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O Globo: Brasil vai manter linha de não intervenção na Venezuela, afirma Mourão

Vice-presidente está na Colômbia para reunião do Grupo de Lima

BOGOTÁ E BRASÍLIA - O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, já está em Bogotá para participar da reuniçao do Grupo de Lima, que discute saídas para a crise venezuelana.

- Vamos manter a linha de não intervenção, acreditando na pressão diplomática e econômica para buscar uma solução. Sem aventuras - disse Mourão ao jornalista Gerson Camarotti, da TV Globo.

O Brasil defenderá entre os países do grupo uma maior pressão diplomática e econômica para o isolamento internacional do regime Maduro.

O Grupo de Lima, que se reúne hoje em Bogotá, é formado por 14 países americanos e caribenhos. A reunião de hoje deverá ter as presenças do vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, e do próprio Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional da Venezuela que se autoproclamou presidente do país.

Um porta-voz da União Europeia destacou que o bloco clama por esforços de evitar uma "intervenção militar" na Venezuela.

O governo brasileiro informou na noite deste domingo que negociou com militares venezuelanos para diminuir a tensão na fronteira com o país vizinho. Segundo nota divulgada pelo Ministério da Defesa, ações foram tomadas pelos dois lados. Na Venezuela, o acordo resultou no recuo dos chamados veículos anti-distúrbios. Já no Brasil, a decisão envolveu, de acordo com o comunicado, reforçar o controle dos imigrantes venezuelanos para evitar novos confrontos.

Segundo a nota, a decisão de retirar os veículos da fronteira foi tomada após conversa com militares da Guarda Nacional Bolivariana (GNB). "Militares brasileiros e venezuelanos negociaram, no local, e foi entendida a inconveniência da presença desse tipo de aparato militar", diz o documento.

A pasta informou ainda que a fronteira continua aberta para acolher refugiados. "O Ministério da Defesa reitera a confiança numa solução urgente para a situação na Venezuela", completa o comunicado.

O pronunciamento do Ministério da Defesa ocorreu após um fim de semana tenso na fronteira com a Venezuela, em Roraima. Houve confronto entre manifestantes e militares venezuelanos, que responderam com bombas de gás lacrimogênio aos ataques com pedras. O vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, embarcaram para a Colômbia, onde representantes do Grupo de Lima, que reúne 14 países latino-americanos, discutirão a crise na Venezuela.


Eliane Cantanhêde: Venezuela é uma fria

Impasse: o Brasil não pode lavar as mãos nem vai usar a força militar, mas qual a alternativa?

Direto e realista, como sempre, o vice-presidente Hamilton Mourão admite que “um dos cenários na Venezuela é de guerra civil, o que pode respingar para todo lado”. Ele ressalva que, mesmo assim, trata-se de uma questão interna do país vizinho e cabe à ONU interferir, não ao Brasil.

“Enquanto eles continuarem matando uns aos outros, a gente não pode fazer nada”, disse Mourão, que viaja ainda neste domingo para Bogotá, na Colômbia, para a reunião, amanhã, em que o Grupo de Lima discutirá a situação de emergência na Venezuela.

Uma das grandes preocupações do governo brasileiro é com o grau de beligerância entre Venezuela e Colômbia. Segundo Mourão, que é general de exército, “80% do dispositivo militar venezuelano é voltado para a fronteira com a Colômbia. Na fronteira com o Brasil, tudo o que Maduro tem é uma brigada de engenharia de selva muito capenga”.

O Grupo de Lima foi criado justamente por causa da dramática crise venezuelana e, dos seus 14 países, só um, o México, se manteve aliado ao inacreditável Nicolás Maduro e se recusou a reconhecer Juan Guaidó como presidente interino. Além de Mourão, a reunião contará também com a presença de presidentes da região e do vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence. Os dois vices discursarão.

Maduro pode ser louco, irresponsável e patético, deu um xeque-mate na comunidade internacional e jogou a Venezuela no centro de uma delicada questão geopolítica. Ilhado, rejeitado por meia centena de países, ele contrapôs EUA, de um lado, e China e Rússia, de outro. E o Brasil, como a Colômbia, foi arregimentado por Washington para agir.

Parece absurdo, mas as potências reagem ao colapso da Venezuela, que mata pessoas e gera o êxodo de milhares de famílias, como questão meramente ideológica. Os EUA tentam recuperar a velha hegemonia na América Latina, a China e a Rússia usam o pobre país contra a grande potência, ou contra um mundo unipolar.

A ação brasileira, a reboque dos EUA, combina com o discurso de campanha do presidente Jair Bolsonaro e com os escritos do chanceler Ernesto Araújo, mas deixa setores produtivos, exportadores e até oficiais de alta patente de cabelo em pé. Segundo um deles, que não quis se identificar, “nós entramos numa fria”. E explicou: “Não faz muito sentido essa aliança tão incondicional com os EUA. Qualquer consequência negativa (da ação na Venezuela) não vai recair sobre eles, vai recair sobre nós”.

A verdade é que era impossível simplesmente lavar as mãos diante do caos na Venezuela, mas são poucas as alternativas. As pontes diplomáticas implodiram, uma invasão militar é fora de cogitação e não dá para recuar. O impasse é que o Brasil tem de fazer alguma coisa, mas não tem ideia do que fazer.

Um grande complicador, como reconhece o vice Mourão, é a falta de canais com o governo e as instituições venezuelanas. “Estamos sem informações fidedignas, sem tem com quem falar e em quem confiar”, admitiu. Como já dito neste espaço, militares brasileiros olham com desconfiança os venezuelanos, considerados muito vulneráveis à corrupção.

Quanto mais o regime fazia água, mais oficiais iam sendo promovidos e hoje há 1.300 generais, o que seria cômico, não fosse trágico. Essa gente toda está pendurada na PDVSA (a petroleira equivalente à Petrobrás), nos projetos e obras ao longo do Rio Orinoco, em confortáveis embaixadas mundo afora.

Quem sofre é o povo, como sempre na história. A Venezuela virou um bunker de Maduro, enquanto Brasil, Colômbia e Chile, entre outros, quebram a cabeça para intervir sem uso de armas. “Ninguém vai entrar numa canoa furada”, diz Mourão, rechaçando ação militar. Ainda bem, mas só fazer show na fronteira não vai resolver nada. Qual a alternativa?


Clóvis Rossi: E se Guaidó fracassar no sábado?

A receita Mourão é correta; falta cozinhá-la

O general Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil, tem toda a razão ao dizer, sobre a Venezuela, que “a única solução é o regime do Maduro entender que acabou, promover novas eleições, se eleja quem tem que ser e partir daí terá de ter haver plano Marshall na Venezuela".

De acordo, general. Pena que eu não tenha conseguido contato contigo para perguntar se a tentativa de fazer entrar ajuda humanitária na Venezuela neste sábado (23) vai de fato contribuir para chegar à solução proposta.

Tomara que sim, mas temo que não. Examinemos as possibilidades mais lógicas a respeito do 23F:

1 - A ajuda não entra, pela truculenta resistência da ditadura. Analisa, desde já, o Miami Herald, geralmente bem informado sobre Venezuela, até pela vizinhança geográfica: “Tantos apoiadores como críticos da decisão de reconhecer Guaidó [Juan Guaidó, como presidente interino] estão preocupados em perder o ímpeto para eleições se o sábado chega e passa sem uma mudança no status quo".

Essa suposição sobre a perda de ímpeto é recorrente na mídia internacional, para o caso de fracassar a iniciativa de Guaidó.

A oposição terá conseguido apenas expor a um público bastante amplo e à mídia internacional, ao vivo e em cores, a brutalidade da ditadura.

Minha dúvida é saber se as caravanas convocadas por Guaidó se conterão ao chegar às fronteiras ou se se atirarão contra as tropas que as estão bloqueando. Abre-se a perspectiva de um banho de sangue cujas consequências não dá nem para imaginar.

2 - A ditadura, além da truculência tradicional, recorre a um trambique, outra de suas especialidades: deixa a ajuda entrar, mas, à medida que os caminhões vão se afastando das fronteiras e, por extensão, da vista do público e da mídia externa, se apropriam dos carregamentos.

Faz, em seguida, ela própria, a distribuição de alimentos e medicamentos, para o que até já dispõe de um mecanismo (militarizado), os CLAPs (Comitês Locais de Abastecimento e Preços). É o meio para exercer controle social sobre a população.

É capaz até de ganhar pontos porque a penúria dos venezuelanos é tão tremenda que qualquer alívio é bem recebido, venha de quem vier.

3 - Os militares permitem a entrada da ajuda. Seria o “game over” para Maduro, porque significaria ter perdido o respaldo do único setor com que conta para manter-se no poder.

Ainda assim, seria preciso ver se Maduro “entende que acabou", como gostaria o general Mourão, ou se será preciso uma negociação (com quem?) para estabelecer as regras para a transição até as eleições.

Qualquer que seja o desfecho deste sábado, gostaria que o general Mourão explicasse o que vai propor, na segunda-feira (25), quando se reunir na Colômbia o Grupo de Lima, o conglomerado dos principais países das Américas que tenta tirar a Venezuela do buraco.

Se eu fosse o general, proporia, para começar, tirar protagonismo dos Estados Unidos, hoje o país que mais atiça as chamas e, por extensão, o que mais estimula Maduro a reagir com fogo. Talvez a liderança de países e/ou instituições menos hidrófobas (Canadá, União Europeia, por exemplo) crie melhores condições para criar o percurso (correto) do general Mourão.

Intervenções americanas anteriores criaram, no mais das vezes, ditaduras cruéis —e ditaduras é tudo o que Venezuela dispensa depois da tragédia a que foi conduzida.


El País: Com Mourão à frente, Governo Bolsonaro é cada vez mais tutelado por militares

Vice-presidente vai à Colômbia tratar de Venezuela, e faz contraponto a Ernesto Araújo. Para historiador, maior presença de oficiais deixa limite entre Governo e Forças Armadas difuso aos olhos da sociedade

Por Felipe Betim, do El País

Os militares definitivamente voltaram para as principais manchetes dos jornais, que não raro informam sobre como os oficiais que compõem o Governo Jair Bolsonaro se articulam nos bastidores para mediar conflitos, apagar incêndios, aconselhar o presidente e expressar discordância com a postura beligerante de seus filhos. Eles vêm ocupando cada vez mais espaço no Executivo Federal, influenciando e até tutelando o governo em áreas como a de política externa, conforme evidenciou a ida do vice-presidente, o general da reserva Hamilton Mourão, para a reunião do Grupo de Lima em Bogotá para discutir a crise na Venezuela. Além de Mourão, se destaca como homem forte do Governo o general da reserva Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e uma espécie de conselheiro e guru de Bolsonaro.“O Brasil não fará nenhuma ação agressiva contra a Venezuela”, garantiu Heleno nesta manhã, contando que o Governo Bolsonaro criou um gabinete de crise para lidar com a ajuda humanitária que está chegando à fronteira.

Heleno seguiu a mesma linha das colocações de Mourão, mostrando o protagonismo de ambos para falar do conflito que alarma os brasileiros desde o fechamento da fronteira, determinada por Nicolás Maduro, nesta sexta. A ida do vice-presidente a Bogotá vem sendo interpretada como mais um sinal de que os militares estão cautelosos com relação ao ministro Ernesto Araújo. O chanceler assinou um documento do Grupo de Lima que prevê a suspensão da cooperação militar com o regime de Nicolás Maduro, mas não teria consultado os militares, segundo informou a Folha de S. Paulo. Isso teria desagradado o setor de inteligência do Exército, que se mantém informado sobre o Governo chavista a partir de seus contatos com os militares venezuelanos. Coube a Augusto Heleno e outros militares do Governo mediar o conflito com a corporação.

Os militares, com Mourão à frente, vêm tentando fazer um contraponto ao antiglobalismo de Araújo, ligado ao guru da extrema direita Olavo de Carvalho, com quem o vice-presidente já teve desavenças públicas. Apesar de ser o principal investidor externo e parceiro comercial do Brasil, a China já foi alvo de fortes críticas tanto de Bolsonaro quanto de Araújo, que já indicou querer se aproximar incondicionalmente dos Estados Unidos e isolar o país asiático, inclusive dos BRICS. Mais pragmático, o vice-presidente vem apaziguando as declarações e, nesta semana, anunciou em seu perfil do Twitter ter ficado responsável pela coordenação das comissões bilaterais com China, Rússia e Nigéria. Outra promessa de campanha que os militares vem agindo para postergar é uma possível mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Mourão chegou a receber representantes da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e o embaixador palestino para, mais uma vez, apaziguar os temores. A mudança poderia gerar retaliação dos países árabes que importam produtos brasileiros, principalmente o frango Halal, além de colocar o Brasil na rota do terrorismo internacional.

Além de Mourão, que busca ter uma voz própria na vice-presidência, já são cerca de 50 militares ocupando o primeiro e segundo escalão. O último a integrar o time do Governo foi o general da reserva Floriano Peixoto Neto, que substituiu Gustavo Bebianno na Secretaria-Geral da Presidência da República nesta semana. A crise envolvendo Carlos e Jair Bolsonaro, que chamaram Bebianno de mentiroso nas redes sociais, também acabou envolvendo os militares, que tentarem interceder a favor do ex-ministro. Ao ficar claro que não havia maneira de retomar a normalidade, conseguiram emplacar o Peixoto Neto no posto. Ele foi chefe de operações das Forças de Paz da ONU no Haiti, na época comandada por Heleno, o principal patrocinador de sua recém nomeação.

Além de Heleno e Peixoto Neto, também fazem parte da equipe ministerial o outros seis militares: o general Fernando Azevedo e Silva (Defesa), o general Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), o tenente-coronel Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), o almirante Bento Costa Lima (Minas e Energia), o capitão da reserva Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e o capitão da reserva Tarcísio Freitas (Infraestrutura). Com a saída de Bebianno, o único civil que despacha do palácio do Planalto é Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil.

"Existe uma diferença entre militares que participam do governo e governo dos militares. Um governo dos militares significaria que a instituição militar estaria governando. Não é esse o caso, são militares convidados como indivíduos", alerta o cientista político Eurico de Lima Figueiredo, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF). O historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concorda que não se trata de uma "militarização do Governo". Contudo, a relevância que os militares vêm ganhando reflete "a falta de quadros no entorno de Bolsonaro", uma vez que o presidente chegou ao poder sem "projeto ou plano" e não conta com "um partido que tenha um instituto de reflexão sobre os problemas do país". Essa direita "xucra e despreparada", explica o historiador, "depende dos militares porque são o grupo conservador mais bem preparado, apesar de possuir uma visão muito limitada da realidade pela perspectiva militar".

General Hamilton Mourão

@GeneralMourao

Por orientação do presidente @jairbolsonaro estou responsável pela coordenação de 3 comissões bilaterais: China , Rússia e Nigéria - paradas desde 2015. Vamos focar nos temas que mais possam contribuir para os interesses do Brasil. @EmbaixadaChina @EmbaixadaRusPT @NGRPresident

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Para ambos os especialistas, o risco é que Bolsonaro acabe sendo cada vez mais tutelado por esses membros oriundos do meio militar. E que a fronteira entre Governo e as Forças Armadas seja cada vez mais difusa aos olhos da sociedade. "O senso comum não faz essa distinção entre Forças Armadas e membros militares no Governo. E muitos eleitores do Bolsonaro acham que esses personagens vão resolver todos os problemas, o que é uma perspectiva muito preocupante", opina Fico. O resultado, acrescenta, é uma mistura de "inexperiência e autoritarismo".

O cientista político Figueiredo enxerga Mourão e Heleno como as duas figuras mais fortes do Governo, responsáveis pela nomeação dos demais militares. "Essa presença faz com que a forma de mundo dos militares esteja no governo. E isso é ruim para a instituição militar, porque liga o destino do governo ao destino da própria corporação. Se der certo, há uma legitimação. E se não ocorrer? Como é que fica?", questiona.

Ele também opina que a fronteira entre a corporação e o Governo vai ficando "perigosamente fluida", algo que, ele insiste, é ruim para as próprias Forças Armadas. "Vejo a possibilidade de uma osmose perigosa, de uma absorção dos militares pelo governo. (...) Quando temos generais fazendo parte da conversa dos cidadãos, algo não está certo", acrescenta. O especialista acredita, contudo, esse cenário não represente o interesse das próprias corporações militares, uma vez que isso cria "o perigo da partidarização e da luta interna" dentro das Forças Armadas. "E os militares querem principalmente o fundamental, que é a manutenção da hierarquia, sem o que eles deixam de existir como instituição", explica Figueiredo.

Que militares ocupem essas áreas significa levar todo um know-how técnico adquirido em academias e instituições militares, algumas delas conhecidas pela opinião pública por sua excelência, como o Instituto Militar de Engenharia (IME) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). "Possuem personalidades muito marcadas pelo ethos militar, e é impossível que abandonem essa perspectiva. O que se coloca é uma série de propostas de viés muito autoritário. Inclusive em campos que não são próprios das carreiras militares", argumenta o historiador Fico.

Mas a influência deles não se limita a esse círculo de ministros próximos a Bolsonaro e se estende a diversas áreas que não necessariamente são comandadas por eles diretamente. No ministério da Justiça de Sergio Moro, por exemplo, o general Guilherme Teophilo é o responsável pela área de segurança pública. Na área do Meio Ambiente do ministro Ricardo Salles (NOVO), ao menos 20 superintendentes estaduais do Ibama serão substituídos por militares, segundo informou a coluna de Eliane Cantanhêde no Estado de S. Paulo. “Não se pode brincar com isso, os superintendentes é que concedem licenças e alvarás e eu não sou obrigado a conhecer gente confiável em todos os Estados, no Amapá, no Acre, em tantos lugares em que nunca fui”, disse Salles. A própria escolha do ministro teve de passar pelo crivo dos militares ligados a Bolsonaro.

Com a falta mão de obra no serviço público, mas também dinheiro para abrir novos concursos e remunerar novos servidores, o Governo também prepara uma mudança legislativa para que militares da reserva possam ser aproveitados em atividades civis de órgãos públicos. Assim, além de uma pensão de reservista, receberiam uma gratificação ou abono, segundo noticiou o Estado de S. Paulo. A medida, presente em uma minuta da Reforma da Previdência à qual o jornal teve acesso, inundaria o serviço público de militares reservistas, que hoje só podem exercer funções militares ou cargos de confiança. O Governo Bolsonaro ainda não apresentou um projeto de reforma da previdência dos militares, que representam uma importante fatia das despesas do país. A promessa é que um plano será enviado ao Congresso em um mês, durante as discussões das mudanças na aposentadoria dos civis.

Os tentáculos se estendem também à área de Educação. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto foi um dos responsáveis pelas diretrizes para as políticas do setor e chegou a dizer em uma entrevista que "os livros de história que não dizem a verdade [sobre o golpe militar] devem ser eliminados". Os militares não conseguiram emplacar um ministro militar para a pasta de Educação, mas o ministro Ricardo Vélez, ligado a Olavo de Carvalho, já prometeu a volta da disciplina de moral e cívica, predominante na época da ditadura militar. "No dia 31 de março haverá divulgação de filme defendendo o golpe. E o ministro vai fazer propostas nesse sentido com material didático", aposta Fico.

Além disso, Bolsonaro sempre explicitou que sua referência na área eram as escolas militares, tanto por sua reconhecida excelência como pela disciplina. "É uma perspectiva ingênua e equivocada achar que as escolas militares têm melhor desempenho por causa da presença de militares ou aquelas bobagens cívicas de ordem, cantar hino e hastear bandeira", explica Fico. "Esquecem de verificar que gastam muito mais, têm recursos, instalações, equipamento, material didático, professor com dedicação exclusiva, bons salário, diretores que não são indicação política.... E o Brasil obviamente não tem condições de financiar uma estrutura dessa em escala nacional".

Seja como for, o novo paradigma já começa a se disseminar. No Distrito Federal, o governador Ibaneis Rocha anunciou no mês passado um convênio entre as pastas de Educação e Segurança para transformar quatro escolas estaduais em militares. A ideia é expandir o modelo para outros 36 centros de ensino até o fim do ano e criar uma espécie de gestão de compartilhada, em que policiais militares e bombeiros da reserva ficariam responsáveis por levar mais disciplina e valores morais. "Precisamos levar disciplina para dentro da educação. Temos de retornar os valores cívicos para as nossas crianças", disse. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel anunciou duas novas escolas militares em equipamentos públicos hoje desocupados.

Turma do Haiti e segurança pública

O setor militar mais próximo de Bolsonaro é composto principalmente por militares que lideraram as tropas da ONU no Haiti. O principal deles é, uma vez mais, o general Heleno. Sob sua influência foi nomeado recentemente o general Floriano Peixoto Neto, que participou da missão de paz no país como oficial de operações e depois como comandante das forças militares. Também esteve no Haiti o general e ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que serviu como chefe de operações subordinado a Heleno. Já o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, foi engenheiro militar sênior da ONU no Haiti. E o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, liderou as tropas em 2007. Por fim, o atual comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, também foi comandante das Forças de Paz no país.

O historiador Fico destaca a experiência desses oficiais no Haiti como fonte de inspiração para lidar com o problema da segurança pública no Brasil. "Esses generais tiveram experiências que são muito caras ao presidente Bolsonaro. Representam essa visão de que os problemas da seguranca pública podem ser resolvidos por meio de ocupação de favelas e coisas assim", explica.


Nelson de Sá: EUA pressionam, Mourão e a Cruz Vermelha resistem

Segundo NPR, 'organizações de ajuda se recusam a colaborar' porque operação na Venezuela visa 'mudança de regime'

O New York Times de domingo entrevistou o almirante Craig Faller, chefe do Comando Sul dos EUA, em sua visita ao Brasil nesta semana. Segundo o jornal, ele “vem elaborando planos para missões na Venezuela”, uma das quais seria “turboalimentar a entrega de ajuda humanitária”.

Nas palavras de Faller, “há uma gama de opções sobre a mesa”. Ele diz que “há muitos generais na folha de pagamentos ilícitos de Maduro através de narcotráfico e lavagem de dinheiro”. Do Brasil ele foi para a ilha holandesa de Curaçao, próxima da capital venezuelana e outra base para a operação militar de “ajuda humanitária”.

Depois que Faller deixou o país, o vice-presidente Hamilton Mourão deu entrevista à Bloomberg, sob o título “Brasil agora anda com suavidade na Venezuela”.

“É difícil para o Brasil neste momento”, argumentou o general brasileiro, “especialmente devido a problemas orçamentários, desconsiderar a energia que vem” do país vizinho. Mourão “foi adido militar na Venezuela”, registrou a Bloomberg.

Por outro lado, a NPR, rede pública de rádio dos EUA, noticiou que o Comitê Internacional da Cruz Vemelha, a Care “e outras organizações de ajuda se recusam a colaborar com os EUA” na Venezuela, porque a operação foi “planejada para fomentar mudança de regime”.

Artigo na Foreign Policy, de membro da Foundation for Defense of Democracies, que faz lobby contra o Irã em Washington, retoma a pressão contra o suposto “paraíso para terroristas” na Tríplice Fronteira, de Brasil, Argentina e Paraguai. Este último, ameaça abertamente o texto, “precisa patrulhar melhor seu sistema financeiro —ou enfrentar as consequências”.

A retomada da pressão, quase uma década depois, coincide com o lançamento do filme “Triple Frontier” (trailer abaixo), cujo projeto também começou há uma década, programado pela Netflix para 13 de março.

DIDI AVANÇA
A agência Reuters noticia em “exclusiva” que a “gigante Didi”, concorrente chinesa do americano Uber, que já vinha atuando no Brasil como 99, está contratando para lançar seu serviço também no Chile, no Peru e na Colômbia.

HUAWEI REAGE
Na manchete do Financial Times, final de domingo, “Reino Unido diz que Huawei é risco administrável para 5G”. Logo abaixo, “É um golpe no esforço dos EUA de banir a empresa chinesa das redes de telecomunicação dos aliados”.

*Nelson de Sá é jornalista, foi editor da Ilustrada.


El País: Na TV, Bolsonaro diz que ministro mentiu e adverte o vice Mourão

Filho do presidente chamou ministro do núcleo duro do Planalto de "mentiroso" e foi retuitado pelo pai. Onyx defende colega, mas parlamentares se queixam de desgaste por causa dos indícios de sigla usou candidatas-laranja

Após 17 dias afastado do centro do poder político, o presidente Jair Bolsonaro(PSL) teve alta hospitalar e desembarcou nesta quarta-feira em Brasília com algumas bombas a desarmar. A principal delas é a crise provocada pelos indícios de que seu partido, o PSL, usou candidaturas-laranja na eleição e o mal-estar com o seu ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, que comandava a sigla durante a campanha. Bolsonaro endossou críticas públicas a Bebianno feita por um de seus filhos, o vereador Carlos Bolsonaro. A conta oficial do Twitter do mandatário replicou a mensagem de Carlos que acusava o ministro, até então um dos homens-fortes do Planalto, de mentir ao mencionar contatos com o presidente. Depois, o próprio Bolsonaro disse o mesmo em entrevista à TV Record.

"É mentira", disse o presidente na entrevista ao canal de TV, negando ter conversado com seu ministro a respeito da crise enquanto ainda convalescia de uma operação intestinal no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Bolsonaro não anunciou, no entanto, que Bebianno deixaria o cargo. O mandatário disse ter ordenado à Polícia Federal que investigue os casos suspeitos no PSL. "Se (Bebianno) tiver envolvido, logicamente, e responsabilizado, lamentavelmente o destino não pode outro a não ser voltar às suas origens", seguiu.

Advogado de formação, Bebianno se aproximou de Bolsonaro há apenas dois anos. Em 2018, a pedido do então pré-candidato a presidente, assumiu interinamente o comando do PSL no período eleitoral, quando ao menos três candidaturas aparentemente fictícias foram lançadas pela legenda. Uma delas, a de Maria de Lourdes Paixão (PSL-PE), abocanhou 400.000 reais do fundo partidário, que é composto de dinheiro público. Outra, de Érika Siqueira Santos (PSL-PE), recebeu 250.000 reais, autorizados pelo hoje ministro. Os casos foram revelados pelo jornal Folha de S. Paulo.

O incômodo político-familiar cresceu depois que o ministro afirmou à imprensa que tinha conversado com Bolsonaro sobre as candidaturas-laranjas na terça-feira, quando ele ainda estava internado. Em um aparente movimento para blindar o pai do desgaste do escândalo, Carlos, usou suas redes sociais para dizer que Bebianno mentiu. “É uma mentira absoluta de Gustavo Bebbiano (sic) que ontem teria falado 3 vezes com Jair Bolsonaro para tratar do assunto citado pelo Globo e retransmitido pelo Antagonista.” Em mais um ineditismo de um Governo que orbita nas redes sociais, o vereador ainda publicou no Twitter um áudio no qual o presidente diz que não iria conversar com Bebianno naquele dia. “Ô Gustavo,  complicado de conversar, ainda. Eu não vou falar, não vou falar com ninguém, a não ser estritamente o essencial. Estou em fase final de exames para possível baixa hoje. , ok? Boa sorte, aí”, diz a gravação.

Horas depois, o presidente replicou as mensagens de Carlos. Já em Brasília, seguiu para o Palácio da Alvorada e não teve agenda pública. Bebianno, por sua vez, também não participou de eventos públicos nem respondeu às perguntas da reportagem, por telefone e por e-mail, sobre o tema. Ao G1, Bebianno disse que não pretende pedir demissão e que aguardará a decisão do mandatário.

Carlos Bolsonaro

@CarlosBolsonaro

Ontem estive 24h do dia ao lado do meu pai e afirmo: “É uma mentira absoluta de Gustavo Bebbiano que ontem teria falado 3 vezes com Jair Bolsonaro para tratar do assunto citado pelo Globo e retransmitido pelo Antagonista.”

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Carlos Bolsonaro

@CarlosBolsonaro

Não há roupa suja a ser lavada! Apenas a verdade: Bolsonaro não tratou com Bebiano o assunto exposto pelo O Globo como disse que tratou: pic.twitter.com/pJ4bkvMMGj

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Desgaste na base

Mesmo antes da entrevista da TV Record ir ao ar, entre assessores da presidência e alguns aliados do Governo a demissão de Bebianno era dada como quase certa. No plenário da Câmara, o deputado federal Alexandre Frota (PSL-SP) queixou-se das críticas que a legenda vem recebendo. “A maioria dos partidos de esquerda que subiram aqui [na tribuna da Câmara] falou que o PSL é um partido de laranjas. O PSL não é um partido de laranjas”. Disse ainda que ninguém será protegido pelo Governo, caso cometa alguma irregularidade. “Qualquer secretário, deputado, ministro envolvido em qualquer coisa, essa laranja podre vai cair.”

Outra parlamentar que atua na linha de frente de Bolsonaro, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), reclamou das postagens de Carlos. “Não pode se misturar as coisas. Filho de presidente é filho de presidente. Temos que tomar cuidado para não fazer puxadinho da Presidência da República dentro de casa para expor um membro do alto escalão do governo dessa forma”, criticou.

O chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), amenizou a crise e defendeu seu colega na Esplanada dos Ministérios. “Ajustes nas relações são normais. Temos 40 dias de Governo. O presidente ficou quase 20 hospitalizado. Temos de ter calma. O ministro Gustavo Bebianno é uma pessoa superdedicada ao projeto, é um homem sério, responsável, correto”.

De oposição a Bolsonaro no Congresso, o PSOL apresentou um requerimentopedindo a convocação dele para prestar esclarecimentos na Câmara e uma representação criminal na Procuradoria-Geral da República.

Outras bombas a desarmar e advertência a Mourão

Em menos de dois meses de um Governo eleito com a bandeira anticorrupção, é o segundo caso em que o presidente é cobrado a se explicar. O outro, também em investigação, trata de movimentações suspeitas de um ex-assessor de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro. Se não bastasse isso e agora a crise em seu partido, Bolsonaro terá ainda nos próximos dias de resolver problemas pontuais –e não tanto– nas mais diversas áreas. Na econômica, terá de dar encaminhamento à sua reforma da Previdência, escolhendo qual proposta será enviada ao Congresso até o dia 20. Na entrevista à TV Record, o presidente prometeu "bater o martelo" sobre a questão na tarde desta quinta-feira. Em outra frente, terá também de conter uma queda de braço entre os ministros Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura), que não se entenderam sobre a taxação de leite que é importado pelo Brasil. A taxa caiu. Depois da reclamação da bancada ruralista, voltou.

Todos esses ruídos já acendem os primeiros alertas nos investidores do mercado financeiro, que esperam ansiosos por sinais de estabilidade que possam reforçar as chances de o Governo aprovar no Legislativo reformas econômicas liberais, especialmente a mudança nas aposentadorias. A questão é que, na relação com o Congresso, o presidente também terá de deter os primeiros danos: as críticas feitas ao seu inexperiente líder na Câmara dos Deputados, o major Vitor Hugo (PSL-GO), um parlamentar em primeiro mandato. Com Bolsonaro hospitalizado, Hugo tentou reunir os líderes do partido aliado e não conseguiu. Tem sido vítima até de fogo amigo do PSL. Deputados entendem que era necessário ter alguém mais experiente no trato com os colegas. Por ora, o presidente deverá mantê-lo na função.

Já no Senado, o presidente também está em busca do líder de seu Governo. A ideia é que seja algum político fora do PSL. O nome ventilado até agora é o de Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Dois fatores pesam contra ele, no entanto, ser do MDB e aliado de Renan Calheiros (MDB-AL), o cacique que foi derrotado por Davi Alcolumbre (DEM-AP) na disputa pela presidência do Senado. Ainda falta definir também o líder do Governo no Congresso. Segundo o ministro Onyx, os nomes serão levados a Bolsonaro neste fim de semana e devem ser anunciados em breve.

Na entrevista à TV Record, o presidente acrescentou ainda um item na agenda de arestas: afinar os ponteiros com o vice-presidente, Hamilton Mourão. Questionado sobre a atuação do vice durante sua convalescência, Bolsonaro afirmou que o vice dá "escorregadas" ao falar com a imprensa, mas frisou que há harmonia entre os dois. "Circulou pela mídia que os generais do governo queriam que eu me afastasse para o Mourão assumir. Isso não houve, estamos muito bem no Governo".


Oliver Stuenkel: Mourão entra em campo contra os antiglobalistas

Vice-presidente, chamado informalmente de "o adulto na sala" por diplomatas estrangeiros, é visto como âncora de estabilidade de um Governo cuja atuação externa é volátil e confusa

Fica cada vez mais evidente que a estratégia da política externa brasileira, articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o presidente Bolsonaro e seu filho Eduardo, está deixando inseguros investidores internacionais e outros governos. Araújo é visto como ideológico demais (algo que os investidores sempre temem, não importa se a ideologia é de esquerda ou de direita). Já Eduardo, que atua como um ministro das Relações Exteriores informal, passa a imagem de ignorante e muito radical para inspirar confiança no exterior, mesmo por parte de funcionários do governo dos EUA, que veem com bons olhos o Governo Bolsonaro. O péssimo discurso de Bolsonaro em Davos pareceu resumir a atuação da turma antiglobalista até agora, desapontando investidores que tinham aguardado uma fala mais séria – e que, de certa maneira, estavam torcendo para o novo presidente.

"Ainda bem que eles têm Mourão" é um comentário que se ouve com cada vez mais frequência no exterior. De fato, o general da reserva e vice-presidente é agora visto pela comunidade internacional como a âncora de um navio que, sem ele, estaria à deriva no que diz respeito à estratégia internacional.

Mourão difere do resto da equipe de política externa de Bolsonaro em estilo e substância. Enquanto os outros atores do governo são conhecidos por sua retórica estridente e agressiva, Mourão é moderado e calmo. Em uma entrevista recente, o vice-presidente não se esquivou de responder perguntas difíceis – ao contrário de seu chefe, que frequentemente ataca jornalistas quando estes discordam dele. Mourão chamou a atenção no exterior quando, em entrevista a uma repórter espanhola e a um brasileiro, respondeu as perguntas em espanhol fluente, o qual aprendeu como adido militar em Caracas.

Quando se trata de conteúdo, Mourão resiste sabiamente às ideias mais radicais e mal concebidas dos antiglobalistas, como transferir a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, deixar o Acordo de Paris sobre mudança climática, abrigar uma base militar dos EUA e, a mais perigosa de todas, adotar tom agressivo em relação à China. Não é coincidência que um número crescente de embaixadores esteja procurando Mourão, o qual – eles esperam – continuará a impedir Bolsonaro de cometer graves erros políticos no âmbito externo. Nenhum vice-presidente na história recente foi tão necessário para a estabilidade da política externa do Brasil, já nas primeiras semanas de Governo, quanto Hamilton Mourão.

Ainda assim, previsivelmente, o papel estabilizador do vice-presidente na política externa do Brasil lhe rendeu a ira dos radicais (inclusive Olavo de Carvalho e Steve Bannon, dos EUA). A questão-chave é: até que ponto Mourão será capaz de vetar todas as ideias esdrúxulas que certamente ainda virão da ala antiglobalista do governo?

A verdade é que, idealmente, Mourão não deve ser apenas bombeiro-chefe e jogar na defesa para proteger a política externa brasileira de erros graves. Também tem potencial para adotar um papel mais ativo e propor novas iniciativas no âmbito externo. Três em particular vêm à mente.

Primeiro, Mourão seria o homem certo para liderar a posição do Brasil em relação à Venezuela, maior desafio em curto e médio prazos na política externa hoje. De longe a pessoa mais bem informada no gabinete sobre o assunto, Mourão também tem a vantagem de ser um militar, capaz, portanto, de lidar com a instituição que determinará o futuro do país vizinho: as Forças Armadas. Isso envolveria a articulação da resposta complexa à crise migratória venezuelana em todo o continente. Mourão poderia, ainda, convocar uma cúpula regional para discutir o assunto e decidir como coordenar conjuntamente o registro, a distribuição e a integração dos migrantes venezuelanos. Juntamente com outros países da região, ele também poderia organizar a criação de um fundo para compensar os países mais afetados pela crise migratória, como Colômbia, Equador e Peru. Além disso, coordenaria, com a Colômbia e outros, o envio de ajuda médica e humanitária à Venezuela, assim que o Governo Maduro – ou qualquer governo sucessor – o permitir.

Em segundo lugar, como projeto de médio prazo, Mourão poderia liderar um processo de aprofundamento da cooperação entre as Forças Armadas na América do Sul, dando continuidade a um movimento deflagrado por Nelson Jobim, ministro da Defesa de Lula. Isso poderia funcionar por meio de uma instituição existente, como o Conselho de Defesa Sul-Americano, e deveria envolver, entre outras iniciativas, exercícios militares conjuntos, missões para lidar com desastres naturais e participação em missões de paz da ONU. Isso até poderia ajudar a aumentar a pressão sobre suas contrapartes nas Forças Armadas da Venezuela – que perderão muito com uma transição para a democracia, dados os privilégios que acumularam sob Maduro – para permanecerem em seus quartéis independentemente de quem seja o futuro líder. A plataforma revigorada poderia, em futuras crises desse tipo, oferecer aos países vizinhos um canal adicional para o diálogo e a coordenação.

Finalmente, Mourão poderia se tornar responsável pela estratégia do Brasil em relação a Pequim, um tema de extrema relevância para o futuro do Brasil em curto, médio e longo prazos. Isso poderia incluir assumir o portfólio do grupo BRICS, que nem o presidente nem o ministro das Relações Exteriores consideram de grande relevância. Enquanto o presidente Bolsonaro, seu filho e o ministro das Relações Exteriores expressaram, até agora, ideias simplistas e preocupantes sobre a China, Mourão seria capaz de encontrar um meio-termo entre o receio legítimo sobre o que a ascensão chinesa implica e o otimismo quanto às muitas oportunidades na crescente presença do país na América Latina.

A queda de braço entre Hamilton Mourão e os antiglobalistas deverá marcar a estratégia internacional do governo Bolsonaro. Resta saber se Mourão sairá vitorioso e conseguirá salvar a política externa brasileira dos próximos anos.

*Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo, onde coordena a Escola de Ciências Sociais em São Paulo e o MBA em Relações Internacionais. Também é non-resident fellow no Global Public Policy Institute (GPPi) em Berlim e membro do Carnegie Rising Democracies Network.


Bruno Boghossian: Aceno à CUT é sintoma de distanciamento entre Mourão e Bolsonaro

Em semana de ruptura, filhos do presidente se alinham a crítico do vice

Na sexta-feira, o porta-voz do Planalto fez questão de relatar à imprensa que Jair Bolsonaro havia conversado por telefone com Hamilton Mourão. O governo preferiu ser vago. Informou apenas que os dois discutiram “alguns assuntos” e trocaram impressões sobre uma nebulosa “integração de ações governamentais e de planejamentos futuros”.

Não se sabe se a ligação durou mais do que os 40 segundos gastos pelo assessor para dar a notícia. Ninguém contou, também, se a dupla teve tempo de trocar algumas palavras sobre o inesperado encontro de Mourão com dirigentes da CUT.

Ao abrir o Planalto para um grupo historicamente alinhado ao PT, o vice reforçou a sensatez com que exerce o cargo, mas também cometeu um ato quase transgressor para demarcar mais uma diferença em relação a Bolsonaro. A distância política entre os dois é cada vez maior.

O presidente nunca escondeu seu desapreço pelas centrais trabalhistas. Em novembro, após vencer a eleição, ele ironizou essas corporações: “A vida de sindicalista é muito boa. É ficar lá, só engordando”. Meses antes, o filho Eduardo fizera um discurso na Câmara em que chamava integrantes da CUT de “vagabundos”.

Mourão, ao contrário, disse aos sindicalistas que gostaria de liderar a interlocução do governo com movimentos sociais, segundo o relato de um dos participantes do encontro.

A última semana delineou uma ruptura entre o núcleo bolsonarista e o vice. Depois que a revista Época noticiou que Mourão havia debochado dos livros de Olavo de Carvalho, o ideólogo chamou o general de “charlatão desprezível”. No dia seguinte, os filhos Carlos e Eduardo mostraram de que lado estão: apoiaram Olavo e disseram que ele foi responsável pela vitória de Bolsonaro.

Quando João Figueiredo se internou nos EUA para uma cirurgia em 1981, ele recebeu 72 ligações durante 16 dias. Nenhuma delas partiu do vice Aureliano Chaves, com quem o presidente mantinha uma relação de desconfiança. Bolsonaro e Mourão ao menos ainda se falam ao telefone.


Roberto Romano: O segredo contra a democracia

Se resta ao governo alguma prudência, o Decreto 9.690/2019 deve ser abolido

Um grave passo para atenuar a democracia foi dado com o Decreto 9.690/ 2019 sobre a Lei da Transparência. Segredos devem reger assuntos estratégicos da ordem militar ou diplomática, pois sem eles são iminentes os prejuízos aos interesses nacionais. Mas, no decreto, decisões para ocultar documentos ficam a cargo de pessoas desprovidas de autoridade plena, como é o caso da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Logo, as liberdades, sobretudo a de imprensa, recebem ameaça. E sem livre informação não existe democracia.

No Brasil, setores autoritários ou corruptos tudo já fizeram para tornar inviável qualquer accountability. Eles ocultam da opinião pública e do jornalismo crimes ou privilégios. Os moradores do escuro agora recebem incentivo oficial. Se resta ao governo alguma prudência, o mencionado decreto deve ser abolido.

A democracia abole o segredo. No absolutismo o soberano não devia satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. James I afirma que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem certa semelhança do Divino poder sobre a terra. Deus tem o poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable)”. Os Levellers impõem a responsabilização dos governantes: o rei deve prestar contas ao povo, sem sigilos (Milton, The Tenure of Kings and Magistrates).

No entanto, após séculos, na guerra fria aumenta o segredo. H. Arendt afirma que a vida totalitária reúne “sociedades secretas estabelecidas publicamente” (O Sistema Totalitário). Hitler assume as sociedades secretas como bons modelos para a sua própria. Ele ordena em 1939 que “ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação, ninguém deve saber mais do que o necessário, ninguém deve saber algo antes do necessário”. Tais normas orientaram a secreta matança de inocentes incluídos na Lebensunwertes Leben (E. Voegelin, Hitler e os Alemães).

Segundo N. Bobbio, “o governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente às urnas e em que bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina” (Il potere in maschera).

Woodrow Wilson defende a fé pública e a responsabilidade e atenua o sigilo do Estado. Mas depois o segredo permitiu o Irã-contras, a ajuda aos talebans, cuja ascensão foi entendida como vitória sobre a quase defunta URSS. Em 1994 surge a Public Law (número 103-236) do governo estadunidense, criando uma comissão para reduzir o segredo governamental. À sua frente estava Daniel Patrick Moynihan, colaborador de vários presidentes. Em relatório a comissão adverte: “It is time for a new way of thinking about secrecy”. Mas depois entramos no paradoxo: o público é definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos (Dean, J. W.: Worse than Watergate, The New York Times, 2/5/2004.).

Perguntava o cauteloso Adam Smith: “Quando o segredo e a reserva seguem para a dissimulação?”. A balança entre abertura e ocultamento é indicada por Georg Simmel: “A intenção de esconder assume intensidade tanto maior quando se choca com a intenção de revelar. O segredo traz um segundo planeta ao lado do planeta manifesto; e o último é influenciado decisivamente pelo primeiro”. Segundo Bentham, o segredo “é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal” (Of Publicity). A democracia usa a publicidade e segue a premissa “de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir em decisões sobre elas mesmas” (Simmel, The Sociology of Secrecy).

Um problema do segredo é sua fácil descoberta. O mesmo autor adverte: “A preservação do segredo é instável, as tentações de trair são múltiplas; a estrada que vai da discrição à indiscrição é em tantos casos tão contínua que a fé incondicional na discrição envolve uma incomparável preponderância do fator subjetivo (...) o segredo é cercado pela possibilidade e tentação de trair”. O segredo é vulnerável, pois representa “um arranjo provisório para forças ascendentes e descendentes”. Tão velha quanto a indústria do segredo é a da espionagem. Os vazamentos seletivos trazem outro perigo. Interesses concorrentes podem quebrar qualquer sigilo. A imprensa atenua os segredos de Estado, da vida privada ou religiosa. Tais setores nela buscam uma aliada se querem propagar seus intentos como se fossem “interesse geral”. Todos a cortejam para obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrentes. Mas a criticam quando não atingem aqueles fins, ela se torna então uma inimiga.

A história da imprensa evidencia perene ruptura do segredo. Desde o Renascimento os jornais traziam notícias políticas, ofereciam informes sobre projetos de governos (economia, comércio, militares), estatísticas, orçamentos sobre a potência militar, taxas de nascimentos e mortes, importação e exportação. Tratava-se de apaziguar, como diz um historiador da imprensa, a fome generalizada de informação. Mas existia mais, nesse campo estatístico. “Ele era um ato deliberado, político, com ele se pretendia desvelar o segredo com o qual os governos absolutistas se envolviam, para gerar as bases de um debate público.”

O decreto que hoje no Brasil fragiliza a liberdade de imprensa e aumenta o segredo pode nos fazer retroagir ao regime absolutista, não por acaso considerado pelos historiadores um dos mais corrompidos da humanidade.

* Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros Estados da Razão' (Perspectiva)


El País: “Eu e Bolsonaro nos complementamos”, diz Mourão

Ao EL PAÍS, vice-presidente diz que militares estarão na reforma da Previdência e que crê que o termo "ditadura" será revisto pelos historiadores. Para ele, Governo não propõe " aliança cega com EUA"

Por Afonso Benites e Naiara Gallaraga Gortázar, do El País

O vice-presidente Hamilton Mourão (Bagé, 1953), general da reserva do Exército, recebe cordialmente em um amplo gabinete em um dos anexos do Palácio do Planalto. É direto. Não faz rodeios. Pouco altera o tom de voz. Faz piadas sobre um antigo comandante, que diz ter “fumado maconha” quando avaliou que Mourão assumiria a Presidência por um longo período antes de 2022. E quase não foge de perguntas, mesmo quando tratam de assuntos que os militares pouco gostam, como a ditadura brasileira ou torturas ocorridas naquele período. O único assunto que não quis comentar detidamente foram as críticas feitas pelo guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho. “(Ele) está nos Estados Unidos, que aproveite o inverno", diz, depois de afirmar que nem vê essas queixas.

Na entrevista que concedeu ao EL PAÍS nesta quinta-feira, o vice-presidente disse que ele e o presidente Jair Bolsonaro(PSL) se complementam – ainda que reajam de maneiras bem distintas quando sob pressão da imprensa. Afirmou que os militares estarão na reforma da Previdência, mas não na mesma proposta de emenda constitucional elaborada para os civis, e que as Forças Armadas da Venezuela acabarão por abandonar Nicolás Maduro. Diante de uma repórter espanhola e de um brasileiro, ele preferiu responder aos questionamentos em um castelhano fluente, fruto de sua passagem como adido militar pela embaixada do Brasil em Caracas, entre os anos de 2002 e 2004.

Pergunta. Este Governo tem um mês e o senhor já assumiu a presidência duas vezes, por causa da viagem a Davos de Bolsonaro e a operação do presidente. Isso é muito incomum. O senhor se sentiu confortável nessa posição?
Resposta. Sim, tranquilo porque o presidente Bolsonaro e eu somos parceiros há muito tempo. Nos formamos na academia militar do Brasil com dois anos de diferença. Eu em 75, ele em 77. Há uma visão muito comum de muitas coisas. Uma das razões pelas quais ele me escolheu para ser seu vice-presidente foi porque eu sabia que ele teria paz de espírito todas as vezes que deixasse o Brasil, porque ele teria aqui uma pessoa de sua mais íntima confiança.

P. O senhor disse que não seria um vice-presidente decorativo. Qual é a sua função?
R. O papel do vice-presidente é muito peculiar no Brasil, é um baluarte da democracia. Por que digo que é o baluarte da democracia? Porque se toda vez que o presidente tiver que deixar o país, se não houvesse vice-presidente, o presidente da Câmara dos Deputados estaria em seu lugar. E isso muda a cada dois anos. O vice-presidente garante a continuidade do pensamento do Governo. Eu acho que isso é importante. A outra coisa é que estou aqui para aconselhar o presidente em todas as questões que ele considera necessárias, e para ser um companheiro, um amigo, que ele pode dividir suas ansiedades e aflições.

P. E ele o tem procurado frequentemente?
R. Sim. Ele me procura quando necessário.

P. O senhor foi adido militar na Venezuela. Certamente conhece bem esse estabelecimento militar. Agora eles apoiam o presidente Nicolás Maduro, mas acha que eles continuarão a apoiá-lo? E por quanto tempo?
R. O que acontece é que os militares venezuelanos se envolveram tanto com o bolivarianismo que hoje é um pouco difícil ficar longe disso. Mas acho que, por pior que seja a situação, em algum momento terão o que todos nós, militares, temos, que é [o compromisso de] o nosso país estar acima das paixões. Isso vai emergir e então eu acho que eles vão abandonar o senhor Maduro.

P. Acha que deveria haver uma mudança de regime? E como você acha que deveria ser feita?
R. O que acontece é que a Venezuela precisa recomeçar. O processo que aconteceu lá destruiu a economia, dividiu a população do país, um país que tem um enorme potencial por causa de suas riquezas naturais e sua posição geográfica e uma população que não é muito grande. Então tem todas as capacidades e esse processo acabou por derrubar a economia venezuelana. E quando a economia vai mal, o país vai mal. E é óbvio que a forma como as coisas foram conduzidas, a maneira como os instrumentos da democracia foram usados, em que um grupo toma o poder por tanto tempo, não é bom.  Eu acredito firmemente que uma das condições básicas para um país avançar e para uma democracia ser forte é fazer uma alternância no poder. E estão no poder desde 1999, são 20 anos do mesmo grupo no poder. Isso não é bom.

P. Essa mudança tem que ocorrer via eleições?
R. Sim, essa mudança ocorrerá através do processo eleitoral. O movimento que eu acho que precisa para que a coisa seja resolvida na Venezuela é que Maduro e seu grupo deixem o país.

P. Em quanto tempo?
R. Eu não sei, você não pode colocar tempo para isso, mas eu acho que tem que sair. Eles deixam o país e esse rapaz que agora é presidente da Assembleia Nacional (Juan Guaidó) convoca novas eleições em três meses, seis meses, em um momento em que as coisas são consertadas e depois a Venezuela recomeça porque a economia precisa ser reconstruída no país. As pessoas têm que aprender a se relacionar umas com as outras, parar de ter ódio umas pelas outras, que o país seja unido novamente.

P. Com relação à Venezuela, a mudança na política externa do Brasil é notável. Também em relação aos Estados Unidos. O que o Governo de Bolsonaro espera conseguir com essa mudança radical, da nova aliança que está sendo forjada com os EUA e Israel?
R. Eu não acho que haja uma aliança, acho que o que acontece é que o nosso Governo tem uma ideia muito próxima e muito clara dos valores que caracterizam a democracia americana, então há uma identidade com esses valores. Este é o ponto principal porque os últimos Governos não foram muito claros sobre isso. Eu não vejo hoje como uma aliança cega do Brasil com os EUA, eu vejo isso como uma aproximação para os valores que eu acredito serem importantes para a América como um todo. A América surgiu com as ideias da Revolução Francesa, com as ideias do Iluminismo. A América era uma terra de liberdade, a América como um todo.

P. Direito a voto, liberdades, separação de Poderes.
R. Sim, isso mesmo.

P. Falando disso. Em setembro de 2018, o senhor declarou, segundo a Folha de S. Paulo, de que o Brasil precisava de uma nova Constituição, que não precisa ser redigida pelos eleitos pelo povo, que preferia que fosse redigida por um conselho de notáveis. Ainda mantém essa opinião?
R. Sim, minha opinião pessoal é que nossa Constituição é muito grande. Sou defensor de uma Constituição menor que é apenas sobre os valores da democracia e do Brasil como país. Mas a forma como é redigida, pode ser pelo próprio Congresso, por uma Assembleia Constituinte eleita para isso ou, como me arrisquei na época, por um grupo de pessoas que tem muito conhecimento para escrevê-la e submetê-la a uma votação do Congresso ou da população.

P. E que seja votada?
R. Sim, que seja votada.

P. Mas que seja votara a posteriori, que os deputados não participem de sua redação.
R. O que aconteceu com nossa Constituição que temos hoje? Foi feita pelos deputados, que foram eleitos para representar o povo e, ao mesmo tempo, para serem constituintes. Eles tinham dois papéis nisso. E o que aconteceu? Os diferentes grupos de pressão colocam suas pequenas coisas na nossa Constituição, então temos essa Constituição por tanto tempo. Você imagina, em 30 anos você tem cem emendas. A Constituição americana tem mais de 200 anos e possui 27 emendas. Então, algo não está certo nisso.

P. As Forças Armadas estão comprometidas com a democracia no Brasil?
R. Não há dúvidas sobre isso. Se existe uma instituição que é democrática no Brasil são as Forças Armadas devido às suas próprias características. São as Forças Armadas que não constituem um grupo especial, as pessoas que estão nelas vêm de todos os pontos de todas as classes sociais. Eu acho até que a maioria delas vem da classe média baixa, são pessoas que conhecem muito bem o país e com ideais muito firmes de que a democracia é a melhor coisa para o país.

P. Alguns observadores nacionais e internacionais o consideram uma pessoa mais moderada do que o presidente. O que acha? É mais moderado?
R. Eu não acho que seja uma questão de moderação. Acho que o presidente e eu tivemos trajetórias diferentes em nossas vidas. O presidente é um político há 30 anos. Eu fui um soldado a vida toda. Então, com isso, temos visões um pouco diferentes sobre a maneira como nos conduzimos, mas há uma identidade de pensamento entre os dois. E obviamente há uma maneira de se expressar.

P. É natural?
R. Acho que sim, que é natural.

P. A maneira de tratar a imprensa…
R. É a minha maneira natural de tratar. O presidente tem a sua. Eu acredito que nós nos complementamos.

P. O senhor entrou no Exército durante a ditadura militar. Como classifica esse período de 1964 a 1985?
R. Sou um crítico de chamar de ditadura esse período. Sou um crítico muito forte porque, chamar de ditadura um período que, a cada quatro anos, mudava o presidente é uma ditadura muito diferente. Eu costumo dizer que foi um período autoritário, de um Governo que tinha instrumento de exceção, que foi o ato institucional número cinco. Se vocês olharem, esse foi um instrumento que vigorou de 1968 a 1979. Nos últimos seis anos do período, no Governo do presidente [João] Figueiredo não havia nenhum instrumento de exceção em suas mãos. Não pode, de nenhuma maneira, ser qualificado como um período ditatorial. E, no período inicial, do presidente Castelo Branco até a morte do presidente Costa e Silva, não havia esse instrumento. Isso a história, no futuro, vai estudar de uma maneira melhor. Naquele período houve um grande progresso econômico no país. O Brasil foi levado adiante. Éramos uma economia rural, uma indústria precária e, em dez anos, avançamos para um país industrializado. Ao mesmo tempo, houve um enfrentamento fruto da Guerra Fria, que havia naquele período. Os grupos marxistas e leninistas que existiam no Brasil diziam que estavam enfrentando a ditadura, mas na verdade estavam lutando para impor outra ditadura, a ditadura do sistema comunista. Foi uma guerra muito pequena para um país de 90 milhões de habitantes [na época]. Dos dois lados, somando, morreram pouco mais de 400 pessoas. Hoje, matam 60.000 no Brasil por ano e ninguém fala sobre isso.

P. Mas as pessoas não podiam votar. Não era uma ditadura?
R. As pessoas não votavam para presidente, mas elegiam seus representantes para o Congresso. Nas eleições do ano de 74 a oposição, o MDB, venceu as eleições. Que ditadura é essa? Depois, no período do presidente Figueiredo, quando se voltou a eleger os governadores dos Estados, a maioria dos Estados caiu nas mãos da oposição.

P. Pode-se, ao mesmo tempo, admirar a democracia dos Estados Unidos e dizer que esse período do Brasil foi bom?
R. O período teve seus erros, como tudo na vida. Mas era um momento diferente, uma geração diferente. Há que se perguntar isso desde os primórdios da República no Brasil. A minha visão, como uma pessoa que estudou um pouco a história é que, 1964 foi o ponto final das intervenções militares no Brasil. Foi a intervenção última. A transição do período de 64 para o atual período foi a única pacífica, ou sem golpe, de nossa história republicana. A República se inicia no ano de 1889, em 1930 há uma revolução, em 1945 Getúlio [Vargas] cai por outro golpe, depois há a mudança pela tomada de poder pelos militares, mas em 1985 os militares entregam o poder de forma pacífica e ordeira aos civis. Então, foi um regime que se auto-extinguiu.

P. E quais foram esses erros?
R. Creio que foi uma estatização excessiva no período do presidente [Ernesto] Geisel, quando se criou uma quantidade de empresas estatais muito grande. Deixamos de ter um sistema econômico mais liberal, como vinha do período do presidente Castelo Branco, para um momento de intervenção do Estado na economia que depois nos mostrou que não era a melhor forma de conduzir o país.

P. E a tortura?
R. A tortura é uma questão de guerra. Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade. Há muita gente que diz que foi torturada e não foi. E outros que foram e não falam nada.

P. Não nega que tenha havido.
R. Que houve, sim. Mas era guerra. Guerra é guerra. E houve dos dois lados. Ninguém fala do tenente da Polícia Militar assassinado por chutes em sua cabeça por [Carlos] Lamarca e seu grupo. Ninguém fala disso. Há que colocar os dois lados de sua história.

P. No conselho de ministros sentam-se vários militares e ex-militares [são sete]. Qual é o papel dos militares em um Governo civil?
R. Eles estão como civis. São ministros e atuam como civis. Óbvio que trazem sua bagagem, todo o seu conhecimento que tiveram no decorrer da vida das Forças Armadas. Mas há uma visão um tanto distorcida. O General [Augusto] Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional ocupa um cargo que é de militar, sempre foi. Quem são os diferentes? O general Santos Cruz, na secretaria de Governo, o almirante Bento [Albuquerque], no ministério de Minas e Energia, o senhor Tarcísio [Freitas, da Infraestrutura] foi militar, saiu do Exército há muito tempo. O Wagner [Rosário, da Controladoria Geral da União] também. Ele saiu como capitão. Então não são aquelas pessoas que tiveram toda a sua vida dedicada às Forças Armadas. Eu os considero distintos. Já eram civis e estavam nessa situação há algum tempo.

P. Acredita que os militares devam estar na reforma da Previdência?
R. Sim. E eles estarão.

P. Mas já nesse primeiro momento?
R. Está havendo uma confusão porque não há um sistema de previdência dos militares nos moldes do sistema bismarckianos, como conhecemos. São regimes distintos. O que acontece é que as mudanças para os militares podem ser feitas por meio de um projeto de lei, normal. É diferente da emenda constitucional que precisa ser feita para o regime geral. A visão do grupo militar é essa: uma vez que alguma coisa tem mais dificuldade, como uma emenda constitucional, ela tem de avançar. Quando ela for aprovada em primeiro turno, entra o projeto de lei dos militares, para que cheguem os dois juntos ao final.

P. Porque na prática esse projeto de lei é mais simples de se aprovar.
R. Sim, mais simples. Então, a preocupação dos militares é que se aprove o projeto de lei dos militares e a emenda constitucional, não é. Aí, só eles ficam nessa situação. Essa é a visão que eles têm e eu concordo com eles.

P. E haverá uma idade mínima para os militares?
R. Não. Para os militares não é o caso. Haverá o aumento do tempo de permanência no serviço ativo.

P. Pergunto porque, para nós, civis, soa estranho ver uma pessoa com 47, 48 anos se aposentando.
R. São situações distintas porque a carreira militar também impõe alguns tipos de dificuldades para a vida da pessoa, tem uma carga de trabalho que cada um tem de cumprir. Mas também não sou defensor que uma pessoa se aposente aos 47, 48 anos porque hoje um homem ou uma mulher com essa idade, ainda tem muito para fazer. Inclusive na parte física. Eu creio que, em um primeiro momento, vai avançar até os 35 anos de idade de serviço ativo e, talvez, em um futuro próximo, até mais. Quanto mais vivamos.

P. O que falhou para que, em três anos, acontecessem duas catástrofes similares como a de Brumadinho e a de Mariana? No caso de Brumadinho com um dano humano muitíssimo maior porque, agora há 110 mortos.
R. Vai ter mais de 300. O que acontece é que nós somos muito bons em legislação, mas péssimos em fiscalização. Há que fiscalizar, é isso. Não há muito o que argumentar. A lei existe, então, há que impor a lei. Na reunião do Conselho de Ministros, na terça-feira passada, eu citei uma frase do general [George] Marshall, que foi o chefe do Estado Maior do Exército americano na Segunda Guerra Mundial. Ele dizia que para cada dólar de soldo de um militar profissional, dez centavos correspondem às ordens dadas. E noventa centavos, à fiscalização. No Brasil é isso. Tem de fiscalizar.

P. Como vê as críticas de Olavo de Carvalho aos militares que atuam no Governo Bolsonaro?
R. Não as vejo (risos).

P. Mas ele é tido como o guru do presidente Bolsonaro.
R. Nãaaao. Olavo de Carvalho não é... Deixa ele. Onde ele está? Na Pensilvânia que ele vive?

P. Não sei ao certo, sei que é nos Estados Unidos.
R. Está nos Estados Unidos, que aproveite o inverno.

P. O programa de governo não inclui propostas para a minorias, como as mulheres, os negros, os indígenas, a comunidade LGBT. Acredita que esses grupos não precisam de políticas específicas?
R. Acredito que é preciso ter políticas específicas para tirar as pessoas da pobreza. Existem pobres brancos, pobres negros, pobres indígenas. Então, se você tem políticas para tirar as pessoas da pobreza, que lhe dê empregos, que lhes dê educação, acesso à saúde e melhores condições de vida.  Que tenham uma habitação segura, com água, com tudo o que é necessário, independentemente da cor da pessoa. Há muito essa questão dos negros, há brancos e negros nesta situação. Se você vai em qualquer favela de nossas grandes cidades vai ver pessoas de todos os tipos. Óbvio que nas regiões de Sudeste e Nordeste há mais pessoas negras. Mas os pobres da região Sul são brancos. Há que tirar as pessoas da pobreza.

P. Uma vez que elas saiam da pobreza, entende que a igualdade está garantida?
R. Na minha visão de igualdade você tem de colocar todos juntos na linha de partida. E para colocá-los juntos você dá educação, saúde e segurança. A partir daí, você sabe que todas as pessoas são distintas. Umas vão correr a maratona toda e outras vão ficar pelo caminho porque essa é a natureza humana. O grande papel do Governo é que todas as pessoas comecem da mesma maneira. E não umas que conseguirão começar porque outras ficaram para trás porque não têm acesso a nada.

P. O ponto de partida em diversos países há quase cinquenta anos é quase igual ao dos homens. Todas recebemos a mesma educação que nossos irmãos, ou nossos namorados e maridos, mas não chegamos ao mesmo ponto. Somos mais da metade da população e estamos pouco representadas neste Governo, por exemplo. Isso porque não corremos bem a maratona ou porque o sistema não ajuda?
R. As mulheres são diferentes em todos os países. Aqui se fala muito disso, da representação política das mulheres. Olhe o Parlamento. Há uma legislação que obriga o partido político a ter três mulheres candidatas para cada dez homens. É difícil. Onde estão as mulheres que querem participar da política? Há muitas que não desejam. É complicado isso. As mulheres brasileiras têm outros interesses. Há grupos em que você vai encontrar pessoas que estão olhando para a política, mas a grande maioria não está. Esse é um avanço que o país terá de viver. Acredito que hoje a força da mulher no Brasil é muito ampla. Porque um grande número de mulheres administra suas casas sozinhas, por si próprias, um grande número de mulheres ocupa posições importantes em empresas privadas, em empresas públicas. Então, acredito que é um processo. E eu tenho toda a tranquilidade para falar isso porque minha mãe era uma mulher nascida nos anos 1920 e era uma pessoa que trabalhava, foi diretora de escola. Ela era uma pessoa à frente do seu tempo. Aprendi isso em minha casa.

P. Por que recebe tantos diplomatas? Em um mês foram quase dez.
R. Acho que eu os encanto (risos). Acredito que eles vêm aqui para fazer visitas de cortesia, para apresentar suas ideias de intercâmbios que podemos ter e manter o que há. São coisas de cortesia.

P. Seu amigo e ex-comandante, o general Paulo Assis, que foi o responsável por sua filiação ao PRTB, disse ao site Intercept que o via ocupando a presidência antes de 2022 de uma maneira mais longa do que ocupou recentemente. Como se sentiu ao saber disso?
R. Uma coisa que se fala na Venezuela... o general Paulo Assis, quando disse isso, fumou uma “lumpia” [um termo coloquial para dizer que “fumou maconha”]. (Risos). Quando cheguei ao PRTB disse ao presidente do partido Levy [Fidelix] que entrava no partido por uma única situação. Caso Bolsonaro necessitasse de nós, na posição de vice-presidente, nós iríamos com ele. Somente isso, nada mais.

P. Não tem pretensão de se tornar presidente?
R. Jamais tive. Minha pretensão foi a que logrei, de ser presidente do Clube Militar [no Rio de Janeiro]. Eu estaria tranquilamente na praia, sem problemas.

P. Quando diz nós, em quem estava pensando?
R. Nós, somos o partido. Eu e o PRTB.


Cláudio Gonçalves Couto: O vice à espreita

Desgaste precoce do presidente dá espaço ao vice

Tradicionalmente, a escolha do candidato a vice nas chapas majoritárias é parte da construção da coligação eleitoral. Isso vale nas eleições de prefeito, governador e presidente da República. Assim, é comum que algum partido aliado daquele do cabeça de chapa seja responsável pela indicação do eventual substituto. Frequentemente, escolhe-se também um vice que agregue algo que falta à imagem do candidato principal, ampliando-o em termos regionais, de extração social, gênero ou ideologia.

Desse modo, homens se fazem acompanhar de mulheres; sindicalistas de empresários; sulistas de nordestinos; conservadores de progressistas e assim por diante. É raro optar voluntariamente por uma chapa puro-sangue, já que ela normalmente não amplia a mensagem. Mas sempre há exceções, que inclusive obtêm sucesso eleitoral.

Exemplo disso foi a chapa vitoriosa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Embora de legendas diferentes, o que menos importava para ambos eram seus respectivos partidos, meros veículos para as candidaturas - apesar de o PSL de Bolsonaro ser muito ajudado pelo entusiasmo com a mensagem do candidato presidencial, elegendo por tabela congressistas, parlamentares estaduais e governadores. Tanto Bolsonaro como o vice eram militares reformados de discurso radical e estilo simples, pouco se distinguindo. O descarte de uma vice mulher, como Janaína Paschoal, ou de um civil de nome aristocrático, como o "príncipe" Luiz Felipe de Orleans e Bragança, mostrava que a intenção era mesmo transmitir uma mensagem sem nuances.

Tal escolha talvez se justificasse pelos tempos radicalizados que vivemos e que marcaram a última campanha eleitoral, com o discurso contra o politicamente correto, contra a moderação e prometendo até mesmo "fuzilar a petralhada". Sendo assim, nada melhor do que um vice que reforçasse a imagem dura de Bolsonaro, tendo inclusive já defendido intervenção militar para resolver crises e sendo, assim como ele, um admirador do torturador Brilhante Ustra.

A ideia foi apoiada pelo sempre influente núcleo familiar do presidente. Disse Eduardo Bolsonaro, o filho 03, em agosto de 2018, durante a Convenção do PSL que confirmou a chapa: "Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca-na-caveira para ser vice." Contudo, não se tratava apenas de reforçar a mensagem radical da chapa; era também uma salvaguarda contra eventuais conspirações. Nos termos do mesmo 03: "Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment."

Sob esse aspecto, o acerto da escolha excedeu as expectativas ao ponto de causar problemas, com o vice sendo "mais realista que o rei" - ou dando declarações mais radicais do que aquelas que o próprio Bolsonaro daria. Mourão investiu contra o décimo-terceiro salário, ponderou que em certas condições seria defensável um autogolpe, definiu negros como malandros e índios como indolentes, além de associar a beleza de seu neto ao branqueamento da raça. Foi necessário que o cabeça-de-chapa desautorizasse o vice, apontando seu desconhecimento da Constituição e sua inexperiência política, determinando-lhe que se calasse e afirmando que apesar de ser Mourão o militar reservista de mais alta patente, seria ele, Bolsonaro, o presidente - e, portanto, o chefe.

Eis que ambos são eleitos e o país experimenta a transição de governo mais tumultuada de que se tem notícia desde a redemocratização, com repetidas decisões seguidas de recuos, brigas dentro da bancada do PSL, bate-bocas entre os filhos de Bolsonaro e integrantes da equipe, anúncios de nomeações não confirmados, mal-entendidos do czar da economia em relação ao Congresso e aos políticos. Começa o governo, mas os problemas não cessam: entre diversas batidas de cabeça, o filho 01, Flávio Bolsonaro, vê-se enrascado num imbróglio que o vincula a movimentações estranhas de dinheiro e grupos de milicianos; e o presidente tem performance vexaminosa em Davos - como observou a imprensa internacional.

Nesse cenário de caos, o vice reemerge, ironicamente, como possível reserva de sensatez em meio ao contexto brancaleônico capitaneado por presidente e família. Não que o próprio Mourão não enfrente percalços, inclusive também envolvendo a própria família. Porém, diante do enrosco de Flávio Bolsonaro e dos rompantes dos outros dois "garotos" do presidente, a meteórica ascensão do filho do vice no Banco do Brasil perde relevo - assim como suas declarações erráticas sobre a reforma da previdência e a possível intervenção no comando da Vale.

A questão é que, diferentemente de Bolsonaro e familiares, Mourão parece ter-se despido de vez do figurino de candidato em campanha e adotado postura mais comedida e, por consequência, presidencial. O contraste ficou claro em dois casos envolvendo opositores: primeiro, o posicionamento diante do autoexílio do deputado reeleito Jean Wyllys; enquanto Mourão manifestou preocupação, Bolsonaro e seus filhos escarneceram (e seguem escarnecendo) do anúncio. O segundo foi a declaração de Mourão relativamente à possibilidade de Lula comparecer ao velório do irmão, quando afirmou se tratar de "questão humanitária".

A mudança de postura do vice, associada à percepção das maiores preocupações institucionais dos militares que se fazem presentes no governo, contrasta com a permanente beligerância do presidente e seu clã, assim como dos sinais de seu despreparo para o cargo - conforme apontado nesta semana tanto em reportagem da "Folha de S.Paulo", como em matéria do tradicional newsletter "Relatório Reservado". Com isto, com menos de um mês de governo, já se discute a possibilidade de tutela sobre o presidente - para o quê Mourão seria fundamental.

A situação já produz irritação nas hostes bolsonaristas, ao ponto de - ainda segundo a "Folha" - um dos filhos do presidente reconhecer que o vice tenta se mostrar mais confiável que o pai. Para um governo que mal completa seu primeiro mês é péssimo sinal que já haja tão pouca confiança entre seus membros - ainda mais quando se acreditava serem tão parecidos.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Eliane Brum: Mourão, o moderado

A volta dos generais ao poder no governo do capitão que vai virando o bode na sala

Em agosto de 2018, Eduardo Bolsonaro disse à Folha de S. Paulo: “Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca na caveira pra ser vice. Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment”. Depois de várias tentativas fracassadas, Jair Bolsonaro acabou escolhendo o general da reserva Hamilton Mourão para ser seu vice na chapa que acabou vitoriosa. Ele atendia ao requisito exposto pelo terceiro filho, o de proteger o presidente, a partir da sombra das Forças Armadas.

Por um lado, um país que viveu 21 anos de ditadura militar, no qual centenas foram sequestrados, torturados e mortos, deveria ter resistência à volta de um general no comando da nação. Até então, os defensores do retorno da ditadura militar formavam um grupo minoritário, meio amalucado e sempre apontado nos movimentos da “nova direita”, na Avenida Paulista, epicentro das manifestações de rua no Brasil. Por outro lado, o vice estaria sintonizado com os quartéis para garantir a presidência, muito mais do que um capitão que chegou a ser preso por indisciplina e que, nas últimas três décadas, tornou-se político profissional. O vice “faca na caveira” seria um seguro anti-impeachment para Bolsonaro.

Hoje, ao final de um primeiro mês de governo com mais crises do que qualquer um dos anteriores, o “mito” começa a ser desmitificado por parte dos mitômanos que o elegeram, já recebe críticas pesadas dentro do seu partido e os descontentamentos no núcleo duro do governo são perceptíveis. Mourão, que até então era conhecido como uma língua solta e truculenta acima das quatro estrelas do peito, tornou-se, por comparação, um exemplo de sensatez, diplomacia e bons modos. Com o bode na sala, outros espécimes tornam-se subitamente aceitáveis.

O “faca na caveira” é elogiado por diplomatas como o embaixador da Alemanha, que diz ter tido uma conversa “excelente” com Mourão, e manda afagos à imprensa pelo Twitter, a mesma rede social em que a família Bolsonaro ataca os jornalistas, algo que funcionou na campanha mas está dando sinais de esgotamento. Mourão, o gentleman, tuitou em 23 de janeiro: “Quero agradecer a atenção e cumprimentar pela dedicação, entusiasmo e espírito profissional a todos os jornalistas que me recebem na minha chegada e de mim se despedem quando deixo o anexo da vice-presidência. Boas matérias a todos!”.

Tudo é uma questão de referência. E, quando a referência é Bolsonaro, é fácil um Mourão soar moderado. Em caso de naufrágio, qualquer tábua de pinho vira navio.

Era melhor ele “Jair se acostumando”, mas Jair não se acostuma

Mourão melhorou? Não. Bolsonaro piorou? Não. O que acontece é que agora Bolsonaro é o presidente. Era melhor ele "Jair se acostumando", mas Jair não se acostuma. Segue acreditando que ainda está fazendo campanha e que continuará ganhando no grito das redes sociais.

A série de tuítes que publicou após a divulgação de que o deputado federal eleito Jean Wyllys (PSOL) deixaria o país por ter medo de ser morto é a expressão do comportamento de Bolsonaro. Wyllys, o primeiro deputado declaradamente gay a assumir uma cadeira no Congresso, iniciaria em fevereiro o terceiro mandato. Recebendo ameaças de morte semanais, andava com escolta policial desde março de 2018, quando sua colega de partido, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, teve a cabeça arrebentada a tiros, um crime até hoje não apurado e impune.

Entre as ameaças que o parlamentar recebeu, estavam as seguintes, conforme divulgou o jornal O Globo: “Vou te matar com explosivos", "já pensou em ver seus familiares estuprados e sem cabeça?", "vou quebrar seu pescoço", "aquelas câmeras de segurança que você colocou não fazem diferença". E esta: “Vamos sequestrar a sua mãe, estuprá-la, e vamos desmembrá-la em vários pedaços que vamos te enviar pelo Correio pelos próximos meses. Matar você seria um presente, pois aliviaria a sua existência tão medíocre. Por isso vamos pegar sua mãe, aí você vai sofrer”.

Duas horas depois da notícia de que deixava o Brasil, uma mensagem foi enviada a Jean Wyllys: "Nossa dívida está paga. Não vamos mais atrás de você e sua família, como prometido. Mesmo após quase dois anos, estamos aqui atrás de você e a polícia não pôde fazer nada para nos parar".

O que deveria fazer o presidente de um país em que um parlamentar é obrigado a abdicar do mandato para salvar a vida? Certamente não mandar uma série de tuítes, começando por “Grande dia!”, seguido por um sinal de positivo. Depois, claro, Bolsonaro disse que se referia ao cumprimento de sua “missão” no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça.

Bolsonaro tinha 45 minutos para falar sobre o Brasil, mas só usou seis: “grande fracasso”, definiu um dos principais jornais do mundo

Também no nível escolar (ruim) foi o seu discurso em Davos. Tinha 45 minutos disponíveis para falar sobre seu projeto para o Brasil para uma plateia internacional altamente qualificada e influente. Só ocupou seis minutos e meio. Aparentemente não tinha o que dizer. Diante do público de Davos, sua apresentação foi um “big fail” (grande fracasso), como definiu o jornal americano Washington Post. No púlpito, o presidente do Brasil soava como um estudante medíocre de colégio, apresentando um trabalho copiado de um colega, porque nem convicção havia. As frases não se conectavam umas com as outras.

“Fiasco” foi a palavra usada por uma colunista do jornal francês Le Monde, no Twitter, para definir a participação do presidente do Brasil. Para ampliar o vexame, Bolsonaro, o superministro da economia, Paulo Guedes, o superministro da Justiça, Sergio Moro, e o superdelirante chanceler, Ernesto Araújo, não apareceram para a entrevista coletiva à imprensa. Foram três explicações diferentes, nenhuma convenceu sobre o porquê do desrespeito que chocou jornalistas e os organizadores do fórum. Desconfia-se, porém, que Bolsonaro temia perguntas difíceis sobre o escândalo que ronda o primeiro filho e alcança a conta bancária de sua mulher. Afinal, os jornalistas que cobriam Davos não eram repórteres de estimação.

Bolsonaro, como presidente, é o que sempre foi, aquele tio que constrange as pessoas na festa, porque tosco e sem noção. De esconder sua natureza, ninguém pode acusá-lo. Ele sempre foi isso aí. Dava para fingir que era “mito” enquanto tudo ficava no nível de torcida de futebol. Na presidência da República, porém, sua figura se desloca para outro lugar.

Não é mais Bolsonaro, “o mito”; também não é Bolsonaro, “o coiso”. É a presidência da República, lugar com mística própria, ocupada pela mediocridade. E a mediocridade é perigosa. Os olhos de parte do mundo, como em Davos, percebem e se horrorizam. "Ele me dá medo”, disse Robert Shiller, prêmio Nobel de Economia e professor na Universidade de Yale, depois de ouvi-lo. “O Brasil é um grande país. Merece alguém melhor."

Brasileiros que votaram em Bolsonaro pelas mais diversas razões, mas que não perderam a capacidade de fazer sinapses, passam a enxergar Bolsonaro agora com olhos de fora do gueto. O deslocamento de lugar, do palanque para o palácio, torna a bolha ocular permeável. Não é por acaso que Bolsonaro tampouco consegue deixar o discurso de candidato. Ele não sabe como ocupar o lugar de presidente. Também ele acusa a dificuldade do deslocamento. Afinal, não era uma brincadeira. Não basta mais arrotar bravatas. Do presidente as pessoas querem resultados na vida cotidiana. E não querem ver o mundo rir do despreparo pelas suas costas.

A divulgação da imagem de Bolsonaro almoçando no bandejão de Davos foi uma tentativa de candidato em campanha, de forjar a identificação, mas foi ofuscada pelo desempenho real do presidente eleito. O mundo não está gritando “mito!”, “mito!”. O mundo está perplexo com o vazio de Bolsonaro, o medíocre, liderando um país com o tamanho do Brasil e a maior porção da floresta amazônica em seu território.

Bolsonaro ocupa o cargo, está dado, já é. Vai para diante do mundo e faz um discurso de garoto de escola que estuda pouco e não presta atenção às aulas. Mesmo quem fez campanha contra tudo o que ele representa, torceu nesta hora para que algum assessor tivesse feito o trabalho para o qual é pago. Porque agora é o Brasil. O vexame de Bolsonaro é a vergonha de todos.

Neste mundo em que Bolsonaro é presidente do Brasil há garotas de escola como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que no fim de agosto iniciou uma greve pelo clima. Deixou de ir às aulas e postou-se diante do parlamento, em Estocolmo, para protestar dia após dia contra a incompetência e a omissão dos políticos no enfrentamento da crise climática. Desde então, Greta inspira jovens e protestos estudantis em diversas partes do planeta.

Convidada a discursar na Cúpula Mundial do Clima, na Polônia, Greta, uma trança de cada lado do rosto redondo, fez uma fala que se tornou viral pela inteligência. Terminou com o seguinte recado à plateia sênior e ilustre: “Viemos até aqui para informar (aos líderes mundiais) que a mudança está a caminho, queiram eles ou não. As pessoas se unirão a este desafio. E já que nossos líderes se comportam como crianças, teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo”.

Se Bolsonaro quer se comportar como garoto de escola, que seja com o nível de maturidade de Greta. É neste mundo que Bolsonaro passa a representar o Brasil. Não há paciência para um presidente que não tem o que dizer e para um chanceler que afirma que aquecimento global é um complô marxista. Como aponta Greta, os problemas do mundo são grandes demais para que os adultos abdiquem da maturidade necessária a uma época de crise climática, condenado jovens como a ela a ter um futuro muito ruim – ou mesmo nenhum futuro.

Homens como Paulo Guedes e Sergio Moro podem sofrer um tanto por desfilar seus peitos de peru de Natal ao lado de Bolsonaro

É possível supor que homens com a vaidade de Paulo Guedes e Sergio Moro devam sofrer um tanto por desfilar seus peitos de peru de Natal ao lado de Bolsonaro e sua entourage, em salões internacionais onde gostariam de brilhar por seu verniz intelectual. Mas se a questão fosse só a mediocridade, talvez fosse tolerável.

O problema é que o primeiro mês de governo acaba, e é só o primeiro mês de governo, com evidências contundentes de que a família Bolsonaro – e não apenas o primeiro filho, Flávio Bolsonaro – pode estar envolvida em corrupção. E corrupção foi a grande bandeira que moveu as massas nos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff e no apoio à candidatura Bolsonaro.

Como então explicar os depósitos na conta bancária do primeiro filho pelo ex-policial militar Fabricio Queiroz, ex-assessor, ex-motorista e sempre amigo de Flávio Bolsonaro? Como explicar os 40 mil reais na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro? Como explicar o enriquecimento de Flávio Bolsonaro, incompatível com seus ganhos? Como explicar que Flávio Bolsonaro pediu foro privilegiado ao Supremo Tribunal Federal – e por enquanto levou, graças ao inacreditável (em vários sentidos) ministro Luiz Fux? Como explicar o que todos os envolvidos têm feito tudo para não explicar?

Bolsonaro se atrapalha com os próprios pés. Não sabe se deve se comportar como presidente do Brasil ou como pai de filho mimado. Possivelmente porque não há como desfazer os nós desse novelo. Como quando disse ao jornal O Globo: “Não é justo atingir o garoto, fazer o que estão fazendo com ele, para tentar me atingir. (...) Ao meu filho, aquele abraço. Fé em Deus que tudo será esclarecido, com toda certeza”.

O “garoto” tem 37 anos, é senador eleito da República e foi deputado estadual do Rio de Janeiro por quatro mandatos. Além de enriquecer rapidamente, o primeiro filho desenvolveu o dom divino da onipresença, ao conseguir a façanha de estar em duas cidades, dois estados, ao mesmo tempo. Como revelou a BBC News Brasil, entre 2000 e 2002 ele trabalhou em Brasília como assistente técnico de gabinete do PPB, partido de Bolsonaro em seu terceiro mandato como deputado federal, um emprego de 40 horas semanais. Ao mesmo tempo, cursava a faculdade de Direito na Universidade Cândido Mendes e fazia um estágio na Defensoria Pública do Estado, no Rio de Janeiro.

Ao ser indagado pela jornalista do Washington Post Lally Weymouth sobre o escândalo envolvendo seu filho, que teria “empregado pessoas com laços estreitos com membros de gangues”, Bolsonaro quase deu piti : “Este não é um assunto de governo – ou da sua conta – mas eu vou dar a minha opinião. Seu nome de família, Bolsonaro, é a razão. É resultado de acusações políticas ao meu governo”. Neste momento, até mesmo bolsonaristas fiéis começam a achar que as suspeitas que pairam sobre o primeiro filho são da conta de todos os brasileiros, sim.

Aliados estratégicos como o MBL e Janaína Paschoal começam a afastar o corpinho

Aliados estratégicos tanto no impeachment de Dilma Rousseff quanto no apoio à campanha de Bolsonaro começam a afastar o corpinho para o lado, a exemplo do Movimento Brasil Livre (MBL), que só tem compromisso com seu próprio projeto de poder. E como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL), uma das autoras do pedido de impeachment que acabou afastando Rousseff, eleita por São Paulo com dois milhões de votos. Não há espaço para bobos nesse jogo pesado.

“Não sou guru dessa porcaria”, diz o guru

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Janaina Paschoal afirmou: "(Flavio Bolsonaro) tem todo o direito à defesa, a entrar com todas as medidas, mas me parece complicado ver uma reação parecida com a que foi a do Aécio (Neves), e com a que é a do Lula até hoje”. E, em outro trecho: “O sigilo sobre a investigação não pode haver. Vamos imaginar que haja alguma coisa errada com o senador. Se isso tivesse aparecido antes da eleição, ele provavelmente não teria sido eleito". Paschoal contou também que seu pai perguntou a ela se continuaria no PSL após essas denúncias. Ela está pesquisando a legislação para ver se é possível deixar o partido sem perder o mandato.

Até mesmo o guru do governo Bolsonaro, Olavo de Carvalho, anda se irritando por ser chamado de guru do governo Bolsonaro. Quando um grupo de parlamentares do PSL foi para a China, ele gravou um vídeo dizendo: “E eu sou guru dessa porcaria? Não sou guru de merda nenhuma”.

Um escândalo de corrupção no primeiro mês de qualquer governo é um problema. Um escândalo de corrupção no primeiro mês de um governo que apoiou sua plataforma no discurso fácil da anticorrupção é um pesadelo. As suspeitas, porém, vão muito além da corrupção. Elas alcançam relações mais perigosas. E não com qualquer crime, mas um crime de repercussão internacional: o assassinato de Marielle Franco, uma vereadora negra, lésbica e moradora da Maré, ocorrido há quase 11 meses sem que a polícia tenha concluído a apuração. Quando 2018 terminou, as autoridades responsáveis chegaram ao fundo do buraco sem fundo: tentavam apurar porque não conseguiam apurar o crime. Hoje, finalmente, a investigação começa a avançar. E chega bem perto da família do presidente.

Flávio Bolsonaro pode estar envolvido com a milícia Escritório do Crime, principal suspeita do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. A mãe e a mulher do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, um dos líderes da milícia e hoje foragido, trabalhavam no seu gabinete. Como deputado estadual, Flavio deu a Nóbrega a medalha Tiradentes, a maior honraria da Assembleia Legislativa do Rio. Na ocasião, o então PM estava preso por um dos homicídios atribuídos a ele.

As milícias cariocas são organizações criminosas formadas majoritariamente por agentes do Estado ligados às forças de segurança, como policiais civis e militares, bombeiros, agentes penitenciários e integrantes do Exército. Os vários episódios em que Flavio apoiou e protegeu esses criminosos que extorquem e aterrorizam as comunidades pobres, assim como matam por encomenda, são agora lembrados. As conexões tornam-se mais explícitas à luz dos novos fatos.

Dois pesos, duas medidas: o filho de 37 anos, que pode estar envolvido com milícias e corrupção, é “garoto”; já para os garotos dos pobres têm que reduzir a maioridade penal já

O presidente que, tão logo assumiu, liberou a posse de armas de fogo num país com quase 64 mil assassinatos por ano tem um filho próximo das milícias que produzem crimes. É interessante observar a diferença dos pesos e medidas: o filho de 37 anos, senador eleito, seria um “garoto” vítima de uma campanha difamatória para atingir seu governo, na versão do presidente do Brasil. Já para os filhos dos outros, a maioria negros e pobres, os que de fato são garotos, a turma de Bolsonaro defende cadeia já. Quando não pena de morte. Para o próprio filho, maioridade penal aumentada para, quem sabe, 40 anos. Para os filhos dos outros, maioridade penal reduzida.

Queiroz é uma bomba-relógio bem no meio da mesa de pão com leite condensado e copos de plástico da família Bolsonaro, aquela que apostou no marketing do gente como a gente na campanha eleitoral. Mas quem quer agora ser gente como essa gente?

Apenas no primeiro mês de governo, a família Bolsonaro aparece com suspeitas de envolvimento com corrupção e de proximidade com a milícia que pode ter assassinado uma das mais atuantes vereadoras de esquerda da nova geração de parlamentares. O que virá nos próximos meses ou nos próximos quatro anos? A pergunta não assombra apenas os opositores, começa a tirar o sono dos aliados.

Este pode não ser um problema para Paulo Guedes, já que os chamados Chicago Boys não tiveram dilemas morais ou éticos para comandar a economia na ditadura de Augusto Pinochet, entre os anos de 1973 e 1990, no Chile. Lá implantaram um programa extremista neoliberal só possível num regime de exceção, que não precisa convencer a sociedade ou negociar com ela, apenas impor medidas pelo caminho autoritário.

Pode, porém, ser um problema para Sergio Moro, que quer muito passar para a história como o herói anticorrupção, o superjuiz da Lava Jato que “limpou” o Brasil. Moro pode estar se perguntando como fará para não manchar sua capa no esgoto dos Bolsonaro. Já não estava fácil conviver com ministros que veem Jesus em goiabeira e acusam a esquerda de criminalizar o ar-condicionado. Mas o dedão do Queiroz na conta bancária da primeira-dama é de outra ordem.

Quando Bolsonaro despontou como o possível vitorioso desta eleição, diferentes elites se aproximaram dele com a certeza de que poderiam usar sua popularidade para chegar ao poder – ou apenas para mantê-lo. Setores do Exército sabiam que ele era um capitão que não respeitava hierarquia, um subordinado que já tinha se mostrado fora de qualquer controle, o que determinou tanto sua saída das Forças Armadas quanto o início de uma carreira de quase três décadas como deputado bufão. Mesmo assim, decidiram arriscar.

Estavam errados? Depende do ponto de vista e dos objetivos. A operação que levou ao poder um capitão reformado notável pelo despreparo, mas que se mostrou altamente popular, é brilhante. Bolsonaro não representava as Forças Armadas. O que ele podia representar, com quase 30 anos no baixo clero do Congresso, é o baixo clero do Congresso. Mas Bolsonaro usou o Exército e foi usado por ele.

O terceiro filho, Eduardo Bolsonaro, não estava totalmente errado ao dizer que o pai se colocaria além do risco de impeachment se tivesse como vice um general. Ele estava, ao mesmo tempo, reconhecendo o trauma deixado pela ditadura e usando o trauma deixado pela ditadura a favor da família. Aparentemente, seria muito difícil um general se eleger presidente pelo voto num país que amargou 21 anos de um regime de exceção comandado por uma sequência de generais. Aparentemente, seria difícil que os brasileiros desejassem que um vice que também é general passasse a ocupar o posto máximo da República. Aparentemente, Mourão usaria sua proximidade com as forças armadas para proteger o mandato de ambos.

Ao apoiar a eleição de Bolsonaro, os generais conseguiram uma façanha como estrategistas políticos

Ao apoiar a eleição de Bolsonaro, os generais da ativa e da reserva conseguiram uma façanha como estrategistas políticos. A composição do governo Bolsonaro é complexa. Mas, de tudo o que é, este é um governo militarizado: o vice-presidente é general da reserva, o porta-voz é um general da ativa e sete ministros são militares, o equivalente a um terço do ministério. Segundo o jornalista Rubens Valente, em reportagem da Folha de S. Paulo de 20 de janeiro, já passam de 45 os militares nomeados ou prestes a serem nomeados em 21 áreas do governo, “da assessoria da presidência da Caixa Econômica ao gabinete do Ministério da Educação; da diretoria-geral da hidrelétrica Itaipu à presidência do conselho de administração da Petrobras”.

O número de militares no governo cresce a cada dia. É um grande poder não apenas de influência, mas de ação, com “uma força econômica que ultrapassa as centenas de bilhões de reais”. O que falta para ser um governo militar? Esta é uma pergunta que não tem resposta fácil, mas cuja resposta já está sendo construída.

As Forças Armadas devem a Bolsonaro a volta dos militares ao poder na democracia

As Forças Armadas, e especialmente o Exército, consumaram a proeza de voltar ao poder na democracia. Devem isso a Bolsonaro. O então deputado, com sua estridência e histrionismo, prestou vários serviços às fardas. O Brasil não lidou com o seu passado. Os sequestradores, torturadores e assassinos a serviço do Estado no período da ditadura militar (1964-85) nunca foram punidos, como foram exemplarmente em países vizinhos, caso da Argentina e do Chile. A operação de apagamento da memória teve um custo alto para o Brasil e é um dos principais fatores que levaram o país à situação atual, como já escrevi neste espaço mais de uma vez.

Até mesmo o tímido esforço que foi feito, no governo de Dilma Rousseff (PT), para esclarecer os crimes do período de exceção, incomodou a cúpula militar. Ainda hoje há mais de 200 desaparecidos pelo regime. Suas famílias estão condenadas a viver sem conseguir enterrar seus mortos e fazer o luto. Mesmo assim, os generais detestaram a Comissão Nacional da Verdade, que apontou mais de 300 agentes do Estado envolvidos com sequestros, torturas e assassinatos. E olharam com muita preocupação para as pressões de vários atores da sociedade civil para revisar a Lei da Anistia no Supremo Tribunal Federal.

Ao homenagear o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores e assassinos da ditadura, em seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro presta um grande serviço à revisão da história que uma parcela dos militares de alta patente tanto desejam. Tinha que ser alguém fora de controle para homenagear um torturador no impeachment de uma presidente que foi torturada pelo regime de exceção e, assim, romper a barreira do que os ultradireitistas chamam erroneamente de “politicamente correto”. O descontrole que levou Bolsonaro a deixar as forças armadas e iniciar a carreira política, neste novo momento do país passara a se tornar útil para alguns peitos estrelados. Sempre é preciso um fanfarrão sem escrúpulos para que os moderados possam continuar polindo as suas espadas.

A eleição de Bolsonaro significou a chance de mudar a história. E uma parcela dos militares de alta patente quer muito mudar a história. Ou evitar que ela seja finalmente passada a limpo.

Em 2017, o atual vice-presidente, Hamilton Mourão, defendeu um golpe militar caso o judiciário não punisse os corruptos: ou o judiciário punia os corruptos do país “ou então nós (do Exército) teremos que impor isso”. Antes, em 2015, já havia perdido o prestigioso comando das forças militares do sul pela soltura da língua, ao afirmar numa palestra que a substituição da presidenta Dilma Rousseff teria como vantagem “o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. No início de 2018, Mourão foi para a reserva.

Mourão, o recém convertido ao evangelho da moderação, ocupa hoje o único cargo em que não pode ser demitido por Bolsonaro

Vejam só onde está agora: no único cargo em que não pode ser demitido por Bolsonaro, porque também foi eleito. Mourão, o que afirmou à Globo News admitir o “autogolpe” com “o emprego das Forças Armadas”, em caso de “anarquia”. Mourão, aquele que defendeu uma constituinte sem participação popular, feita por uma “comissão de notáveis”. Mourão, o que chamou os africanos de “malandros” e os indígenas de “indolentes”. Mourão, o que disse que as famílias chefiadas por mães e avós nas comunidades pobres eram “uma fábrica de desajustados”. Mourão, aquele que chamou o décimo-terceiro salário de “jabuticaba nacional”. Mourão, que também admira o torturador Ustra, a quem justificou os atos criminosos com a seguinte frase: “Heróis matam”.

Este homem despontou no primeiro mês de governo como Mourão, o moderado. Ou Mourão, o sensato. Ou ainda Mourão, o gentil. Não apenas porque Bolsonaro vai se tornando rapidamente um bode com odor cada vez mais forte numa sala que se tornou apertada pelo acúmulo de fardas e estrelas no peito, mas também porque Mourão tem se esforçado bastante para poder convencer o Brasil da autenticidade do seu novo papel.

Até mesmo o escândalo da promoção do filho do vice, que numa canetada teve o salário elevado de 14 mil para 36.500 reais, desidratou diante das suspeitas que pesam sobre o filho do presidente. Afinal, nesta disputa inglória, o que é uma promoção de um funcionário de carreira do Banco do Brasil comparada à suspeita de corrupção e envolvimento com milícias? Este é o tipo de escolha que o Brasil precisou fazer no primeiro mês do governo.

Não é de hoje que Mourão desautoriza Bolsonaro, tratando-o como o garoto que ele parece ser. Como quando disse à jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo: “Não podemos nos descuidar do relacionamento com a China (...) Aquilo (a declaração de que a China está tentando comprar o Brasil) é mais uma retórica de campanha, né? Com as redes sociais, muita coisa flui e não é a realidade. Uma briga com a China não é uma boa briga, certo?”. Ou: “Não resta dúvida de que existe aquecimento global, não acho que seja uma trama marxista”.

Na segunda-feira (28/1), encontrou-se com o embaixador da Palestina e botou em dúvida a várias vezes anunciada transferência da embaixada do Brasil em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, uma promessa de Bolsonaro aos evangélicos neopentecostais que veem a cidade como o futuro palco do Armageddon. “O Estado brasileiro, por enquanto, não está pensando em nenhuma mudança da embaixada”, afirmou no dia em que Bolsonaro fez sua terceira cirurgia após o atentado à faca sofrido durante a campanha eleitoral.

Enquanto sorri e distribui fofoletices, Mourão acaba, na prática, com a Lei de Acesso à Informação

Enquanto sorri para embaixadores e empresários e manda recados amistosos para a imprensa pelo Twitter, Mourão diz bastante sobre o quê de fato representa. Ao assumir a presidência do país quando Bolsonaro estava em Davos, ele na prática acabou com a Lei de Acesso à Informação, promulgada por Dilma Rousseff, uma conquista da sociedade e da democracia em favor da transparência. O decreto de Mourão amplia – e muito – o número de pessoas que podem classificar documentos do governo como ultrassecretos, o que os torna inacessíveis por 25 anos, que podem ser prorrogados por mais 25 anos. Agora, até uma parcela dos funcionários comissionados têm o poder de evitar que a população tenha conhecimento dos atos do governo. É a ação mais contundente de censura – e é só o primeiro mês. É também uma canetada compatível com um regime de exceção.

Diante do anúncio de Jean Wyllys de que não assumiria o mandato para o qual foi eleito e deixaria o país para não ser morto, Mourão soou mais moderado na imprensa. Mas comparado a quem? Ao presidente que faz molecagens no Twitter.

A declaração mais valorizada de Mourão foi: “Quem ameaça parlamentar está cometendo um crime contra a democracia. Uma das coisas mais importantes é você ter sua opinião e ter liberdade para expressar sua opinião. Os parlamentares estão ali, eleitos pelo voto, representam cidadãos que votaram neles. Quer você goste, quer você não gosta das ideias do cara, você ouve. Se gostou bate palma, se não gostou, paciência”.

A declaração que mais demanda atenção é: “Temos que aguardar quais são essas ameaças, porque ele falou de forma genérica. Se ele está ameaçado tem de dizer por quem e como. Não estou na chuteira do Jean Wyllys. Ele que sabe qual é o grau de confusão que ele está metido”.

Primeiro: quem tem que investigar e descobrir os culpados é a Polícia Federal. Segundo: não há nada de “genérico” nas denúncias que foram feitas por Jean Wyllys e que geraram uma medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, determinando que o Estado brasileiro garantisse a proteção do deputado e de sua família. As ameaças de morte contra o deputado tanto não são genéricas que o ministério da Justiça de Sergio Moro se apressou a dizer que a Polícia Federal estava investigando e que já tinha prendido pelo menos um dos responsáveis. Terceiro: a frase sobre “o grau de confusão que ele está metido” claramente busca culpar a vítima. Ameaça de morte não é “grau de confusão”. É ameaça de morte, é crime.

Mourão se moderou, mas ainda sofre de incontinência verbal, afinal não se muda de uma hora para outra os hábitos de uma vida inteira. O vice que já assumiu duas vezes a presidência no primeiro mês de governo é como o escorpião da fábula: quase chega à outra margem do rio, mas não consegue deixar de picar o sapo que o transporta. Um problema, possivelmente, para o grupo de generais no poder.

Por enquanto, porém, Mourão tem encarnado o adulto na sala. É o pai do garoto. Que, por sua vez, é pai de outro garoto, o amigo e ex-empregador do Queiroz. Este, por sua vez, não é garoto – e sim a primeira sombra do governo de Bolsonaro. E que sombra.

Qualquer declaração de Mourão soa melhor do que os emoticons de Bolsonaro. A operação mental que caracteriza o desespero faz com que mesmo os mais céticos se agarrem a qualquer promessa de equilíbrio. Bolsonaro tem feito uma parcela crescente de brasileiros se sentirem muito inseguros. Mesmo quem votou nele e segue brigando por ele nas redes sociais, com a elegância habitual, sabe que não faz sentido. Ele já está eleito. O problema agora é que governa.

Amador, o clã Bolsonaro acreditou cedo demais que tinha enterrado a imprensa

Entre os erros do clã Bolsonaro e de seu entorno está o de acreditar que a imprensa está morta. Não é tão fácil assim. As redes sociais e plataformas da internet têm poder, especialmente quando são fraudadas as regras eleitorais usando o WhatsApp, mas a TV ainda é o principal veículo de informação da população no Brasil. Parte da imprensa brasileira tem feito jornalismo como há tempo não se via. Uma pena que não tenha sido sempre assim.

Todos ganham com a imprensa fazendo bem o seu trabalho. É preciso continuar prestando atenção no jogo pesado que se faz por cima, no andar dos donos do poder. Bolsonaro se tornou impossível de engolir, porque entrou em confronto direto com parte das famílias proprietárias dos grandes meios de comunicação. Mas isso sempre pode ser alterado. Pesa contra ele, porém, sua imprevisibilidade, já que ele costuma mudar de ideia e descumprir os acordos. Por outro lado, esses mesmos proprietários cultivam boas relações jamais perdidas com a cúpula militar. Os próximos dias mostrarão quem faz bom jornalismo sempre, e não só conforme a ocasião.

Quando fez o seu vaticínio, o terceiro filho não poderia saber que efeito Bolsonaro teria no poder. Feito à imagem e semelhança do pai, o filho se olha no espelho e também se acha o máximo. Circula apenas pelas bolhas e todos dizem que sua família é incrível. A realidade vem mostrando que, diante de um Bolsonaro ameaçado pelo escândalo da corrupção e do envolvimento com a milícia suspeita de assassinar Marielle, o vice “faca na caveira” pode assustar menos. Muito menos. O vice “faca na caveira” vem se tornando uma referência de autoridade, confiança e equilíbrio, objetivo claro de todos os movimentos de Mourão num jogo que o clã Bolsonaro tem a ilusão de dominar, mas só conhece meia dúzia de estratégias.

Manter Bolsonaro com a faixa e como fachada, mas sob controle, pode se tornar impossível se as investigações aprofundarem as conexões familiares com a corrupção e as milícias

O Bolsonaro fanfarrão pode ser tolerado. Alguns dos grupos que sustentam seu governo acreditaram, em minha opinião com excesso de otimismo, que poderiam manipular e controlar o cabeça de chapa. Mas o Bolsonaro que pode estar envolvido com corrupção e tem um filho próximo às milícias assassinas do Rio de Janeiro é muito mais complicado. Começa a ficar constrangedor e impossível de justificar. Conforme o desenrolar dos fatos, o barulho do ralo pode ameaçar o projeto de poder. Já não há como voltar atrás: os militares foram fundo, já se tornaram fiadores do atual governo.

O que fazer então com Bolsonaro, este que chega ao final do primeiro mês com a popularidade começando a desidratar? O que era o plano de alguns, mantê-lo com a faixa e como fachada, afinal ele é o “mito”, mas sob controle, pode deixar de ser uma alternativa viável se as investigações descobrirem mais esqueletos no armário dos Bolsonaro. Conforme a apuração, tanto da corrupção quanto do assassinato de Marielle, um impeachment pode ser inevitável, como alguns articulistas já apontaram. Mas é traumático demais e muitos tentarão evitar o segundo afastamento de um presidente eleito na sequência, o terceiro desde a redemocratização. Há outras possibilidades, entre elas o afastamento por problemas de saúde, por exemplo. Tudo depende do que as investigações vão revelar nas próximas semanas e meses.

Bolsonaro já sentiu na nuca o bafo de Mourão, tanto que decidiu despachar, pelo menos oficialmente, da cama do hospital onde se recupera de uma cirurgia. Afinal, em pouco mais de três décadas o Brasil já teve três vices assumindo o poder – um por morte do titular, os outros dois por impeachment. Até Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro, anda nervoso. Fez um vídeo desancando Mourão. Sem seu adorador, o guru perde o prestígio recém adquirido. Os constrangedores ministros que indicou – e emplacou – também podem virar passado.

O futuro próximo do governo depende em grande parte do desempenho da economia. Os brasileiros já comprovaram que podem conviver com qualquer coisa se a vida cotidiana melhorar ou se sentirem que tem alguma vantagem. As várias vitórias de Paulo Maluf, no maior colégio eleitoral do país, estão aí para não deixar ninguém esquecer.

O que os militares querem? Reescrever a história

O que os militares querem? Muito. Talvez o que mais queiram seja mudar o passado e reescrever seu papel na história do Brasil, como já ficou claro. Penso que também queiram escrever um futuro que redima a imagem que desejam de todo jeito apagar. Já começam a aparecer como heróis, como repositório de confiança num governo povoado por delirantes, no sentido estrito da palavra, e/ou oportunistas.

Não é aconselhável tentar prever o futuro, só é possível ler os sinais do presente. O fato mais revelador do primeiro mês do governo militarizado de ultradireita é: o parlamentar que cuspiu em Bolsonaro quando ele homenageou Ustra, um torturador da ditadura que levava crianças pequenas para ver os pais torturados, foi obrigado a deixar o Brasil para não ser assassinado.

(Volto à coluna em 27 de fevereiro. Até lá.)

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum