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Igor Gielow: Novas falas de Bolsonaro sobre Forças Armadas incomodam militares

Sob pressão, presidente reprisa tática de 2020 e faz insinuações de uso de força

A nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de envolver as Forças Armadas na defesa de suas bandeiras está incomodando os altos escalões militares.

Oficiais-generais influentes da ativa e da reserva passaram o domingo (21) e a segunda (22) conversando entre si após Bolsonaro ter sugerido o uso do Exército contra governadores de estado que aplicam medidas para reduzir a circulação de pessoas para tentar coibir a transmissão do novo coronavírus.

“Alguns tiranetes ou tiranos tolhem a liberdade de muitos de vocês. Pode ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”, disse o presidente a uma multidão aglomerada na frente do Palácio da Alvorada no domingo.

“Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”, afirmou Bolsonaro, que celebrava seus 66 anos.

É um filme conhecido. Sempre que Bolsonaro se vê pressionado politicamente, ele "grita lobo", nas palavras de um oficial da Marinha. No caso, o "lobo" da fábula é algum tipo de intervenção militar.

No ensaio de crise constitucional do primeiro semestre do ano passado, quando o presidente estimulou atos golpistas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro arrastou consigo a cúpula militar.

O presidente levou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, para sobrevoar de helicóptero um desses atos. Ao mesmo tempo, as cúpulas das Forças tiveram de emitir duas notas para negar que houvesse tentações golpistas e reafirmando o compromisso com a Constituição.

Por outro lado, o mesmo Azevedo apoiou seu colega Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que "gritou lobo" ao divulgar nota na qual alertava para "consequências imprevisíveis" devido à tramitação de um pedido para apreensão do celular de Bolsonaro, na apuração sobre interferência do presidente na Polícia Federal.

Essa posição ambígua acabou contribuindo para a desconfiança em diversos meios políticos. Com o desanuviamento da crise, a partir da melhora da popularidade de Bolsonaro durante os meses em que concedeu auxílio emergencial na pandemia e a associação com o centrão, os militares saíram do holofote.

A criticada gestão do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde os trouxe negativamente para a ribalta de novo, e agora Bolsonaro volta a insinuar que os militares estariam prontos para agir.

O presidente trocou sua ofensiva para barrar vacinas, em especial a Coronavac promovida pelo rival João Doria (PSDB-SP), por críticas ao isolamento social.

Com o colapso nacional do sistema de saúde neste momento agudo da pandemia, governadores estão endurecendo cada vez mais medidas. Pequenas manifestações contra os chefes estaduais e pedindo "intervenção militar com Bolsonaro no poder" reapareceram em diversos pontos do país.

Não por acaso, o presidente está em momento de grande fragilidade. Está em processo de troca de Pazuello pelo médico Marcelo Queiroga, uma transição atabalhoada que só lhe rendeu críticas.

Sua rejeição voltou ao pior patamar desde que assumiu, conforme mostrou pesquisa do Datafolha na semana passada, com especial repúdio à sua condução da crise sanitária. Mas ele mantém uma aprovação alta, de 30%.

Como a Folha ouviu de um dirigente do centrão nesta segunda, ninguém acredita que a inciativa de Bolsonaro de criar um comitê para lidar com a pandemia, passado um ano do seu início, irá dar algum resultado concreto.

Ele vê os esperneios do presidente junto à sua base mais radicalizada como um caminho natural, e brinca que se houvesse "dez pessoas na rua contra o Bolsonaro", o clima para um processo de impeachment no Congresso estaria dado, tal o azedume entre as forças que apoiam o governo e seu hospedeiro.

Nesse ambiente, os militares surgem como referência, e não exatamente positiva. Dois ministros do Supremo conversaram com um importante general da reserva sobre as inclinações das Forças e ouviram que não haveria risco de apoio a qualquer iniciativa autoritária ou inconstitucional.

Segundo ele, o nó para os militares se chama hierarquia, que impossibilita críticas públicas ao governo, não menos pela simbiose que há entre Forças Armadas e a gestão Bolsonaro, por mais que a cúpula da ativa tente evitar.

O maior temor entre esses oficiais céticos em relação ao governo tomou forma na sexta-feira (19), quando Bolsonaro afirmou que poderia tomar "medidas duras" na pandemia, uma semana depois de insistir que tinha apoio do "meu Exército", Força da qual é capitão reformado.

No mundo político, correu a versão segundo a qual Planalto estudava adotar estado de sítio, situação na qual as Forças Armadas têm papel central e na qual alguns direitos constitucionais são suspensos. O rumor foi tão forte que o presidente do Supremo, Luiz Fux, ligou para Bolsonaro para ouvi-lo negar a hipótese.

O mal-estar perpassou o fim de semana, com políticos consultando militares sobre o burburinho. A fala presidencial no domingo só acirrou mais os ânimos, e aos poucos a sensação de sobressalto que marcou 2020 vai ganhando corpo entre esses atores.


François Hollande: Papel da esquerda é tirar populistas do poder democraticamente

Ex-presidente francês afirma discutir com Lula como construir forças políticas capazes de encarnar a alternância

Beatriz Peres, Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O ex-presidente francês François Hollande, 66, que comandou o país entre 2012 e 2017, considera palpáveis os danos causados pelo populismo que ascendeu em diferentes partes do mundo.

"A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos", diz o socialista. "Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos EUA —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas."

Em entrevista à Folha, por email, Hollande defende uma reação em bloco, como afirma ter acontecido com a candidatura do democrata Joe Biden na vitória sobre Trump. "Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças."

Depois da condenação do ex-presidente Nicolas Sarkozy, o senhor criticou o que chamou de “ataques repetidos contra a Justiça”. Por que considerou necessário defender a Justiça francesa neste momento? 

A separação dos Poderes é o fundamento da democracia. Na França, a Justiça é independente do Executivo. Os magistrados, os juízes e os procuradores conduzem suas investigações e proferem suas sentenças sem intervenção nenhuma do poder político. As decisões podem ser contestadas por todas as vias de recurso, o que Nicolas Sarkozy já fez em seguida à condenação. Por isso não aceitei os ataques vindos da direita e dos apoiadores do ex-presidente que visam desacreditar a autoridade judiciária.

No Brasil, a Justiça também está sendo criticada devido ao processo contra o ex-presidente Lula. É preciso defender a Justiça também no Brasil? 

A Justiça brasileira vai estabelecer ela mesma a verdade e poderá um dia verificar se as acusações contra o ex-presidente Lula tinham fundamento. Mas já parece claro que tudo foi feito no plano político para impedir Lula de se candidatar na última eleição presidencial. Foi isso que justificou minha tomada de posição, com outros chefes de Estado e de governo, desde 2018, para que Lula pudesse, livre, ser candidato à eleição presidencial. Hoje é um novo momento que se abre, e fico feliz de ver Lula recuperar plenamente seu espaço na vida política brasileira.

Nos EUA, a eleição de Joe Biden freou a onda populista de Donald Trump. Mas os movimentos populistas de extrema direita e de ultradireita estão espalhados pela Europa e também pelo Brasil. Qual é o papel da esquerda neste momento? 

Nós já podemos facilmente constatar os danos causados pelos populistas. A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos. Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas.

A esquerda nos Estados Unidos –porque é assim que podemos considerar os democratas americanos– foi capaz de se unir em torno de Joe Biden, cujo passado e experiência eram testemunhas de seu compromisso e despertaram confiança. Foi assim que Trump pôde ser derrotado. Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças. O papel da esquerda, portanto, é fazer de tudo para impedir que os populistas cheguem ao poder e, quando eles chegam, de retirá-los democraticamente propondo ao povo uma solução crível.

Na França, o Partido Socialista está programando um congresso de “refundação”, para definir um novo ciclo e renomear o partido. Do que se trata esse movimento de refundação? 

Em um mundo que evolui rapidamente e diante de desafios enormes como as desigualdades, a democracia e o aquecimento climático, cada geração deve assumir suas responsabilidades. Os partidos progressistas precisam se renovar, se refundar e se repensar, tanto do ponto de vista de sua organização como de seu projeto. Mas sem nunca se esquecer de sua história e sem perder os valores sobre os quais foram fundados. É essa a tarefa atual dos socialistas franceses.

O senhor tem discutido a renovação da esquerda com o ex-presidente Lula? 

Sim, nós concordamos em trocar experiências, em defender as mesmas posições em nível internacional e em construir, em nossos respectivos países, as forças políticas capazes de encarnar a alternância. Trabalharemos com todos que quiserem se juntar a nós para devolver a esperança à política. Nós compartilhamos os valores da liberdade, da democracia e da justiça social.

A França ainda vive o luto de atentados terroristas recentes, incluindo a decapitação do professor Samuel Paty, e os deputados aprovaram um projeto de lei contra os separatismos, que será examinado pelo Senado. As discussões do chamado “islamoesquerdismo” eclipsam o problema real? 

A França ama as polêmicas. Algumas podem ser frutíferas, outras ocultam os problemas reais. Sejamos lúcidos, existem fenômenos de radicalização, de divisão e mesmo de separatismo. E há até teorias que os justificam. Eles precisam ser discutidos e combatidos. Mas não vamos acreditar que eles sejam majoritários na esquerda, pelo contrário. É uma fração muito pequena que mantém esses movimentos para viver em protesto, em exclusão e na recusa de suas responsabilidades. Eu sou socialista e, portanto, universalista e não me satisfaço com os combates parciais. Tudo deve convergir para uma mudança global da sociedade. Quanto ao terrorismo, ele tenta nos assustar e nos dividir, não podemos ceder a ele.

O senhor concorda com a gestão do presidente Emmanuel Macron durante a pandemia

A gestão da pandemia é uma das crises mais difíceis que se poderia conceber, já que o vírus é resistente, a vacinação demora a produzir seus efeitos e uma parcela da população continua vulnerável. A gestão do governo pode ter parecido às vezes hesitante ou contraditória, mas foi assim em todos os países. Ao menos eu reconheço o mérito de Emmanuel Macron, ao contrário de Jair Bolsonaro, de ter admitido que o vírus era perigoso, que poderia matar e que era preciso tomar medidas restritivas, especialmente o confinamento.

O senhor se arrepende de não ter disputado as últimas eleições presidenciais? 

Eu deveria ter demorado mais para anunciar minha escolha, talvez um pouco mais tarde tivesse sido diferente. Eu me arrependo de não ter podido perseguir por mais tempo a política de redução das desigualdades, a priorização da educação e da inserção dos jovens, assim como a luta por uma ecologia social.

O senhor acredita ter um papel na eleição de 2022? Qual? 

Eu não sou mais dirigente do Partido Socialista. Tenho orgulho do que fiz pelo meu país, ainda que reconheça determinadas falhas, mas meu papel é contribuir para o debate de ideias, fazer propostas, expressar minhas convicções quando os pontos essenciais estão em questão e transmitir minha experiência às novas gerações.

*François Hollande, 66, Formado pela École des Hautes Études Commerciales de Paris e pelo Institut d'Études Politiques de Paris (Sciences Po), entrou para o Partido Socialista em 1979. Foi deputado pelo departamento de Corrèze e prefeito da capital, Tulle. Foi o sétimo presidente da quinta República Francesa.


Jamil Chade: Com só 10 países recebendo 75% das vacinas, fracasso moral vem em elevadas doses

Enquanto fazem discursos humanistas pelos salões virtuais da diplomacia, governos colocam limites às exportações de imunizantes contra a covid-19. E se eles estivessem do outro lado da fronteira?

Na semana passada, as Bolsas de valores de todo o mundo foram informadas que, em 2020, a empresa AstraZeneca obteve um faturamento de 27 bilhões de dólares e dobrou seu lucro em comparação ao ano de 2019. Há poucos dias, pelos jornais financeiros, a constatação era de que a Pfizer previa que as vendas com sua vacina contra a covid-19 gerariam uma receita de 15 bilhões de dólares.

Pelas redes sociais, proliferam selfies de famílias sinceramente felizes e emocionadas que brindam a chegada da vacina aos braços de avós e avôs repletos de planos. O abraço tão humano que nos fez falta durante meses parece cada vez mais próximo. O abraço que, na falta de palavras, substitui um dicionário inteiro de amor.

Esse abraço, porém, corre o risco de ser um privilégio de apenas uma porção da humanidade. Basta um mergulho nos números de distribuição das vacinas para entender que a ideia de um planeta comum é ainda um sonho distante de uma utopia necessária.

Um total de 181 milhões de doses da vacina já foi distribuído pelo mundo. Uma conquista, sem dúvida. Pela primeira vez na história, o desenvolvimento de uma vacina foi realizado enquanto entidades internacionais erguiam um mecanismo para garantir que erros do passado não fossem repetidos. Ou seja: que a inovação e que a ciência pudessem chegar a todos. E não a uma minoria no planeta.

Nos bastidores, especialistas e representantes de governos mais pobres arregaçaram as mangas para preparar a distribuição nesses locais onde falta energia elétrica, estradas e água. Tudo isso aconteceu.

Mas ficou faltando algo fundamental: solidariedade, limitada a discursos diplomáticos e fechada em cofres acumulados em armazéns em poucos países do mundo.

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O assunto da distribuição de vacinas levou o Conselho de Segurança da ONU a realizar uma reunião de emergência nesta quarta-feira, pois a paz mundial está em jogo.

Mas o fracasso moral vem em elevadas doses. Apenas 10 países receberam o equivalente a 75% desses imunizantes —20% desse total apenas nos EUA.

Outros 130 países ainda vivem a expectativa da primeira dose, com uma fila que já soma 2,5 bilhões de pessoas. No atual ritmo, o mundo apenas conseguirá vacinar 70% da população do planeta e atingir uma imunidade de rebanho em quatro anos e nove meses.

Para que o mecanismo de distribuição funcione e que a disparidade seja alvo de uma transformação profunda, o mundo precisa de 27 bilhões de dólares em 2021. O valor é elevado. Mas não passa de uma fração dos 11 trilhões de dólares injetados pelos governos para salvar suas economias durante a pandemia.

Entre 2008 e 2009, apenas o Tesouro americano destinou 204 bilhões de dólares para salvar os bancos do país. Apenas o JPMorgan Chase & Co recebeu o equivalente ao que o mundo precisa hoje para garantir a vacina para bilhões de pessoas. Mas, no caso dos bancos, a aprovação dos recursos foi garantida. Afinal, o que estava sendo salvo era o sistema financeiro, e não meras vidas.

Também descobrimos, nesses primeiros meses da vacinação, que o sigilo de contratos é mais importante que a transparência com recursos públicos.

Em debates acalorados entre governos, ouvimos de diplomatas que a propriedade intelectual continua vigente, mesmo diante de corpos que se acumulam, e que a quebra do monopólio para a produção global da vacina não é um caminho racional.

Fomos confrontados com governos que, enquanto fazem discursos humanistas pelos salões virtuais da diplomacia, optam por colocar limites às exportações das vacinas.

Fico me perguntando: e se eles estivessem do outro lado da fronteira, o que fariam? E se não fossem eles os donos do monopólio sobre a vacina?

Enfim, como será que definem o que é a humanidade?

Eça de Queirós decifrou a fronteira dessa noção em um de seus textos reunidos em “Cartas familiares e bilhetes de Paris”. Ele nos lembra que essa humanidade “consiste especialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro”. “Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente distanciando também em relação ao seu sentimento, de sorte que aos mais remotos já quase os não distingue da natureza inanimada”, escreveu no final do século XIX.

Mas, hoje, qual seria exatamente o nosso bairro? Diante de um vírus que usou os mesmos canais da globalização virtuosa para chegar a todo o planeta, essa fronteira de quem faz parte da humanidade ou não foi borrada dos mapas. A era do mundo infinito da mentalidade vigente na realidade de Eça de Queiroz chegou ao fim, se é que um dia existiu.

Para que eu sobreviva, meu inimigo precisa ser vacinado. Para que a rica cidade de Genebra esteja segura, Uagadugu precisa receber vacinas. Para que patroas durmam protegidas de uma eventual nova variante do vírus, aquelas senhoras que passam noites acordadas cuidado de seus filhos precisam estar vacinadas.

A realidade é que a vacina fez o planeta tirar uma selfie. Mas a imagem refletida é de uma sociedade disforme, injusta e egoísta.

Hoje, Charles Darwin está sendo sacudido. Não exatamente por criacionistas rejeitados até pelo Vaticano ou terraplanistas que despencaram do abismo intelectual. Mas por um imperativo moral de que o futuro de uma sociedade não pode ser deixada à sobrevivência do mais apto e nem às regras cruas e cruéis do mercado.

O vírus —e agora a vacina— revelam o que o membro da resistência francesa na II Guerra Mundial, Jean Bruller, já havia constatado. “A humanidade não é um estado a que se ascenda. É uma dignidade que se conquista.”

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Dorrit Harazim: A arte de viver

Parece que viramos a página: ficou escancarado em 2020 que, sem o outro, não somos nem seremos

Individualmente, nunca se saberá quem mais sofreu neste soturno ano de 2020. Coletivamente a resposta é fácil: foi a arte. Mas qual delas? Aquela que independe de qualquer genialidade ou talento específico para existir: a arte de viver. Para quem teve o privilégio de não estar entre as quase 2 milhões de pessoas levadas pela Covid, sobreviveu com medo, aceitou perdas, adequou-se ao vazio e ao silêncio, reinventou-se como pôde no confinamento abrupto. Sempre fomos moldáveis na arte de viver para conseguirmos sobreviver e dar sentido à espécie. 2020 quase nos tirou do prumo através de seu cortejo fúnebre. Mas parece que viramos a página: ficou escancarado que, sem o outro, não somos nem seremos.

Se viver é a maior das artes, a poesia vem logo atrás. Ela tem o poder de libertar as profundezas do possível, de restaurar zonas entumecidas. Ser alcançado por um poema de Armando Freitas Filho na hora certa é um choque transformador, libertador.

Em meio à clausura mundial de 2020, nada mais atual do que a meditação sobre a saga humana feita por John Donne 400 anos atrás. Donne, um dos maiores poetas de língua inglesa de todos os tempos, estava seriamente enfermo quando escreveu em prosa a “Meditação XVII” :

— Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é parte de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.

Donne foi homem de fé. Fé absoluta em Deus e convicto de que a humanidade só avança se compartilhada. O escritor americano Ernest Hemingway foi o oposto: era ateu roxo, ímpio por opção e incréu pelo que vivenciou. O que não o impediu de recorrer a Donne para o preâmbulo e título de uma de suas obras mais famosas, “Por quem os sinos dobram” (1940), romance sobre o fracasso humano na Guerra Civil espanhola.

Outro poeta-monumento, o galês Dylan Thomas, ao ver o pai moribundo e sem amparo da fé, criou um poema de resistência. “Não entres nessa noite acolhedora com doçura/ Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia/ Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura...”, dizem os 19 versos que convidam a não nos dobrarmos pacificamente ao inevitável. “Do not go gentle into that good night”, publicado em 1951, tornou-se um tesouro da língua inglesa, uma ode à tenacidade do espírito humano. Vem muito a calhar neste início de 2021.

Difícil saber no que se agarrar. Se o otimismo é uma forma alienada de fé, e pessimismo é uma forma alienada de desespero, como defende um grande humanista dublê de psicólogo, resta a fé racional no espírito humano. Simone de Beauvoir descreveria essa fé como esperança, “contrapeso lúcido e musculoso ao otimismo cego... esperança de que a verdade possa ser usada”.

Tempos atrás, quando a espécie humana ainda procurava se reconciliar com as ruínas da Segunda Guerra, a NPR, sigla da rede de rádio pública dos EUA, convidou 80 famosos e anônimos a sintetizarem seu credo pessoal de como tocar a vida. As narrativas, porém, precisavam caber em 100 palavras, proposta radical para tempos em que o mundo não girava em torno de 140 caracteres. Entre os participantes, uma vendedora de enciclopédias de porta em porta e John Updike, uma ajudante hospitalar e Eleanor Roosevelt. Havia, sobretudo, Thomas Mann, Nobel de Literatura e autor do colossal romance “A montanha mágica”.

Mann começa constatando que, apesar de a vida ser possuída por uma tenacidade assombrosa, nossa presença sempre será condicional. “Somente por este motivo acredito que a vida tem um valor e charme vangloriados em excesso”, escreveu. Sua crença maior, e no que depositava maior valor, era justamente o caráter perecível dessa presença: “A transitoriedade é a própria alma da existência. Ela dá valor, dignidade, interesse à vida. A transitoriedade cria o tempo... E, ao menos potencialmente, o tempo é a dádiva suprema, a mais útil. Sem começo ou fim, nascimento ou morte, também o tempo inexiste”. Sobraria um nada estagnado.

A cada um sua arte de viver. Da recomendada por John Donne há séculos à entoada com urgência por Emicida, hoje vamos de “AmarElo”: “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro”.


Cecilia Ballesteros: O vírus também ataca os direitos humanos

ONU e várias organizações internacionais alertam que a pandemia está causando um retrocesso nas liberdades

Michelle Bachelet já alertou. A alta-comissária de Direitos Humanos da ONU identificou o perigo em abril e acaba de insistir no final deste ano: a crise sanitária desatada pela covid-19 pode acabar infectando o organismo da democracia e das liberdades. E não há vacina contra esse vírus, “exceto mais direitos humanos”, como disse a ex-presidenta chilena. Desde que a pandemia foi declarada, em março passado, deixando quase dois milhões de mortos, aproximadamente 82 milhões de contagiados e o planeta em polvorosa, alguns regimes autoritários aproveitaram o medo de suas sociedades para transformar as máscaras em focinheiras e o confinamento em estados de exceção encobertos.

Vários especialistas em direitos humanos consultados por este jornal salientam que entre os males trazidos pela pandemia, além da crise sanitária e econômica, será preciso incluir um retrocesso das liberdades, inclusive nas democracias. O último estudo do Idea (Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral, na sigla em inglês), um organismo intergovernamental com sede na Suécia e em parte financiado pela União Europeia, informa que quase a metade dos países democráticos (43%) e a maioria dos não democráticos (90%) adotaram medidas “ilegais, desproporcionais, indefinidas ou desnecessárias” desde o início da pandemia. Em seu relatório sobre o estado da democracia no mundo, o organismo enquadra 162 dos 195 em uma das três seguintes categorias: democracias (99), regimes híbridos (33) e regimes autoritários (30). Os critérios para isso são parâmetros como a existência de eleições confiáveis, o respeito aos direitos humanos e a igualdade entre os sexos.

O relatório afirma que neste ano houve uma erosão do Estado de direito sem igual nas últimas décadas. Por exemplo, em termos de liberdade de expressão, uma das restrições mais comuns, pela primeira vez desde 1975 há mais países em retrocesso do que em ascensão, uma tendência que já vinha sendo vista desde 2014. “Os elementos mais preocupantes se dão no que chamamos de regimes híbridos, como a Rússia, Turquia, Marrocos, Afeganistão e Paquistão, e nas democracias frágeis ou de baixa qualidade, como Polônia, Hungria, Índia, Filipinas e Sérvia, onde as ações do Executivo estão minando os princípios democráticos, uma tendência que, se não for revertida, poderia ter chegado para ficar”, afirma Alberto Fernández, um dos autores do relatório do Ideia, falando por telefone de Estocolmo.

“Embora ainda seja cedo para calibrar o impacto da pandemia e seja complicado tirar conclusões, foram aprovadas medidas que poderiam se manter no tempo, como as restrições à liberdade de imprensa ou de informação, que inclusive se tornaram leis em alguns países, enquanto outras, como as limitações de movimento ou de reunião, ninguém espera razoavelmente que se mantenham além da emergência sanitária”, acrescenta Fernández. Os Estados que se orgulham de terem enfrentado o vírus de maneira mais eficaz e com menor perda de vidas, segundo o cômputo da Universidade Johns Hopkins, conseguiram isso, argumenta o estudo, à custa de ignorar os direitos humanos, como ocorreu por exemplo na China, onde os médicos que alertaram para os primeiros sinais de epidemia em Wuhan foram silenciados e muitos jornalistas estrangeiros foram expulsos, ou em Cuba.

Em países como Islândia, Finlândia, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Taiwan e Uruguai, as medidas adotadas contra o vírus, segundo o relatório, em geral não violaram os direitos fundamentais, embora em muitas partes da Europa e nos Estados Unidos, com uma grande tradição democrática, os decibéis da polarização política tenham subido. “Reagiram de maneira eficaz à pandemia sem solapar as liberdades”, diz Fernández. Não foi assim, porém, na Hungria, Polônia, Ucrânia, Rússia, Eslováquia, Eslovênia, Belarus e Azerbaijão, onde a covid-19 serviu como pretexto para cercear liberdades básicas e para adiar eleições – uma medida eventualmente justificada pelo risco de contágio, mas muito bem aproveitada pelos regimes não democráticos ou autoritários, já que, das 185 votações previstas neste ano até outubro, 93 haviam sido adiadas, e só 92 aconteceram de fato – ou para silenciar críticos, quando não diretamente para esmagar a oposição, como em Bangladesh ou no Camboja.

Em outras zonas do mundo, como a América Latina e a África ―que tem o pior comportamento, com 76% de países com as liberdades em semáforo vermelho, só atrás do Oriente Médio―, a crise sanitária agravou a corrupção, a fragilidade das instituições, a pobreza, a desigualdade e a exclusão dos grupos mais vulneráveis, entre eles as mulheres, os imigrantes e as minorias raciais. Além disso, em oito países, entre eles o México e o Chile, coube às Forças Armadas controlar a pandemia e a segurança. Regimes como os da Venezuela, Cuba e Nicarágua se tornaram ainda mais autoritários, segundo o documento.

“Desde que a pandemia estourou, a democracia e os direitos humanos se deterioraram em 80 países”, adverte por email Amy Slipowitz, coautora do último estudo da organização Freedom House, intitulado Democracia sob confinamento. Segundo ela, “esta deterioração é particularmente preocupante nas democracias incipientes e nos Estados altamente repressivos”. Segundo o relatório dessa organização norte-americana, feito com a participação de mais de 400 jornalistas, trabalhadores sociais, ativistas e especialistas sobre 192 países, a lista inclui tanto ditaduras como democracias que rebaixaram os seus padrões.

Para a Freedom House, a pandemia acentuou a desconfiança na democracia, uma tendência latente que se exacerbou a partir da Grande Recessão de 2008. Embora a emergência sanitária diminua com a difusão de vacinas nos próximos anos, Slipowitz acredita que esse padrão será mantido. Ou seja, que continuará a propagação das chamadas fake news ou desinformação, tão bem manejadas neste ano por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro; será mais fácil para os Governos autoritários controlarem a população alimentando o pânico, ou crescerá o controle dos Estados através da videovigilância, como ilustra o caso da China. “No momento, todos os Governos deveriam assegurar-se de que as medidas de emergência são proporcionais e temporárias. Também deveriam garantir que a população tenha acesso a informação confiável sobre a pandemia, permitir a realização de eleições livres e confiáveis com medidas sanitárias adequadas, identificar e punir as violações de direitos humanos e combater a corrupção”, conclui Slipowitz.


Demétrio Magnoli: O sermão nosso de cada dia

Jornais descobriram atalho de confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no seu público-alvo

Reza a sabedoria convencional que o advento das redes sociais provocou a crise existencial da imprensa em curso. O fenômeno é mais complexo: a crise deve-se, essencialmente, à resposta adaptativa escolhida pelo jornalismo profissional ao desafio posto pelas redes.

Diante da perda dramática de receitas publicitárias, os jornais engajaram-se na fidelização de leitores ou espectadores. Na batalha de vida ou morte, descobriram um atalho: falar, preferencialmente, para um segmento da sociedade definido por certas visões de mundo. Ou, dito de modo diferente, confirmar e reforçar as coleções de ideias dominantes no público-alvo.

Os veículos de imprensa entregaram-se a alinhamentos ideológicos cada vez mais nítidos. Nos EUA, exemplo icônico, as redes CNN e MSNBC tornaram-se porta-vozes informais das correntes mais liberais (ou seja, à esquerda) do Partido Democrata, enquanto a Fox firmou-se como arauto da ala reacionária do Partido Republicano. A última cresceu numa estridente oposição a Obama. As duas primeiras, assim como o New York Times, obtiveram retumbante sucesso comercial com a denúncia inclemente de Trump. Hoje, sem o “diabo laranja”, indagam-se sobre o rumo a seguir.

O atalho conduz a uma armadilha fatal. As pautas, os enfoques e a linguagem do jornalismo profissional tendem a se submeter à lógica discursiva das redes sociais. A Folha, que renasceu nos anos 80 com sua adesão ao movimento das Diretas Já!, uma posição editorial justificada pelo imperativo de reconquista da liberdade de imprensa, decidira não tomar parte em novas campanhas políticas, já que o sistema democrático garante a pluralidade de opiniões. Agora, porém, patrocina a campanha “#Use amarelo pela democracia”, uma bandeira anti-bolsonarista de forte apelo no seu leitorado que equivale a desistir de conversar com todos os brasileiros.

“Um bom jornal é uma nação dialogando consigo mesma” (Arthur Miller). A renúncia a esse ideal tem amplas consequências jornalísticas, como indicam as críticas da jornalista Bari Weiss, que se demitiu do NYT.

Espelho, espelho meu. As redes sociais alimentam seus seguidores com o discurso que eles querem ouvir. O jornal capturado por um nicho selecionado de leitores procede quase da mesma forma. “Toda pressão empurra para publicar mais um artigo sobre como Trump é um monstro ou um palhaço”, constata Weiss. Ela não gosta Trump, mas rejeita o tribalismo político dos dois lados: “Cada vez mais, o NYT e outros veículos mostram uma pequena faixa do país, um mundo como os editores ou os leitores gostariam que fosse”.

A pluralidade ideológica dos colunistas de opinião, item no qual a Folha dá um banho no NYT, não soluciona o problema. A ferida situa-se no núcleo do fazer jornalístico, não em editoriais apropriadamente duros (mas evitando a pulsão panfletária expressa em frases como “estupidez assassina de Bolsonaro”), ou na indispensável denúncia das torrentes de fake news. O ponto crucial é que o universo da notícia sofre uma compressão e uma amputação.

O jornal que pronuncia sermões imita a linguagem do pregador ou do militante —e, nesse passo, inclina-se a conceder a eles um palanque desproporcional à influência que exercem. As pautas identitárias extremas saltam da periferia do debate público —isto é, de obscuros refúgios acadêmicos— para o centro do palco. A reportagem sujeita a trama factual a uma mensagem apriorística. O comício deles contagia, infecta, espalha o vírus; a nossa manifestação de protesto purifica, liberta.

Sermão é um ato religioso: uma cisão entre “nós” e “eles”. O jornal que só conversa com os seus inscreve-se na moldura da intolerância discursiva, potencializando as engrenagens de polarização das redes sociais. Mesmo quando fala sem parar de amor, saúde, igualdade, solidariedade, justiça e inclusão.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Míriam Leitão: Economia global em escombros

De Genebra, o embaixador Roberto Azevêdo me disse ontem que o comércio no mundo vai cair 13% em 2020. Em volume, o comércio encolheu 18% no segundo trimestre e ele acha que a recuperação será modesta nos próximos meses. Ao final, o mundo terá no ano uma crise maior do que a de 2008/2009. Ficou claro esta semana o tamanho do tombo. O número americano parece cataclísmico, mas o 32,9% é anualizado. O PIB americano diminuiu, na verdade, 9,5% em relação ao trimestre anterior, no indicador a que estamos acostumados.

A Alemanha caiu 10,1%, ou seja, um pouco mais do que os 9,5% dos Estados Unidos. Nos EUA, a maneira de apresentar o número é pegar o resultado do trimestre e extrapolá-lo para o ano inteiro, como se aquele resultado fosse se repetir por quatro trimestres. Aí deu esse fim de mundo. Mas a queda, mesmo vista na comparação com o trimestre anterior, já assusta. O PIB americano havia encolhido no começo do ano. A dúvida é se as tensões entre os Estados Unidos e a China vão aprofundar ainda mais a recessão.

— O impacto da pandemia, com a virtual paralisia das principais economias, é tão expressivo que o efeito das tensões entre Estados Unidos e China, ainda que importante, fica apequenado. A redução das tensões entre as duas potências terá um papel bem mais importante durante a etapa de recuperação econômica. Uma distensão entre os dois países ajudaria a economia global a crescer mais fortemente no pós-pandemia — diz Azevêdo.

No Brasil, há vários problemas extras. Um deles é qual é o limite dos erros que o governo Bolsonaro pode cometer na sua relação com a China? Na quinta-feira, houve a demonstração pública de desprezo por parte do presidente. Ele elogiou a vacina que está sendo desenvolvida, mas avisou que falava da Universidade de Oxford, “e não daquele outro país”. Bom, aquele outro país é o responsável por ter amortecido o tombo do nosso comércio no primeiro semestre. O mundo comprou menos 15% do Brasil, a China comprou mais 15%. A economia chinesa apresentou números positivos no segundo trimestre, de 3,2%. Depois de ter encolhido 6,8%.

Do ponto de vista de investimentos, eles são importantes também. Esta semana mesmo o Ministério da Infraestrutura começou um roadshow virtual para atrair investidores para a Ferrogrão, projeto que liga Sinop (MT) a Mirituba (PA). Dois dos investidores contatados foram a CCCC e a CRCC. Chinesas.

Não é a primeira vez, não será a última, que o governo Bolsonaro lança ofensas gratuitas sobre os chineses. Parece um teste para saber até que ponto eles aguentarão. Mas nessa roleta chinesa nós somos a parte vulnerável. Dos ataques racistas de Abraham Weintraub aos delírios persecutórios de Ernesto Araújo, passando pelas grosserias de Bolsonaro&Filhos, o governo agride diariamente o nosso maior parceiro.

Na saída dos escombros deste ano difícil, o Brasil precisará também dos organismos financeiros multilaterais. Abraham Weintraub é inimigo confesso das boas maneiras, do foco em questões relevantes, e do que ele define como “globalismo”. Os bancos multilaterais seriam instrumentos desse inimigo. O ministro Paulo Guedes cedeu às pressões para indicá-lo. Ele ficará no cargo até outubro, pelo menos.

Ontem saíram os dados de outras economias europeias. No segundo trimestre, a França caiu 13,8%, acumulando 19% de queda no ano, a Itália, 12,4%, a Espanha, 18,5%, acumulando 22%. Na Espanha, o único setor a crescer foi a agricultura, como aqui no Brasil. A zona do euro encolheu 12%. Segundo o “Financial Times”, a retomada está sendo ameaçada pelos riscos de novas ondas e será “lenta e desigual”.

O ano está difícil para todos. A China, que teve indicadores melhores no segundo trimestre, voltou a ter alta de casos de Covid-19 em algumas áreas. Diante desse quadro, Azevêdo disse à Christiane Amanpour, na CNN, que o mundo está assistindo à maior contração em tempos de paz desde os anos 1930. E a grande questão que está posta é quão rapidamente o mundo pode se recuperar. Perguntei ao embaixador, que está deixando a OMC, como ele vê a situação do Brasil:

— Com muita preocupação, porque o desempenho econômico do país no futuro imediato estará inevitavelmente ligado à sua capacidade de controlar a pandemia, cujo quadro atual no país é muito inquietante.


Hubert Alquéres: Admirável mundo novo

Mais uma vez o Brasil é retardatário. Ainda estamos com os dois pés no século 20, tentando responder a uma agenda de reformas necessárias que há tempos deveria ter sido equacionada. A velha polarização esquerda/direita, um anacronismo reduzido à insignificância em países como a França e a Alemanha, ainda dá o tom na política brasileira.

A Europa e os Estados Unidos concentram suas energias na corrida da inovação e em busca de respostas para os desafios de um mundo em intensa transformação. Estão focados na Quarta Revolução Industrial e no mundo novo que virá a partir da disseminação da inteligência artificial e da robótica.

Já as nossas estão voltadas para fazer a reforma de uma previdência estruturada quando estávamos na era da segunda revolução industrial, com p rodução intensiva de mão de obra. Também pensamos reformar o sistema tributário com os olhos focados no retrovisor, sem levar em conta as alterações no modo de produzir e de como a sociedade vai se estruturar com as mudanças advindas da neorevolucao tecnológica.

Certamente, não estamos respondendo como será o sistema tributário da sociedade do “não-trabalho” e qual será o sistema de proteção social para o imenso exército dos sem-trabalho. O desafio, portanto, será bem maior do que o de ter um sistema previdenciário exequível.

Não se pode reagir diante da robótica e da inteligência artificial da mesma maneira da classe operária inglesa descrita por Engels. Nos meados do Século XIX operários destruíam máquinas para impedir a substituição da manufatura por máquinas industriais.

Em todas as eras as revoluções tecnológicas trouxeram enormes benefícios para a humanidade. Não será diferente com a Quarta Revoluç&at ilde;o. Sem dúvida, impactará, e para melhor, em nossas vidas.

Surpreendentemente foi Luciano Huck quem fez uma boa provocação por meio do artigo “Tá Ligado?” publicado recentemente no jornal Folha de S. Paulo. Ali ele dá uma pálida ideia do admirável mundo novo que se anuncia: “sim, os carros serão autônomos muito em breve. Sim, o córtex humano estaráconectado à nuvem. Sim, vamos poder fazer download de nossa memória. Sim, vamos usar minérios vindos do espaço. Sim, você poderá escanear seu corpo em casa, gerando um diagnóstico imediato. Sim, a inteligência artificial é uma realidade e irá engolir o mundo.”

De fato, haverá enormes ganhos para a humanidade. Pela primeira vez está dada ao homem a possibilidade de se livrar do trabalho enfadonho e repetitivo, podendo direcionar sua energia e tempo para a sua realização pessoal.

Nos meados do século XIX, quando a jornada de trabalho era de 12 horas, o escritor e jornalista francês Paul Lafargue escreveu sua obra polêmica “O Direito à Preguiça”. Pois bem, não estão distantes os dias em que o homem poderá usufruir desse direito sem ter a sua sobrevivência ameaçada.

A globalização iniciada nas últimas décadas do século passado retirou centenas milhões de pessoas da linha da pobreza e democratizou o consumo tornando os produtos acessíveis para camadas antes excluídas do mercado de massas. Esse processo se intensificará em escala exponencial com a Quarta Revolução Industrial. A massa de riqueza gerada será suficiente para resolver as crises humanitárias e para financiar um mundo ambientalmente sustentado.

Mas como as revoluções industriais antecedentes, a Revolução 4.0 também terá seus impactos negativos. A robótica e a inteligênc ia artificial substituirão 47% da mão de obra tradicional. O novo desafio é o que fazer com esse exército de deslocados, tanto para dar sentido a suas vidas, como para garantir a sua sobrevivência.

Propostas antes tidas como lunáticas são debatidas no santuário da inovação tecnológica, o Vale do Silício. Mentes arejadas como a de Bill Gates apontam a tributação dos robôs como um dos caminhos para o financiamento da alocação do contingente dos “sem-trabalho”&n bsp;em outras atividades sociais. A ideia da renda mínima universal é experimentada na Finlândia é admitida por políticos antenados como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

O grande desafio para as próximas décadas é definir como serão repartidos os benefícios gerados pela robotização e pela intelig ência artificial. Com elas, estarão criadas as condições objetivas não apenas para o homem se livrar do trabalho pesado e repetitivo. Também estarão dadas as condições para a conquista da igualdade, bandeira que a humanidade persegue desde a Revolução Francesa.

Nesse quadro a questão da distribuição da riqueza é o grande objetivo a ser perseguido na primeira metade do século 21, assim como a democracia foi o grande valor que se afirmou ao final do século 20.

Não se trata de um simples retorno ao Estado de Bem-Estar Social, pois isto seria inexequível. Mas de reinventá-lo nas condições da sociedade do conhecimento. Por aí o admirável mundo novo poderá ser o reino da prosperidade, da liberdade e da felicidade.

 

 

 

* Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP)


José Monserrat Filho: A China e o Direito Internacional

“Isso não pertence apenas à China, mas também ao mundo.” Xi Jinping

A história do Direito Internacional na China tem duas fases distintas, mas com pontos em comum: 1) a fase de 1949-78, iniciada com o triunfo da revolução liderada por Mao Tsé-Tung (1893-1976) e a posse do novo governo, por ele presidido. Nesta fase, a China foi privada do assento de Membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), reassumindo-a graças à resolução 2.758 da Assembleia Geral da ONU, de 25 de outubro de 1971; e 2) a fase de 1978-2011, quando a China partiu para amplas reformas econômicas e recuperou sua presença na maioria das organizações multilaterais, onde se tornou ator cada vez mais ativo, inclusive no âmbito do Direito Internacional, invariavelmente muito polêmico nas altas esferas globais.

O tema foi desenvolvido pelo juiz chinês Xue Hanqin, da Corte Internacional de Justiça, na palestra que proferiu em 08 de março de 2013 na própria Corte, sobre “Sumário de Direito Internacional – A China e o Direito Internacional: Revisando 60 Anos” (International Law Summary – China and International Law: 60 Years in Review). Falemos um pouco das duas etapas referidas, levando em conta informações e conceitos do juiz Xue Hanqin.

Em 1978, as universidades chinesas retomaram o estudo do Direito, abandonado durante a “Revolução Cultural” da época maoísta. Para o juiz Xue Hanqin, “a reconstrução do Direito Nacional na China teve impacto substancial nas atitudes do governo chinês com relação ao Direito Internacional”. Em 2009, quando a República Popular da China festejou o 60º aniversário de sua revolução, promoveu uma pesquisa em todo o país sobre o ensino do Direito Internacional nas Faculdades de Direito e constatou “uma mudança dramática” na comparação com a fase 1949-1978.

Hoje, na China, 600 Universidades mantêm cursos de Direito Internacional; 64 Escolas de Direito e instituições jurídicas oferecem Programas de Mestrado em Direito Internacional; e 16 oferecem Programas de Doutorado nessa matéria. O fato é que as mudanças sociais e econômicas da China, nas três últimas décadas, transformaram a visão chinesa do Direito Internacional, porque as reformas domésticas impuseram negociações e cooperação em várias áreas. Isso aprofundou ainda mais a participação da China na elaboração dos princípios e normas internacionais.

A nova China começou a construir suas relações internacionais a partir do zero, na busca de promover uma política exterior independente, seguindo a metáfora chinesa “Primeiro limpe a casa, só depois convide as visitas”. Pequim adotou então uma política exterior calcada em três princípios fundamentais – igualdade, benefício mútuo e respeito recíproco pela soberania e integridade territorial – incorporados à primeira Constituição chinesa. Em 1954, em Nova Déli, o Primeiro Ministro chinês, Zhou Enlai (1898-1976), e o Ministro da Índia, Jawaharlal Nehru (1889-1964), firmaram um acordo inédito nas relações internacionais, estabelecendo os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica: 1) “Respeito pela integridade territorial e a soberania; 2) Não agressão; 3) Não-intervenção nos assuntos internos; 4) Igualdade e Cooperação em Benefício Mútuo; e 5) Coexistência pacífica entre países com sistemas sociais e ideologias diferentes. No ano seguinte, em 1955, a União Soviética adotou a Coexistência Pacífica como cerne de sua política externa; e a Conferência Afro-Asiática de Bandung, realizada na Indonésia de 18 a 24 de abril do mesmo ano, tratou do posicionamento internacional comum dos países do Terceiro Mundo, em favor da descolonização, do desenvolvimento econômico e do repúdio aos blocos militares da Guerra Fria.

O criador da diplomacia chinesa Zhou Enlai, o indiano Nehru, o birmanês U Nu, o indonesiano Sukharno, o egípcio Nasser, o iugoslavo Tito e o ganês N'Krumah foram os principais líderes do Movimento dos Não-Alinhados e divulgadores de seus princípios. Esse Movimento desempenhou importante papel nas relações internacionais dos anos 50, 60 e 70. Aprovou, por exemplo, em 1975, na Assembleia Geral da ONU, uma resolução criando uma “Nova Ordem Econômica Internacional”, que previa a transferência de tecnologia aos países do Terceiro Mundo.

A nova China lutou muito por seu reconhecimento Internacional. Ela é hoje, com 1,411 bilhão de habitantes, a segunda potência econômica mundial, depois dos EUA. As chamadas potências ocidentais, lideradas por Washington, custaram a aceitá-la. Preferiram apoiar a facção derrotada na revolução de 1949, que se transferiu para Taiwan, assumindo o nome de “República da China”. Taiwan é uma pequena ilha localizada a 180 km a leste da China Popular, tendo hoje 23,55 milhões de habitantes (Censo de 2017). Ela se manteve até 1971 como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Só em 1971 a China Popular foi admitida como membro permanente do Conselho de Segurança, em lugar do regime de Taiwan. Desde 1949, a China orienta-se, na questão de seu reconhecimento, por três princípios: 1) O reconhecimento de um Estado independe do Direito Internacional; 2) Para ser reconhecido por outro Estado, um país deve ser considerado como único representante legítimo de seu povo nas relações internacionais; e 3) Uma vez reconhecida, a China enfatiza “os efeitos jurídicos do reconhecimento”, por exemplo, com relação aos bens e ao patrimônio da China em outros países. Todos passam a pertencer à China Popular.

Para a China, a promoção dos direitos humanos é, ao mesmo tempo, causa e processo. A questão tem sido constantemente explorada pelos países interessados em diminuir a relevância da China. Pequim entende que, como os direitos humanos são imprescindíveis ao progresso social, eles devem ser perseguidos incansavelmente, o tempo todo. Por outro lado, os direitos e liberdades individuais não podem ser efetivados, na realidade, sem condições sociais particulares, como também não podem ser avaliados devidamente sem levar em conta o contexto social.

De 1949 até hoje, a China teve quatro Constituições, de 1954, 1975, 1978 e 1982. A de 1982 recebeu quatro emendas. Duas outras foram aprovadas em 1999 e 2004, dedicadas à proteção dos direitos humanos. A emenda de 1999 incluiu na Carta Magna o princípio pelo qual a China será governada de acordo com a lei. A emenda de 2004 incluiu no Artigo 33 o compromisso de que “o Estado respeita e protege os direitos humanos”. Para o juiz Xue Hanqin, tais emendas transformam a proteção dos direitos humanos em princípio fundamental do sistema jurídico chinês.

“Socialismo com Características Chinesas na nova Era.” A expressão, cunhada pelo Presidente Xi Jinping, foi aprovada pelo 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, como nova emenda constitucional, em outubro de 2017. O documento de conclusão do evento, assinado por Xi Jinping, não se referiu diretamente ao Direito Internacional, mas deixou claras as posições jurídicas internacionais adotadas pela China. Veja estes dois parágrafos – um misto mais otimista que pessimista:

“A China vai erguer no alto a bandeira de paz, desenvolvimento, cooperação e relação ganha-ganha, observar o propósito da política diplomática de defender a paz mundial e promover o desenvolvimento comum, desenvolver de forma inabalável as cooperações amistosas com os demais países com base nos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, bem como impulsionar a construção de um novo tipo de relações internacionais baseado no respeito mútuo, equidade, justiça, cooperação e relação ganha-ganha.”

“O mundo está passando por um período de grande desenvolvimento, transformação e ajustes, e a paz e o desenvolvimento continuam sendo os temas principais da época. A multipolarização mundial, globalização econômica, informatização social e diversificação cultural se desenvolvem profundamente; o sistema de governança global e a transformação da ordem internacional progridem de forma acelerada; os contatos e a interdependência entre os países se aprofundam cada dia mais; o poder internacional evolui na direção do equilíbrio; e é irreversível a tendência de paz e desenvolvimento.”

A fase 1978-2011 será apresentada em mais detalhes no segundo artigo desta série, sob o título de “A China e o Direito Internacional (II)”. É a época em que o tigre asiático se torna a segunda potência mundial. Veremos como isto se deu no campo dos acordos e ações jurídicas internacionais.

 

* José Monserrat Filho, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?, Vieira & Lent Casa Editorial, 2017. E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.

 

 

 


Valor Econômico: Com críticas veladas a seu sucessor, Obama prega tolerância e cooperação

No momento em que o mundo assiste à ascensão de movimentos de extrema direita, o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama diz que a saída contra a xenofobia, o populismo e o nacionalismo passa pela trilogia tolerância, Estado de direito e pluralismo. "A globalização nos deu benefícios incríveis, o mundo está mais seguro e mais educado do que em qualquer outro momento da história", disse, ao participar do Fórum Cidadão Global, promovido pelo Valor e AAdvantage/Santander.

Por Maria Cristina Fernandes e Daniela Chiaretti | Valor Econômico

Obama reconheceu, porém, que a globalização enfraqueceu a condição dos trabalhadores para "conseguir salários mais justos". Ele atribuiu a frustração das pessoas - fenômeno apontado como responsável tanto pela vitória de Donald Trump nos EUA quanto pelo Brexit (a saída da Inglaterra da União Europeia) e a emergência da extrema direita na França e na Alemanha - não ao capitalismo, "responsável por uma economia mais próspera", mas à concentração de renda.

"Em um mundo em que apenas 1% controla a riqueza, não veremos estabilidade política. As economias não crescem com sucesso quando se tem muita concentração de riqueza sem expansão da classe média. É preciso que a nova economia funcione para todos", pregou ele, para uma plateia de empresários embevecida por seu discurso.

Lembrando que assumiu a presidência em meio a uma grave crise econômica, Obama fez um mea culpa ao lamentar não ter sido capaz de aproximar as posições que se radicalizaram depois de 2008. "Conseguimos evitar uma grande depressão no país, mas não fomos capazes de nos aproximar das pessoas que se frustraram com a crise. A polarização e o ódio aumentaram. Não fui capaz de evitar isso, ainda que seja injusto dizer que eu tenha sido o único responsável".

Além de pregar a tolerância, a saída diplomática para resolver conflitos, o fortalecimento da política e o investimento em educação na primeira infância, o ex-presidente defendeu o Acordo do Clima, do qual os EUA se tornaram signatários em seu mandato e ao qual Trump quer renunciar. "Precisamos de uma diplomacia forte para assegurar a paz. O poder das ideias é mais importante do que a força militar. Não podemos resolver os problemas do mundo só com tanques e aviões", disse o ex-presidente.

Na abertura do fórum, o vice-presidente do Grupo Globo, José Roberto Marinho, disse que, "em um mundo de conflitos, Obama valorizou a tolerância. Ou, nas palavras dele, a unidade de propósito, em vez do conflito e da discórdia". Em seu discurso, o presidente do Santander, Sérgio Rial, disse, ao tratar da crise no Brasil, que "não podemos deixar o país na mão de minorias organizadas".

"A política é um reflexo da sociedade", diz Obama
"A lista é longa e começa por não ter começado a tingir meus cabelos". Barack Obama já estava ao fim dos 60 minutos de sua fala no evento "Cidadão Global", promovido pelo Valor, Santander e AAdvantage, quando foi indagado sobre o que lamentava não ter sido possível fazer em sua vida pública.

Ao responder, com bom humor e velada referência ao sucessor, à pergunta do diretor geral da Infoglobo, Frederic Kachar, o ex-presidente dos Estados Unidos não fugiu à responsabilidade pelo que aconteceu em seu país depois de ter deixado a Casa Branca. Disse lamentar não ter sido capaz de aproximar as posições que se radicalizaram depois da grande crise financeira de 2008.

"Conseguimos evitar uma grande depressão no país, mas não fomos capazes de nos aproximar das pessoas que se frustraram com a crise. A polarização e ódio aumentaram. Não fui capaz de evitar isso, ainda que seja injusto dizer que o presidente tenha sido o único responsável", afirmou. "Mas a boa notícia é que não podemos contribuir apenas como presidente. Tenho pelos menos 30 anos pela frente para tentar levar uma mensagem de esperança não apenas para os Estados Unidos mas para o resto do mundo".

Obama atribuiu a frustração das pessoas não ao capitalismo, "responsável por uma economia mais próspera", mas à concentração de renda. "A globalização nos deu benefícios incríveis, o mundo está mais seguro e mais educado do que em qualquer outro momento da história", afirmou, ao ponderar que se vive o melhor e o pior dos momentos. "Mas a globalização também enfraqueceu a condição dos trabalhadores para conseguir salários mais justos. Em um mundo em que apenas 1% controla a riqueza não veremos estabilidade política. As economias não crescem com sucesso quando se tem muita concentração de riqueza sem expansão da classe média. É preciso que a nova economia funcione para todos".

A saída contra a xenofobia, o populismo e o nacionalismo, para o ex-presidente americano, passa pela trilogia da tolerância, estado de direito e pluralismo. Minutos antes, em palestra que antecedeu a de Obama, o principal colunista econômico do "Financial Times", Martin Wolf, dissera que, depois da crise de 2008, 80% da população do mundo desenvolvido teve sua renda estagnada
Entre os feitos de sua vida pública que o orgulham, Obama mencionou a reforma do sistema de saúde, que teria incluído 20 milhões de pessoas e hoje está sob ataque de Donald Trump. Citou ainda o acordo com o Irã que tirou este país da rota seguida pela Coreia do Norte: "Quando assumi, já era tarde demais para um acordo com a Coreia do Norte, mas o Irã exportava problemas para a região e para outras partes do mundo. Percebi a oportunidade de evitar o desenvolvimento de armas nucleares naquele país. Levou sete ou oito anos de trabalho, mas deu certo. Temos diferenças e tensões entre nós, mas o problema foi solucionado sem um único tiro."

Sem citar nominalmente seu sucessor, ao qual se referiu como "a pessoa que me substituiu", Obama fez dura crítica ao belicismo da geopolítica na nova ordem mundial: "Precisamos de uma diplomacia forte para assegurar a paz. O poder das ideias é mais importante do que a força militar. Não podemos resolver os problemas do mundo só com tanques e aviões". Ao alertar contra o tom supremacista da política externa americana - "Quando países dizem que são melhores que os outros, sabemos onde isso termina" - não deixou alternativa à plateia senão a comparação com o sucessor. Numa outra crítica velada a Donald Trump, que tirou os Estados Unidos do Acordo de Paris sobre o clima, Obama disse ver com naturalidade a divergência sobre os meios e os custos para se enfrentar o aquecimento global, mas que não era possível negá-lo.

Tanto em seu discurso quanto nas respostas às perguntas que lhe foram dirigidas, Obama fez uma profissão de fé na política. Disse que há tecnologia para se solucionar quase todos os problemas do mundo e que é a política - ou a ausência dela - que bloqueia sua resolução. Citou as filhas - "Elas passam muito tempo digitando no celular e lhes pergunto, por que não se encontram com seus amigos cara a cara?" - para dizer que um dos maiores desafios da contemporaneidade é fazer com que as pessoas discutam, "não necessariamente para concordar com tudo o que o outro diz".

Citou o poder da internet tanto para conectar as pessoas quanto para espalhar ódio e terror: "Estamos mais conectados, mas muitas vezes nos refugiamos em tribos e bolhas. Não trocamos impressões, o que vemos é aquilo que um algoritmo diz que devemos ver". Citou a Fox News e o "The New York Times", nos Estados Unidos, como filtros de dois mundos completamente diferentes. "Eu não votaria em mim mesmo se assistisse apenas a Fox News", disse, arrancando risos na plateia, antes de concluir que é pelo estímulo à divergência que se fortalece a democracia: "Ficamos tão seguros de nossas crenças que excluímos opiniões que não se encaixam nelas."

Disse que a única maneira de "curar" a democracia é aumentar a participação política e renovar o poder, que se ressente quando é ocupado pelas mesmas pessoas por muito tempo, sem sangue ou ideias novas: "Se ainda fosse presidente, a Michelle não estaria mais comigo". Reconheceu ameaças autoritárias em todo o mundo, mas disse não acreditar que o futuro pertença aos autocratas.

Ao ser indagado sobre o poder da educação, o ex-presidente citou Cingapura. "É um país pequeno, não tem nada lá, mas seu povo é extraordinariamente bem educado e o país está indo muito bem, ao contrário de muitos países grandes e com muitos recursos naturais - não vou dizer que países são esses [risos da plateia] - que estão em outra direção". Disse que o investimento em educação deve privilegiar a primeira infância, quando o cérebro da criança funciona como uma esponja para absorver estímulos. Foi aplaudido ao rechaçar investimentos em educação a partir de um viés de gênero ou raça.

Fez propaganda da fundação que leva seu nome e à qual passou a se dedicar depois de deixar o poder. "Ser presidente te dá uma boa cadeira para observar o mundo", disse, numa referência singela ao comando da maior potência mundial. "Foi assim que decidi que o melhor que posso fazer é emprestar meus esforços para treinar jovens e fazer com que eles se envolvam nas questões de sua comunidade. Eles estão dispostos a mudar o mundo. Eles nos inspiram e nós os encorajamos. É assim que se resolvem os problemas. A solução não vem do topo, mas da mudança com quem está ao seu lado".

Indagado por Kachar sobre a mensagem que deixaria para um país imerso em uma crise política e econômica sem precedentes, o ex-presidente americano não se imiscuiu na política interna brasileira mas voltou-se para sua plateia de empresários, banqueiros, profissionais liberais e artistas: "Em muitos países, as pessoas dizem que odeiam os políticos e o governo, mas o governo e os políticos são um reflexo de nós mesmos. Se uma sociedade é saudável, a política também será. Se uma sociedade é doente, a política também será." Com leveza, o ex-presidente americano compartilhou a culpa pela crise com cada um dos que ali estavam. O recado era duro e, fosse outro o palestrante, face ao grau de esgarçamento da conjuntura brasileira, poderia ter sido recebido com ressalvas, mas foi sob as palmas de uma plateia embevecida que Obama deixou o palco.

Foi a segunda vez que o ex-presidente americano esteve no Brasil. Na primeira, em 2011, veio com a mulher, Michelle, e as duas filhas, Malia e Sasha. Foi recebido pela ex-presidente Dilma Rousseff, em Brasília, e pelo ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso. No Rio, esteve na favela Cidade de Deus, lembrada ontem em seu discurso.

O ex-presidente chegou na noite de quarta-feira a São Paulo e pernoitou em um hotel da zona sul. Sua palestra foi precedida de uma abertura do vice-presidente do Grupo Globo, José Roberto Marinho, do discurso do presidente do Santander, Sérgio Rial, de uma palestra do professor da Universidade de Nova York, Robert Salomon e de uma entrevista pública com o colunista do "Financial Times", Martin Wolf, conduzida pelo editor de internacional do Valor, Humberto Saccomandi.

Ao deixar o evento no Teatro Santander, na zona sul de São Paulo, o ex-presidente americano encontrou-se com 11 jovens de diversas regiões do país que atuam com educação, mobilização social e redução da desigualdade. Depois foi jantar no Fasano, nos Jardins, com um grupo de 12 pessoas. Obama embarca hoje para Córdoba, na Argentina. (Colaboraram Daniel Rittner e Suzi Yumi Katzumata).