncio das reflexões de quem manda no País.