MInistério Público

Cristina Serra: O 'cara da casa de vidro'

Esclarecer as conexões entre Adriano da Nóbrega e Bolsonaro é prioridade

O repórter Sérgio Ramalho, do site The Intercept, teve acesso a um relatório do Ministério Público do Rio de Janeiro com o resumo dos grampos telefônicos de comparsas de Adriano da Nóbrega. Como se sabe, Adriano era o chefe da milícia Escritório do Crime e foi morto em uma operação policial, na Bahia, que mais parece queima de arquivo. As conversas indicam conexões muito mais profundas entre o ex-policial militar e Bolsonaro do que se sabia até então.

Após a morte de Adriano, seus cúmplices teriam procurado um homem, mencionado nos grampos como o "cara da casa de vidro". Fontes do MP-RJ ouvidas pelo site dizem tratar-se de Bolsonaro, e a "casa de vidro" seria uma referência à fachada envidraçada do Palácio da Alvorada. O homem também aparece no relatório como "Jair" e "HNI (PRESIDENTE)". HNI é a sigla para Homem Não Identificado.

As conversas começaram na data da morte de Adriano e foram interrompidas dias depois, quando surgiram as supostas menções a Bolsonaro. O Ministério Público estadual não tem poder para investigar o presidente, e um caso como esse teria que ser encaminhado à Procuradoria-Geral da República.

Adriano da Nóbrega seria peça chave para o esclarecimento de crimes que, de alguma forma, embaralham no mesmo enredo a milícia que chefiava, alguns de seus parentes, o amigo de longa data Fabrício Queiroz e o clã presidencial. Todos juntos e misturados no esquema das rachadinhas.

Esclarecer essas conexões deveria ser prioridade absoluta de investigadores, imprensa, autoridades e instituições no Brasil. Porém, as investigações que envolvem o sobrenome Bolsonaro parecem contaminadas pela lentidão e por generosa condescendência em instâncias do aparelho estatal. Não por acaso, Bolsonaro sente-se à vontade para debochar dos 400 mil mortos pela pandemia usando a expressão "CPF cancelado", a gíria miliciana para pessoas assassinadas.


Marcelo Godoy: Bolsonarismo faz Pazuello permanecer ministro e milícia marchar no Rio

Oficiais assistem incomodados à novela do colega; coronéis repudiam uso de boinas e botas da Brigada Paraquedista em manifestação política, o que seria crime militar

Caro leitor,

o 'ex-ministro' Eduardo Pazuello foi receber um lote de 1 milhão de vacinas importadas que chegou ao Brasil no domingo, dia 21. Há sete dias, o Ministério da Saúde tem um ministro demitido à frente da pasta no momento mais dramático da história recente do País. A presença de Pazuello continua a assombrar generais da ativa e da reserva, assim como a maioria da população, que repudia o negacionista e a obediência cega ao capitão do Planalto. Estadão mostrou as preocupações de governadores e dirigentes da Saúde com a inação do ministro em meio à ameaça da falta de oxigênio e de remédios para UTIs em hospitais de todo o País

Há três meses, esta coluna revelou que um pequeno grupo de militares da reserva pedia a saída do especialista em logística da pasta, depois do prejuízo ao erário causado pelos testes que foram esquecidos em um depósito até quase vencer a validade de todos. Desde então, o coro só aumentou. E foi com alívio que muitos militares da ativa e da reserva receberam, na semana passada, a notícia de que Bolsonaro, finalmente, resolvera retirar Pazuello, um general da ativa, de seu ministério.

Desde janeiro, o apoio a Pazuello despencava. Naquele mês, um tenente-brigadeiro até recentemente na ativa disse à coluna, diante da crise de oxigênio em Manaus, que tudo seria mais fácil se o governo não tivesse desistido, em 2019, da compra de um Boeing 767, por cerca de US$ 14,47 milhões – fora os gastos com o suporte da aeronave. O avião teria ajudado a salvar vidas, pois podia fazer “viagens com 250 passageiros ou, no caso, tubos de oxigênio para abastecer Manaus”.

Na semana passada, a indústria química cobrou do ministério a falta de planejamento logístico para o País em meio à crise dos remédios do chamado kit intubação. Quer dizer que, passado um ano de pandemia, o governo não tem ainda um plano? O que fizeram os coronéis levados por Pazuello para o ministério, além de lacrar em entrevistas? Um general alertou logo no começo dessa aventura: cada um assume o cargo com seu CPF. O problema é que muitos queriam fazê-lo em nome do Exército, como se o cargo fosse “missão”.

O constrangimento só aumentou. Pazuello não larga o osso – dizem seus colegas – porque pretendem apaziguá-lo com outro cargo, talvez um ministério ou uma secretária com o mesmo status. Como Jason, aquela personagem de filmes de terror que não desencarna, Pazuello foi demitido, mas não deixa de ser ministro. A situação já não espanta os colegas da ativa. Ninguém entende mais nada. Ou pior. Entende. Mas finge não saber o que se passa. Enquanto mais de 2,2 mil pessoas continuam morrendo em média todo dia no País, o governo gasta tempo discutindo a salvação de um único brasileiro: o general Pazuello. 

Não deveria ser tratado como letra morta o que escreveu o cientista político Oliveiros S. Ferreira. “Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares.” No Planalto, o imbróglio é colocado na conta do civil escolhido para substituir Pazuello: Marcelo Queiroga. O leitor viu aqui que Queiroga é sócio de uma empresa e, por isso, não pode assumir o cargo. Quer dizer que o presidente resolveu nomeá-lo, mas nenhum Heleno nem ninguém do Gabinete de Segurança Institucional verificou se havia algum óbice para que Queiroga assumisse? Alguém pode perguntar: Mas porque seria importante ter um ministro se quem manda na Saúde é o presidente que manda nebulizar cloroquina em pacientes na UTI? E ainda imita pessoas com falta de ar... E assim o pesadelo continua. 

Uma das origens dessa baderna no Planalto é a mistura entre a instituição militar e o bolsonarismo, fenômeno patrocinado pelos próceres do movimento liderado por Jair Bolsonaro. Foram eles que nomearam oficiais generais da ativa para cargos civis no governo. Foram eles que entraram em organizações militares e fizeram discursos políticos para cadetes e alunos. Eles deram o exemplo de indisciplina e desprezo pela gravidade da pandemia,  comparecendo a lugares sem tomar cuidado algum. E ainda hoje acreditam em tratamento precoce sem comprovação científica. Eles nunca foram visitar os doentes nos hospitais para levar conforto e apoio e constatar o resultado de sua guerra à ciência.

Enquanto hospitais de todo País alertam há dias para o colapso, Bolsonaro desconfia de tudo, como se as pessoas morressem só para impedir sua reeleição. Seus apoiadores chegam a distribuir áudios negando que o senador Major Olímpio foi vítima da covid-19. Ao Estadão, o ex-ministro e general Carlos Alberto Santos Cruz escreveu:  “Houve perda de tempo com banalidades e estamos absurdamente atrasados. É inaceitável que a pandemia tenha sido conduzida sem liderança, com falta de considerações técnicas, com constantes tentativas de desmoralização dos procedimentos apropriados, politização completa de todo o processo e até de medicamentos”. Santos Cruz apoiou Bolsonaro em 2018. Outros como ele se afastam do presidente. 

E o que faz o bolsonarismo diante desse quadro? Dobra a aposta. Há uma semana grupos de Whatsapp do movimento foram de novo inundados com manifestações golpistas pedindo “intervenção militar”, um movimento planejado, que deseja a decretação de estado de sítio. Um bando em forma de milícia marchou no domingo, no Rio, usando a boina da Brigada Paraquedista – com o símbolo do Exército – e o "bute marrom". Divulgaram vídeos ameaçando “os esquerdas” – todos os brasileiros que se opõem aos arruaceiros. O uso indevido de uniforme, distintivo e insígnia de posto ou graduação é crime tipificado nos artigos 171 e 172 do Código Penal Militar. No primeiro, são punidos os militares transgressores com 6 meses a 1 ano de detenção. No segundo, os civis, cuja pena cai pela metade.

A milícia dos valentões se aglomerou em frente à casa do presidente para lhe render apoio. E assim degradou um dos símbolos da Brigada em uma manifestação político-partidária. Para um coronel engenheiro militar ouvido pela coluna, o Comando do Exército e o Ministério Público Militar devem uma reposta à impostura. Têm de mostrar que os comportamentos em conflito com a lei e com os valores castrenses não ficarão impunes. Mais do que usar o símbolo paraquedista, a milícia queria amedrontar, ameaçar e intranquilizar os brasileiros que discordam do presidente. Sonhava em reduzir as Forças Armadas à mera Guarda Pretoriana de Bolsonaro – o próprio presidente usa o lema da Brigada.

Mas o Exército deve pertencer à Nação e não a Bolsonaro nem a qualquer outro presidente que se ponha fora da Lei e ameace o País pelas armas. Cada vez que renova suas aldrabices, Bolsonaro pretende que o País acredite que os ponteiros do relógio da legalidade se aproximam da hora em que as Forças Armadas terão de enfrentar a prova final. Desconhece o aumento do número de generais que o tratam agora como “o louco da aldeia”, aquele sujeito que grita e gesticula no chafariz, mas ninguém se detém para ouvi-lo. Nem o levam a sério. Outros que há muito o conhecem se resignam. É que as perspectivas de poder de Bolsonaro diminuem a cada dia, a cada morto da pandemia. E ele não percebe que o turfe não é o único lugar em que não se aposta em cavalo perdedor.

*Marcelo Godoy é jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).

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Ricardo Noblat: Engrossa o caldo dos que querem ver Bolsonaro pelas costas

O mau uso que ele faz do apoio militar

Qual o sonho de consumo do brasileiro ameaçado pelo vírus que bate à sua porta? Se for inevitável contraí-lo, quer uma vaga de UTI no melhor hospital que existir, medicamentos em profusão, cilindros de oxigênio à farta e uma equipe de sábios doutores e de experientes enfermeiros que cuidem dele em tempo integral.

A isso a pandemia nos reduziu. A isso que nos reduziu um presidente da República genocida por natureza que parece ter forte compulsão pela morte, sabe-se lá por quê. Freud explica, certamente. Assunto para estimular discussões intermináveis entre psicanalistas das mais diversas escolas.

Seria o caso também de eles se debruçar, junto com sociólogos, antropólogos e historiadores, sobre o comportamento até aqui indiferente ou resignado da maioria dos brasileiros diante do número de mortos pela doença que em breve superará a marca dos 300 mil. Por que procedemos assim? O que nos move?

Bolsonaro, que tantas vezes desafiou a morte como paraquedista do Exército antes de ser afastado de lá, acusado de conduta antiética, é movido pela falta de compaixão e pelo firme propósito de tirar vantagem de tudo, até de um banho nas águas frias do rio Jordão. Ele, acima de tudo! Os filhos, acima de todos!

Só muda quando o desespero toma conta de sua alma. Sempre que se vê acuado, apela às Forças Armadas e finge contar com o seu apoio para governar e, em situação extrema, ir além – se der, via adoção de medidas capazes de instalar no país um regime autoritário. Seu compromisso com a democracia é zero.

Se não a sabota mais do que já faz é porque lhe falta respaldo. Nas eleições de 2018, ele de fato foi o candidato dos militares, preocupados em impedir um eventual retorno da esquerda ao poder. Nas eleições de 2022, tudo indica que continuará sendo. Mas se for derrotado, lhe baterão continência à saída,  tchau, e só.

Por formação, militar é de direita, aprecia armas, trata os subordinados aos berros e cobra obediência. Mas muitos nos escalões superiores são estudiosos e bons analistas. Sabem ler o mundo e o país. Sabem que a supressão da democracia faria do Brasil um pária internacional. E isso eles não querem.

Pária já é. A nova cepa brasileira do vírus aterroriza os governos da região. Peru e Colômbia proibiram voos do Brasil. O Uruguai mandou mais doses de vacinas para a fronteira com o Rio Grande do Sul. Quem vai do Brasil para o Chile fica em quarentena. Os argentinos impuseram restrições à entrada de brasileiros.

Insensível ao que se passa ao redor, Bolsonaro usa os militares como espantalho doméstico, e eles se deixam usar, encantados, como estão, com a volta ao poder, desta vez pelo voto. Não ligam quando o presidente fala em seu nome como fez, ontem, outra vez. É coisa de político, desculpam. Bolsonaro proclamou:

“Pode ter certeza, o nosso exército é verde-oliva e vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir.”

E ao concluir uma das peças mais demagógicas do seu pobre repertório, prometeu: “Enquanto for vivo, enquanto for presidente, porque só Deus me tira daqui, eu estarei com vocês”. Estará para quê? Para associar-se ao vírus e dar passagem à morte? Para destruir a Amazônia? Para pôr a educação ao rés-do-chão?

Engrossa o caldo dos que à esquerda e à direita querem ver Bolsonaro pelas costas, se possível antes do fim do mandato. Já foi melhor negócio para o Centrão apoiá-lo em troca de benefícios. A companhia dele começa a tornar-se tóxica. Um deputado federal pernambucano, bolsonarista convicto, disse a este blog:

– Poderemos ir com ele até a porta do cemitério, mas não entraremos.

As muitas pedras no caminho de Lula até a eleição de 2022

Para 57% dos brasileiros, a condenação dele foi justa

Ora, dirão os petistas de quatro costados: é natural que uma pequena maioria dos brasileiros desaprove a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu as condenações de Lula e o tornou elegível – afinal, nos últimos anos, Lula foi alvo de um massacre midiático.

Houve um massacre. Mas é bom esclarecer que Lula não foi inocentado por Fachin. Depois de 4 anos, o ministro finalmente concluiu que a Vara Federal de Curitiba, à época comandada pelo então juiz Sérgio Moro, não era o juízo natural para julgar Lula. Caberá à Vara Federal de Brasília julgá-lo outra vez.

A reclamação dos petistas advém da descoberta feita pelo Datafolha em pesquisa aplicada na semana passada e só revelada hoje: para 57% dos entrevistados, foi justa a condenação de Lula por Moro, que o sentenciou a 9 anos e 6 meses de cadeia, pena reduzida a 8 anos e 10 meses pelo Superior Tribunal de Justiça.

Para 38%, a condenação foi injusta, e 5% não souberam responder. Em abril de 2018, o Datafolha quis saber o que os brasileiros pensavam sobre essa mesma questão. Os resultados foram semelhantes: 54% viram justiça, 40%, injustiça, e 6% disseram não saber. Lula quer enfrentar Bolsonaro na eleição do ano que vem.

Não terá vida fácil se a opinião a seu respeito permanecer a mesma. Será alvo de ataques dos adversários, mas poderá se defender usando os mesmos meios dos quais se queixa. Bolsonaro o chamará de ladrão. Lula o chamará de genocida. Um candidato do centro se apresentará como alternativa ao genocida e ao ladrão.

Ainda faltam 19 meses para as próximas eleições. Só torcedor se arrisca a prever o resultado.


Carlos Pereira: A culpa é do juiz?

O legislador constituinte escolheu juízes e procuradores para controlar o presidente

Tem havido uma crescente insatisfação com uma suposta atuação excessivamente política do sistema de justiça brasileiro, em especial da sua Suprema Corte e do Ministério Público. É como se essas organizações de controle estivessem extrapolando suas funções estabelecidas pela Constituição. O descontentamento é tamanho que já voltam a aparecer movimentos de pedidos de impeachment de ministros do STF ou processos disciplinares contra procuradores da República. Juízes e procuradores nunca estiveram tanto em evidência ou foram tão criticados... 

Mas, é imprescindível lembrar que juízes e membros do Ministério Público se tornaram influentes na vida política não por consequência de usurpações unilaterais de poderes. 

Esses poderes foram estrategicamente delegados pelo próprio legislador constituinte. A Constituição de 1988 consolidou a visão de que a atuação de juízes e promotores deveria ser autônoma e independente da vontade política. 

Legisladores constituintes poderiam ter escrito regras e procedimentos específicos e detalhados com o objetivo de gerenciar os microfundamentos da atuação de juízes e promotores, diminuindo assim a sua autonomia e discricionariedade. Ao invés disso, preferiram escrever regras vagas e princípios gerais, deixando procedimentos sem uma clara especificação, delegando grande autoridade de ação e decisão para esses atores. 

Ao transferir ampla discricionariedade a juízes/promotores, os legisladores sabiam que estavam correndo riscos de que esse poder pudesse reverter contra os interesses dos próprios parlamentares. Mas, naquele momento, valia a pena à sociedade, ainda traumatizada pelo recente regime autoritário, pagar esse preço, pois existia um risco muito maior a ser enfrentado: a possibilidade de mau uso, e indiscriminado, de poderes pelo Executivo. 

A saída encontrada para esse dilema foi proteger os cidadãos, com o máximo de garantias possíveis, contra um presidente dotado de uma “caixa de ferramentas” de governo capaz de fazer valer suas preferências. Políticos são mais propensos a preferir estatutos de baixa discricionariedade para juízes e promotores quando o ambiente de monitoramento legislativo é suficientemente forte, já que eles preferem confiar em mecanismos ex post menos onerosos. Uma espécie de efeito substitutivo. 

Portanto, quando o Executivo se torna constitucionalmente poderoso através de um processo de delegação do próprio Legislativo, é de se esperar o desenvolvimento de sofisticadas redes de instituições de controle com a capacidade de restringir potenciais condutas desviantes do chefe do Executivo. 

A última barreira para a ampla dominância do presidente passaram a ser as instituições judiciais, que assim assumiram um papel de protagonismo na política. A Lava Jato, a investigação de familiares do atual presidente, ou mesmo a atuação individual e, em muitos casos, inconsistente de juízes da Suprema Corte representa a parte visível e mais impactante dessa escolha legislativa. 

Como tudo na vida, os sistemas políticos são moldados a partir de escolhas. É sempre um cálculo de perdas e ganhos que a sociedade está disposta a pagar e pretende auferir. Não existe solução ótima. O que muda com o tempo é a avaliação dos prós e contras e o entendimento dos riscos. 

Os movimentos e tentativas recentes de redução da discricionariedade política de juízes e procuradores podem ter o efeito de não apenas restringir a atuação destes, mas também o de potencialmente colocar a sociedade em situação pior que a atual, definida a partir da escolha do legislador constituinte de 1988. Afinal, com uma coleira fraca o “cachorro grande” pode causar estragos ainda maiores. 

*PROFESSOR TITULAR DA, FGV EBAPE (RIO)


Maria Hermínia Tavares: Ligações perigosas

Conversas inadequadas entre juiz e promotores, intimidade entre políticos e empresas são tão comuns quanto reprováveis

Graças ao ministro Ricardo Lewandowski, do STF, tem-se agora acesso ao registro das conversas privadas —e tóxicas— do então juiz Sergio Moro com procuradores da Operação Lava Jato quando se instruía a denúncia contra o ex-presidente Lula. As 50 páginas de transcrições desvendam uma relação mais do que imprópria entre um magistrado, que deveria primar pela isenção, e os membros do Ministério Público responsáveis pelas alegações que justificassem transformar o líder do PT em réu no célebre caso do tríplex do Guarujá.

Advogados relatam que conversas inadequadas entre juiz e promotores durante o processo de instrução são tão comuns quanto reprováveis, pois se dão sempre em prejuízo do acusado. Mas, além de inaceitável do ponto de vista ético, o escambo entre Moro e os acusadores de Curitiba produziu um resultado politicamente letal: excluiu do jogo, na marra, o candidato que, goste-se disso ou não, detinha àquela altura a preferência dos eleitores, constatada nas pesquisas.

Aos que se debruçarem sobre o texto agora liberado --ou o seu resumo na imprensa-- recomenda-se fortemente a leitura de "A Organização", da competente jornalista Malu Gaspar.

Melhor livro brasileiro de análise política publicado no ano passado, ali está a narrativa da irresistível ascensão da Odebrecht no negócio da construção pesada, à sombra de todos os governos democráticos desde meados de 1980.

As relações de intimidade da empresa com os líderes do PT e de outros partidos que compartilhavam o poder, descritas em sua crueza, são o centro do exemplo notável do que a literatura especializada chama de "rent seeking", a busca de ganhos privilegiados, em tradução livre. Ou seja, a obtenção por empresas privadas de lucros à margem da competição no mercado --graças a ligações espúrias com líderes políticos e agentes públicos de alto escalão.

A amizade entre dois presidentes —o da Odebrecht e o da República— e um sofisticado esquema de financiamento arquitetado pela empresa sob o elegante codinome "Departamento de Operações Estruturadas" tornaram possíveis tanto a expansão dos contratos públicos da construtora quanto o financiamento, via caixa dois, de expoentes de partidos governistas.

Revelada pela Lava Jato, a trama de relações perigosas em torno da Petrobras desnudou o mecanismo do "rent seeking", tão corriqueiro como venenoso para a democracia.

Talvez a prática não possa ser de todo eliminada. Resta, por isso mesmo, encontrar formas de reduzir a sua radioatividade política, sem atropelar as boas condutas jurídicas. Eis o desafio permanente para os democratas.


Conrado Hübner Mendes: 'Operação Kopenhagen' quer salvar Flávio Bolsonaro

Instituições estão funcionando, mas não se esqueça de perguntar para quem

Desenhar o xadrez da imunização criminal de Flávio Bolsonaro é para profissionais. A teia de corrupção institucional costurada por Jair Bolsonaro deveria ser reconstruída por instituições de controle, a começar pelo Ministério Público. Mas estão em processo de fechamento. Apesar das ameaças, ainda resta jornalismo com coragem moral e recursos. E alguns promotores. Só não se sabe até quando.

Eu pediria a ajuda de Constança Rezende e Patrícia Campos Mello, ou de Malu Gaspar e Juliana Dal Piva. Também de Chico Otavio, Rubens Valente e Guilherme Amado. E de tantos repórteres que estão no varejo da microcoleta de informações sobre essa "nova era" que extirpou corrupção do país. O prêmio internacional Corrupto do Ano já foi dado a N. Maduro, R. Duterte e V. Putin. Jair recebê-lo em 2020 foi conspiração globalista.

Reportagens históricas vão se diluindo na torrente de notícias e na incredulidade gerada por governo incapaz de comprar seringas enquanto zomba da pandemia. Esses cacos factuais comporão no futuro um dos aposentos desse castelo de terror político, um dos capítulos do livro "Brasil Nunca Mais" do inverno bolsonarista.

É fundamental não perder a visão do conjunto. Há 17 atores envolvidos na blindagem criminal de Flávio Bolsonaro, sob regência da Presidência da República: STF, Senado, Abin, GSI, PF, Receita Federal, PGR, MJ e AGU; TJ-RJ, MP-RJ, Polícia Civil, Alerj, governador interino, governador afastado, ex-prefeito do Rio. O 17 é ideia fixa do time.

Flávio é acusado do crime de peculato (modo "rachadinha") por anos a fio. Provas são caudalosas. Os gabinetes do pai e dos três filhos teriam movimentado R$ 29 milhões confiscando salários. O quarto filho não entrou para a política, mas já é investigado por iniciativas empresariais sob o carinho presidencial.

A "Operação Kopenhagen" de proteção a Flávio se faz assim: 
TJ-RJ confere foro privilegiado a Flávio e contraria posição do STF; procuradora bolsonarista faz MP-RJ perder prazo de recurso; STF ainda recebe reclamação do MP-RJ, mas, distribuída a Gilmar Mendes, ação fica na gaveta; TJ-RJ adia julgamento ao infinito.

Enquanto isso: ex-assessora de Flávio é empregada por Crivella; irmãos Flávio e Carlos ajudam a derrotar pedido de impeachment contra o prefeito; na Alerj, servidores fraudam ponto e regularizam retroativamente presença de funcionárias-fantasma de Flávio; Cláudio Castro está prestes a ignorar lista tríplice e escolher comissário de Flávio para chefiar MP-RJ.

Segue: concerto entre PF, GSI, Abin e Receita Federal presta serviços a Flávio na busca de invalidar relatórios de auditores; PGR e AGU se manifestam em favor do foro privilegiado de Flávio e se reúnem com Gilmar; André Mendonça pede investigação "independente" do ilícito da Abin; eleição do Senado se negocia à luz do caso de Flávio na Comissão de Ética.

Jair faz ameaça de máfia siciliana contra MP-RJ, insinuando "caso hipotético" de filho de promotor (com base em informações "hipotéticas" da polícia civil). Wilson Witzel, afastado, concluiu: "A República gira hoje em torno da proteção a Flávio Bolsonaro".

"As instituições estão funcionando" é a frase mais estéril da análise política brasileira. Esse espasmo descritivo não indica como ou para quem "estão funcionando" nem pondera erros e acertos, omissões, obstruções e usurpações. Não leva a sério a legalidade. Se há juristas dos "dois lados", basta para a "controvérsia". Não importam conflitos de interesse e a qualidade do que falam. Pouco importa o padrão de legalidade autoritária que emerge no agregado.

A frase não é vazia só pela indolência intelectual que a automatiza, mas pela falsa divisão que induz. Reduz o debate ao sim ou não. Virou jargão jornalístico binário e entrou no último estágio de seu ciclo de vida analítico. Morre quando deixa de dizer qualquer coisa sobre o mundo real, mesmo que siga dizendo muito sobre quem a boceja.

Antes de incorrer nesse hábito, estude a "Operação Kopenhagen". E faça perguntas mais elaboradas do que "instituições estão funcionando?". Por um segundo, imagine se o esforço fosse replicado, de forma não corrupta, na coordenação federativa da vacinação de brasileiros.

Inspire. Expire. Inspire de novo e sinta o cheiro do beco em que nos metemos.

*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Celso Rocha de Barros: Bolsonaro precisa explicar sua aparente tentativa de chantagem e intimidação contra o MP

Nenhum presidente brasileiro, até hoje, fez algo parecido

No dia 31 de dezembro, em sua última live de 2020, o presidente Jair Bolsonaro reclamou da atenção que a mídia dá ao caso Queiroz. Até aí, tudo normal. É o tipo de coisa que o presidente faz em vez de trabalhar para comprar vacina.Mas Bolsonaro resolveu dar um passo a mais, e acrescentou, no minuto 34 do vídeo:"Agora, o MP do Rio, presta bem atenção aqui: imagine se um dos filhos de autoridade do MP do Rio fosse acusado de tráfico internacional de drogas. O que aconteceria, MP do Rio de Janeiro? Vocês aprofundariam a investigação ou mandariam o filho dessa autoridade pra fora do Brasil e procuraria uma maneira de arquivar esse inquérito? Um caso hipotético, falando de um caso hipotético. (...) Caso um filho de uma autoridade do Ministério Público do Rio de Janeiro entrasse no inquérito da Polícia Civil do Rio e ali um delator tivesse falado que ele participava de tráfico internacional de drogas. Fica com a palavra as autoridades do Ministério Público do Rio de Janeiro".

Parece bem grave. Parece que o presidente da República tentou chantagear e intimidar o Ministério Público do Rio de Janeiro. O Ministério Público do Rio de Janeiro investiga o filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro.

Se algum bolsonarista ou alguém da turma do "não é tão ruim assim" tiver outra hipótese para explicar o que o presidente da República disse em sua live de 31 de dezembro, por favor, enviem-na para a Folha. Todos queremos ouvi-la. Mesmo eu, que penso as piores coisas de Jair Bolsonaro, tive dificuldade de acreditar no que estava ouvindo. Novamente: se alguém do governo tiver uma outra explicação, será um prazer discuti-la. Ministro da Justiça? Procurador-geral da República? Deputada Janaina Paschoal? Wassef?

Quanto à acusação feita pelo presidente, de duas, uma. Se ela for verdadeira, Bolsonaro vazou dados sigilosos de uma investigação da Polícia Civil que obteve ilegalmente. Se ela for falsa, Bolsonaro caluniou tanto o Ministério Público quanto a Polícia Civil.

A propósito, se Bolsonaro tiver aparelhado a polícia a ponto de vazar a acusação, pode perfeitamente tê-la aparelhado a ponto de forjá-la.

E, presidente, se usar "hipoteticamente" nesses contextos livrasse alguém das consequências jurídicas do que diz, o senhor mal imagina o que seriam minhas colunas sobre seu governo hipotético.

Talvez Bolsonaro tenha dito o que disse justamente para provocar um escândalo e difamar o Ministério Público no meio da confusão resultante. Seria uma conduta típica da máquina de ódio bolsonarista. Se for o caso, talvez esta coluna esteja fazendo o jogo de Bolsonaro ao divulgar suas acusações. É um risco.

Mas se o que o presidente da República fez no dia 31 de dezembro for o que parece ser, trata-se de coisa grave demais para não ser denunciada. Seria crime muito mais pesado do que tráfico de drogas ou, aliás, do que "rachadinha". Nenhum presidente brasileiro, até hoje, fez algo parecido.

O Ministério Público do Rio continuará com as investigações, sem se intimidar. O episódio não deve influenciar a escolha do novo procurador-geral de Justiça. Mas enquanto o presidente da República for capaz de fazer o que parece ter feito no dia 31 de dezembro de 2020 sem sofrer consequências, ainda estaremos longe da normalidade institucional.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Ricardo Noblat: O fantasma que há mais de dois anos assombra Bolsonaro

A rachadinha de Flávio

O risco de o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) acabar um dia condenado por lavagem de dinheiro, organização criminosa e desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio atravessou 2020 e amanheceu junto com o novo ano. É o fantasma que tira o sono do pai dele.

Todas as tentativas feitas até aqui pelo pai e o filho para enterrarem o assunto foram frustradas, e algumas delas deram ensejo a novos escândalos. Foi o caso, por exemplo, da mobilização da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que ajudou a defesa de Flávio com relatórios e conselhos.

A Abin é um órgão de Estado. Ela assessora o presidente da República. É proibida de se meter em questões que fogem aos seus objetivos definidos em lei. Acontece que Bolsonaro pôs lá um delegado que cuidou de sua segurança pessoal depois da facada em Juiz de Fora e que se tornou amigo da família.

Segundo o Ministério Público do Rio, foram desviados R$ 6,1 milhões entre 2007 e 2018 por meio de funcionários fantasmas empregados no antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio. Parte desse dinheiro foi usada para pagar despesas pessoais do atual senador e de sua mulher.

Somente a Justiça, ao cabo das investigações, poderá declarar o filho mais velho de Bolsonaro inocente ou culpado. Mas isso não impede que as pessoas que a tudo acompanham com interesse possam formar sua opinião desde já. Foi o que procurou descobrir uma recente pesquisa do Instituto Datafolha.

Um total de 58% dos brasileiros considera Flávio culpado no caso da “rachadinha”, 11% inocente e 31% não souberam responder. O percentual dos que o culpam é maior entre os entrevistados com ensino superior (67%), renda familiar maior que 10 salários mínimos (76%) e que reprovam o governo do pai (85%).

Mas mesmo entre os que aprovam o governo Bolsonaro, é maior o percentual dos que apontam o senador como culpado: 37%, contra 23% que o acham inocente e 40% que não sabem responder. Entre os que dizem sempre confiar em Bolsonaro há um empate técnico: Flávio é culpado para 30% e inocente para 29%.

Sete em cada dez (71%) entrevistados afirmaram ter tomado conhecimento do caso. Declararam estar bem informados 23%, enquanto 34% disseram estar mais ou menos a par do tema, e outros 14%, mal informados. O Datafolha ouviu em dezembro 2.016 brasileiros por telefone em todas as regiões do país.


RPD: Reportagem mostra o que desestimula vítimas de estupro no Brasil

Após sofrerem nas mãos de criminosos, vítimas precisam enfrentar longa via-crúcis em busca de justiça

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“Fiquei travada. Ele começou a passar a mão em mim e falou para eu ficar quietinha, senão eu seria demitida por justa causa”. O relato é de uma das vítimas de estupro no Brasil, onde uma longa via-crúcis desestimula e intimida mulheres a denunciar criminosos. É o que mostra reportagem especial da revista Política Democrática Online de dezembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos da publicação em seu site.

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No total, conforme mostra a reportagem, 66.123 pessoas registraram boletim de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável em 2019, de acordo com a 14ª edição doAnuário Brasileiro de Segurança, lançado em outubro deste ano. Em média, no ano passado, uma pessoa foi estuprada a cada 8 minutos, no país. É um dado maior que o revelado em 2015, quando a média era de um estupro a cada 11 minutos.

De acordo com o levantamento, no ano passado, 85,7% das vítimas eram do sexo feminino. Em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima: familiares ou pessoas de confiança, como ocorreu no episódio que abre esta reportagem por se tratar de um patrão da vítima, com o qual ela tinha vínculo de trabalho havia 10 anos.

No Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as pesquisadoras relatam que o número de estupro é ainda muito maior do que o registrado. A subnotificação ganha força diante de situações em que as vítimas não procuram as autoridades por medo, sentimento de culpa e vergonha ou até mesmo por desestímulo por parte das autoridades.

Em setembro deste ano, o próprio Judiciário foi palco de um caso que desestimula vítimas. A jovem promoter Mariana Ferrer, de 23, vítima de estupro, foi humilhada pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do acusado, o empresário André Camargo de Aranha. “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lábia de crocodilo”, disse o advogado à vítima, em audiência por videoconferência, sob a vista grossa do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. O promotor Thiago Carriço de Oliveira sustentou a tese de estupro sem intenção. O acusado foi inocentado.

Somente após a repercussão negativa do caso na imprensa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que classificou como “grotescas” as cenas da audiência, instauraram procedimentos para investigar as condutas do juiz e do promotor por suposta omissão. A Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina (OAB-SC) também abriu investigação para avaliar a conduta de Gastão Filho. A reportagem não conseguiu contato dos três investigados.

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Merval Pereira: Aras em xeque

Inábil no seu açodamento, Bolsonaro vem tornando pública sua proposta de “compensação” a Aras

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, tenta sair das cordas com retórica, não com atos. Disse, afinal, em nota que “sente desconforto” com a citação de seu nome para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. O sujeito oculto da frase é o presidente Bolsonaro, que, inábil no seu açodamento, vem tornando pública sua proposta de “compensação” a Aras.

Na verdade, desconforto é o sentimento generalizado entre seus pares, e a opinião pública o identifica como o “Procurador-Geral de Bolsonaro”, conforme a pichação que acordou ontem na sede do Ministério Público em Brasília.

Ele é a peça-chave nos dois inquéritos que correm no STF envolvendo o presidente Bolsonaro, um sobre a interferência na Polícia Federal, e outro das fake news. Se Aras decidir pedir o arquivamento, não haverá denúncia, a não ser que o embate entre Executivo e Judiciário esteja tão radicalizado que, no caso das fake news, por exemplo, um dos ministros atacados, ou vários, entrem com uma “ação penal privada subsidiária da pública”, contestando a decisão do Procurador-Geral. Mas as provas não se perderão. Serão enviadas para a primeira instância, no caso dos que não têm foro privilegiados. E aos tribunais superiores, no caso de deputados estaduais e federais.

Certamente pela complacência de Aras, o presidente Bolsonaro se sinta tão à vontade para atacar os ministros do Supremo. Continua fustigando em especial o ministro Alexandre de Moraes, republicando nas redes sociais algumas de suas declarações anteriores, como se evidenciassem contradições do pensamento do relator do inquérito das fake news sobre as liberdades individuais.

Mais uma vez temos um problema de semântica, comum aos bolsonaristas radicalizados, e frequente no presidente. Quando Moraes fala em debate de ideias e liberdade de expressão, não está se referindo a mensagens de suas milícias digitais pregando o fechamento do Congresso e do Supremo, ameaçando de morte juízes e políticos que consideram inimigos, e defendendo intervenção militar.

Bolsonaro diz que quer armar o povo para defender a democracia, e dá como exemplo a reação armada contra ordens judiciais que proíbem pessoas de frequentar as praias no tempo de quarentena. Diz que respeita o sistema judicial, mas exorta seus seguidores a não obedecer “ordens absurdas”.

Se diz a favor da liberdade de imprensa, mas instiga seus militantes na porta do Alvorada a atacarem a imprensa profissional. E o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o máximo que consegue propor é que os jornalistas finjam que não estão escutando as ofensas.

O que realmente incomoda o presidente é a possibilidade de sair de um dos inquéritos, especialmente o das fake news, uma impugnação de sua eleição, ou no STF ou, mais provável, do Tribunal Superior Eleitoral. O ministro Og Fernandes, relator dos casos de impugnação da chapa por irregularidades na campanha eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já faz consulta para decidir se agrega as provas do inquérito de fake news do Supremo ao processo que corre no TSE. O prazo da quebra de sigilo estabelecido pelo ministro Alexandre de Moraes pega a campanha presidencial, o que pode trazer provas que se agreguem ao processo de impulsionamento ilegal de mensagens, com o financiamento das milícias digitais, a mídia que Bolsonaro tem a seu favor, conforme admitiu o próprio. Esses atos falhos, por sinal, vão surgindo à medida que a situação foge ao controle.

Ontem o assessor especial da presidência, Filipe Martins, acusado de fazer parte do “gabinete do ódio”, entregou-se ao responder a críticas no Twitter com uma série de compartilhamentos de mensagens idênticas, revelando ter uma multidão de robôs a seu dispor.


Revista Política Democrática || Henrique Herkenhoff: Bola pelas costas

Ausência de uma estrutura de inteligência e, especialmente, de contrainteligência nos órgãos públicos exibe o despreparo das altas autoridades e instituições do governo em relação às questões de segurança

Enquanto diálogos entre autoridades ligadas à operação Lava-jato são divulgados de maneira homeopática, a opinião pública discute acaloradamente suas implicações políticas e jurídicas, muito embora uma análise racional mostre que elas dependem sobretudo do Judiciário e dificilmente terão lugar antes de uma revelação completa e verificada do conteúdo. Entretanto, outra questão menos empolgante fica esquecida, ainda que ela já seja uma certeza grave: a falta de uma estrutura de inteligência e, especialmente, de contrainteligência nos órgãos públicos.

Sim, qualquer instituição, grande ou pequena, pública ou privada, pode experimentar os benefícios da informação oportuna, confiável e estruturada, seja para as decisões operacionais cotidianas, seja para as grandes escolhas estratégicas. E não se deve desprezar, tampouco, a importância de evitar que seu adversário disponha desse mesmo conhecimento a seu respeito ou, melhor ainda, de o fazer acreditar em notícias falsas. Some-se a tudo isso a necessidade de proteger seu pessoal das agressões de qualquer espécie, e suas atividades, de vazamentos, invasões, traições, armadilhas.

Descobre-se que número espantoso de altas autoridades teve seus telefones hackeados, sem que houvesse medidas de prevenção, detecção ou correção à altura dos riscos incorridos. Se os criminosos não houvessem decidido utilizar esses conteúdos em público, as invasões poderiam se prolongar e espalhar indefinidamente. Por outro lado, é de espantar a ingenuidade com que se comunicam agentes públicos que legalmente interceptavam conversas alheias, sem que lhes passasse pela cabeça a possibilidade de também serem alvos. Nas investigações, ao contrário do futebol, não há uma bola só em campo, de maneira que o ataque não é defesa. Não vai aqui uma acusação, uma culpabilização; se foi obtido acesso indevido, houve uma falha ipso facto, que não pode se repetir, e ponto final.

Um programa televisivo tornou públicos, entre outros, diálogos de Lyndon Johnson com seu alfaiate. Nada comprometedor de sua honestidade, mas certamente íntimo e mesmo um tanto constrangedor. Não foi clandestino: os Presidentes dos EUA sabem de antemão que a Casa Branca grava tudo o que dizem ao telefone ou não, para disponibilizar algumas décadas depois. Jornalistas, pesquisadores acadêmicos e simples curiosos escarafuncham enorme material. A finalidade não é tanto a transparência, mas lembrar seu atual ocupante de ter cautela ao abrir a boca. Claro que isso não funciona com qualquer presidente, mas é uma tentativa.

Falhas em série podem ser identificadas nesta intrusão e, a contrainteligência simplesmente não funcionou, ou não havia. Não temos como prever as consequências, mas, em todas as hipóteses, o custo será alto. Independentemente de revelarem, ou não, alguma irregularidade por parte dos interlocutores, tais contatos jamais poderiam ter sido mantidos de uma maneira que pudesse ser acessada. Aliás, é sempre bom lembrar que não se pode deixar os investigados saberem o que está sendo feito, ainda que estritamente dentro da lei. Como se não bastasse, detalhes banais de sua vida privada podem ser mais embaraçosos, se publicados, do que algum verdadeiro ilícito. Não importa de que lado da lei você está: os acusados algum dia serão julgados; promotores e juízes são julgados todos os dias.

Quanto mais longa a apuração de determinada organização criminosa, maiores as probabilidades de que, em algum momento, ela providencie que seus próprios sistemas de inteligência – ainda que não os chame assim – levantem cada detalhe disponível, a respeito seja das investigações, seja dos investigadores. Grandes organizações, portanto, são exponencialmente mais capazes de revidar, não só por serem maiores, mais ricas e mais estruturadas, mas também porque não são arrasadas com a primeira investida.

As instituições públicas em geral e o Ministério Público, em particular, precisam estabelecer seus próprios serviços de inteligência, sem depender daqueles a quem, inclusive, devem fiscalizar, o que por si só implica uma completa contradição. Devem, por outro lado, utilizá-los tanto para suas atividades finalísticas, quanto para salvaguarda dos seus membros, equipamentos e ações, analisando, prevenindo, identificando e corrigindo falhas de segurança. Não há apenas ameaças à integridade física individual; há também graves riscos jurídicos, políticos, e institucionais para quem lida com forças adversas poderosas.

  


O Globo: 'Festejar a ditadura é apologia a atrocidades massivas', diz MPF sobre determinação de Bolsonaro

Órgão afirmou que a orientação do presidente merece 'repúdio social e político' e que pode configurar improbidade administrativa

Vinicius Sassine, O Globo

BRASÍLIA - A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), colegiado que funciona no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR) , criticou a decisão do presidente Jair Bolsonaro de determinar a comemoração do golpe que implantou a ditadura militar no Brasil em 31 de março de 1964 . Em um texto duro, assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e por três procuradores auxiliares, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que "festejar a ditadura é festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos".

"Essa iniciativa soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo de repercussões jurídicas", diz a nota pública divulgada nesta terça-feira.

Bolsonaro, que admira e exalta os regimes militares da América Latina, determinou que os quartéis comemorem o 31 de março e os 21 anos de ditadura militar no Brasil. Reportagem publicada no site do GLOBO na tarde desta terça revelou que a determinação terá um efeito prático nos principais comandos militares .

Uma cerimônia será realizada, diferentemente do que era feito em anos anteriores. Generais ouvidos pela reportagem preferem evitar o termo "comemoração", mas falam em "lembrança de um fato histórico". A cerimônia vai contar com tropas em forma em quartéis; aviso pelo mestre de cerimônia de que os militares estão ali para "relembrar um fato histórico ocorrido em março de 64"; execução do Hino Nacional; leitura da chamada ordem do dia, que é um texto elaborado pelo Ministério da Defesa; e desfile para encerrar o evento. No Exército, houve quem sugerisse tiros de canhão ao fim da cerimônia, o que acabou descartado por líderes dos comandos militares, conforme as fontes ouvidas pela reportagem.

 Improbidade administrativa
A PFDC afirma na nota pública que a defesa de crimes constitucionais e internacionais – como um golpe militar – pode se caracterizar um ato de improbidade administrativa. Os procuradores federais dos Direitos do Cidadão afirmam "confiar" que as Forças Armadas e "demais autoridades militares e civis" deixarão de celebrar o golpe militar de 1964 e cumprirão seus "papéis constitucionais" na defesa do Estado Democrático de Direito. "Seria incompatível com a celebração de um golpe de Estado e de um regime marcado por gravíssimas violações aos direitos humanos."

Se a recomendação de Bolsonaro para que se comemore o golpe tem sentido de "festejar", trata-se de um ato de "enorme gravidade constitucional", conforme a PFDC. "O golpe de Estado de 1964, sem nenhuma possibilidade de dúvida ou de revisionismo histórico, foi um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional. Se repetida nos tempos atuais, a conduta das forças militares e civis que promoveram o golpe seria caracterizada como crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático previsto na Constituição."

O colegiado vinculado à PGR lembra que a Comissão Nacional da Verdade foi instituída por lei e seu relatório final, concluído no fim de 2014, é a versão oficial do Estado sobre o que aconteceu nos 21 anos de ditadura militar. "Nenhuma autoridade pública, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da comissão, dado o seu caráter oficial", diz a nota da PFDC.

Agentes da ditadura mataram ou fizeram desaparecer 434 opositores do regime e 8 mil indígenas, como cita a PFDC. Entre 30 mil e 50 mil pessoas foram presas ilicitamente e torturadas, afirma o colegiado. "Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República."