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David Kupfer: A indústria ainda é aquela

A pesada queda sofrida pelo nível de atividade industrial em agosto último, que foi 3,8% menor do que o do mês anterior, virtualmente anulou toda a recuperação que a indústria havia acumulado em 2016. Esse resultado tão negativo, surpreendente somente para as Polianas de plantão, é revestido de importante caráter didático. O problema econômico brasileiro está longe de ser eminentemente expectacional.

Claro que alterações no estado de confiança dos tomadores de decisão de produção e investimento são variáveis de grande relevância na determinação das perspectivas da economia. Mas o Brasil de hoje está muito menos parecido com um mar de oportunidades enevoado por um quadro expectacional cinzento do que com um deserto de novos e bons projetos provocado pelas toneladas de areia que graves distorções estruturais estão colocando nos motores da economia.

Se é correto que a estagnação da economia brasileira tem origem primariamente estrutural, a solução não estará ao alcance de medidas que simplesmente tenham o dom de convencer investidores reticentes a reencontrarem o espírito animal perdido. Terá de vir de políticas que proporcionem a retirada das amarras ao processo de investimento, reabrindo um horizonte de atratividade econômica para as empresas. Daí a importância crucial de se entender a dinâmica (ou a falta de) recente da formação de capital na economia brasileira, visando identificar onde estão as principais travas.

Sob a ótica da demanda, os números que descrevem a contribuição dos seus componentes para a variação do Produto Interno Bruto durante o último ciclo de crescimento (2004-2010) mostram com clareza o papel fortemente dinamizador exercido pela formação de capital fixo.

Com a exceção de 2009, ápice da crise financeira global, a contribuição desse componente se elevou ano após ano no período até atingir 3,4% em 2010. Isso correspondeu a quase a metade da variação do PIB nesse ano, que foi de 7,5%, e quase igualou a contribuição dada pelo consumo das famílias, que foi de 3,9%, mesmo tendo esse último um peso no produto três vezes maior. Esse dado é importante para desmistificar uma ideia muito difundida, embora muito pouco verdadeira, de que a economia brasileira teria experimentado um puro ciclo de consumo nos anos de expansão da década passada.

Com a chegada de 2011, as tensões e dilemas que vinham marcando o processo de retomada econômica no Brasil começaram a aflorar. No plano internacional, o mergulho da Eurozona sinalizava que a recuperação da economia mundial não viria como resultado das medidas monetárias tomadas pelos bancos centrais líderes. No Brasil, o sucesso das políticas anticíclicas adotadas após a crise de 2008 levou a um paradoxo fundamental: como prosseguir com essas políticas anticíclicas na arquitetura de um modelo de estabilização tão procíclico como o do Tripé Macroeconômico adotado pelo país. Evidentemente, a corda iria arrebentar para algum lado. E arrebentou para o lado da robustez macroeconômica, fazendo do investimento o grande perdedor de longo prazo.

Sob a ótica da oferta, o ciclo anterior de expansão (2004-2010) ocorreu em meio a um quadro muito favorável de preços internacionais dos bens commodities nos quais a economia brasileira é relativamente especializada, que pode ser atribuído, de forma simplificada, ao chamado efeito China que preponderou nesses anos. Mas a expansão dos serviços, especialmente comércio, transportes, e serviços prestados às famílias, também constituiu uma fonte dinâmica tão ou mais relevante, como consequência do efeito renda que se estabeleceu no mercado interno.

A contribuição da indústria manufatureira (não-commodities) foi minimizada pelo “vazamento” para fora decretado pela perda de competitividade relativa trazida pelo período muito longo de apreciação cambial conjugado à estagnação da produtividade e forte ampliação dos custos sistêmicos da produção.

Com o esgotamento do ciclo anterior que se dá a partir de 2011 teve lugar uma reviravolta. Ao invés de premiar, os mercados internacionais de commodities passaram a penalizar a economia brasileira enquanto o dinamismo dos serviços, totalmente dependente que era do efeito renda, literalmente evaporou. Projeções que se possam fazer para frente indicam ser inevitável que, sem o impulso da demanda, os preços dos serviços acabem cedendo como, aliás, a despeito das defasagens, vem sendo gradualmente captado pelos índices de inflação. Mais cedo ou mais tarde, essa trajetória de queda de preços irá disparar um intenso processo de aumento da produtividade dos serviços, que implicará novas tensões sobre a economia brasileira.

A saída da crise, quando vier, vai envolver, necessariamente, a viabilização de novos blocos de investimento. E onde estarão essas oportunidades? Não é preciso ter uma bola de cristal para responder que uma parcela importante virá da infraestrutura. Mas há um outro bloco de investimentos, talvez menos visível, que poderá vir exatamente do processo de modernização dos serviços acima discutido. Ambos acarretam um crescimento da importância da indústria no fornecimento de insumos intermediários e bens de capital mais sofisticados que serão necessários.

Daí decorre uma conclusão cristalina. Dificilmente a retomada virá sem que se recomponha o papel indutor da indústria como motor do crescimento. Mas atenção: será uma nova indústria. E é exatamente nas políticas voltadas para a promoção dessa nova indústria que está a saída. (Valor Econômico – 10/10/2016)

David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br.


Fonte: pps.org.br