ministério da saúde

Alex Ribeiro: BC trava batalha para controlar expectativas

Projeções de inflação do mercado superam a meta do ano que vem

As expectativas de inflação para 2022, principal alvo da política monetária, subiram a 3,6% na última semana, sofrendo o seu primeiro descolamento expressivo em relação à meta do ano, de 3,5%. Como o Banco Central deve reagir?

Aparentemente, não foi uma alta isolada das expectativas de inflação. Outros indicadores antecedentes sinalizam que, nos próximos dias e semanas, as projeções do mercado tendem a subir um pouco mais. A média das estimativas dos analistas privados já chegou a 3,64%, um indicador de que a distribuição das expectativas dos analistas pende para valores acima da mediana, de 3,6%.

A dinâmica também parece desfavorável. A mediana das expectativas dos analistas que atualizaram as suas projeções de inflação nos últimos cinco dias já se encontrava em 3,67%. Ou seja, quem renovou as suas estimativas mais recentemente já está prevendo inflação ainda maior para o ano que vem.

A alta das expectativas preocupa, por várias razões. Uma delas é que sinaliza o quanto da alta recente da inflação, causada sobretudo por preços de alimentos, energia e produtos industriais, é temporária ou permanente. Uma ala dos analistas diz que esses são choques de oferta passageiros, aos quais o Banco Central não deve reagir com muito vigor. Outros dizem que há o risco de esses choques se perpetuarem, contaminando outros preços da economia.

O principal motivo de preocupação, porém, é que a alta da expectativa de inflação significa um certo descrédito dos analistas do mercado de que o Banco Central vai se empenhar suficientemente para entregar a meta de inflação no ano que vem.

Na teoria, o BC tem todos os instrumentos à disposição para fazer a inflação ficar dentro do objetivo em 2022. Altas de juros feitas agora atingem o seu efeito máximo nos índices de preços justamente no próximo ano-calendário. Se o mercado realmente acreditasse que o Banco Central vai fazer o que for preciso para cumprir o seu mandato, não iria prever inflação acima da meta.

Então o Banco Central deve ser mais duro com os juros simplesmente porque as expectativas de inflação subiram? Na teoria, não é tão automático. A meta do BC é a inflação, e não as expectativas de inflação. As projeções de inflação do mercado importam para a política monetária apenas na medida em que influenciam as projeções de inflação do BC e o balanço de riscos para a inflação.

Um exame do histórico das expectativas de inflação mostra que não é incomum as expectativas se descolarem um pouco da meta do ano seguinte. Na verdade, essa é mais a regra do que a exceção. Em abril de 2020, por exemplo, o mercado projetava uma inflação de 3,4% para 2021, abaixo da meta, que é de 3,75%. O Banco Central baixou os juros nos meses seguintes, mas foi mais devagar do que muitos queriam e resistiu aos apelos de economistas para levá-los a zero. Acabou adotando o “forward guidance”, que é a promessa de não subir os juros mesmo em situações em que normalmente subiria.

Em abril de 2019, a projeção de inflação para o ano seguinte, 2020, estava exatamente na meta, de 4%. Esse é um evento muito raro, que só havia acontecido dez anos antes, em 2009. De 2010 a 2016, ficou sistematicamente acima da meta, no período da grande desancoragem das expectativas. O mercado considerava o então presidente do BC, Alexandre Tombini, tolerante com a inflação e achava que a presidente Dilma Rousseff interferia nas decisões de política monetária.

Em 2017 e 2018, a situação foi inversa, e as projeções estavam abaixo da meta de inflação - embora com uma distância não tão grande. Setores do mercado entendia que o então presidente do BC, Ilan Goldfajn, tinha um comportamento assimétrico, combatendo com mais vigor a inflação acima da meta do que abaixo dela.

E agora, qual é a explicação para as expectativas de inflação estarem acima da meta? Há vários determinantes para as expectativas de inflação de curto prazo, como a taxa de câmbio, o preço das commodities e o nível de ociosidade da economia. Mas, para um prazo tão longo quanto 2022, o que importa mesmo é a postura da política monetária e, em menor grau, a situação fiscal do país.

Quando há dúvida sobre a capacidade de o governo colocar as contas públicas em ordem, o mercado começa a achar que o Banco Central terá que manter os juros baixos para reduzir os encargos da dívida pública. As expectativas de inflação podem sair fora da meta porque o mercado acha que o Banco Central não vai manipular os juros para controlar a inflação.

Hoje, o Banco Central é independente e quase ninguém acha que seus dirigentes sejam lenientes com a inflação. Mas muitos analistas acham que o Comitê de Política Monetária (Copom) se comprometeu demais, no comunicado e na ata da sua última reunião, com um cenário de normalização parcial de juros, ou seja, que não retiraria completamente os estímulos monetários à economia.

O BC já procurou corrigir esse erro na comunicação - o seu presidente, Roberto Campos Neto, disse que o cenário central contempla uma normalização parcial dos juros, mas ressaltou que não há nada escrito na pedra. “O único compromisso que o BC tem, é bom reforçar, é perseguir o centro da meta de inflação no horizonte relevante”, disse o diretor de Política Monetária do BC, Bruno Serra Fernandes. “Ajuste parcial não é compromisso.”

As declarações mais incisivas dos dirigentes do BC, porém, não foram suficientes para impedir a alta das expectativas de inflação. Economistas de mercado esperam que, na reunião da semana que vem, o Copom reformule a sua comunicação.

Pouquíssimos esperam que o Copom aperte o passo da alta de juros, já que o comitê sinalizou de forma bastante explícita que precisaria uma mudança muito grande de cenário para subir os juros mais do que o 0,75 ponto percentual prometido. Campos Neto se comprometeu a avisar antes se o cenário tiver mudado tanto. Mas é provável que a sinalização de alta parcial de juros seja temperada com o compromisso de fazer o que for necessário para cumprir a meta.


Bruno Carazza: Às cegas

Sem conhecer seus cidadãos, governo se perde na pandemia

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia inicia seus trabalhos nesta semana e assim o espetáculo da política se arma, com a plateia, dividida, pronta para acompanhar cada lance com balde de pipoca e refrigerante.

Apurar responsabilidades diante da maior tragédia social da história brasileira recente, com quase 400 mil mortos até o momento, sem dúvida é necessário - e mais do que isso, é algo que se faz urgente há tempos. Mas apenas isto não basta.

Seguindo o roteiro de outras CPIs do passado, preparem o F5 de seus teclados para atualizar, em curtos espaços de tempo, as notícias em tempo real dos depoimentos, denúncias e manobras de ambos os lados da política buscando incriminar ou isentar o presidente da República pelo colapso na saúde.

Independentemente do veredito final da CPI - isso se ela vier a chegar a algum desfecho, visto que a maioria das investigações morre sem qualquer conclusão -, é muito provável que continuaremos sem discutir as causas estruturais de nosso fracasso e as lições que podemos extrair desta crise.

A chegada ao Brasil do novo coronavírus expôs de modo flagrante muitas das nossas fragilidades. Do desequilíbrio fiscal que reduziu a margem de manobra para políticas de resgate social e econômico à distribuição irregular de leitos de UTI ao longo do território nacional, a pandemia demonstrou que as falhas do governo atual apenas agravaram problemas que são crônicos no Estado brasileiro.

Na polêmica conversa com o senador Kajuru, Bolsonaro pedia sua ajuda para “fazer do limão uma limonada”. Na lógica do inquilino atual do Palácio do Alvorada, a frase significava usar a CPI atual para se blindar e, ainda por cima, colocar na mira ministros do STF e governadores e prefeitos que lhe desagradam.

Além da apuração dos responsáveis pela CPI, a verdadeira limonada a ser extraída diante de centenas de milhares de vidas e milhões de empregos perdidos é corrigir as deficiências que nos empurraram ainda mais fundo no precipício atual.

Das múltiplas dimensões que precisam ser estudadas, em “homenagem” à recente decisão governamental de sepultar de vez a realização do Censo em 2021, direcionarei aqui o foco para a questão do uso de dados e da tecnologia para obter resultados melhores nas políticas públicas.

Há poucos dias o Ministério da Saúde informou que em torno de 1,5 milhão de pessoas ainda não apareceu para tomar a segunda dose de vacinação. Dezenas de estudos de economia comportamental realizados mundo afora demonstram que a taxa de comparecimento cresce de maneira significativa caso o cidadão receba uma cutucada (“nudge”) por ligação telefônica ou mensagem de texto lembrando-o de retornar ao posto de saúde na data certa.

Essa alternativa simples, barata e altamente eficaz poderia estar sendo adotada em massa em todo o país caso o SUS dispusesse de um prontuário médico digital abrangente e atualizado de toda a população - mas isso não existe em escala nacional.

No caso do sistema de transportes urbanos (um dos principais vetores de contaminação das pessoas mais pobres), estratégias de ação podem ser traçadas com a utilização de dados do fluxo de passageiros, frequência ao longo do dia e itinerários. Essas informações estão disponíveis para a maioria das prefeituras das grandes cidades brasileiras, pois são utilizadas para a auditagem e cálculo de reajuste de tarifas das empresas de ônibus. Com uma articulação com o empresariado, soluções podem ser construídas para minimizar o sofrimento de milhões de pessoas mesmo após a pandemia.

Outra dimensão que não podemos deixar passar em branco é a falência do sistema público de ensino no país. Passado mais de um ano do início da pandemia - com a omissão injustificável dos ministérios da Educação, das Comunicações, da Cidadania, da Ciência e Tecnologia e de todas as demais pastas que deveriam coordenar uma resposta à situação - a maioria das secretarias estaduais e municipais não foram capazes de utilizar e fornecer respostas tecnológicas para diminuir o abismo entre os alunos mais pobres e seus semelhantes mais ricos que frequentam o sistema privado.

Para não ficar só no que deveria ou poderia ter sido feito, vai aqui um exemplo concreto de como o governo pode explorar o potencial revolucionário da tecnologia em benefício dos brasileiros.

Na terça-feira eu fazia uma caminhada pelas ruas da Savassi, em Belo Horizonte, quando fui parado por um vendedor de balas, que me pedia ajuda para comprar comida. Respondi com o tradicional “me desculpe, mas estou sem carteira” (o que naquele dia era a mais pura verdade, pois eu só tinha o celular e um cartão de crédito no bolso da bermuda). Ele, porém, me respondeu: “Você pode me pagar com Pix”.

Implantado pelo Banco Central em novembro de 2020, o novo sistema de pagamentos instantâneo contava, em março passado (último dado disponível), com 75,6 milhões de pessoas físicas e 5 milhões de empresas cadastradas. Naquele mês circularam pelo Pix R$ 101,8 bilhões de pessoa para pessoa, R$ 85,7 bilhões entre empresas, R$ 28,4 bilhões de empresas para indivíduos e R$ 21,5 bilhões no sentido contrário.

O sucesso do Pix, que em poucos meses se popularizou e chegou até mesmo às camadas mais pobres de nossa população, não vem por acaso. Essa inovação foi desenvolvida cuidadosamente pelos técnicos do Banco Central ao longo dos últimos anos, com todos os seus aspectos tecnológicos e regulatórios discutidos amplamente com o sistema financeiro, não sendo interrompido pelas eleições ou pela troca de comanda na instituição.

Trata-se, infelizmente, de um ponto fora da curva. Basta lembrar que, após o lançamento da primeira etapa do auxílio-emergencial, o ministro da Economia se surpreendeu com os quase 40 milhões de “invisíveis” que teriam sido descobertos pela equipe econômica.

Com a decisão de não realizar o Censo Demográfico neste ano, Paulo Guedes reafirma que o governo brasileiro prefere continuar conduzindo o país às cegas.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Vacinação Quilombolas | Foto: Igor Santos/Secom

O Globo: Covid-19 - Prioridade da vacinação de quilombolas, de ribeirinhos e de outros grupos é ignorada em nove estados

Estudo mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados já receberam a primeira dose e que menos de 4% dos quilombolas foram imunizados

Cíntia Cruz e Julia Noia, O Globo

RIO — Levantamento do GLOBO com base na pesquisa "Planos de vacinação nos estados e capitais do Brasil", do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, nove estados não colocaram pelo menos um grupo entre quilombolas, população ribeirinha, em situação de rua e privada de liberdade como prioritários na imunização contra o Sars-CoV-2. Juntos, eles correspondem a mais de 1,7 milhão da população do país e integram pelo menos 6.023 comunidades.

TestagemCovid-19: Teste detecta qual das cinco variantes paciente apresenta

Os quatro grupos constam como prioritários na última versão do Programa Nacional de Imunizações (PNI), de 15 de março. Entretanto, há falta de transparência quanto ao período em que essas populações devem ir aos postos se vacinar. Com a recente alteração no plano, que adianta a vacinação de forças de segurança e profissionais da educação, a população privada de liberdade e a que está em situação de rua, involuntariamente expostas ao vírus, ficam ainda mais atrás na fila de vacinação.

Os quilombolas não são grupo prioritário em Roraima, Acre e Alagoas. Já ribeirinhos estão fora dos planos do Pará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Sergipe e Alagoas. A população privada de liberdade não consta como preferencial em Alagoas. Já Pará e Alagoas não colocaram as pessoas em situação de rua como prioridade. Na maioria dos estados do país, esses grupos são prioridade no papel, mas não os planos não informam quando elas serão imunizadas.

O estudo do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados receberam a primeira dose do imunizante, embora estejam na primeira fase das campanhas em todos os estados. No caso dos povos de comunidades quilombolas, que figuram entre os primeiros a serem vacinados na maior parte dos estados, a estatística é ainda mais alarmante: menos de 4% foram imunizados.

Desigualdade e violência

Responsável pela pesquisa do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, Felipe Freitas explica que a carência de vacinação desses grupos reflete a desigualdade e a violência que as populações sofrem, inerentes à história brasileira.

— O Brasil é um país violento, e ainda mais em relação a esses públicos: negros, quilombolas, indígenas, pessoas em situação de rua, ribeirinhos. A gestão da pandemia tem revelado a radicalização desse processo de autorização da morte desses grupos — diz.

Paulo de Paiva, de 61 anos, vive num quintal com nove casas que abrigam 19 adultos e 19 crianças. O terreno fica no quilombo Maria Conga, em Magé, Baixada Fluminense. A imunização dos quilombolas, que seria do dia 12 ao 16 de abril, foi interrompida no dia 15 por falta de doses.

— Estava marcado para o dia 16, mas as doses acabaram. Tenho muito medo de pegar essa doença por causa da minha idade. A comunidade aqui é grande, muitas crianças. As pessoas saem para trabalhar e podem acabar trazendo o vírus — conta Paulo, morador do quilombo há 30 anos.

Aos 74 anos, o bombeiro hidráulico Lourival Ribeiro já poderia ter sido vacinado em seu município, mas preferiu esperar pelas doses destinadas aos quilombolas. Hipertenso, Lourival lamenta a falta do imunizante na comunidade e criticou a organização do poder público:

Pandemia: Brasil tem 2.866 mortes por Covid-19 em 24h e, pela 1ª vez desde novembro, média móvel mostra tendência de queda

— Faltou informação de fora para saber o número da população do quilombo. Foi tudo muito rápido. Em três dias, não dá para vacinar um lugar com tantas pessoas.

A presidente da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), Ivone Bernardo, diz que os três quilombos no município de Magé têm, ao todo, 1.987 pessoas acima de 18 anos — idade mínima para a população quilombola receber a dose do imunizante. Mas o Ministério da Saúde mandou uma quantidade muito menor:

— As vacinas que estão chegando não estão na quantidade correta e a prefeitura de cada município precisa avisar ao ministério. Mandaram 155 doses de vacinas para Magé, que tem três quilombos certificados. Metade da população do Maria Conga ainda não foi vacinada.

Em nota, a Prefeitura de Magé afirmou o cadastro foi apresentado diretamente pelos quilombos ao estado e que recebeu apenas 155 doses, 7,8% do necessário para imunizar os quilombolas do município.

Biko Rodrigues, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), afirma que o governo federal utilizou dados defasados para calcular a quantidade de doses:

Leia maisEntidade vai ao STF contra escalada de conflitos em terra indígena invadida por garimpeiros no Pará

— O número com o qual o estado brasileiro está trabalhando está muito abaixo do número de famílias quilombolas que existem no país hoje. Ele trabalha com 2 milhões de doses para quilombolas e, pela estimativa da Conaq, esse número é quatro vezes maior, com dados que temos das secretarias estaduais — diz.

Rodrigues explica que o governo se baseou em dados de famílias inscritas no CadÚnico e beneficiárias do Bolsa Família., mas argumenta que há quilombolas que sequer têm registro civil.

— Existem comunidades ainda sem registro,  pessoas em território quilombola que ainda não têm certidão de nascimento, que não têm a primeira identidade. Isso são muitos. Trabalhamos com número de sete a dez milhões de pessoas. Por causa da omissão do estado brasileiro, muitas pessoas quilombolas vão ficar sem vacina — avalia.

Leia tambémA população quilombola e ribeirinha é três vezes maior no Cerrado do que mostra a medição do governo

Já o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Hugo Leonardo, afirma que a vulnerabilidade dos grupos privados de liberdade é um dos principais fatores que justifica a prioridade na fila da vacina. Ele lembra que eles não têm condição de realizar o isolamento social e, na maioria das unidades, não tem acesso a equipamentos de proteção, como máscaras e sabonetes.

— Estamos falando de cuidados mínimos para evitar o contágio — afirma.

Na Região Norte, a diretora-executiva da Oficina Escola Lutheria da Amazônia (OELA), Jéssica Gomes, aponta que houve falta de logística na compreensão do movimento das marés na região e a quantidade de doses ofertadas para a população ribeirinha, que vivem ao longo do curso dos rios.

— Desde março, temos novos óbitos de pessoas ribeirinhas que já deveriam ter sido imunizadas — afirma Gomes.

Entrevista: Ministro da Saúde vai lançar protocolo para uso de medicamentos contra Covid-19, incluindo cloroquina, de ineficácia comprovada

Com a vacinação, a rotina de Alexandre Pankararu, de 46 anos, indígena morador da cidade de Jatobá, no sertão de Pernambuco, é marcada por frustração, isolamento e medo de pegar a doença. É que, por não morar em aldeia, não foi contemplado dentro do grupo prioritário do Programa Nacional de Imunizações. Apesar de morar na zona urbana há dez anos, ele e sua esposa, da aldeia Caiuá, estão construindo uma casa para retornar à vida aldeada em um mês, mas, por não estarem imunizados, sentem-se afastados dos rituais, do cotidiano e da família, já vacinados contra a Covid-19:

— É um puro descaso. Eu acho que faz parte de um plano de genocídio do estado. Se a gente fosse tão afastado, morasse a dois mil quilômetros, mas eu moro a um quilômetro. A gente vive aqui dentro da aldeia, só não dormimos aqui. Por que não podemos solicitar a vacina? Nós (desaldeados) nos sentimos marginalizados. Também não há a sensação de pertencimento porque não podemos participar dos nossos rituais — lamenta Xandão, como é conhecido na aldeia.

Alerta:  Brasil já tem 1,4 milhão de casos de síndrome pós-Covid, alertam médicos e cientistas

Diante disso, a Associação de Indígenas Não Aldeados Karaxuwanassu, de Pernambuco, enviou, desde o começo da vacinação no estado, ofícios a prefeituras locais, deputados estaduais, organizações voltadas para a causa indígena, para o Ministério da Saúde (MS) e entraram com ação no Ministério Público Federal (MPF) para questionar o motivo de não terem sido incluídos no calendário prioritário de vacinação. Segundo uma liderança da associação, o MS foi questionado no dia 3 de março, mas não responderam à demanda. Eles anda protocolaram duas ações no MPF, nos dias 3 de março e 14 de abril, que foram encaminhadas para investigação na Procuradoria da República de Pernambuco.

No dia 20 de abril, a associação, por meio da Defensoria Pública de Pernambuco, retornou com a demanda feita junto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) para que o grupo fosse incluído como prioritário. Em resposta, o DSEI encaminhou o pedido ao Ministério da Saúde que, no dia 7 de abril, enviou ofício ao Governo de Pernambuco para especificar a quantidade de indígenas em zonas urbanas por município da federação e, dentro dessa população, quais não teriam acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Respostas

A Prefeitura de Magé disse que recebeu uma nota técnica normativa do estado do Rio de Janeiro para realizar a vacinação da comunidade quilombola, que apresentava um público de 140 pessoas no Quilombo do Feital, 597 no Quilombo Kilombá e 1.250 no Quilombo Maria Conga, totalizando 1.987 quilombolas. O cadastro, segundo o município, foi apresentado diretamente dos quilombos ao estado, e a prefeitura recebeu, via nota técnica do governo federal, as informações sobre o público a ser vacinado nos quilombos. Magé recebeu 155 doses, 7,8% das doses necessárias para imunizar os quilombolas do município, informou a prefeitura.

O governo municipal disse ainda que criou um calendário, fez ampla divulgação e criou uma agenda para vacinação em cada espaço dos quilombos, mas que interrompeu a imunização porque as doses destinadas aos idosos, que foram usadas nos quilombolas, não têm previsão de serem repostas, pois houve um conflito de informações em que o Ministério da Saúde aponta uma meta de vacinação do público quilombola de 155 pessoas, com envio de doses somente para essa quantidade. A prefeitura disse que aguarda retorno da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro afirmando que serão enviadas as doses para os quilombolas.

Covid-19:81% das vacinas no mundo foram para países ricos, diz chefe da Organização Mundial da Saúde

O Ministério da Saúde informou que a estimativa inicial para definição do grupo prioritário “Povos e Comunidades tradicionais Quilombolas”, que foi inserido no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 (PNO), foi realizada de acordo os dados disponíveis pelo IBGE 2010, população de 1.133.106. A pasta ressaltou que o plano é dinâmico e está em constante atualização, e que está revisando o levantamento dos dados relativos a esta população, junto aos estados e municípios.

A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informa que não há população ribeirinha no estado e que a população em situação de rua faz parte da 4ª fase de imunizações e serão vacinados assim que as doses destinadas aos grupos desta fase forem distribuídas pelo Ministério da Saúde. Com relação aos povos quilombolas, disse que o PNI prevê 15 mil pessoas desta população a serem vacinadas no estado do Rio. A secretaria ressaltou que parte dos quilombolas foi imunizada nos grupos por faixa etária, de acordo com a base populacional usada pelo PNI. Disse ainda que, se houver subdimensionamento desta população, as doses serão garantidas pelo Ministério da Saúde, a partir de uma comunicação ao PNI.

A Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas informa que segue o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 e que, em Alagoas, estão contemplados os quilombolas, indígenas, população privada de liberdade (já vacinados e/ou em processo de vacinação), além das populações em situação de rua e ribeirinha, que deverão ter o processo de imunização concluído ou iniciado em outras fases, a partir do envio de novas remessas de imunizantes por parte do Ministério da Saúde.

Sergipe informou que a comunidade ribeirinha está sendo vacinada de acordo com o cronograma de vacinação da população em geral e que, segundo nota técnica do Ministério da Saúde, Sergipe não é contemplado com vacinas direcionadas às comunidades ribeirinhas.

Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Pernambuco afirmam que não têm população ribeirinha. A Secretaria de Saúde do Estado de Roraima e o Governo do Acre disseram que não têm comunidades quilombolas.

Os estados de Pará e Rio Grande do Sul não responderam.

*Estagiária sob supervisão de Emiliano Urbim


O Globo: Pazuello será preparado pelo Planalto para enfrentar CPI da Covid e blindar Bolsonaro

Governo treina ex-ministro da Saúde, aciona José Sarney, escala equipe e levanta documentos para defender atuação do presidente na pandemia

Jussara Soares, O Globo

BRASÍLIA - O Palácio do Planalto estruturou uma operação de guerra para enfrentar a CPI da Covid no Senado. O plano envolve preparar o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello para responder aos questionamentos dos parlamentares, acionar o ex-presidente José Sarney, montar um comitê com representantes de diferentes ministérios e levantar um arsenal de documentos sobre a ação do governo na pandemia. A principal estratégia por trás dessa investida é blindar o presidente Jair Bolsonaro — e a sua pretensão de ser reeleito em 2022 —, desviando o foco das atenções para a atuação de estados e municípios.

Na mira da CPI:  Pazuello é elogiado por Bolsonaro durante evento em Manaus

Considerado o principal alvo da comissão, Pazuello será preparado pelo governo para encarar senadores opositores. A ideia é que o ex-ministro da Saúde, que deve assumir um cargo no Planalto, dedique o seu tempo em Brasília a se debruçar sobre uma série de documentos, dados e informações oficiais que reforcem a narrativa de que o governo não foi omisso na pandemia nem na crise do oxigênio em Manaus — o colapso na capital do Amazonas já levou Pazuello a responder a uma ação por improbidade administrativa apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF).

O general da ativa terá à sua disposição um grupo de trabalho formado por integrantes de diferentes ministérios — que fornecerá subsídios para defender as ações do governo. Esse é mais um sinal de apoio de Bolsonaro, que, nos últimos dias, levou o militar a duas viagens, uma ao interior de Goiás e outra a Manaus.

Lauro JardimGoverno transfere Pazuello de Manaus para Brasília e dá cargo a ex-número 2 da Saúde

Para dar suporte a Pazuello e a outros integrantes do governo que serão convocados pela CPI, o Planalto estruturou um comitê de crise formado por representantes de diversas pastas, sob o comando da Casa Civil, chefiada pelo ministro Luiz Eduardo Ramos. O grupo de trabalho criado para enfrentar a comissão da pandemia foi inspirado numa força-tarefa formada por Ramos durante a Olimpíada no Rio, em 2016, com a participação de diferentes setores, da Polícia Militar à Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), que compartilhavam entre si informações estratégicas sobre o evento esportivo. A ideia é implementar a mesma tática militar para encarar os questionamentos do colegiado no Senado.

O comitê já traçou um plano de trabalho, registrado num organograma com os principais focos de atuação, e tem como meta se reunir semanalmente no Planalto, compilando informações de diferentes ministérios e elaborando um roteiro que será utilizado para integrantes do governo se defenderem na CPI. Dentre os participantes, estão servidores da Saúde, Defesa, Economia, do Itamaraty, Comunicações, da Advocacia-Geral da União (AGU), Controladoria-Geral da União (CGU) e Secretaria de Governo, entre outros. Em uma recente reunião no Planalto, o presidente Bolsonaro já havia alertado que os auxiliares se preparassem porque muitos seriam chamados a prestar depoimento.

Bela Megale:  Presidente da CPI da Covid quer investigar falta de barreiras sanitárias em aeroportos no início da pandemia

Na última sexta-feira, o coronel Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, foi nomeado como assessor especial da Casa Civil. Antes mesmo de ser oficializado no cargo, o militar já vinha frequentando o Planalto diariamente. Segundo apurou O GLOBO, ele ficará dedicado a reunir as informações necessárias para responder aos questionamentos da CPI. A expectativa, segundo um integrante do alto escalão, é que, se o governo conseguir fazer “o trabalho que tem que ser feito”, poderá usar a CPI como “palco” para divulgar as ações do Executivo.

Em outra frente, o Planalto vem tentando minar o poder do senador Renan Calheiros (MDB-AL), favorito para assumir a relatoria da CPI. Nos últimos dias, um ministro do Palácio do Planalto entrou em contato com José Sarney para marcar um encontro. O objetivo dessa investida é convencer o ex-presidente da República a conter o seu colega de partido. Sarney e Renan já comandaram o Congresso em diferentes períodos e mantêm uma relação de proximidade. Mas interlocutores de ambos veem a iniciativa com pouca chance de êxito. O ex-presidente tem demonstrado pouca disposição para as articulações políticas envolvendo o Planalto, enquanto o senador sinaliza a interlocutores que não abrirá mão fácil da relatoria, apesar da ofensiva do governo. Na visão de um conselheiro de Bolsonaro, Renan Calheiros é uma opção mais palatável como relator do que os senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP) ou Humberto Costa (PT-PE).

Renan Calheiros:  Senador volta aos holofotes e pressiona o governo

Em entrevista ao GLOBO, Renan disse que Bolsonaro “errou e se omitiu na pandemia”. Preocupado, o presidente ligou para o filho do parlamentar, o governador de Alagoas, Renan Filho (MDB). Os dois se conheceram na Câmara, quando ainda eram deputados federais e jogavam juntos num time de futebol de parlamentares. Na conversa telefônica, Bolsonaro foi direto ao ponto. Disse ao governador que achava que não era o momento de uma CPI, argumentando que o foco do Executivo deveria estar concentrado no combate à pandemia. Renan Filho respondeu que o pai é experiente e sereno e que, portanto, o presidente deveria ficar tranquilo. O governador disse que o senador seria incapaz de cometer uma injustiça, pois já foi alvo de investigações que considera indevidas.

Reforço na articulação

Para a missão de desarmar a CPI, o presidente convocou ainda o ministro Onyx Lorenzoni, da Secretaria-Geral da Presidência. Deputado federal eleito cinco vezes pelo DEM do Rio Grande do Sul, Lorenzoni integrou as CPIs da Petrobras, dos Maus-Tratos de Animais e dos Correios, da qual foi sub-relator, entre outras. A ideia é que o ministro use a experiência de quem já atuou como inquiridor para antever a estratégia dos membros da comissão e preparar Pazuello para enfrentar os questionamentos de senadores. O Planalto quer evitar que o ex-ministro se desestabilize diante da pressão. Lorenzoni também deve assumir uma parte da articulação política na CPI e já iniciou contato com parlamentares.

Repetição:  Sem máscara, Bolsonaro volta a causar aglomeração no Distrito Federal

Opiniões sobre as falhas na articulação já foram tornadas públicas por governistas: em entrevista ao GLOBO, o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, disse que o “governo perdeu o timing na indicação para a CPI”. Membro titular da CPI da Covid, o vice-líder do governo no Senado, Marcos Rogério (DEM-RO), também criticou a atuação do Palácio do Planalto: para ele, faltou “um pouco mais de articulação”.


Ricardo Noblat: Brasil pede socorro contra o vírus, a fome e Bolsonaro

Generosidade em fim de linha 

E aí? Engane-se quem acredita que o governo do presidente Jair Bolsonaro mudou de posição quanto ao enfrentamento da pandemia. Só por que Marcelo Queiroga, médico, sucedeu ao desastrado general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde e recomenda que as pessoas usem máscara, lavem as mãos com álcool gel e se mantenham distantes umas das outras?

É o mesmo Queiroga que se recusa a admitir o lockdown porque Bolsonaro é contra. É o mesmo que evita condenar o tratamento precoce que Bolsonaro continua recomendando, um logro que já custou muitas vidas. É o mesmo que prometeu em breve vacinar um milhão de brasileiros por dia, meta distante de ser alcançada porque a demanda é maior do que a oferta.

Mudança de posição só por que o embaixador que sucedeu o inepto Ernesto Araújo no Itamaraty revelou que seus compromissos são com a vacina, a economia e o meio ambiente? Moleza suceder Araújo e parecer sensato. É como substituir Felipão no comando da Seleção Brasileira depois dos 7 x 1. Se ganhar o jogo seguinte com gol de mão será exaltado como herói.

Em um mês, o Brasil dobrou o número de mortes pela Covid em um único dia. No dia 6 de março, 1.840 vidas foram perdidas em 24 horas. Quatro dias depois, 2.000. Após duas semanas, 3.000. Ontem, quase 4.200. O total de mortes até agora é de 337.364. No melhor dos cenários, até julho o Brasil pode atingir meio milhão de óbitos, segundo o neurocientista Miguel Nicolelis.

Enquanto isso, o presidente da República espalha notícias falsas, faz comparações incabíveis e idiotas e destila ódio contra seus críticos. Em frente ao Palácio da Alvorada, em conversa com um grupo de devotos, Bolsonaro comentou: “Tem uma pesquisa aí que diz que quem tem uma vida saudável é oito vezes menos propenso a ter problemas com a Covid”. Que pesquisa? Não disse.

E prosseguiu: “Mas quando você prende o cara em casa, o que ele faz em casa? Duvido que ele não tenha aumentado um pouquinho de peso. Até eu cresci um pouquinho a barriga”. Posou de vítima: “Me chamavam de torturador, racista, homofóbico. Agora é o quê? Aquele que mata muita gente? Genocida! Imagina se o Haddad estivesse no meu lugar?!” Os devotos concordaram.

Bolsonaro afirmou que tem como resolver o problema do vírus em poucos minutos: “É só pagar o que os governos pagavam para Globo, Folha, Estado de S.Paulo. Esse dinheiro não é para imprensa, é para outras coisas”. E repetiu: “Cancelei todas as assinaturas de revistas e jornais. Já entramos no segundo ano sem nada. A gente não pode começar o dia envenenado”.

Metade dos brasileiros começa o dia sem saber se haverá comida suficiente em sua mesa. É a primeira vez que isso acontece desde 2004. São 116,8 milhões de pessoas nessa situação, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. No ano passado, a pandemia deixou 19 milhões com fome, quase o dobro do que havia em 2018.

Na cidade do Rio, a ONG Ação da Cidadania distribuiu 80 mil cestas básicas por dia em 2020. Este ano, apenas 8 mil. Secaram as fontes de doação de alimentos. Na cidade de São Paulo, a G10 Favelas distribuía 10 mil marmitas por dia. O número caiu para 700. A decantada generosidade dos brasileiros que podem muito com os brasileiros que nada podem era pouca e acabou.

Governante autoritário é tudo igual, só variam suas armas

A primeira vítima é sempre a verdade

Governante autoritário é tudo igual, só variam os métodos de cada um. Josef Stalin, que governou a União Soviética de meados da década de 1920 até sua morte em 1953, não se contentou apenas em promover expurgos políticos no Partido Comunista.

Mandou prender, exilar e fuzilar milhares de seus adversários. E tentou reescrever a história de sua época eliminando pessoas de fotografias, falsificando alterações de imagens e destruindo filmes. Nesse aspecto foi um pioneiro.

Comparadas com as modernas técnicas digitais, as dos anos 30 e 40 do século passado eram primitivas, toscas, deixavam marcas e exigiam muita perícia dos seus executores. Os russos eram bons nisso, e aí se não fossem. Stalin não perdoava.

Até as 16h40m de ontem, e desde pelo menos o meio-dia, esteve disponível no Flickr do Palácio do Planalto uma foto da cerimônia de posse da nova ministra da Secretaria de Governo, a deputada Flávia Arruda (PL-DF). Depois disso, a foto sumiu.

Por quê? Porque nela apareciam, além da ministra, o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão, o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), o general Luiz Eduardo Tamos, chefe da Casa Civil, e… Valdemar Costa Neto, presidente do PL. E daí?

Daí que Costa Neto, recebido, esta semana, por Bolsonaro em audiência especial, foi condenado e tirou cadeia por envolvimento com o mensalão do PT – o escândalo da compra de votos de deputados para que aprovassem projetos do governo Lula.

Mesmo preso, Costa Neto negociou cargos no governo Dilma. Seu partido faz parte do Centrão que arrombou a porta do governo Bolsonaro e ocupa dezenas de cargos. Bolsonaro virou refém, mas quer esconder a verdade. Stalin foi mais bem sucedido.


Afonso Benites: Bolsonaro sabota auxiliares que tentam costurar pacto contra a covid-19

Ação do presidente no STF que pretende impedir que governadores e prefeitos decretem ‘lockdown’ é vista como uma tentativa de ele reforçar seu discurso político em contraposição aos governadores. Cresce no Senado movimentação pró-CPI da Covid

Enquanto auxiliares do Palácio do Planalto se articulam para demonstrar alguma união com outros poderes e governadores no combate à pandemia de covid-19, o próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido) joga contra a sua equipe. Em duas aparições públicas, na sua live de quinta, e numa conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada, na sexta-feira, o mandatário voltou a criticar governadores que impõem medidas de restrição de circulação, reforçou que entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para impedir esses decretos e citou que, em algum momento, o Governo Federal tenha de tomar uma “medida dura”, por causa da pandemia. Foi uma repetição do discurso que vem adotando há um ano.

A diferença é que agora o Brasil registra quase 300.000 óbitos em decorrência do coronavírus e encontra dificuldades em adquirir vacinas, já que ignorou as ofertas de preferência de compras apresentadas no ano passado, e está prestes a ficar sem remédios básicos para UTIs em 18 Estados. Os ataques ocorrem nas vésperas de promover uma reunião ampla, em que o objetivo era mostrar alguma coesão. Ela está prevista para o próximo dia 24 e espera contar com a participação dos presidentes da Câmara, do Senado, do STF, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União e uma comitiva de governadores que ainda não foi definida.

No Supremo, a ação apresentada pelo presidente tem sido vista como uma espécie de armadilha para reforçar o seu discurso, sem fundamento na realidade, de que o Judiciário não o deixa agir. Ele não espera uma vitória na Ação Direta de Inconstitucionalidade, e pretende usar uma possível derrota como plataforma política-eleitoral, na qual se eximiria de culpa no colapso da saúde e também pelas consequências do isolamento social. No ano passado, quando os ministros do STF decidiram que haveria uma responsabilidade compartilhada na gestão da crise, o presidente propagou entre os seus apoiadores a falsa informação de que ele foi impedido a agir por ordem dos magistrados.

Uma outra leitura política pode ser feita ao sobre o autor da ação. Geralmente, documentos que são enviados pela Presidência da República são assinados pela Advocacia Geral da União. Não foi o que ocorreu no caso. A petição inicial é firmada apenas pelo presidente Bolsonaro, e não por José Levi Mello do Amaral. No documento, o mandatário pede que os decretos emitidos pelos governos do Rio Grande do Sul, da Bahia e do Distrito Federal sejam suspensos. Também solicita “se estabeleça que, mesmo em casos de necessidade sanitária comprovada, medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar”. Na prática, quer proibir o lockdown.

A ação do presidente vai na contramão do que a maioria da população deseja. Pesquisa Datafolham, divulgada na quinta-feira, mostrou que 71% dos brasileiros apoiam a restrição do comércio e serviços como medida de controle da pandemia. Também segue em sentido oposto aos países que tem apresentado melhores resultados no combate à doença, como o Reino Unido.

Os nove governadores da região Nordeste assinaram uma nota que disseram estar surpresos com a ação do presidente. A chamaram de inusitada e o convidaram a participar de uma união de esforços no combate à pandemia. “Fizemos a proposta de um Pacto Nacional pela Vida e pela Saúde e continuamos aguardando a resposta do presidente da República”, diz o documento assinado pelos chefes dos Executivos estaduais nordestinos.

Sem vácuo na política

Os movimentos descoordenados de Bolsonaro tiveram três reações no cenário político. O primeiro foi que, no Senado, tem crescido um movimento para que seja instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19. Já há as assinaturas necessárias para tanto, mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), prefere postergar qualquer decisão. A abertura da comissão depende de seu aval.

O segundo movimento foi feito pelo próprio Pacheco. Nesta sexta-feira, ele enviou um ofício à a vice-presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris, pedindo que ela intermedeie a venda de vacinas excedentes em seu país para o Brasil. Harris acumula nos EUA o papel de presidente do Senado. Há ao menos 30 milhões de doses excedentes em território americano, produzidas pela AstraZeneca, que ainda dependem de autorização das agências sanitárias locais para serem usadas lá. A expectativa é que essas vacinas não sejam usadas tão cedo por lá. Enquanto que no Brasil, elas já têm autorização para o uso.

“O Governo não é só Executivo. O Governo é Executivo, é Legislativo e Judiciário. E a questão principal neste momento é unir forças em favor do povo brasileiro. E convém fazer mais do que tem sido feito”, disse a senadora Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado que intercedeu no tema. O Senado se viu compelido a agir não só pela inépcia de Bolsonaro, mas também porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que não tem cargo algum, tem tentado usar de sua influência política para obter mais vacinas ao país.

O terceiro movimento no xadrez político partiu de um subprocurador da República junto ao TCU (Tribunal de Contas da União). Lucas Furtado pediu a esse tribunal que afaste o presidente Bolsonaro das funções administrativas e hierárquicas sobre os ministérios da Saúde, Economia e Casa Civil e repasse as suas atribuições ao vice-presidente, Hamilton Mourão. Em seu pedido, o procurador argumentou que haverá prejuízo aos cofres públicos se não houver atendimento à população durante a pandemia e se queixa das disputas político-ideológicas.

“Não se discute que toda estrutura federal de atendimento à saúde, com recursos financeiros, patrimoniais e humanos, terá representado inquestionável prejuízo ao erário se não cumprirem sua função de atender à população no momento de maior e mais flagrante necessidade. É inaceitável que toda essa estrutura se mantenha, em razão de disputas e caprichos políticos, inerte diante do padecimento da população em consequência de fatores previsíveis e evitáveis”, diz trecho do documento.

O subprocurador ainda justificou que seu pedido está embasado na lei orgânica do TCU, que prevê o afastamento temporário do responsável caso haja indícios suficientes de que, “prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento”. Na prática, a tendência é que esse pedido não tenha sucesso. O afastamento de um presidente ocorre por meio de um processo de impeachment tocado no Congresso Nacional ou quando há a cassação da chapa por meio de uma ação no Tribunal Superior Eleitoral. O vácuo de liderança no Palácio do Planalto e os sinais trocados emitidos pelo presidente tem resultado até em ações esdrúxulas de outros atores.


Alon Feuerwerker: Segunda, terceira

Depois da segunda onda vem a terceira? Isso aconteceu, por exemplo, na Gripe Espanhola. E ali a mais mortífera foi a segunda. Agora, a Europa parece às voltas com o recrudescimento das infecções pelo SARS-CoV-2, uma terceira onda que preocupa as autoridades sanitárias (leia).

Também porque o ritmo da vacinação no Velho Continente deu uma engasgada, por causa das dúvidas sobre a vacina de preferência deles, a Oxford/AstraZeneca. Houve relatos de complicações após a administração, ela foi interrompida em diversos países mas agora parece que vai ser retomada.

Lá, como cá, a disputa se dá em torno de apertar e estender, ou não, as medidas de isolamento social. Mas ali preservou-se um grau bom de coordenação entre governos e países. Se acertarem, a chance de todos acertarem juntos é grande. Igualmente se errarem.

Por aqui, a turbulência federativa vai firme. Um exemplo insólito é a divergência entre o governador de São Paulo e o prefeito da capital, aliados e ambos do mesmo partido, sobre o feriado prolongado que a prefeitura determinou (leia). E assim caminha o Brasil. Tomara que a vacinação acelere logo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Rogério Werneck: Quatro ministros

Como o presidente continua incorrigível, o novo ministro deverá penar. Terá ele condições de reverter o aparelhamento feito por Pazuello?

Pandemia fora de controle, indignação com o caos da vacinação e popularidade em queda já vinham sendo razões de sobra para dar ao Planalto o que pensar. Não bastasse tudo isso, ainda havia aceleração da inflação, sobretudo de alimentos, atraso na retomada da economia e perspectiva de persistência de desemprego em massa até o fim do mandato. Por mais fixado que já estivesse em sua reeleição, Bolsonaro já dera sinais de ter percebido que desse jeito, aos trancos e barrancos, não teria como chegar lá.

Pois, na semana passada, a insegurança do Planalto com a precariedade da sua situação foi subitamente redobrada, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) – sempre ele – se permitiu remexer o caldeirão em que vem sendo preparado o complexo jogo eleitoral de 2022, fazendo com que viesse à tona quem parecia ter ficado definitivamente no fundo. O repentino ressurgimento de Lula como candidato a presidente, num momento tão difícil para o governo, deixou Bolsonaro visivelmente desconcertado.

Como não poderia deixar de ser, na sua reentrada em cena, o ex-presidente voltou a exibir seu velho e irrefreável lado mistificador. Apressou-se a se dizer inocentado pelo STF, rotulou a Lava Jato de “maior mentira jurídica em 500 anos”, comportou-se como se nada tivesse a ver com Dilma Rousseff e permitiu-se até destacar quão bem gerida era a Petrobrás, com a qual, de resto, esclareceu, nunca teria chegado a se envolver.

O mais danoso para o Planalto, contudo, foi o discurso suprapartidário adotado por Lula para denunciar os desmandos do governo no combate à pandemia. Batendo na tecla certa e fazendo bom uso da atenção que sua volta à disputa presidencial despertara, o ex-presidente insistiu no que qualquer pessoa de bom senso, não importa como se posicione no espectro ideológico, hoje espera ouvir, em meio ao grave recrudescimento da pandemia que enfrenta o País. Use máscara, evite aglomerações, não siga recomendações estapafúrdias do governo federal e, por favor, não deixe de se vacinar.

O Planalto sentiu o golpe. E passou recibo. Bolsonaro apareceu de máscara em evento público, seus filhos passaram a defender a vacinação e a tentar reescrever às pressas a história, dando como inverídicas as notórias manifestações negacionistas e obscurantistas do pai. 

O mais importante, contudo, é que a sobrevida de Eduardo Pazuello como ministro da Saúde se tornou insustentável. O general caiu em menos de uma semana. E, no melhor estilo bolsonarista, sua substituição foi muito mais ruidosa e desgastante do que poderia ter sido. 

Cotada de início para o cargo, a cardiologista Ludhmila Hajjar se dispôs a ir ao Planalto discutir que condições de trabalho teria caso viesse a assumir o Ministério. Mas, não tendo vislumbrado a possibilidade de chegar a uma visão “convergente” sobre o que precisa ser feito, declinou o convite, queixando-se de ter sido vilmente atacada nas redes sociais e se livrado por pouco de tentativas de invasão do hotel em que estava hospedada em Brasília.

A escolha, afinal recaiu sobre outro cardiologista, Marcelo Queiroga, que parece ter tido menos dificuldade para se acertar com Bolsonaro. Mas que achou mais seguro deixar registrado, logo de saída, que “a política é do governo Bolsonaro, não do ministro da Saúde”. Uma constatação, agora óbvia, da qual o País, a duras penas, se deu conta nos últimos meses. Tendo nomeado seu quarto ministro da Saúde desde a eclosão da pandemia, já não há mais dúvida de que o descalabro sanitário que hoje se vê deve ser integralmente debitado a Jair Bolsonaro.

Como o presidente continua incorrigível, o novo ministro deverá penar. Terá ele condições de reverter o aparelhamento que Pazuello se permitiu fazer na área da Saúde? Ou será obrigado a preservar a desastrosa ocupação do Ministério por militares? Baterá de frente com Bolsonaro, como Luiz Mandetta? Pedirá as contas em menos de um mês, como Nelson Teich? Ou se conformará em ser não mais que um Pazuello. É o que em poucos dias saberemos, em meio ao macabro turbilhão da pandemia. 

*Economista, Doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio 


Evandro Milet: Podemos trocar o ministro por um algoritmo

Quem não faltou à aula de interpretação de textos na escola conseguiu ler o óbvio na decisão do STF e entendeu que a Corte não proibiu o governo federal de agir no enfrentamento da pandemia da Covid-19. Apenas, no seu entendimento, a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes.

É óbvio que uma série de ações de coordenação e articulação com estados e municípios deveria ter sido feita e não foi. O STF não proibiu o executivo de coordenar a compra de respiradores que poderia ter evitado a bateção de cabeça com governadores negociando com fabricantes preços disparatados e dando margem à tenebrosas transações. Caberia até uma articulação diplomática com países fornecedores. Também não impede de coordenar a compra de oxigênio. Se não podia coordenar essas compras porque poderia comprar caminhões de cloroquina e distribuir?

Se o papel do governo federal é só distribuir o dinheiro para os estados, o ministro da saúde poderia ser substituído por um algoritmo com as regras de divisão. Aliás, a computação afetiva já começa a ser realidade e os algoritmos de inteligência artificial conseguem perceber até emoções. Não faria mal um pouco de empatia, mesmo digital, com os pacientes e famílias. Um robô teria mais sensibilidade para visitar hospitais.

O STF também não proibiu o executivo de fazer uma ampla campanha pela utilização de máscaras e pela necessidade de distanciamento social. Mas como fazer isso se o próprio Presidente fazia o contrário do que o mundo todo preconizava? Até campanha pelas vacinas fica difícil depois das seguidas manifestações contra a vacina chinesa por um ciúme político doentio e as transmutações em jacarés. Com isso se atrasou toda a negociação com fabricantes de vacinas.

A única recomendação presidencial foi pelo tal tratamento precoce que não consta em nenhum protocolo para covid em países desenvolvidos e ainda derrubou dois ministros que não compactuaram com as recomendações. Muita gente tende a seguir as recomendações médicas do capitão e passa a se achar imune, relaxando nos cuidados devidos. As teorias delirantes de conspiração nas redes supõem que todos os cientistas e líderes mundiais foram subornados pelos laboratórios farmacêuticos, que não queriam que os remédios baratos de lúpus, piolho e lombriga competissem com seus remédios caros.

Nas redes sociais proliferam, sem controle, as opiniões mais estapafúrdias também incentivadas. Umas acusam a imprensa de alarmismo quando, na verdade, as campanhas deveriam seguir as dos maços de cigarros ou da exposição crua dos acidentes de trânsito. Outras querem exigir que se divulgue principalmente o número de pessoas curadas. Seria como ao invés de repercutir os seis milhões de mortos no holocausto, dar destaque aos milhões que sobreviveram. Outros procuram relativizar o número de mortos comparando com outras doenças como câncer, dengue ou problemas cardíacos. Ora, para essas doenças há informação para quem quiser sobre como se prevenir, enquanto a covid é uma loteria com poucas informações sobre quem está sujeito a morrer, afastando famílias, colocando empresas em home office, fazendo se arriscar quem tem de trabalhar presencialmente e acabando com a vida social.

As atitudes tomadas pelos países de maior sucesso com muitos testes e rastreamento não foram seguidas obviamente pela falta de comando e pelo negacionismo permanente da gravidade e do possível número de mortos. Gripezinha, maricas, mimimi, frescura são expressões deprimentes e ridículas para tratar algo tão sério e perigoso.
Os países que levaram o problema a sério e introduziram desde cedo os procedimentos devidos, estão recuperando mais rapidamente a economia. Os que negaram o problema e não souberam conduzir o processo sofrerão as consequências por muito mais tempo.


Marco Aurélio Nogueira: Pazuello saiu, mas o problema ficou

A troca do ministro da Saúde não foi uma resposta aos sensatos, mas uma tentativa de reduzir a tensão

O general foi sendo fritado aos poucos. Leal e submisso ao extremo, talvez não tenha percebido o óleo que esquentava. Talvez tenha participado da operação, cansado da guerra e ciente de que sua saída poderia ser uma saída para o presidente. O pior momento da pandemia também é o pior momento para Bolsonaro. Lula à parte.

A folha de serviços de Pazuello tem sua assinatura, e um dia, quem sabe, ele responderá por ela. Mas o endosso presidencial lhe deu condições de agir como agiu, fazendo o que seu dono mandava. O resultado está aí, nas mortes que se acumulam, nas vacinas que não chegam, na terra arrasada promovida no Ministério da Saúde. A falta de coordenação nacional, a despreocupação com a gravidade da pandemia, a insensibilidade, a ignorância em relação ao SUS, o desapreço pela vida, seria cansativo ficar enumerando os dados do desastre.

Pazuello saiu, mas o problema não. Ele tem nome e endereço. Não dá indícios de que mudará, por mais que possa haver assessores e aliados querendo isso. Até a opinião pública, que já não lhe é mais favorável, torce por uma mudança de rota. Os democratas, a população, a esquerda, não há quem deseje a piora da situação. Mas o presidente não está à altura das expectativas nacionais, na verdade demonstra não ter qualquer interesse em propor medidas para solucionar a crise, fechado que vive em um círculo de obsessões, ativistas ensandecidos, milicianos, filhos venenosos. Nem o Centrão consegue afastá-lo desse espaço tóxico, impregnado de violência.

Marcelo Queiroga, o novo ministro, não é um personagem conhecido fora da área cardiológica. Chega ao governo porque é amigo da família e sempre foi apoiador do chefe. Dizem que tem capacidade de articulação e bons contatos. Não é íntimo do SUS, nada sabe de Saúde Pública, mas falam que é bom gestor. Há uma compreensível excitação em saber o que ele pensa e o que acredita que fará, além de executar a “política do governo”, que de resto todos sabem não existir. Os jornais publicaram que ele já se manifestou a favor do isolamento social e contra “tratamentos precoces”. Pode ser. Mas isso não quer dizer absolutamente nada quando se fala de política no Brasil atual.

Terá Queiroga condições de imprimir outra direção, traçar uma política sanitária, recuperar a coordenação nacional, acelerar a compra de vacinas, organizar uma arena de reflexão e ação consistente para frear o vírus? Terá coragem de enfrentar os desatinos presidenciais, confrontá-los com firmeza, abrindo-se para os núcleos de inteligência médica, científica, e para suas recomendações?

Pelos dados que se têm, não dá para acreditar nisso.

Na verdade, não estamos perante uma oportunidade perdida. Não despontou nenhuma oportunidade. A defenestração de Pazuello não foi uma resposta aos mais sensatos, que pediam sua cabeça, mas sim uma tentativa de esfriar a temperatura e reduzir a tensão. Se não funcionar, como tudo indica, o óleo poderá queimar em outra frigideira.


Armando Castelar Pinheiro: Heranças da pandemia

O Brasil terá pressões inflacionárias, juros externos mais altos, desemprego elevado e alimentos mais caros

 Chegamos ao meio de março sem conseguir acelerar o ritmo da vacinação nacional. Ao todo, foram 12 milhões de vacinas aplicadas a pouco mais de 4% da população brasileira. Em termos de vacinas por 100 habitantes (5,5 no Brasil), somos o 39º país de uma lista que tem Israel (110) no topo e, na sequência, Emirados Árabes Unidos (67), Reino Unido (40), Chile (40) e Estados Unidos (35). Por conta da focalização nos grupos de maior risco, nesses países já há alguma normalização da atividade econômica, como refletido em indicadores de mobilidade e emprego, por exemplo.

Essa “luz no fim do túnel” tem estimulado trabalhos que discutem a herança deixada pela pandemia, seja em termos de problemas que ficam por resolver, seja de lições para lidar com futuras crises.

Alguns desses temas foram discutidos no workshop “Macroeconomia de la pandemia y los impactos de Covid-19 en América Latina”, promovido pelo Grupo de Conjuntura do IE/UFRJ, que cobriu a experiência não apenas do Brasil, mas também de outros países da região. Destaco três dos tópicos vistos no workshop.

Primeiro, o atraso da América Latina na retomada da atividade econômica, em termos de PIB e emprego, por conta da forma ineficiente com que a região lidou com a pandemia. As novas projeções econômicas da OCDE reforçam esse ponto: tomando a média de Argentina, Brasil e México, as três maiores economias da região, tem-se que em 2022 seu PIB ainda estará um pouco abaixo do de 2019 (-0,2%). O mesmo estudo projeta um PIB mundial 6,1% maior ano que vem do que em 2019.

Ou seja, ficaremos relativamente mais pobres e, se vamos nos beneficiar do aumento da demanda externa por nossos produtos, em especial com preços mais altos de commodities, vamos também sofrer com pressões inflacionárias e juros externos mais altos. Desemprego elevado e preços altos de alimentos são uma combinação politicamente perigosa, especialmente quando as pessoas se sentirem seguras de voltar a se aglomerar.

Esse quadro complica outras duas heranças discutidas no workshop. Uma, a preocupação com a saúde financeira das instituições financeiras. Saberemos mais sobre isso conforme fique mais fácil diferenciar problemas de liquidez daqueles de solvência. Outra, a difícil situação fiscal de alguns dos países da região, com destaque para o Brasil que, junto com o Peru, gastaram muito em programas públicos de combate à crise. É fácil ver que baixo crescimento e juros em alta são agravantes de uma situação fiscal já difícil.

Este último ponto também é discutido no livro “Legado de uma Pandemia”, publicado no início do mês pelo Insper, com organização de Laura Muller Machado. O livro tem 17 capítulos, agrupados em quatro partes que lidam, respectivamente, com a ordem social, a ordem econômica, a organização do Estado e política e comunicação. Em todos os capítulos há uma preocupação em explicitar legados deixados pela pandemia e em fazer recomendações.

Dentre os diversos temas tratados no livro, os impactos distributivos, fortes e negativos, são um dos destaques. Foram os trabalhadores mais pobres que mais sofreram com a perda de ocupações e renda. Os negros também sofreram mais que os brancos, enquanto outras análises mostram que as mulheres saíram em maior proporção do mercado de trabalho do que os homens. O livro dá grande ênfase a um ponto em geral pouco discutido: houve um significativo impacto negativo sobre as crianças, pela falta de aulas, que foi mais importante para as crianças mais pobres, com menos acesso a equipamentos de informática e assistência familiar.

Essa discussão desemboca no livro em um debate que também apareceu no workshop do IE/UFRJ: quão desejável é redistribuir o custo econômico da pandemia por meio de tributações que retirem renda de grupos que sofreram menos para financiar os programas públicos de assistência social, evitando transferir todo esse custo para gerações futuras, por meio de mais dívida pública.

O livro do Insper também trata de como a separação entre o que é feito pelo Estado e o que cabe ao setor privado pode ser repensada após a pandemia. Uma conclusão é que, em crises, pode ser desejável o Estado participar mais planejando e coordenando as atividades, no financiamento e na produção, e se preocupando menos com temas como a defesa da concorrência. Esse quadro deve, porém, ser transitório. Mais permanente deve ser o apoio estatal a pesquisas científicas relacionadas à pandemia, mesmo que indiretamente, como na segurança alimentar, e a capacitar servidores públicos para lidar com momentos como o atual.

Diversos capítulos, ainda que não todos, encerram com uma visão positiva sobre o futuro, prevendo que a sociedade acordou para os problemas revelados pela pandemia. É o caso, em especial, dos “invisíveis”, aí compreendidos os inúmeros pobres que acorreram ao Auxílio Emergencial e dos quais não havia registro anterior. Não me convenci dessa visão. Mas concordo que, para avançar, precisamos de mais discussão pública sobre os temas tão oportunamente trazidos por todos esses pesquisadores. Parabéns.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Ribamar Oliveira: O enigma do novo gatilho de 95%

PEC 186 não resolve problema de acionar as medidas de ajuste

Há uma unanimidade entre os analistas de que a despesa obrigatória da União, submetida ao teto de gastos, só vai ultrapassar 95% da despesa total em 2024 ou 2025. Este é o novo gatilho que dispara as medidas de ajuste das contas, introduzido pela PEC Emergencial, promulgada como emenda constitucional 109.

O problema do novo gatilho, no entanto, não está apenas na demora para ele ser acionado, mas também no fato de que se a despesa obrigatória chegar a 95% da despesa total, vários serviços públicos à população já estarão paralisados, ou, como preferem dizer os economistas, a administração estará em “shutdown”. Assim, a fixação do gatilho em 95% foi claramente um erro.

Em ofício ao Congresso Nacional, datado de 14 de dezembro de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs mudança na meta fiscal deste ano e reestimou a receita e a despesa da União para 2021, uma vez que os parâmetros utilizados na elaboração do projeto de lei orçamentária anual (PLOA), em agosto do ano passado, estavam ultrapassados.

Nele, Guedes informa que o governo passou a trabalhar com despesas discricionárias de R$ 96,2 bilhões, incluindo neste valor as emendas parlamentares, que, embora sejam impositivas, podem sofrer contingenciamento. O valor corresponde a 6,47% da despesa total da União submetida ao teto. As despesas discricionárias são os investimentos e o custeio da máquina, que o governo não é obrigado por lei a executar.

As despesas obrigatórias submetidas ao teto, por sua vez, estão em 93,53% do limite total do gasto definido para este ano, de R$ 1.485,9 bilhões. Este percentual é uma aproximação porque o cálculo tem que ser feito, de acordo com a EC 109, para cada Poder e órgão público, pois eles possuem limites de despesa individualizados. Mas essa abertura de dados não está disponível no ofício do ministro. Sem as emendas parlamentares, as despesas discricionárias caem para R$ 79,9 bilhões neste ano, o menor patamar da série histórica.

Mesmo com esse nível muito baixo para os investimentos e o custeio da máquina, o gatilho não é acionado, o que mostra o equívoco cometido. Uma conta simples demonstra a armadilha que foi criada. As despesas discricionárias teriam que cair mais 1,47 ponto percentual (6,47% menos 5%) da despesa total para que as medidas de ajuste possam ser adotadas. Ou seja, para chegar a 5% da despesa total neste ano, as discricionárias teriam que ser reduzidas para R$ 74,3 bilhões, incluindo as emendas parlamentares, o que inviabilizaria a administração.

Em resumo, a EC 109 estabeleceu um gatilho que só poderá ser acionado quando a administração pública estiver em “shutdown”. Com um agravante: como não se pode reduzir as emendas parlamentares, que estão indexadas pela inflação, o aumento futuro das despesas obrigatórias terá que ser compensado sempre com o corte do investimento e do custeio.

As razões que levaram à escolha de 95% como novo gatilho das medidas de ajuste são um enigma. Importantes integrantes da equipe econômica do governo defenderam que o gatilho ficasse em 94%. Então, porque o percentual de 95% prevaleceu? Este colunista apurou que foi uma decisão política do governo e ouviu que, até hoje, ela gera incômodo na área técnica.

Se o gatilho tivesse ficado em 94%, havia o risco de ele disparar já em 2022, ano eleitoral, com a adoção obrigatória de medidas impopulares de contenção de despesas. É difícil acreditar que a razão tenha sido esta porque, para evitar desgaste eleitoral, o governo optou por um percentual que não será atingido, pois, antes disso, a administração estará em “shutdown”.

Para que o leitor não perca o fio da meada, o objetivo original da PEC 186 era corrigir o principal problema do teto de gastos. Devido à má redação da emenda constitucional 95/2016, que instituiu o teto, o gatilho que acionava as medidas de ajuste das contas não disparava. Não havia maneira de o governo adotar medidas de contenção das despesas. Como as despesas obrigatórias não param de crescer, os investimentos e o custeio foram minguando cada vez mais.

No texto da PEC 186 que o governo enviou ao Congresso, em novembro de 2019, o gatilho disparava toda vez que a chamada “regra de ouro” das finanças públicas, que proíbe o aumento da dívida para pagar despesas correntes, não estivesse sendo cumprida.

Este referencial foi alterado e o relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB-AC), com a concordância do governo, foi buscar o gatilho de 95% que constava da PEC 188. O resultado de tudo isso é que o gatilho que consta da EC 109 não permite acionar as medidas de ajuste para evitar o “shutdown” da administração e, portanto, não resolve o problema que estava colocado na EC 95.

Nova polêmica

Uma nova polêmica ganhou corpo entre os especialistas em finanças públicas. A PEC 186 instituiu, como foi dito nesta coluna em fevereiro passado, um novo marco para as finanças públicas. A âncora fiscal passou a ser a trajetória da dívida pública que será perseguida pelos governos federal, estadual e municipal. As metas de resultado primário serão definidas de forma a permitir que a trajetória da dívida seja cumprida. Para isso, os governos terão que adotar medidas de contenção de despesas e elevação de receitas que permitam alcançar as metas.

A raiz da polêmica está no fato de que o artigo da EC 109, ao tratar desta questão, prevê aprovação de lei complementar especificando “a trajetória de convergência do montante da dívida com limites definidos em legislação”. O artigo 52 da Constituição define que é competência privativa do Senado fixar, por proposta do presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados e dos municípios. A discussão é se a EC 109 invadiu uma competência do Senado.

Na interpretação do Ministério da Economia, não há conflito entre o artigo 52 da Constituição e a EC 109. A atribuição do Senado, de acordo com esse entendimento, é fixar limite máximo para o endividamento dos entes. E o objetivo da EC 109 é fixar limites prudenciais para definir uma trajetória para a dívida, que, se superados, acionam os gatilhos das medidas de ajuste.