mourão

Ricardo Noblat: Aos cuidados do general Mourão - balanço do AI-5 e o que é ditadura

Modesta contribuição para aumentar os conhecimentos do vice-presidente

O general Hamilton Mourão refere-se ao Ato Institucional nº 5, baixado há 51 anos pelo governo Costa e Silva, como “o grande instrumento autoritário que os presidentes militares tiveram à mão”. Mas não reconhece que houve um golpe no país em 1964, nem uma ditadura que se estendeu por 21 anos.

“Discordo do termo ditadura para o período de presidentes militares”, argumenta. “Para mim foi um período autoritário, com uma legislação de exceção, em que se teve que enfrentar uma guerrilha comunista, que terminou por levar que essa legislação vigorasse durante 10 anos”.

Seria interessante, sugere, que se pesquisasse quantas vezes o AI-5 foi utilizado efetivamente durante os 10 anos que ele vigorou. Porque muitas vezes, segundo ele, “se passa a ideia que todo dia alguém era cassado ou afastado. E não funcionou dessa forma. É importante ainda que a História venha à luz de forma correta”.

O Congresso foi fechado duas vezes com base no AI-5. A primeira sob a alegação da necessidade de se “combater a subversão e as ideologias contrárias às tradições de nosso povo”. A segunda, em 1977, porque o general Ernesto Geisel disse que o MDB havia estabelecido no Congresso a “ditadura da minoria”.

Enquanto vigorou, o AI-5 permitiu que o governo cassasse o mandato de 110 deputados federais, 162 estaduais, sete senadores, 22 prefeitos e 22 vereadores eleitos por pouco mais de seis milhões de pessoas. Três ministros do Supremo Tribunal Federal foram aposentados e 500 pessoas perderam seus direitos políticos.

No que diz respeito aos direitos do cidadão comum, o AI-5 suprimiu as garantias civis. Qualquer pessoa podia ser presa sem autorização judicial. O habeas corpus deixou de existir para os processados por crime “contra a segurança nacional”. Os acusados passaram a ser julgados por tribunais militares.

Censurou-se a imprensa. Militares passaram a dar expediente nas redações dos maiores jornais para impedir a publicação de notícias que desagradassem ao governo. Espetáculos musicais, peças de teatro, filmes também ficaram sujeitos à censura prévia, assim como novelas de televisão e exposições de arte.

Sob o pretexto de se combater a corrupção permitiu-se o confisco de bens de suspeitos mesmo sem culpa formada. Estudantes considerados subversivos foram expulsos de universidades e proibidos de estudar por três anos. Houve intervenção em sindicatos e as greves foram proibidas. Mas não foi o pior.

O AI-5 estimulou a prática de torturas em delegacias, quartéis e aparelhos clandestinos de repressão que se disseminaram pelo país. Oficiais do Exército, reunidos em auditório, assistiram a aulas de tortura. Segundo levantamento da Human Rights Watch, cerca de 20 mil pessoas foram torturadas entre 1964 e 1985.

Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade registrou que entre 1946 e 1985 pelo menos 434 pessoas foram mortas ou desapareceram por razões políticas, a maior parte delas durante a ditadura de 64. Algo como 6.300 integrantes das próprias Forças Armadas foram presos, cassados ou demitidos

Ao preferir chamar de “período autoritário” o que foi uma ditadura por qualquer ângulo que se a examine, o general Mourão lembrou que o regime militar teve que enfrentar “uma guerrilha comunista”. De fato. Descoberta em 1972, acabou dizimada em 1975. Guerrilheiros que se renderam foram executados.

Ninguém gosta de recordar maus tempos. O 51º aniversário do mais cruel dos atos de força da ditadura militar de 64 passaria em branco se recentemente o deputado federal Eduardo Bolsonaro, e depois dele o ministro Paulo Guedes, da Economia, não tivessem insinuado que uma nova versão do AI-5 poderia ser adotada.

A maioria dos brasileiros é contra a volta da ditadura. Nas escolas militares ensina-se que não houve ditadura militar. As Forças Armadas juram respeito à Constituição. O governo que temos hoje é o que mais reúne partidários de um regime autoritário desde a redemocratização do país em 1985. Portanto, temei e vigiai.


Willian Waack: Tão velho quanto palácios

Os ‘ideólogos’ à volta de Bolsonaro estão atacando o que realmente interessa

Nada têm de gratuito, maluco ou infantil os ataques contra o vice-presidente, general Hamilton Mourão, lançados pelos círculos mais íntimos de Jair Bolsonaro, neles incluídos familiares e intelectual a quem o presidente atribui primeira importância. Trata-se de saber quem vai enquadrar quem. Em última análise, é uma luta pelo poder.

Intrigas palacianas são tão velhas quanto... palácios. Nesse caso, porém, não se trata de saber quem tem mais acesso ou consegue mais favores do dono do Palácio, mas, sim, de determinar a quem o dono do Palácio vai obedecer. Do ponto de vista dos assim chamados “ideólogos” juntinho do presidente, faz todo sentido chamar Mourão de “conspirador”.

Pois o vice-presidente ganhou “Profil durch Kontrast”, como diz a famosa expressão política alemã: ganhou contornos como figura política por meio do contraste oferecido pela atuação de outros. A confusão e até notória bagunça nas áreas sob domínio direto dos “ideólogos” no começo do governo é que transformaram Mourão num personagem identificado com pacificação, racionalidade e sensatez – não eram os atributos que se conferiam a ele durante a campanha eleitoral, por exemplo.

A “conspiração” atribuída a Mourão reside no fato – sempre sob a ótica dos ideólogos – de ele representar o que se poderia chamar de “núcleo duro” do poder no Palácio. Nesse sentido, os ideólogos estão atacando o que realmente interessa. Para os militares no Palácio, ao contrário do que propagam os “ideólogos”, grande perigo não são comunistas e esquerdistas embaixo de cada cama. São o caos político e a bagunça institucional, ocorrências que os “ideólogos” consideram não só inevitáveis, mas até desejáveis na grande “revolução conservadora” que julgam ser capazes de conduzir.

É fato notório que esse grupo razoavelmente coeso de militares, egresso de algumas das melhores instituições de ensino do País (como são as academias militares), não só não abraça essas ideias (até as rejeita) nem os métodos de ação (não se dedica a lacrar na internet, por exemplo). Nem parecem esses militares pensar em carreira política no sentido de disputar votos a cada eleição. Além, claro, de se dedicarem a preservar exatamente as instituições (como Supremo e Legislativo) que os ideólogos consideram “sistema” a ser derrotado.

Grupos exaltados e apegados à violência virtual das redes sociais têm dificuldades notórias de enxergar o plano frio das relações de força de fato, entendidas aqui como quem é capaz, em último caso, de comandar quantos seguidores nas ruas. O exemplo mais eloquente dessa perda de leitura da realidade foi fornecido pela direção do PT (começando por Lula) nas semanas que precederam o impeachment de Dilma, quando o partido dizia ser dono “das ruas” e apenas conseguiu demonstrar que as ruas não eram da militância petista – bem ao contrário.

Os “ideólogos” estão reagindo racionalmente ao perigo que identificaram de o presidente ser “tutelado” ou até “emparedado” por outro núcleo de poder, no Palácio e fora dele, que age com método, disciplina e organização. Provavelmente superestimam o fator “popularidade” do capitão, ignorando o fato de que grupos de WhatsApp estão longe de ser a tal “ação direta” com a qual facções desse tipo na franja da paleta política sempre sonharam, não importa a coloração.

Muito vai depender de o próprio Jair Bolsonaro ser capaz de escapar dos efeitos descritos por outra clássica expressão política alemã, a da “Bunkermentalität”. Ela descreve um fenômeno palaciano tão velho quanto... palácios. É o dono do Palácio, vivendo no mundo peculiar das suas paredes estreitas e dando ouvidos só aos mais próximos, não ser capaz de entender o que está acontecendo de fato lá fora.


Bruno Boghossian: Guerra da ala ideológica contra militares atinge pilar do governo

Presidente dá alvará a 'olavistas' ao defender Carlos em guerra com Mourão

Os choques entre o grupo ideológico e a ala militar do governo superaram a disputa corriqueira por espaço e influência. Os “olavistas” sempre tentaram enfraquecer os generais que trabalham com o presidente. Agora, eles parecem dispostos a derrubar de vez esse pilar.

Com a participação direta dos filhos de Jair Bolsonaro, o fã-clube do escritor Olavo de Carvalho teve suas mãos amarradas pelos militares em uma série de embates nos primeiros meses de mandato. Além de conflitos públicos, como no Ministério da Educação, o time ideológico viu seus planos bloqueados por generais que atuam dentro do Planalto.

As últimas peças movidas pelo presidente e sua família escancararam o conflito. Depois de se ver repreendido pelo próprio governo, o vereador Carlos Bolsonaro decidiu tornar explícita a guerra pelo poder.

O filho do presidente foi considerado o responsável pela publicação, na página de Jair Bolsonaro, de uma gravação em que Olavo faz ataques pesados aos militares. A peça foi retirada do ar, e o Planalto afirmou que as críticas “não contribuem para a unicidade de esforços” do governo.

O tom conciliatório certamente não partiu da família Bolsonaro. Carlos reagiu com um bombardeio contra Hamilton Mourão e replicou até um vídeo que insinua que o vice conspira para derrubar o presidente.

Embora o alvo específico seja Mourão, o impacto tende a ser mais amplo. Ao se concentrar num representante das Forças Armadas, a investida atinge diretamente uma instituição que, em larga medida, serve de arrimo ao bolsonarismo.

Desde a campanha, os generais trabalham para moderar o tom dos “olavistas”, por temerem que uma explosão radical do governo afete a imagem dos militares. A ala ideológica, no entanto, deu sinais de que se cansou de ser interditada.

Nesta terça, o presidente deu um alvará ao segundo grupo em nota lida pelo porta-voz do Planalto: “Quanto a seus filhos, em particular ao Carlos, o presidente enfatiza que ele sempre estará a seu lado”.


Hélio Schwartsman: General a postos

Mourão está fazendo um excelente contraponto às temeridades de Bolsonaro

Já defendi algumas vezes neste espaço a extinção dos cargos de vice. Eles são uma relíquia do século 19 que não faz mais sentido no mundo de hoje, onde tudo pode ser controlado à distância e não há muita dificuldade em organizar rapidamente uma eleição em caso de impedimento definitivo.

O vice-presidente Hamilton Mourão ainda não me fez mudar de ideia —estamos falando não de um, mas de 5.598 cargos, aos quais se somam os de assessores, motoristas etc. Devo, porém, admitir que o general está fazendo um excelente contraponto às temeridades de Jair Bolsonaro. Tão bom que ele já se tornou o alvo principal da ala olavista do governo, a desbocada combinação de extremismo ideológico com paranoia.

Há uma diferença importante entre Mourão e Michel Temer, o mais recente vice a ascender ao poder. Enquanto o substituto de Dilma Rousseff atuou ativamente na costura política que levou ao impeachment da titular, o general se limita a emitir opiniões sensatas, deixando que o contraste com os desvarios do chefe o transforme numa alternativa potencialmente atraente. Objetivamente, não dá para apontar um único ato de deslealdade de Mourão para com Bolsonaro.

O irônico nessa história, como eu já havia apontado, é que o general foi escolhido pelo clã Bolsonaro justamente para servir de seguro contra o impeachment, já que, à época, ele era visto como mais extremado do que o próprio candidato.

Bolsonaro dificilmente irá arbitrar de modo decisivo entre a ala olavista e a dos militares. É da natureza dos regimes populistas estimular intrigas e rivalidades internas para fidelizar colaboradores e energizar a base de eleitores. O problema desse arranjo é que ele não ajuda na governabilidade, e Bolsonaro precisa, se não governar bem, pelo menos evitar um novo mergulho recessivo, hipótese em que um impeachment se torna verossímil. Aí é muito melhor ter um Mourão do que um Olavo de Carvalho na reserva.


El País: Cem dias de um vice com agenda própria

O EL PAÍS analisou os compromissos públicos de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão nos três primeiros meses de Governo e encontrou a dedicação recente do presidente dos caciques partidários e o aceno de Hamilton Mourão ao PIB e à diplomacia

Nos cem primeiros dias de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro dedicou-se a encontros com sua equipe (ministros, assessores, dirigentes de estatais) e com políticos e caciques partidários —estes últimos ganharam espaço especialmente depois de o Planalto ser cobrado a atuar na negociação com o Congresso. Enquanto isso, Hamilton Mourão se destacou por receber empresários, presidentes de entidades da sociedade civil, diplomatas e a imprensa – as frequentes declarações do general da reserva aos jornalistas moldaram nestes três meses o perfil de um vice nada decorativo e sem constrangimentos em se firmar como um contraponto ao chefe. As ênfases da atuação das duas maiores autoridades do Poder Executivo ficam evidentes ao se analisar os dados que constam de suas agendas públicas.

No repasse do dia a dia da dupla de militares da reserva com assento no Palácio do Planalto, a  mudança de comportamento do presidente é eloquente: Bolsonaro criou tempo para receber os caciques partidários, tendo que modular seu discurso contra a "velha política" e a ideia de que seu Governo era capaz de negociar por meio de "eixos temáticos" com o Parlamento, e não com as legendas. Na lista do vice, uma maior diversidade nos compromissos, com um aceno ao PIB e à diplomacia. Chama atenção as pontes de Mourão para além do bolsonarismo: ele já recebeu representantes da oposição, como governadores do PT e do PCdoB, senador da REDE e dirigentes da Central Única dos Trabalhadores. Só com a CUT, foram dois encontros para debater a reforma da Previdência.

Entre 1º de janeiro e 10 de abril, quando se completaram os 100 dias, Bolsonaro esteve com 193 vezes com ministros e dirigentes de estatais, 79 com deputados e senadores, além de 12 com dirigentes partidários. Enquanto o presidente esteve em 25 encontros com empresários e investidores, Mourão foi a 62, entre eles duas vezes com dirigentes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), uma com o Banco Mundial e outras com petroleiras, instituições financeiras e mineradoras. Até por conta das atividades diferentes que desenvolve e pelas declarações que tem feito, na visita que fez aos Estados Unidos nesta semana, o vice foi apresentado como uma espécie de antagonista de Bolsonaro, mas que acabava dando previsibilidade ao seu Governo. Algo que, de pronto, refutou. “Eu sou complementar a ele”. O mesmo já havia dito ao EL PAÍS, em uma entrevista publicada em fevereiro.

Aproximação com o Congresso e espaço para os filhos

O desenrolar das semanas fez com que Bolsonaro reavaliasse ao menos duas de suas estratégias, a da articulação política e a de comunicação. Após ser criticado por não ter se empenhado no andamento de sua reforma da Previdência, passou a receber mais parlamentares e representantes de partidos. Nas últimas semanas, reuniu-se com 12 presidentes e dirigentes de legendas, com o objetivo de pedir o empenho delas no projeto que é a espinha dorsal de seus planos econômicos. “Ele se rendeu à velha política. Notou que esse discurso de novo, sem agir, não vale nada. Só valia para a eleição”, analisou o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília.

Com relação à comunicação, o presidente passou usar uma estratégia dupla: abriu espaço a jornalistas dos grandes veículos, ainda que nas redes sociais incentive os ataques aos meios de comunicação. Promoveu ao menos três encontros com jornalistas pré-selecionados e intensificou sua agenda de entrevistas exclusivas. Sempre que faz uma viagem internacional, fala com alguma emissora ou jornal local. Isso ocorreu nos Estados Unidos, em Israel e no Chile.

Uma comparação com a agenda de Mourão mostra que o vice é muito mais próximo à imprensa. Nesse início de Governo ele já concedeu 46 entrevistas a veículos nacionais e internacionais. Enquanto que o presidente deu apenas dez, conforme os dados oficiais. Esses dados, contudo, estão subestimados. Nas informações divulgadas pelo Planalto, raramente constam as entrevistas do presidente. Três exemplos: na viagem a Suíça, em janeiro, o presidente concedeu entrevista à Record TV que não foi contabilizada. O mesmo ocorreu em março, quando falou para a Band e nesta semana, quando foi entrevistado pela rádio Jovem Pan. O vice-presidente, por sua vez, detalha cada conversa que tem, citando o nome dos meios de comunicação e dos entrevistadores.

Para o professor Fleischer, a comparação entre os dois políticos mostra que Mourão tem “luz própria” e acaba fazendo parte de um grupo de militares responsável por indiretamente “tutelar” o presidente. Ele cita dois exemplos. Em fevereiro, o vice decidiu de última hora viajar a Bogotá, na Colômbia, para participar do Grupo de Lima e deixar claro que o Brasil era contrário a uma intervenção militar na Venezuela com o objetivo de depor o regime de Nicolás Maduro. “O ministro Ernesto Araújo [Relações Exteriores] estava pronto para apoiar a intervenção. Mas o Mourão viajou para fazer diplomacia”, diz o cientista político. O outro exemplo foi a viagem do vice aos Estados Unidos, onde ele se participou de encontros mais diversificados do que Bolsonaro e se encontrou com representantes da comunidade brasileira em Boston. “Parece que ele viajou aos Estados Unidos para limpar as sujeiras que Bolsonaro deixou por lá. Queria melhorar a imagem do país”, afirmou.

Os números não representam a totalidade das rotinas de Bolsonaro e Mourão. As inconsistências nas agendas, algo que em países como os EUA poderiam ser consideradas deslizes legais, ocorrem com maior frequência que se imagina. No caso da de Mourão, por exemplo, há menos encontros com diplomatas do que realmente ocorreram. Um deles que foi consultado pela reportagem disse que esteve com o vice-presidente “quatro ou cinco” ocasiões. Mas nos registros oficiais seu nome aparece duas vezes. Já na de Bolsonaro, nem todos os encontros que têm com seus filhos que são políticos aparecem nos dados oficiais. Conforme o levantamento, o presidente se reuniu seis vezes com o senador Flávio, seis com o vereador pelo Rio de Janeiro Carlos, apontado como o estrategista de comunicação do pai, e duas com o deputado federal Eduardo.


César Felício: O mercado aposta em Maia e estuda Mourão

Aprovação de alguma reforma é dada como certa

Nada parece mover o inabalável otimismo no mercado financeiro em relação à aprovação de uma reforma da Previdência: nenhum vídeo obsceno postado pelo próprio presidente, nenhuma intriga alimentada por Olavo de Carvalho, nenhum tuíte inexplicável do vereador Carlos Bolsonaro, ou trapalhada do ministro da Educação. Acredita-se que há duas esferas no poder em Brasília: uma é a movida a estrondo e fúria, navegando no mundo da instantaneidade e do espetáculo e tem o próprio presidente como protagonista.

A outra é bifronte e eficaz: são protagonistas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), visto como o mais credenciado negociador da reforma da Previdência; e o vice-presidente Hamilton Mourão.
A banca não tem absoluta certeza, mas acredita que Mourão vocaliza e opera em nome de todo o grupo militar, visto como mais preparado e dotado de maior estratégia política do que Bolsonaro, sua família e seus aliados mais próximos, em um pacote que inclui o próprio ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

O grupo militar seria a verdadeira espada e escudo de interesses que convergem para o mercado, frente ao qual o restante seria espuma. A contenção dos desvarios bolsonaristas em relação a Venezuela e transferência da embaixada para Israel seriam sinais eloquentes neste sentido.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, está fora da equação, e não por ser desimportante, ao contrário. Guedes não é visto ainda como um homem do mundo de Brasília, um dos beligerantes na conflagração por poder. Ele é um universo à parte, que montou uma reforma da Previdência sólida do ponto de vista fiscal, com muita gordura para negociar. Não deve, contudo, ser o condutor do processo de barganha.

A ansiedade do ministro em propor a emenda da desvinculação simultaneamente à reforma da Previdência, depois de a ter apresentado como "plano B", é vista mais como um sinal de sua inexperiência do que de sua visão tática.

Do ponto de vista do curto prazo para o mercado, Rodrigo Maia é a figura-chave. É descrito como o primeiro-ministro do governo, o operador para se garantir a aprovação de algo entre 50% e 80% da meta de Guedes em relação à reforma.
No pacote a ser tocado por Maia no Congresso ainda estão a nova política em relação ao salário mínimo, com evidente impacto fiscal, e o represamento de aumentos para o funcionalismo dos três Poderes.

Quem busca estudar Mourão no mercado está preocupado com o longo prazo. Ele é visto, no mínimo, como um possível presidenciável em 2022, ao lado de outros nomes como o de Bolsonaro, Moro, Doria e do próprio Rodrigo Maia. Em um cenário extremo, como uma alternativa ao atual presidente antes do fim do mandato. Os exemplos da década deixaram o sistema financeiro atento em relação a eventuais pontes para o futuro.

Um dos pontos que chamaram a atenção no vice é a sua transformação, como se Mourão buscasse estabelecer alguma espécie de contraste em relação ao titular do cargo. Durante a campanha eleitoral, sobretudo no período que precedeu a facada de Juiz de Fora, não foi o que se viu: Mourão fez declarações de caráter antidemocrático e que denotavam preconceito racial. Atrapalharam e muito a campanha de Bolsonaro. A questão que cabe no momento é qual o motivo para existir agora um vice que é a voz do bom senso, um comentarista permanente de todos os fatos que tenham relação direta ou remotíssima com o governo.

Supremo
Há um autoritarismo de baixo para cima, um clima de revolução cultural maoísta alimentado pelas redes sociais no Brasil, mas com o sinal trocado. Na China dos anos 60 eram colados em muros pela Guarda Vermelha, os 'dazibaos', onde a elite intelectual e administrativa do País era acusada de traição ao grande timoneiro. A instabilidade era permanente, dado o macartismo às avessas em que qualquer um acusava quem quer que fosse de qualquer coisa, sem blindagem possível.

Em baixa sempre estão a tolerância, o respeito às instituições como mecanismo de solução de controvérsias, a mediação política, a veiculação da informação com responsabilidade.

Por mais mesquinhas que sejam suas motivações, não é possível dissociar deste quadro a iniciativa do presidente do STF, Dias Toffoli de instaurar uma investigação de ofício sobre 'fake news' contra os ministros do Supremo.

À parte tudo isso, é preciso ponderar sobre a gravidade da decisão de ontem da Corte, que tornou crimes comuns passíveis de serem julgados pela Justiça Eleitoral. É claro que abriu-se uma porta para se afrouxar o combate à relação espúria que se estabeleceu entre políticos e o empresariado.

Talvez seja precipitado cravar que a decisão signifique o fim de uma era, como festejam petistas e deploram os protagonistas da Operação, mas o sentido da decisão é incontroverso.

Não há dúvida sobre a colocação de um limite crucial no poder do Ministério Público, a três dias do quinto aniversário do começo da Operação. Travou-se ontem uma disputa de poder, como mencionou Gilmar Mendes.

A indignação das redes sociais contra um STF que poda a Lava-Jato torna-se um catalisador para reações em cadeia. No âmbito do Congresso, a movimentação começou pelo Senado. Conforme registrou Cristiane Agostine e Carolina Freitas no Valor Pro, o líder do PSL na Casa, Major Olímpio, apresentou um projeto de lei para retirar da Justiça Eleitoral o julgamento de crime comum. Outro senador, Alessandro Vieira (PPS-SE), articula uma CPI "Lava Toga". Um terceiro, Lasier Martins (PSD-RS), emprestou o gabinete ontem para o advogado Modesto Carvalhosa protocolar mais um pedido de impeachment contra o ministro Gilmar Mendes.

O Judiciário terá que resistir a uma ofensiva muito mais consistente do que qualquer quartelada que envolva um cabo e um soldado.


Hélio Schwartsman: O capitão e o general

Vice, general Hamilton Mourão se tornou a voz da racionalidade na nova gestão

“Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca na caveira pra ser vice. Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment.” Essas foram as palavras que Eduardo Bolsonaro, o filho trinigênito, usou em agosto para comentar a escolha do general Hamilton Mourão para compor a chapa presidencial com Jair Bolsonaro.

À época, o raciocínio fazia sentido. Mourão, afinal, poucos meses antes, fora exonerado do cargo que ocupava no Exército após dar declarações que soaram golpistas e não conseguia controlar a própria língua, envolvendo-se em sucessivas controvérsias. Desde que o governo teve início, porém, o quadro mudou.

Enquanto o general fez as pazes com seu superego e tornou-se a voz da racionalidade na nova gestão, o capitão parece ter perdido qualquer elo que já tenha tido com o bom senso e cria para si mesmo encrencas gratuitas dia sim, dia não.

Para ficarmos na Quaresma, depois do caso do “golden shower”, que ocorreu há apenas seis dias, Bolsonaro já disse que devemos ademocracia à boa-vontade dos militares e reproduziu uma mentira em suas redes sociais para atacar covardemente mais uma jornalista, desta vez Constança Rezende, do Estadão. Põe-se agora a arbitrar o conflito entre as alas olavista e militar no MEC. Duvido que termine bem.

Se Mourão foi escolhido para servir como seguro contra um impeachment, o general hoje parece mais um atrativo do que um espantalho. É cedo, porém, para considerar um afastamento. O destino do governo Bolsonaro está atrelado à economia e ele sabe disso.

Um sinal animador é que, embora o presidente continue fantasiando com a tal da nova política, surgem sinais de que o governo já entabulou negociações com parlamentares para a reforma da Previdência. Não é que ela cure tudo, mas, sem essas mudanças, haveria uma deterioração tão forte da economia que o cenário Mourão se tornaria verossímil.


João Domingos: Comunicação sem rumo

O general Mourão não é um vice decorativo. Tornou-se um vice corretivo

Desde que Jair Bolsonaro reproduziu em sua conta no Twitter um vídeo obsceno, insistiu-se muito na tese de que o presidente o fez de caso pensado. Estaria, com tal iniciativa, tentando desviar a atenção a respeito de notícias ruins lá dos lados do governo, como o PIB de 1,1% em 2018 (resultado sobre o qual ele não tem responsabilidade), aumento da taxa de desemprego, violência que não para de crescer, incapacidade de formar uma base no Congresso que lhe dê sustentabilidade e garantia de aprovação de reformas na economia. Por fim, o vídeo seria também uma resposta às críticas que recebeu de blocos carnavalescos Brasil afora.

Se foi uma estratégia de comunicação do presidente, foi uma estratégia ruim. A despeito de alguns seguidores de seita, que acham tudo o que Bolsonaro faz lindo e maravilhoso, o presidente abriu o flanco para, na mesma rede social, apanhar como nunca. Sabe-se que houve reação do núcleo militar do governo. Logo, o Palácio do Planalto, ou seja, o próprio governo do qual Bolsonaro é o chefe, teve de divulgar uma nota para dizer que o presidente não criticara o carnaval como um todo, mas alguns blocos que se excederam em público.

Depois, o presidente fez um discurso de improviso numa cerimônia da Marinha e disse que democracia e liberdade só existem se as Forças Armadas assim o quiserem. Choveram críticas.

Afinal, democracia e liberdade não são uma dádiva das Forças Armadas. São conquistas da sociedade, da qual Aeronáutica, Exército e Marinha fazem parte e pelas quais, pela Constituição, jurada por Bolsonaro, essas mesmas Forças têm o dever de zelar. De novo, mais explicações.

Primeiro, por parte do vice-presidente, general Hamilton Mourão, que prontamente disse que as palavras de seu chefe haviam sido mal interpretadas, que Bolsonaro não quis dizer o que estavam dizendo que ele dissera. Depois, numa transmissão pelo Facebook, com os generais Augusto Heleno (ministro do GSI) e Rêgo Barros (porta-voz) ao lado, Bolsonaro deu outras explicações. Diretamente a Heleno, perguntou: “General, o senhor achou o meu pronunciamento polêmico?” Para Heleno responder que não e discorrer sobre o papel constitucional das Forças Armadas.

Do ponto de vista da comunicação, um desastre atrás do outro. Em primeiro lugar, porque os dois casos exigiram explicações posteriores. O do vídeo, por uma nota oficial do Palácio do Planalto; o da liberdade e da democracia, com dois generais ao lado. Sendo que antes o vice já se encarregara de dar também a interpretação daquilo que Bolsonaro quisera dizer. Como escreveu o jornalista Eumano Silva, o general Mourão prometeu que não seria um vice decorativo. Não é mesmo. Tornou-se um vice corretivo.

De acordo com levantamento feito pelo Estado, desde a posse, em janeiro, o vice Mourão já divergiu ou teve de explicar falas de Bolsonaro por sete vezes.

Vê-se que, do ponto de vista da comunicação, nada do que foi feito funcionou. Se era para desviar a atenção das notícias ruins, não desviou. Produziu novas.

Quanto às esperadas reformas, como a da Previdência, os atos e as palavras do presidente não as ajudaram em nada. Pelo contrário. Deram mais munição para os partidos de oposição que, embora sejam minoria, têm acuado o governo em todas as sessões, sejam do Senado, sejam da Câmara. A ponto de o deputado Marco Feliciano (Podemos-SP) dirigir, também pelas redes sociais, ao presidente e aos filhos Carlos, vereador no Rio, e Eduardo, deputado federal, um alerta quanto à comunicação do governo. “A comunicação está péssima. Ou vocês criam um grupo político e intelectualmente preparado ou todos os dias irão sangrar.”


José Roberto de Toledo: O presidente inseguro

Enquanto Guedes e Mourão tratam do que importa, Bolsonaro demite civis do segundo escalão

Quem assegura o presidente? Jair Bolsonaro mandou demitir a suplente de uma comissão de segundo escalão para provar que ainda manda. Ilona Szabó havia sido nomeada horas antes por Sérgio Moro para um cargo simbólico, sem poder nem salário. Daria aparência de diversidade a um governo que – como o episódio provou – se preocupa mais com as redes antissociais do que com a sociedade. Mas bastou uma campanha contra ela no Twitter para Bolsonaro ignorar seus conselheiros, desmoralizar Moro e mandar o ministro demiti-la.

Queimou, assim, mais um punhado de fichas de seu declinante cacife político – e sem ganhar nada com isso: nenhum voto a mais no Congresso, nenhum simpatizante que já não fosse convertido.
Não, não foi apenas uma demissão. Foi ato de quem carece de autoafirmação. O presidente agiu em defesa da própria autoridade, numa tentativa de impor a aceitação de seu poder por quem o cerca. É atitude de quem se acha fragilizado ou de quem busca se libertar de algum tipo de tutela. Qual governante faz isso com dois meses no cargo? E pela segunda vez em poucas semanas? Sim, porque a demissão de Szabó tem a mesma matriz que levou à defenestração precoce do ministro Gustavo Bebianno.

Nos áudios de WhatsApp da conversa que ele disse não ter tido com o ministro, ouve-se Bolsonaro invocar o próprio cargo – “como presidente da República” – para mandar Bebianno cancelar um encontro e uma viagem também desimportantes. Como se precisasse lembrar a si próprio e aos subordinados quem é quem.

Tanto uma quanto outra demissão nasceram da paranoia antiesquerdista de Bolsonaro e família. Da necessidade de perseguir inimigos reais ou imaginários para afirmar a própria identidade. Mas, se fosse só isso, a reação intempestiva do presidente seria acalmada por conselhos temperados de assessores mais experientes e racionais. Sua intransigência mesmo quando confrontado com o desgaste que imporia ao próprio governo é sinal de que a insegurança presidencial tem causa mais complexa.

Talvez Bolsonaro precise de episódios assim para perceber-se empoderado. Enquanto o agora único superministro Paulo Guedes comanda a reforma da Previdência, enquanto o vice Hamilton Mourão se junta aos demais presidentes sul-americanos para tentar evitar um conflito armado na Venezuela, Bolsonaro vai ao hospital, participa de cerimônias decorativas ou mofa no palácio. Demitir civis desimportantes é uma compensação.

Os generais que avalizaram a chegada de Bolsonaro à Presidência devem estar se perguntando quantos outros surtos libertários do presidente eles terão que administrar daqui pra frente. Quem será o próximo sacrificado para assegurar ao chefe que ele é respeitado, que manda, que faz e acontece? E essa próxima vítima vestirá terno, toga ou farda?

Além de tornar evidentes as fragilidades do governo, a demissão forçada de Szabó escancarou a passividade de Moro diante do clã Bolsonaro. O subministro já parecia titubeante ao ter que investigar os laranjas do PSL e as conexões milicianas. Agora, desautorizado publicamente pelo presidente, optou pelo cargo à própria autoridade. Deu mais um passo do laranjal ao bananal.

Aonde tudo isso vai dar? Já está dando. Em apenas um mês, Bolsonaro perdeu dez pontos de popularidade. Uma pesquisa feita no fim de janeiro e que nunca chegou a ser divulgada dava 67% de aprovação ao presidente. A da CNT, feita um mês depois, apontou 57%. Significa que Bolsonaro ainda tem a aprovação da maioria, mas está gastando à toa e rápido demais o estoque de boa vontade dos brasileiros. E faz isso antes de um momento crítico, quando precisará de popularidade para convencer deputados e senadores das mudanças que quer fazer no sistema de aposentadorias e pensões.

Como tubarões que sentem uma gota de sangue no mar, os congressistas perceberam a fragilidade do governo, impuseram uma derrota simbólica revogando um decreto presidencial e estão exigindo contrapartida em cargos e emendas ao orçamento. Já os grupos de pressão e lobbies corporativos vão cobrar sua parte em exceções e privilégios na reforma da Previdência. As demissões autoafirmativas de Bolsonaro custam caro. E, a se repetirem, custarão muito mais.

Quem segura o presidente?

*José Roberto de Toledo, Jornalista da piauí, foi repórter e colunista de política na Folha e no Estado de S. Paulo e presidente da Abraji


Luiz Weber: O general dublador

Mourão tem servido de 'closed caption' quando Bolsonaro fala e a declaração cai mal, mas há o risco da armadilha da tradução

Mourão é o “closed caption” de Bolsonaro. Se o presidente fala e a declaração cai mal no mercado financeiro ou na política, o vice é acionado pela estrutura militar do Planalto para legendar o pensamento presidencial.

Na sexta-feira (1º), assessores palacianos se viram obrigados a teclar o botão CC para traduzir uma fala do presidente considerada desastrosa sobre a reforma da Previdência.

No dia anterior, durante entrevista realizada em ambiente de estufa, Bolsonaro admitiu que a idade mínima de aposentadoria das mulheres poderá ser revista.

Até então, o foco do Congresso estava nos “bodes na sala” —o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que é pago a idosos pobres e a pessoas com deficiência, e a aposentadoria rural. Bolsonaro abriu, de graça, nova frente de batalha.

“O presidente foi mal interpretado”, socorreu o general Mourão. Acontece que mesmo os melhores aparelhos digitais apresentam certo “delay” entre a fala e a transcrição. No lapso entre a declaração e a correção, a bolsa especulou e a miúda base parlamentar desarrumou-se ainda mais.

Parte do poder presidencial vem de sua caneta. Mas componente tão importante quanto mandar e desmandar é a capacidade de persuasão, de transmitir uma visão de mundo que os destinatários (deputados e senadores) se sintam à vontade em compartilhar.

A questão previdenciária precisa de um presidente persuasivo. Bolsonaro terá que se fazer compreender pela sua própria voz. Não será com mais hashtags que o governo conseguirá a aprovação da reforma.

Como intérprete presidencial, Mourão pode até continuar dublando o bolsonarês para o português falado no mercado e na política. Mas há o risco de cair na armadilha da tradução. Todo tradutor é um pouco traidor ao inocular no texto sua própria visão de mundo. Por mais sensatas que sejam até agora as declarações do vice, uma dupla voz vinda do Planalto só cria mais ruído.


Ricardo Noblat: Bolsonaro e os apagadores de incêndios

Chamem o Mourão!

Repetiu-se ontem o que já se tornou corriqueiro nos últimos dois meses: o presidente Bolsonaro ateia mais um fogo e autoridades do governo e líderes de partidos aliados se apressam imediatamente em tentar apagá-lo. Muitas vezes funciona. Das vezes que não, ficam restos em brasa do estrago provocado. É um perigo.

Em seu primeiro café da manhã no Palácio do Planalto com jornalistas selecionados por ele mesmo, Bolsonaro precipitou-se em identificar vários pontos da proposta de reforma da Previdência que poderiam ser modificados – entre eles, o teto de 62 anos para aposentadoria das mulheres. Admitiu baixá-lo para 60 anos.

Foi um alvoroço dentro da equipe econômica comandada por Paulo “Posto Ipiranga” Guedes, e entre os militares que cercam de perto Bolsonaro. Se logo de saída, sem que tenha começado a negociação com o Congresso para aprovação da reforma, o presidente começa a fazer concessões, como será mais tarde? O que sobrará dela?

O chefe da brigada dos apagadores de incêndio correu a apagar o fogo que ameaçava se alastrar. Acostumado à tarefa, o vice-presidente Hamilton Mourão disse que Bolsonaro foi mal interpretado. E ofereceu a interpretação que julga correta:

– O presidente mostrou que tem coisas que o Congresso poderá negociar ou mudar. Só isso. Não que ele concorde.

O que disse Mourão havia sido antecipado pelo líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (PSL-GO), outro brigadista. Segundo o major, Bolsonaro limitou-se a demonstrar a disposição do governo de negociar” a reforma. Calado estava, e calado permaneceu o ministro de tudo o que tem a ver com a economia, inclusive os penduricalhos.

No mesmo café da manhã com jornalistas, sentindo-se em ambiente seguro e amigável, Bolsonaro afirmou que não descarta a hipótese de conversar com o ditador Nicolás Maduro sobre a crise na Venezuela, assim como o presidente Donald Trump tem conversado com Kim Jong-um, o ditador da Coreia do Norte. É diferente, mas que fazer?

Mourão foi novamente chamado ao palco. Informou que o Brasil não procurou representantes do regime de Maduro para estabelecer qualquer tipo de diálogo com o governo da Venezuela. E que o comentário feito por Bolsonaro decorreu de uma “pergunta hipotética”. O comentário pode ter sido hipotético, a pergunta não foi.

E assim o país viverá os próximos quatro anos – ou exatos três anos, 9 meses e 28 dias. Um governo biruta, que oscila ao sabor dos ventos, sujeito a incidentes de percurso e a intervenções nem sempre felizes de um chefe de família com seus garotos, precisa de bombeiros eficientes e dispostos a socorrê-lo. Ainda bem que eles existem.


Hélio Schwartsman: Dia D fracassa na Venezuela

Plano não era ruim, mas deixa agora maioria dos atores numa situação difícil

Fracassou a tentativa do Ocidente de atiçar uma mudança de regime na Venezuela. O plano até que não era ruim. Só o que segura Nicolás Maduro no poder é o apoio dos militares. Se a oposição, liderada por Juan Guaidó, tivesse conseguido fazer com que soldados deixassem de reprimir venezuelanos em busca de alimentos e remédios nas fronteiras com a Colômbia e o Brasil, poderia ter desencadeado um movimento de deserção em massa que acabaria por derrubar o governo. Mas isso, até o momento em que escrevo, não aconteceu.

A não materialização desse cenário deixa a maioria dos atores numa situação difícil. Maduro sobreviveu à investida, mas está ainda mais isolado do que há um mês, quando Guaidó se declarou presidente. Os militares que apoiam o regime perderam a chance de bandear-se com a promessa de anistia e num contexto preparado para reduzir a probabilidade de uma transição violenta. Não se sabe se terão outra oportunidade dessas.

Guaidó viu seu plano fracassar. O Dia D não definiu nada, e o impasse deve agora prolongar-se. Os mais de 50 países ocidentais que reconheceram o jovem parlamentar como presidente legítimo veem-se agora na delicada posição de apoiar um dirigente que não tem controle do país. Pior, o fracasso pode levar Donald Trump e outros incautos a flertar com uma intervenção militar, o que seria desastroso para a Venezuela e para toda a região.

Quem mais perde, como sempre, é a população venezuelana. Não há a menor perspectiva de futuro com o governo bolivariano. Acho que nem o próprio Maduro acredita que ele pode presidir a um processo de recuperação econômica. Só em 2018, o PIB experimentou uma retração de 18%, e a inflação se encaminha para a impressionante marca de 10.000.000%. Falta tudo no país, de comida a liberdade. Ficar com Maduro é condenar-se ao inferno, mas cabe aos venezuelanos encontrar a forma de livrar-se do ditador.