ministério da saúde

Míriam Leitão: Falsos remédios e muitos venenos

Cloroquina é o símbolo deste governo que sempre tem falsos remédios com efeitos tóxicos para os problemas do país. O Brasil está diante de um devastador retrocesso na educação por causa da pandemia, e a proposta pela qual o governo Bolsonaro se bate é o homeschooling. O país vive uma grave crise na democracia, em parte criada por este governo, mas Bolsonaro exige a volta do voto impresso e por ele ameaça até a realização das eleições. Em vez de uma política de segurança, o projeto que tem sido posto em prática é a liberação das armas. Para o trânsito, o projeto, felizmente atenuado no Congresso, foi o da menor punição para infratores e o fim da cadeirinha das crianças. Em cada área pode-se encontrar a solução “cloroquina”, um falso remédio, que é, na verdade, um veneno.

Na semana passada, a CPI mostrou o efeito da cloroquina na política de saúde brasileira. Ela impede que se desenvolvam boas práticas para enfrentar a pior pandemia em um século, passou a ser a peça central da política pública, a única questão que mobiliza o presidente e o entorno do Palácio. Por ela, um ministro foi demitido, outro pediu demissão, o terceiro se escondeu atrás do Exército e o quarto engasgou. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) fez seis vezes a mesma pergunta ao ministro Marcelo Queiroga, o senador Omar Aziz (PSD-AM), outras duas vezes. Queiroga não conseguia desengasgar e dizer se compartilhava ou não compartilhava da opinião do presidente sobre a cloroquina. “Apego ao cargo”, concluiu o senador Otto Alencar (PSD-BA). O remédio usado em caso de malária e lupus, com ineficácia comprovada para Covid-19, traz para o Brasil o pior dos efeitos colaterais. Por causa da obsessão do presidente, o país deixou de ter uma política de combate à pandemia. “Canalha”, disse Bolsonaro para definir quem discorda do uso da cloroquina. Um espelho o ajudaria a encontrar um bom destinatário para o adjetivo.

Foi uma semana dilacerante. O país perdeu um artista querido que lotava cinemas e teatros, que nos fazia rir em momento que tanto precisamos. Perdemos Paulo Gustavo com 42 anos e uma vida pela frente e isso nos lembra que a morte por Covid está ficando mais jovem. No dia mesmo em que seu corpo era cremado, o Rio viu mais uma chacina. Jacarezinho foi palco de um horror de país em guerra. O governador Claudio Castro disse que a operação da Policia Civil, que vitimou um policial e 27 moradores, foi fruto de ação de inteligência. A identidade dos moradores mortos não havia ainda sido divulgada, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, definiu-os como “tudo bandido”. Mais tarde, repetiu que eram todos “marginais”. Se forem, então, podem ser executados, sem direito a um processo? As leis brasileiras não têm pena de morte, mas para o vice-presidente pessoas podem ser mortas, sem direito a um processo. Para completar, Mourão disse que no Rio “é a mesma coisa que se a gente tivesse combatendo no país inimigo. Quase a mesma coisa.”

A solução cloroquina que ele oferece aqui é letal. Em vez de uma política de segurança, execução em massa, suspensão do devido processo legal, e a transformação do Rio em território inimigo. Mourão pelo visto quer mostrar a Bolsonaro que merece continuar sendo seu vice. Compartilha dos mesmos valores. Resta perguntar à dupla o que fazer com a milícia nesse “país inimigo”.

Durante a semana em que a CPI exibiu uma radiografia de como o governo tem contribuído para o aumento do contágio e das mortes por Covid-19, Bolsonaro esteve sob o comando do filho Carlos. Para tentar desviar a atenção posta na CPI, Bolsonaro empilhou absurdos. Ameaçou baixar um decreto autoritário, atacou o principal parceiro comercial do Brasil e fornecedor de insumos para vacinas e disse que pode não haver eleições, se não for aprovado e implantado o voto impresso.

Bolsonaro quer impor uma pauta estranha às urgências do país, em todas as áreas. Mais de cinco milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação durante a pandemia, e, quanto mais pobre, menos o aluno está aprendendo. Estamos vivendo uma tragédia que recai sobre uma geração inteira de estudantes. Mas a solução cloroquina é permitir que um grupo de fanáticos tenha o direito de aprisionar a cabeça dos filhos numa educação medieval, que elimina a escola. Assim é o governo Bolsonaro. Tóxico.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/falsos-remedios-e-muitos-venenos.html


Fabio Giambiagi: Gasto do governo com militares teve um incremento real de 4% em 2020

Uma lição que tentava passar para meus alunos quando dava aulas de Finanças Públicas era: “Sempre que for possível, abram o dado”. Ou seja, antes de fazer afirmações peremptórias sobre algo, é preciso entender bem o que está acontecendo. O gasto público está aumentando? Sim, ok. Por causa de que rubricas? INSS? Perfeito, onde? Aposentadorias urbanas ou rurais? Por idade ou por tempo de contribuição? O problema está nas “outras despesas”? Quais delas, então?

Agora faço uma observação similar quando vejo análises gerais sobre a despesa com pessoal. Esta é uma rubrica que, sem dúvidas, era necessário rever no começo do atual governo, haja vista o fato de que, desde que o teto do gasto fora adotado em 2016, ela e o INSS foram os dois grandes itens que continuaram mantendo seu crescimento, em contraste com a evolução do terceiro grande bloco de despesa – as “outras” – que encolheram muito entre 2016 e 2019. A razão se localiza na decisão do governo Temer de validar os aumentos salariais negociados politicamente – ainda no governo Dilma – com a maioria das carreiras do funcionalismo, acarretando um incremento real do gasto. Esse item, então, pressionou severamente as chamadas “despesas discricionárias”, que têm sido espremidas nos últimos cinco anos.

Como, porém, aqueles aumentos nominais se esgotavam em 2019, é útil colocar uma lupa na questão e analisar o que continuou acontecendo em 2020 e 2021. A observação dos dados sugere que chegou a hora de tratar de um tema que, até agora, tem merecido escassa ou nenhuma importância nas análises da maioria dos analistas. Parodiando o nome de um famoso filme, eu diria que “precisamos falar sobre a despesa com pessoal dos militares”. O rigor analítico exige apresentar os números de forma nua e crua.

Vejamos as questões com maior grau de detalhamento. Entre 2016 – ano da aprovação da “regra do teto” – e 2019, as despesas com pessoal passaram de 20,6% para 22,2% do total do gasto. O que aconteceu com essa rubrica em 2020? Neste ponto, há que lembrar a negociação que ocorreu em 2019, visando à aceitação, por parte dos militares, de uma reforma previdenciária da categoria que fosse aceitável por parte das Forças Armadas. Eles acabaram apoiando a proposta específica de reforma enviada ao Congresso, em troca de aumentos salariais maiores ao longo da carreira, vinculados a determinados requisitos.

O fato é que, muito provavelmente, o que os economistas chamamos de “integral de remuneração”, ou seja, o valor de quanto será pago a essa pessoa ao longo de toda a sua vida será maior do que antes da reforma, uma vez que, embora o tempo de vigência da aposentadoria será menor, o valor gasto na ativa, após os aumentos, será muito superior ao que iria ser pago antes dos aumentos concedidos, além de outros detalhes que não há espaço aqui para comentar. Alguém poderia alegar que isso ocorreria só em forma dilatada ao longo do tempo, mas não é o que os dados mostram.

A realidade dos números é inequívoca: deflacionando os dados pelo IPCA médio anual, em 2020, o gasto com pessoal civil teve uma redução real de 2%, enquanto o gasto militar teve um incremento real de nada menos que 4% – no ano em que o PIB caiu 4%! E, quando se olha para o pessoal ativo, devido ao congelamento nominal de uns e aos aumentos concedidos a outros, o contraste entre civis e militares foi maior ainda: o gasto com ativos civis caiu, em termos reais, 4%, enquanto o gasto com pessoal ativo militar teve um salto real de 7%. E, nos primeiros três meses de 2021, essa realidade se acentuou: a despesa com ativos civis caiu em termos reais mais 6% e com pessoal ativo militar aumentou novamente outros 7% reais. Não é preciso ser um profundo conhecedor de política para entender a lógica desse processo. Em outras épocas, dir-se-ia que se tratava de uma “questão de correlação de forças”. Neste caso, literalmente.

*ECONOMISTA

Fonte:

O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,gasto-do-governo-com-militares-teve-um-incremento-real-de4-em-2020,70003706910


Bernardo Mello Franco: Tropa de trapalhões

Em duas semanas, o Planalto já acumula ao menos sete vexames na CPI da Covid. A série começou quando o UOL publicou uma planilha da Casa Civil com 23 acusações contra o governo. A lista foi redigida para ajudar os bolsonaristas. Ao vazar, virou arma para a oposição.

Na semana passada, O GLOBO revelou que requerimentos assinados por senadores governistas foram produzidos em computadores da Presidência. Os registros eletrônicos mostram que os parlamentares atuaram como laranjas do capitão.

Nesta terça, o ex-ministro Henrique Mandetta expôs mais uma lambança. O ministro Fábio Faria enviou para o celular dele, por engano, uma pergunta que seria feita pelos aliados de Bolsonaro.

No dia seguinte, os governistas protagonizaram outro papelão: tentaram impedir as representantes da bancada feminina de falar. Os senadores Ciro Nogueira e Marcos Rogério se esforçaram para calar as colegas no grito. Foram desautorizados até por Soraya Thronicke, uma bolsonarista de carteirinha.

O general Eduardo Pazuello ainda não deu as caras, mas já acumula dois vexames na CPI. Na terça, apresentou uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento. Disse que teve contato com dois coronéis contaminados, embora não tenha se prestado a fazer um teste de Covid-19.

Ontem o drible se transformou em escárnio. Enquanto dizia estar isolado no hotel de trânsito do Exército, o general fujão recebeu a visita do ministro Onyx Lorenzoni.

O sucessor de Pazuello protagonizou a sétima trapalhada governista. Num depoimento arrastado, Marcelo Queiroga deixou dezenas de perguntas sem resposta. A cada enrolação, evidenciava o medo de dizer algo que desagradasse o chefe.

“O senhor é médico, fez o juramento de Hipócrates, mas não consegue responder àquilo que eu pergunto”, protestou o senador Otto Alencar. Queiroga continuou a embromar e voltou para casa com o apelido de ministro Rolando Lero.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/tropa-de-trapalhoes.html


Hélio Schwartsman: Pazuello, covarde ou herói?

general Pazuello fugiu do depoimento que daria à CPI da Covid. Isso é fato. Resta determinar se o fez por covardia ou bravura. É claro que estou sendo irônico, mas menos do que o leitor imagina. A relação entre covardia e bravura é irredutivelmente paradoxal.

O guerreiro que nada teme não faz nada de extraordinário quando enfrenta a morte no campo de batalha. Para que sua atitude tenha algo de heroico, é preciso que ele tenha medo, se não de perder a vida, dos chamados destinos piores que a morte, como viver em desonra ou ver seus familiares e compatriotas reduzidos à escravidão. E basta admitir que o medo é indissociável da bravura para gerar situações contraditórias.

Gosto de uma observação do marechal Georgi Jukov: “No Exército Vermelho, é preciso ser muito valente para ser covarde”. É que os soviéticos punham em campo as temíveis companhias penais, que fuzilavam imediatamente qualquer soldado que parecesse recuar. Estima-se que centenas de milhares tenham sido mortos por esses pelotões.

Num exemplo mais literário e mais doméstico, Gonçalves Dias cria um I-Juca Pirama tão valente que não teme passar por covarde para cumprir suas obrigações filiais, sendo rejeitado até mesmo pelo pai pelo qual sacrificara a honra aparente.

Em qual contexto a fuga de Pazuello da CPI poderia ser interpretada como um ato de bravura? Lealdade. O general é tão leal ao comandante em chefe que não hesita em passar por covarde para protegê-lo. O fato de Pazuello ser um militar, carreira em que a covardia é o pior anátema que pode ser pespegado a alguém, torna seu sacrifício ainda mais trágico.

Só o que impede o general de ter seu destino imortalizado em versos são as motivações do chefe. Elas são tão mesquinhas que apequenam qualquer heroísmo. Se Pazuello não é covarde por ter fugido da CPI, o é por não ter denunciado os crimes de Bolsonaro.

Fonte:

O Globo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/pazuello-covarde-ou-heroi.shtml


Beatriz Della Costa: A sociedade civil tem que pautar a política

Umas semanas atrás fui entrevistada por uma jornalista que me perguntou assim: “Como mudar a situação do Brasil?”. Minha primeira reação foi partir para o óbvio: lockdown, vacina e auxílio emergencial. “Mas o que podemos fazer hoje para transformar esse cenário amanhã?”, ela insistiu. Fiquei aflita, pois não tenho a resposta. O que pude dizer foi que não há solução imediata, que a ideia do impeachment se esvai a cada dia e que já está bem claro que somos triplamente reféns: do vírus, do Governo negacionista e de políticos fisiologistas.

A conversa me deixou reflexiva. Primeiro pela essência da pergunta em si, que enfatiza o quanto estamos todos ansiosos para sair do buraco. Depois, pela constatação da inexistência de uma saída rápida. O bolsonarismo está por aí desde antes de 2018 e, de uma forma ou de outra, vai persistir para além de 2022 ou 2026. Ele representa um pensamento com o qual 30% da população de certa maneira se identifica. Então, querer mudar o futuro é, primeiro, ser capaz de olhar para este presente e entendê-lo a partir das heranças do passado, boas ou ruins. Precisamos lembrar que o bolsonarismo apenas vocaliza o comportamento de um país que se desenvolveu a partir do autoritarismo, da escravidão, da violência, do extrativismo.

E o que a gente sente é que ninguém, seja no governo ou na oposição, está preocupado em fazer isso, em delinear um projeto de país. Os partidos e os políticos, os tais fisiologistas de que falei, estão ali travando uma disputa de cabo de guerra que nada tem a ver com você ou comigo. De onde, então, pode vir a esperança? A que podemos nos apegar?

Sou cética no que diz respeito a uma oposição que, sem propostas, busca a união pela via do “anti”, mas confesso que aquele primeiro discurso de Lula depois de seu retorno ao jogo político, em março, me fisgou. Vi ali uma chance de enfim fugirmos destes tempos com sabor de 1964. A questão que fica é: para que futuro Luiz Inácio nos levaria? Chegaríamos finalmente à terceira década do século XXI? Ou iríamos para o futuro de 2010, numa continuidade direta de seu segundo mandato? Seja como for, a escolha entre 1964 e 2010 não é nada difícil.

Não tenho dúvidas, entretanto, de que a única maneira de entrarmos de vez no século XXI é nos livrando por completo da ideia de salvadores da pátria. Não existe mágica, não existem personificações puras do bem e da mudança. Qualquer pessoa que se proponha a botar o país nos eixos, a nos reinserir numa linha do tempo próxima à realidade, deve governar pelo diálogo com os mais diferentes grupos da população. Lula talvez esteja dando umas dicas de que está disposto a fazer isso (anda falando de imprensa livre, segurança, relações internacionais, pandemia e de vez em quando até de meio ambiente), mas já conhecemos suas limitações: além de representar um grupo político com visões enraizadas no fim do século XX, também é, de certa forma, parte do problema que vivemos.

No meio disso tudo, a sociedade civil tem a grande missão de começar a pautar a política de maneira menos centralizada e dependente. Precisamos disseminar o diálogo construtivo entre o poder público e, também, entre a população. Desde já, as organizações precisam ouvir brasileiros de todos os tipos, brasileiros que pensam de muitas maneiras, brasileiros que votam em pessoas diferentes. Isso vai decifrar insatisfações e, o mais importante, desvendar os pontos de convergência que podem fomentar um projeto de país e repavimentar a estrada para um Brasil justo e humano. Poucos países têm uma sociedade civil tão sólida, é hora de usarmos isso a nosso favor.

Sei que estamos resolvendo emergência atrás de emergência. Quando o encanamento se rompe e tudo fica debaixo d’água, vamos pensar em chamar um bombeiro hidráulico ou na reforma da casa? É possível lidar com a urgência e ao mesmo tempo se dedicar à construção de um futuro? Só há uma resposta: tem que ser. Estamos diante do grande desafio desta geração, a reconstrução do nosso tecido social. E chegou o momento de enfrentarmos nossos medos e as sombras do nosso passado, estabelecermos conversas, praticarmos a tolerância e sairmos Brasil adentro para construir nossos sonhos para o século XXI.

Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 o projeto Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br), que mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-05/a-sociedade-civil-tem-que-pautar-a-politica.html


Alon Feuerwerker: O atraente bidenismo

A política econômica do governo Joe Biden vem atraindo certo entusiasmo nas correntes políticas da oposição, pela esquerda, ao governo Jair Bolsonaro. É compreensível. Após muitos anos de difusão do chamado Consenso de Washington, eis que na capital do mesmo nome surge uma administração a propor, entre outras coisas, emitir moeda, reforçar o papel do investimento estatal e taxar quem tem mais, para distribuir a quem tem menos.

A mudança ali, com as ondas de influência irradiadas mundo afora, soma-se vetorialmente por aqui a uma certa frustração com a colheita das políticas aplicadas desde pelo menos a Ponte para o Futuro de Michel Temer. Na sequência veio a dupla Bolsonaro-Paulo Guedes. É razoável admitir que existe alguma continuidade nas orientações definidas para a economia pelos governos que mandam no Planalto desde a ruptura de 2016.

Claro que a análise objetiva exige levar em conta as circunstâncias. Cada um de nós é ele mesmo e suas circunstâncias. Uma foi o governo Temer ter entrado em modo de sobrevivência por razões da área policial, e depois a pandemia da Covid-19 pegou pela proa a administração Bolsonaro. Mas aí enveredamos pelo terreno das explicações e justificativas. E na política, a exemplo de outras esferas da vida, quem começa a se explicar e justificar já está perdendo.

Os ventos bidenistas e a crônica pasmaceira econômica acenderam no Brasil o desejo de uma guinada. Mas qual a viabilidade dela? Que candidato com chances vai pegar a estrada em 2022 dizendo que irá fazer dívida pública pesada para ampliar o investimento estatal e prometendo tomar o dinheiro dos “ricos” (que no Brasil, na prática, incluem uma gorda fatia da classe média) para redistribuir renda pela mão do Estado?

Políticas econômicas precisam ter, antes de tudo, viabilidade política. Há sim teóricos respeitáveis que garantem: fazer dívida em moeda nacional não produz inflação. Mas qual presidente vai arriscar, no sempre instável cenário institucional brasileiro, colocar todas as fichas numa teoria contraintuitiva? Se der errado, seus autores no máximo farão autocrítica. Já o político provavelmente terá ido para o cadafalso, talvez metafórico.

Há uma diferença importante entre o Brasil e os Estados Unidos. Eles podem legalmente imprimir dólares sem lastro e nós podemos imprimir reais sem lastro, mas não parece que as consequências venham a ser as mesmas. Isso e outros fatores devem impelir os candidatos competitivos a buscar soluções mais convencionais. Uma em especial: a atração maciça de capitais externos para fazer subir a taxa de investimento privado.

Eis por que no próximo governo, pois entramos na etapa conclusiva deste, talvez um ministério de importância renovada será o das Relações Exteriores. E quem sabe não deveríamos voltar nossos olhos também para o Oriente, em vez de apenas para o Norte? É pouco razoável imaginar que a economia brasileira vai se erguer puxando os próprios cabelos para cima. Ou colocando todas as fichas de política exterior numa única casa.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

====================

Publicado na revista Veja de 28 de abril de 2021, edição nº 2.737

 

 

Fonte:

 

Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/o-atraente-bidenismo.html

 

Veja
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/o-atraente-bidenismo/


Eliane Cantanhêde: Gabinete das trevas

A estrela da CPI da Covid nesta semana é a cloroquina, mas a da semana que vem será a vacina. O governo Jair Bolsonaro não sai bem nem numa nem na outra e todas as perguntas giram em torno de um mesmo eixo: o grave negacionismo científico do próprio presidente da República diante da cloroquina, da máscara, do distanciamento, da vacina. De toda a pandemia, enfim.

A cronologia da CPI corresponde e expõe às câmeras, para o Brasil inteiro, a própria realidade do governo. Luiz Henrique Mandetta foi demitido do Ministério da Saúde por defender teses e protocolos científicos e da OMSNelson Teich foi colocado lá para ficar quieto, não atrapalhar, mas se rebelou quando percebeu a roubada. E o jeito foi meter um general da ativa do Exército, Eduardo Pazuello, para fazer o papel de bobo, obedecendo a tudo que seu mestre mandasse.

Por trás dessa cronologia, há o que Mandetta revelou já no primeiro dia de depoimentos: quem manda na pandemia não é o Ministério da Saúde, logo, nem Mandetta, nem Teich, nem Pazuello, mas, sim, o presidente, com um gabinete das sombras, ou das trevas. Não consta que Bolsonaro seja médico, cientista ou saiba a diferença entre vírus e bactéria. E não se sabe quem são e qual é a formação e a expertise em saúde, particularmente em saúde pública, dos tais integrantes do gabinete misterioso.

É dali, porém, que saem decisões estapafúrdias que dizem respeito à vida de todos os brasileiros e foram rechaçadas por Mandetta e Teich, mas assumidas alegremente por Pazuello e pela cúpula do governo. Não fosse assim, o que levaria um outro general, este da reserva, mas de quatro-estrelas, a ter de se vacinar escondido? E por que demorar um ano inteiro para lançar uma simples campanha para orientar os cidadãos para o uso de máscara, álcool em gel, distanciamento, vacina?

A grande dúvida, porém, é quanto ao quarto ministro em plena pandemia: o que defende, faz e pretende, e qual o grau de autonomia do médico Marcelo Queiroga em relação ao “doutor” Bolsonaro e ao gabinete das trevas? Como ele entrou e saiu da CPI sem citar uma única vez a palavra “cloroquina”, nem para aprovar, nem para condenar, as duas perguntas ficaram sem resposta conclusiva.

Foi aflitivo assistir ao depoimento. Queiroga fez um esforço gigantesco para se equilibrar entre suas crenças e a condição de ministro de Bolsonaro, tentando resumir tudo a um mantra: “A solução está na vacinação”. Não deixou, porém, de admitir, transversalmente, ou nas entrelinhas, que também é a favor das máscaras e do isolamento social e contra a cloroquina. Ou seja: não acusou Bolsonaro, mas disse, sem dizer, que defende exatamente o oposto do presidente, seu chefe.

Um exemplo da saia-justa foi quando, sem ter o que responder à pergunta sobre a orientação do Ministério da Saúde para “tratamento precoce”, que não tem respaldo científico em lugar nenhum do mundo, ele frisou que, “na minha gestão”, não houve orientação nem distribuição de cloroquina. Leia-se: se havia e não há mais é porque… ele é contra.

Enquanto a CPI expõe os absurdos de Bolsonaro, ele tenta distrair a plateia. Umas sacadas são só de mau gosto, como rir do cabelo “black power” de um seguidor: “Tô vendo uma barata aqui!”. Outras vão além, como chamar os contrários à cloroquina de “canalhas” ou voltar a atacar a China gratuitamente numa hora dessas. Os efeitos não são contra a pessoa de Jair Bolsonaro, mas contra o interesse nacional e a vida dos brasileiros.

Por falar em vida, lá está o Brasil mais uma vez de forma desoladora na mídia internacional, com a chacina no Rio, onde um tiroteio entre polícia e bandidos deixou 25 mortos. É essa a imagem do “novo Brasil”, esse Brasil do gabinete das trevas.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gabinete-das-trevas,70003706947


Malu Gaspar: CPI da Covid revela homens ainda menores do que pensávamos

‘Um homem pequeno para estar onde está’ foi a expressão usada por Luiz Henrique Mandetta no depoimento à CPI da Covid. O ex-ministro da Saúde se referia ao ex-colega da Economia, Paulo Guedes, que o acusou de “pegar R$ 5 bilhões” e não comprar vacinas quando elas ainda nem existiam. Mandetta falou só de Guedes, mas bem poderia ter usado o aposto para outros personagens.

No momento em que Mandetta se apresentava à CPI, homens de confiança do presidente da República trabalhavam nos bastidores para ajudar outro ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, a escapar do próprio depoimento. Estavam alarmados com o que viram no treinamento aplicado a ele no final de semana. O general que, no poder, se acostumou a dar entrevistas coletivas em que só falava o que queria e não respondia a pergunta nenhuma tremeu diante da simulação de um pelotão agressivo de senadores ávidos por um embate.

Acuado, o mesmo Pazuello que dias antes circulava sem máscara num shopping center de Manaus, despreocupado com a pandemia, escondeu-se atrás do Exército. Coube a um general assinar um ofício avisando à CPI que ele não compareceria, por ter tido contato com coronéis contaminados com o coronavírus.

O ex-ministro da Saúde não apresentou atestado médico, nem lhe ocorreu fazer um teste para eliminar a hipótese de contaminação e se liberar para prestar esclarecimentos à CPI o mais rapidamente possível. Mas ganhou duas semanas para tomar coragem e responder às perguntas dos senadores.

No dia seguinte, diante de plateia amiga no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro adotou postura combativa. Disse que estava pronto para garantir por decreto “o direito de ir e vir”, contra medidas de isolamento social determinadas por governadores. Em mais uma de tantas indiretas contra o Supremo Tribunal Federal, disse que, se baixar o tal decreto, “não será contestado por nenhum tribunal, porque ele será cumprido”.

No mesmo tom ameaçador de sempre, chamou de canalha “aquele que é contra o tratamento precoce e não apresenta alternativa” e criticou o pedido da CPI para que informasse onde esteve nos finais de semana em que circulou pelos arredores de Brasília sem máscara e sem tomar cuidados preventivos contra a disseminação do coronavírus. “Não interessa onde eu estava. Respeito a CPI, estive no meio do povo, tenho que dar exemplo”, afirmou o presidente, exaltado. “Vou continuar andando em comunidades em Brasília.”

Não parecia o mesmo Bolsonaro que, há duas semanas, telefonou ao governador de Alagoas, Renan Filho, pedindo para ajudá-lo no diálogo com seu pai, o relator da CPI, Renan Calheiros. Ou que, em visita fora da agenda, perguntou ao antecessor José Sarney: “O Renan é mesmo muito amigo do Lula?”. Embora se tratasse de uma pergunta inútil — ou alguém acredita que Sarney responderia que “sim, são muito amigos, falam sempre ao telefone, tocam de ouvido”? —, foi uma indagação reveladora dos contornos que o espírito combativo do capitão assume nos bastidores.

Na CPI, em público, o que se viu foram senadores recitando perguntas já enviadas prontas pelo governo ou por médicos pró-cloroquina, enquanto os ex-ministros Mandetta e Nelson Teich demonstravam claramente que houve, sim, uma concertação do Palácio do Planalto contra o isolamento social, pela adoção do tratamento precoce como política pública e de confronto às recomendações preconizadas pela ciência.

“A verdade, ela vai triunfar!”, proclamou em defesa do tratamento precoce o senador Eduardo Girão, que é empresário e ex-presidente de clube de futebol, mas fala como se entendesse de assuntos médicos. E que se proclama independente, mas atua como integrante da tropa de choque de Bolsonaro.

Sim, todos queremos que a verdade triunfe. É muito cedo, porém, para dizer que é isso o que acontecerá. Difícil, também, prever se a CPI da Covid resultará mesmo em punição aos responsáveis pelos fracassos e desídias que custaram milhares de vidas nesta pandemia. Mais arriscado ainda seria antever se haverá vontade política para produzir um impeachment.

Mas já é possível adaptar ao momento atual um velho ditado popular — aquele que diz que é quando a maré baixa que se vê quem está sem roupa. A CPI da Covid ainda está começando, mas uma coisa ela já conseguiu. Agora que a maré baixou bastante, a gente constata que os homens pequenos são ainda menores do que conseguíamos ver.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/cpi-da-covid-revela-homens-ainda-menores-do-que-pensavamos.html


Ricardo Noblat: Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, pinta o pai outra vez para a guerra

Basta de intermediário! Por que não o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o Zero Dois do presidente Jair Bolsonaro, para Secretário de Comunicação Social do governo do pai?

Licenciar-se do mandato não lhe faria tão mal assim. Ele é vereador desde que se elegeu pela primeira vez, com 17 anos, e Bolsonaro o levou pela mão para que tomasse posse.

É difícil que outro filho de Bolsonaro demonstre tanto amor por ele quanto Carlos. Só Carlos concordou em disputar um mandato de vereador para derrotar a própria mãe, também candidata.

Às vezes, temperamental como é, Carlos some do radar do pai e se nega a atender seus telefonemas. É quando Bolsonaro fica mais desesperado e se rende a todas as suas vontades.

Mas logo os dois fazem as pazes, e Carlos volta a grudar no pai, principalmente quando ele precisa de ajuda. Como agora, alvo de uma CPI e com a popularidade em queda.

Carlos é o responsável pela mudança de tom do discurso de Bolsonaro de poucos dias para cá. Convenceu-o a radicalizar outra vez para manter unida sua tropa de apoio.

Por isso, Bolsonaro voltou a bater na China, indiretamente no Supremo Tribunal Federal, e ameaçar com uma crise institucional. Conversa mole para enganar bolsonaristas, mas funciona.

Bom filho, bom pai, que, ontem, o citou em público:

“Na minha eleição, meu marqueteiro não ganhou milhões de dólares fora do Brasil. Ele é um simples vereador, o Carlos Bolsonaro. Há ainda o Tércio Arnaud e o Mateus Sales. São pessoas perseguidas, como se tivessem inventado um gabinete do ódio.”

O gabinete do ódio eles inventaram, sim. Serve para defender Bolsonaro, infernizar a vida dos seus adversários e distribuir notícias falsas nas redes sociais.

A expressão “gabinete do ódio” não é da autoria deles, mas do jornal O Estado de São Paulo, que a usou pela primeira vez. Sempre que Carlos é convocado pelo pai, é hora de relâmpagos e trovoadas.

Fonte:

Blog do Noblat/Metrópoles

https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/carlos-bolsonaro-o-zero-dois-pinta-o-pai-outra-vez-para-a-guerra


Captura de Tela 2021-05-25 às 16.32.28

O presidente da República e o comandante do Exército não podem ter a mesma expectativa em relação ao depoimento do ex-ministro da Saúde na Comissão Parlamentar de Inquérito. Para tirar a CPI das suas costas, interessa a Jair Bolsonaro mostrar a autonomia de Eduardo Pazuello, como general do Exército, nas condutas ora investigadas. Ao general Paulo Sérgio de Oliveira, convém o inverso. Que, na condição de militar agregado ao serviço civil, fique claro que Pazuello cumpriu ordens do presidente da República. Se o Palácio do Planalto fracassou em treinar o ex-ministro para enfrentar os senadores e o Ministério da Defesa encaminhou o pedido de adiamento de sua presença na CPI, foi o Exército quem negociou com o presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), o depoimento daquele que hoje é adido à Secretaria-Geral da corporação.

A permanência de Pazuello na ativa e a produção maciça de hidroxicloroquina pelos laboratórios do Exército arrastaram a corporação para a vala bolsonarista. Nos dois lados da linha, porém, havia um senador e um general interessados em preservar o Exército. A consequência só pode ser em prejuízo do presidente da República. A começar pelo adiamento. Quando Pazuello chegar ao Senado, em 19 de maio, a CPI já terá acumulado depoimentos, como os dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, que convergem para responsabilizar o presidente da República, além daqueles, aprovados ontem, dos ex-ministros Fabio Wajngarten e Ernesto Araújo, que são pura combustão. Por mais que Pazuello seja pressionado a nadar contra a maré, terá mais dificuldade em fazê-lo. Com o cerco já formado, o custo para o ex-ministro atestar a origem das ordens que recebeu será menor.

O presidente se deu conta do que estava por vir e tentou reforçar sua retaguarda na CPI. Pressionados a serem mais ofensivos, os senadores governistas partiram para cima da bancada feminina que, sem assento na CPI, havia arrancado um acordo que a permitisse participar dos debates. O senador Fernando Bezerra, líder do governo, ganhou uma vaga de suplente, mas não dá sinais de que será capaz de conter a avalanche. A reação ainda passou por dar ao ministro da Secretaria- Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, a missão de intermediar as relações entre o Palácio do Planalto e a CPI. Sai o ministro das Comunicações, Fábio Faria, que mandou para Mandetta a pergunta que lhe seria feita pelo senador Ciro Nogueira, e entra outro atrapalhado. Onyx, que é veterinário, já enalteceu nebulização de cloroquina, depois de o procedimento ter provocado mortes, e disse que o isolamento social não funciona porque inexiste “lockdown de insetos portadores do vírus”. A transmissão do SARS-CoV-2 dá-se por pessoas contaminadas.

O presidente age como se fizesse a coisa certa em meio a incompetentes. Foi capaz, por exemplo, de surpreender seus adversários pela quantidade de manifestantes que levou às ruas no 1º de Maio. A intenção era intimidar a CPI antes da tomada de depoimentos. O slogan dos manifestantes (“eu autorizo”) não poderia ser mais eloquente. Tanto que Bolsonaro se sentiu autorizado a ameaçar novamente com um decreto contra o isolamento social de prefeitos e governadores, a despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal em defesa da autonomia federativa.

Bolsonaro pretendia manter a dobradinha. Ele convocaria a turba, ao lado dos filhos, para defendê-lo, desenterrando até mesmo o conflito, em Rondônia, com a Liga dos Camponeses Pobres, para criar uma ameaça contra a família e propriedade, enquanto seus articuladores agiriam para aglutinar a retaguarda no Congresso. Deu ruim. De um lado, a comoção popular com a morte do humorista Paulo Gustavo pela covid-19 neutralizou a arregimentação do 1º de Maio e aumentou a indignação com a incúria da pandemia. Do outro, sua retaguarda na CPI é incapaz de fazer a defesa do governo.

Numa terceira frente, na Câmara dos Deputados, seus aliados entram em modo xepa. É mais ou menos isso que move a ânsia reformista na Casa. Ao dissolver a comissão de reforma tributária antes mesmo que o relator, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), concluísse o relatório que havia encomendado, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não apenas cumpriu o desejo do governo de fatiar a proposta como tem a possibilidade de distribuir seus pedaços entre aliados de sua confiança. Com temas sensíveis como uma espécie de refis da crise e a tributação dos fundos fechados, a Câmara caminha para um vale-a-pena-ver-de-novo da era Eduardo Cunha.

Movimento no mesmo sentido aconteceu com a instalação da comissão de reforma política. O deputado que presidirá a comissão, Luís Tibé (Avante-MG), é pivô de um inquérito que corre no STJ sobre relações suspeitas entre advogados e magistrados. Este inquérito conta com conversas interceptadas pela Polícia Federal em que um desembargador relata as ingerências que o levaram a salvar o deputado de cassação. A comissão presidida por este parlamentar pode não apenas jogar por terra a maior chance de o país dar mais representatividade ao seu sistema eleitoral, com o fim das coligações e a cláusula de barreira (que ameaçam seu próprio partido), como também ressuscitar o financiamento privado de campanha.

Para a sorte da República, o ativismo da Câmara esbarra no Senado. Da mesma maneira que o projeto que liberava vacinação privada antes dos grupos prioritários, esses projetos correm o risco de naufragar na inexistência de um acordo com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Não é apenas um governo em frangalhos que move esta xepa, mas a perspectiva do poder em 2022. As costuras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília esta semana, com Eunício Oliveira (MDB), Rodrigo Maia (ainda no DEM, em conversa com o PSD), Marcelo Freixo (Psol) e Fabiano Contarato (Rede) sugerem que o petista almeja avançar sobre o centro, engolir o espaço da terceira via e deixar o presidente como a única opção do radicalismo. Os aliados de Bolsonaro seguram o governo até a última raspa do tacho para chegar a 2022 posicionados para negociar. É o que rola por trás do picadeiro da CPI.

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/politica/coluna/por-tras-do-picadeiro-da-cpi-da-pandemia.ghtml


Míriam Leitão: O presidente e o delito continuado

O que a CPI mostrou até agora foi que o presidente Jair Bolsonaro impediu dois ministros da Saúde de agirem conforme as orientações técnicas e científicas durante a pandemia. O ato foi continuado. O ex-ministro Nelson Teich repetiu ontem diversas vezes a informação de que ele não concordava com a recomendação de uso da cloroquina e, por divergir disso, saiu. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta entregou carta a Bolsonaro, fez cenário, mostrou a gravidade da crise e teve que enfrentar uma assessoria paralela no Planalto que queria o uso da cloroquina. Não aceitou e, por isso, foi demitido. As orientações dos ministros poderiam ter salvado vidas.

O presidente da República amarrou a mão de seus ministros, os impediu de agir, não ouviu técnicos, ignorou a ciência, desafiou a medicina e impôs a sua forma de conduzir o país numa pandemia. E isso está nos levando à morte. Bolsonaro deu várias vezes sinais explícitos de que aposta na tese perigosa de ampliar a contaminação para chegar ao fim mais rápido da pandemia. Ontem, Nelson Teich foi claro: “Essa tese de imunidade de rebanho, onde você adquire a imunidade através do contato e não da vacina, isso é um erro.”

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou que a crise seria longa, trágica, mataria, no pior cenário que fez, 180 mil brasileiros em 2020. Foram 11 mil a mais. Disse que não havia remédio, portanto era para seguir o que sempre foi usado nas epidemias de doenças infecciosas: o distanciamento social. O presidente o ignorou. Nem mesmo a máscara ele adotou. Pelo contrário, quem entra no Planalto é até constrangido a tirar a máscara, como me disse uma autoridade. Da mesma forma que o general Eduardo Ramos tomou vacina escondido, o código perto de Bolsonaro é esconder a máscara. Essa é a lógica tacanha de quem preside o país.

Mandetta diz que foi chamado a uma reunião no terceiro andar, gabinete do presidente, e lá viu a minuta de um decreto que imporia a mudança da bula da cloroquina. Estavam presentes pessoas estranhas ao governo, mas que o presidente ouvia sobre saúde, em vez de o ministro. Presente também o filho Carlos, que participa de reuniões ministeriais com direito a assento na mesa. Tudo era o retrato de um governo distorcido.

Teich contou que num dia houve uma live em que o presidente garantiu que ampliaria o uso da cloroquina e, no dia seguinte, ele falou a mesma coisa em uma declaração na saída do Alvorada. Isso sem a aprovação do ministro da Saúde. Foi essa a sequência final dos eventos que levou Teich a sair do governo, 29 dias depois de ter entrado.

Nesses dois dias da CPI ficou claro que o único ministro da Saúde que ele permitia ficar no cargo era um que aceitasse dizer a frase: “Senhores, é simples assim: ele manda, eu obedeço.” A propósito, Teich aceitou o general Pazuello como seu secretário-executivo, e com a experiência da proximidade disse que ele não tinha o conhecimento técnico suficiente em gestão de saúde para ocupar a posição de ministro da Saúde.

Pazuello ocupou o cargo, no meio de uma pandemia, porque era o único a aceitar o cabresto do presidente. Cabresto que ele tenta impor ao país com seu mandonismo agressivo. Ontem foi mais um dia de ameaças institucionais ao país, gritadas no meio de um evento oficial. Disse que vai baixar um decreto contra as medidas protetivas adotadas por prefeitos e governadores.

— Se baixar esse decreto, ele será cumprido e não será contestado, não ousem contestar — berrou Bolsonaro, querendo dizer que a Justiça não poderia revogar tal ato.

Ontem também o presidente fez novo ataque à China, insinuando que o vírus teria sido parte de uma guerra química, bacteriológica.

Poderia ser só insensatez, mas é muito mais. Bolsonaro está acuado. Está ficando claro que ele cometeu delito continuado na gestão da pandemia. Derrubou os ministros que queriam nos conduzir para um cenário de menos mortes e mais proteção, impôs um que seguiu todas as suas ordens e que agora está se escondendo na barra da farda do Exército. O comando de Bolsonaro foi claro: exposição ao vírus, cloroquina e ameaças autoritárias. Enquanto a CPI fazia nova radiografia do seu absurdo modo de governar, Bolsonaro deu mais um dos seus gritos. Queria distrair a atenção. O risco é o país não reagir a esse candidato a ditador.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-presidente-e-o-delito-continuado.html


Merval Pereira: Bolsonaro no limite

Por mais que o Exército faça para se distanciar de Bolsonaro, o presidente faz questão de incluí-lo em suas ameaças, voltando a confrontos institucionais que já o colocaram em desacordo anteriormente com o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e o ex-comandante do Exército e general Edson Pujol. Voltou a chamar de “meu Exército” os militares que, segundo ele, podem sair às ruas para proteger o direito de ir e vir em caso de lockdown. E nenhum juiz ousará contestar essa decisão, garantiu em sua retórica abusiva.

A convocação do ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello pela CPI quase se transformou em princípio de crise, não fosse a iniciativa do senador Omar Aziz, presidente da CPI, de ligar ao novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio, para esclarecer que Pazuello era convocado na qualidade de ministro civil, e não de general da ativa.

O novo comandante era chefe do Departamento do Pessoal do Exército, encarregado da logística de combate à Covid-19 dentro da corporação, e agiu de acordo com as orientações médicas. Por isso, Pujol certa vez deu o cotovelo para Bolsonaro, que lhe estendia a mão e ficou irritado.

O próprio general Paulo Sérgio escreveu um artigo em que se rejubilava pelo fato de a pandemia, no Exército, estar sendo muito menos letal entre os seus do que na média brasileira, justamente por seguirem orientações científicas. O artigo, que também provocou a ira de Bolsonaro, não impediu que a antiguidade se impusesse na escolha do novo comandante do Exército e mostra bem a diferença de visão entre os dois.

O presidente está claramente a perigo, se sentindo acuado pelos relatos que estão surgindo na CPI da Covid. Mais uma vez está escalando a retórica que domina, a da ameaça e do extremismo, para tentar criar uma situação crítica que obrigue as Forças Armadas a se posicionar. Aproveitando um discurso em cerimônia do Palácio do Planalto sobre a tecnologia 5G — que nada tem com o tema que abordou —, Bolsonaro deu um jeito de voltar a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de garantir a autonomia de governadores e prefeitos na definição de medidas restritivas durante a pandemia, que ele considera uma “excrescência”, por ter dado “competências esdrúxulas” a eles.

O ex-ministro Pazuello se preparava justamente para atacar o Supremo em seu depoimento na CPI, que acabou adiado por incapacidade do convocado de postar-se minimamente bem diante de seus arguidores. Bolsonaro é capaz de fazer um ato extremo, como ameaçou, com o objetivo de criar uma situação-limite e confrontar instituições como o STF para testar sua força popular. As manifestações do fim de semana a seu favor, em várias capitais, devem tê-lo convencido de que ainda é capaz de acionar multidões para reforçá-lo no poder.

Trata-se de movimento perigoso porque, estando acuado, é capaz de transpor a linha da legalidade.

Pode ser só uma bazófia, mas pode perfeitamente se transformar em realidade diante dos fatos, que estão sempre contra ele nos últimos tempos. Com essas bravatas, é possível acelerar um processo de impeachment, que está latente na CPI. Está protegido pela pandemia, que impede as pessoas de ir à rua. Mas, nesse ritmo, provoca ações de seus seguidores e dos contrários. E, se isso acontecer, as instituições terão que funcionar, inclusive o Exército, que terá de dizer se está do lado da democracia ou de um presidente claramente desequilibrado, que tenta fazer tudo para criar um ambiente político que facilite o autoritarismo.

A sorte é que, aparentemente, ele é minoria. A questão é saber se irá até o final, se testará nas ruas sua força. O mais grave, diante da falta de vacinas e do tamanho da tragédia que vivemos, é voltar a pensar alto besteiras como uma guerra biológica da China, que teria “inventado” o vírus da Covid-19 para poder crescer economicamente e superar seus competidores ocidentais. São os ecos ainda da visão conspiratória do ex-ministro Ernesto Araújo, que ficou no inconsciente dos remanescentes do governo e levaram o ministro Paulo Guedes a repetir a besteira numa reunião que era transmitida.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/bolsonaro-no-limite.html