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Míriam Leitão: O presidente e o delito continuado

O que a CPI mostrou até agora foi que o presidente Jair Bolsonaro impediu dois ministros da Saúde de agirem conforme as orientações técnicas e científicas durante a pandemia. O ato foi continuado. O ex-ministro Nelson Teich repetiu ontem diversas vezes a informação de que ele não concordava com a recomendação de uso da cloroquina e, por divergir disso, saiu. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta entregou carta a Bolsonaro, fez cenário, mostrou a gravidade da crise e teve que enfrentar uma assessoria paralela no Planalto que queria o uso da cloroquina. Não aceitou e, por isso, foi demitido. As orientações dos ministros poderiam ter salvado vidas.

O presidente da República amarrou a mão de seus ministros, os impediu de agir, não ouviu técnicos, ignorou a ciência, desafiou a medicina e impôs a sua forma de conduzir o país numa pandemia. E isso está nos levando à morte. Bolsonaro deu várias vezes sinais explícitos de que aposta na tese perigosa de ampliar a contaminação para chegar ao fim mais rápido da pandemia. Ontem, Nelson Teich foi claro: “Essa tese de imunidade de rebanho, onde você adquire a imunidade através do contato e não da vacina, isso é um erro.”

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou que a crise seria longa, trágica, mataria, no pior cenário que fez, 180 mil brasileiros em 2020. Foram 11 mil a mais. Disse que não havia remédio, portanto era para seguir o que sempre foi usado nas epidemias de doenças infecciosas: o distanciamento social. O presidente o ignorou. Nem mesmo a máscara ele adotou. Pelo contrário, quem entra no Planalto é até constrangido a tirar a máscara, como me disse uma autoridade. Da mesma forma que o general Eduardo Ramos tomou vacina escondido, o código perto de Bolsonaro é esconder a máscara. Essa é a lógica tacanha de quem preside o país.

Mandetta diz que foi chamado a uma reunião no terceiro andar, gabinete do presidente, e lá viu a minuta de um decreto que imporia a mudança da bula da cloroquina. Estavam presentes pessoas estranhas ao governo, mas que o presidente ouvia sobre saúde, em vez de o ministro. Presente também o filho Carlos, que participa de reuniões ministeriais com direito a assento na mesa. Tudo era o retrato de um governo distorcido.

Teich contou que num dia houve uma live em que o presidente garantiu que ampliaria o uso da cloroquina e, no dia seguinte, ele falou a mesma coisa em uma declaração na saída do Alvorada. Isso sem a aprovação do ministro da Saúde. Foi essa a sequência final dos eventos que levou Teich a sair do governo, 29 dias depois de ter entrado.

Nesses dois dias da CPI ficou claro que o único ministro da Saúde que ele permitia ficar no cargo era um que aceitasse dizer a frase: “Senhores, é simples assim: ele manda, eu obedeço.” A propósito, Teich aceitou o general Pazuello como seu secretário-executivo, e com a experiência da proximidade disse que ele não tinha o conhecimento técnico suficiente em gestão de saúde para ocupar a posição de ministro da Saúde.

Pazuello ocupou o cargo, no meio de uma pandemia, porque era o único a aceitar o cabresto do presidente. Cabresto que ele tenta impor ao país com seu mandonismo agressivo. Ontem foi mais um dia de ameaças institucionais ao país, gritadas no meio de um evento oficial. Disse que vai baixar um decreto contra as medidas protetivas adotadas por prefeitos e governadores.

— Se baixar esse decreto, ele será cumprido e não será contestado, não ousem contestar — berrou Bolsonaro, querendo dizer que a Justiça não poderia revogar tal ato.

Ontem também o presidente fez novo ataque à China, insinuando que o vírus teria sido parte de uma guerra química, bacteriológica.

Poderia ser só insensatez, mas é muito mais. Bolsonaro está acuado. Está ficando claro que ele cometeu delito continuado na gestão da pandemia. Derrubou os ministros que queriam nos conduzir para um cenário de menos mortes e mais proteção, impôs um que seguiu todas as suas ordens e que agora está se escondendo na barra da farda do Exército. O comando de Bolsonaro foi claro: exposição ao vírus, cloroquina e ameaças autoritárias. Enquanto a CPI fazia nova radiografia do seu absurdo modo de governar, Bolsonaro deu mais um dos seus gritos. Queria distrair a atenção. O risco é o país não reagir a esse candidato a ditador.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-presidente-e-o-delito-continuado.html


Míriam Leitão: Política dos governadores combate a pandemia e fortalece federação

Uma das raras notícias boas nesse tempo trágico é a união dos governadores. Eles começaram a se organizar em consórcios regionais e depois no Fórum para ocupar o espaço vazio criado pela omissão do governo federal. Nesse momento, a união dos governadores ajuda o país a enfrentar a catástrofe que já ceifou mais de 270 mil vidas, mas para além desse momento, isso ajudará a fortalecer a federação brasileira, dando aos entes federados mais noção do poder que têm. Disso sairá um equilíbrio maior de poder entre os estados e o governo federal. 

Na falta de uma coordenação geral,  a articulação entre os estados é bem-vinda. Governadores têm criado uma rede solidária. Princípio fundamental numa federação. Ao invés de cada um cuidar apenas do seu estado, estão construindo uma rede de ajuda mútua. Além disso, do ponto de vista da gestão criaram formas de que haja circulação rápida de informação entre eles e meios de negociação para a construção de consensos. O consórcio do Nordeste criou seu próprio comitê científico, e o Fórum de governadores fez manifestações importantes e está se articulando no Congresso para suprir as inúmeras e criminosas falhas do governo central.

Na democracia, é importante que nos momentos de emergência haja construção de consensos entre as autoridades passando por cima de suas diferenças partidárias ou regionais. E as autoridades dos estados federados vêm se comportando muito bem, exceto alguns. No Rio, infelizmente, o governador Cláudio Castro não assinou a carta e disse em resposta ao governador João Doria "da população do Rio cuido eu". Ele não está cuidando quando se desconecta do grupo de governadores e não adota as medidas necessárias para proteger a população.

O governador do Piauí, Wellington Dias, presidente do consórcio do Nordeste,  disse que a ideia é tentar adquirir vacinas de uma forma conjunta e transferir para o Programa Nacional de Vacinação. Isso é para evitar que sejam beneficiados apenas os estados mais ricos e que têm verba para compra da vacina. Dias tem sido o excelente porta-voz do grupo, por ser firme no principal - o alerta sobre os riscos da pandemia - mas evita conflitos desnecessários.

Tenho conversado com vários governadores e é interessante ver como eles têm negociado entre eles, aparando arestas, trabalhando pelos pontos em comum, mesmo quando há divergências. E eles não querem atuar contra o governo federal, pelo contrário, querem ser eficientes como gestores públicos na defesa da vida. Não é um movimento contra o governo, mas pela saúde dos brasileiros.