Ministério da Justiça

Celso Rocha de Barros: Mendonça e Aras são cabo e soldado de Bolsonaro em novo ataque à democracia

Ministro da Justiça produziu dossiê contra 'antifascistas' e procurador-geral da República faz guerra contra Lava Jato

O ministro da Justiça, André Mendonça, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, são o cabo e o soldado de pés chatos que Bolsonaro usa em seu novo ataque à democracia brasileira.

Mendonça, que virou ministro da Justiça quando Moro deixou o cargo, vem se destacando na perseguição contra adversários do governo.

Produziu um dossiê contra “antifascistas” que incluía dois acadêmicos respeitados, Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, bem como policiais de esquerda, que poderiam vir a ser um obstáculo ao aparelhamento das polícias.

Aras, por sua vez, faz guerra contra a força-tarefa da Lava Jato e tenta centralizar os instrumentos de investigação para usá-los no interesse do golpismo. Enquanto Mendonça briga para prender antifascistas honestos, Aras briga para manter fascistas corruptos em liberdade.

A guerra bolsonarista contra a Lava Jato vem produzindo cenas curiosas. Na semana passada, por exemplo, o bolsonarista Alexandre Garcia usou as revelações da Vaza Jato para criticar a turma de Curitiba.

Quando o Intercept Brasil publicou as denúncias, Garcia estava entre os que atacaram os jornalistas. Pesquise o artigo “Estranhas Coincidências”, publicado em 30 de julho de 2019, em que Garcia repete a mesma lista de mentiras que os bolsonaristas lançavam na época contra Glenn Greenwald e sua família.

Na esquerda, que perdeu uma, e talvez duas Presidências da República no auge do lavajatismo, há gente comemorando a guerra de Aras contra Curitiba. Pode ser compreensível, mas é um erro.

Ninguém ficaria surpreso se, enquanto tenta desmontar a Lava Jato, Aras requentasse uma delação contra Lula para acalmar os bolsonaristas que ainda mentem que se preocupam com corrupção.

Na direita tradicional também tem gente querendo ver no desmonte da Lava Jato uma espécie de acomodação de Bolsonaro com o centrão, o que, por um raciocínio meio tortuoso, poderia ser visto como aceitação da política institucional.

A política brasileira vem sendo isso, um esforço para que um sujeito que causou cem mil mortes aceite ser menos golpista se a gente ajudá-lo com uns problemas que ele tem com a polícia.

E mesmo isso me parece otimismo demais. Não acho que o acordão vai parar o golpismo.

Bolsonaro ficou com raiva da polícia e do Judiciário porque eles pegaram Queiroz e atrapalharam seu autogolpe. Quando Judiciário e polícia tiverem sido aparelhados, Bolsonaro voltará à carga.

Talvez por isso MDB e DEM tenham saído do bloco parlamentar do centrão semana passada. A manobra parece ter sido pensada para enfraquecer Bolsonaro na eleição para a presidência da Câmara. Se for isso, MDB e DEM estão certíssimos.

Não se pode entregar o controle da presidência da Câmara, que com Rodrigo Maia foi um dos pontos de resistência ao autoritarismo, a quem se tenha vendido a Bolsonaro.

Da mesma forma, o leilão da vaga no STF para quem fizer a maior oferta de golpismo tem que acabar. É preciso ficar claro que o Senado não aprovará o vencedor da disputa.

De qualquer forma, cabo Mendonça e soldado Aras são bem mais fáceis de combater do que os cabos e soldados com quem Bolsonaro ameaçava o Brasil um mês atrás. Mas são um sinal importante para quem acreditava que Bolsonaro havia se tornado mais moderado nesse mês que ficou em casa apanhando de ema.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Ricardo Noblat: Livre expressão de pensamento, desde que a favor do governo

Mordaça
O direito à livre expressão de pensamento é sempre invocado pelo presidente Jair Bolsonaro toda vez que seus seguidores nas redes sociais sentem-se ameaçados ou tolhidos. Mas é bom saber que o que ele defende para sua gente não vale para os que possam criticá-lo. Nos últimos dias, acumula-se uma série de fatos de que o negócio é diferente para uso interno do governo.

O Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República, segundo o GLOBO, prepara norma que permitirá ao governo processar servidores públicos pelo que eles publicarem nas redes sociais em sua vida privada. Minuta da norma diz que servidores e prestadores de serviços devem compreender “que suas atividades nas redes podem impactar a imagem da organização”.

O servidor público federal poderá ser processado desde que os atos ou comportamentos praticados nas redes guardem “relação direta ou indireta com o cargo que ocupa, com suas atribuições ou com a instituição à qual esteja vinculado”. Na mesma linha, a Controladoria Geral da República baixou uma norma em que defende a punição do servidor que critique o governo nas redes.

Se o fizer, de acordo com a norma, ele terá descumprido o “dever de lealdade”, uma vez que o que disse atingiu a imagem e feriu a credibilidade da instituição que integra. Em meados do mês passado, servidores do Ministério da Saúde foram obrigados a assinar um documento em que se tornam sujeitos à Lei de Segurança Nacional caso vazem informações sensíveis.

O ministro André Mendonça jura que não sabia que a Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça monitora 579 funcionários públicos federais da área de segurança que se declararam antifascistas nas redes sociais. Não soube explicar, ou então não lhe perguntaram, por que a secretaria não faz a mesma coisa com funcionários públicos federais fascistas.

Mendonça, bom de bico, enrolou, enrolou, e tentou sair de fininho: “Tomei conhecimento desse possível dossiê pela imprensa. […] É de rotina que se produzam relatórios para se prevenir situações que gerem insegurança para as pessoas, com potenciais de conflito, depredação, atos de violência contra o patrimônio público, então não é uma atividade que surgiu agora”.

Dito de outra maneira: liberdade de expressão para servidor público só a favor do governo. Contra, a porta da rua é a serventia da casa.

Vozes

De Lula a Ricardo Vélez

  • “Eu queria ver o Moro candidato. Queria ver ele em um debate. Convidei ele pra debater comigo e ele fugiu. Não tinha coragem de me olhar nos olhos nem quando vestia a toga. Imagina agora. Fez parte de um jogo sujo que acabou sujando a história do judiciário brasileiro”. (Lula)
  • “Eu preciso ajudar o povo brasileiro a entender do que se trata. Então vamos lá. Luciano Huck, por exemplo, também é um belo de um garoto, um belo apresentador de TV. O Tiririca é um belo de um palhaço, meu queridíssimo. Agora, [eles] tão prontos para serem presidente do Brasil? Esse é o requisito?” (Ciro Gomes)
  • “Decreto para evitar queimadas tem o mesmo efeito da cloroquina pra curar covid-19. Zero. No caso da Amazônia, o ‘médico’ não está nem um pouco preocupado com o paciente, a floresta”. (Carlos Rittl, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade de Potsdam, Alemanha.)
  • “O Brasil hoje tem 210 milhões de juízes. Já teve 100 milhões de técnicos, 150. Agora tem 200 milhões de juízes. Todo mundo quer julgar. Os analfabetos jornalistas que mal sabem versar uma palavra de Direito criticam decisões cujos fundamentos não leram”. (João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça)
  • “Bolsonaro me perguntou: ‘Professor Vélez, você teria faca nos dentes para combater a esquerda radical no ministério?’. Respondi: ‘Claro que sim, é o que faço nas universidades há 30 anos. Agora, se tiver a caneta na mão, completo o serviço'”. (Ricardo Vélez, ex-ministro da Educação, em livro de memórias)

Ricardo Noblat: No governo Bolsonaro, servidor público antifascista inspira cuidados

Por que será?
A Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça admitiu que monitora 579 funcionários públicos federais que se declararam antifascistas nas redes sociais. A intenção da medida, segundo a Secretaria, é “prevenir práticas ilegais” e garantir a segurança. Não especificou que “práticas ilegais” os antifascistas costumam cometer. E por que elas ameaçam a segurança.

Por sinal, segurança de quem? Das autoridades constituídas em geral? Do presidente da República em particular? Do Estado como um todo? Quem sabe do planeta, uma vez que as redes sociais aproximam as pessoas e é possível que existam antifascistas em toda parte? Por que ser antifascista é algo perigoso? Aos olhos de quem? Está escrito em que lei, norma ou portaria?

Providência similar não foi tomada pela mesma Secretaria contra funcionários públicos que se declararam fascistas nas redes sociais. É de supor-se, portanto, que esses não representam uma ameaça, quando nada ao governo do presidente Jair Bolsonaro. Ou vai ver que o serviço público está livre de fascistas. Ou que fascistas sejam mais prudentes e prefiram não se assumir como tal.

Resta outra hipótese: por razões ainda não suficientemente estudadas, os fascistas do serviço público e o governo Bolsonaro descobriram surpresos que compartilham os mesmos propósitos. Assim não haveria por que o Ministério da Justiça despender tempo e dinheiro vigiando-os. Para quê? Falam a mesma língua. Entendem-se bem. Os antifascistas é que devem se cuidar.

Nada de usarem as redes sociais para dizerem que são contra o fascismo, uma “ideologia política ultranacionalista e autoritária caracterizada por poder ditatorial, repressão da oposição por via da força e forte arregimentação da sociedade e da economia”. Nada de assinarem manifestos condenando outras ideologias que guardem alguma semelhança com o fascismo.

Os celulares já não inspiram confiança e a escuta se faz, hoje, a longas distâncias. Seu melhor amigo pode delatá-lo amanhã. Evitem estranhos. Evitem jogar conversa fora. Conversas cifradas podem facilmente ser decifradas. Vejam se não estão sendo seguidos. Aproveitem esses tempos de pandemia e usem máscara até que tudo isso passe. Com fé em Deus e no voto, vai passar.

Vozes

Pandemia em discussão

  • “Há consenso entre os especialistas de que poderíamos ter tido outro manejo da crise, de que pudéssemos ter reduzido significativamente os danos causados pela pandemia”. (Gilmar Mendes, ministro do STF, sobre a proximidade da marca dos 100 mil mortos pelo Covid-19 no Brasil)
  • “O Sistema Único de Saúde, SUS, foi silenciado com uma ocupação militar [no ministério]. Deixamos de ter uma gestão em saúde para ter uma ocupação por quem quer promoção na carreira militar”. (Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde)
  • “Se fala muito sobre a vacina da covid-19. Entramos no consórcio de Oxford, e tudo indica que ela vai dar certo e 100 milhões de unidades chegarão para nós. Não é daquele outro país, não. Tá ok, pessoal?” (Jair Bolsonaro, em critica indireta à vacina chinesa contra o vírus)
  • “A discussão não é se é CPMF ou micro-imposto digital. Daqui a pouco vão inventar um nome em inglês para ficar mais bonito, para que a sociedade aceite mais impostos”. (Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados)
  • “É incompreensível discutir essas coisas quando temnos próxima uma crise apocalíptica, envolvendo emprego, problemas fiscais, quebradeira de empresas. O mundo está lidando com o assunto e, nós, nos divertindo com projetos de reforma tributária”. (Everaldo Maciel, ex-Secretário da Receita Federal)

El País: Bolsonaro indica Mendonça para a Justiça e Ramagem para a PF

Governo faz troca após barulhenta saída de Sergio Moro que acusou o presidente de pressionar por “colher relatórios de inteligência”. Novo comandante da Polícia Federal é próximo da família Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro confirmou no Diário Oficial desta terça André de Almeida Mendonça, da Advocacia Geral da União, para o lugar do agora ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro. Depois do terremoto político que significou na última sexta-feira a saída de Moro, após a troca do comando da Polícia Federal, Mendonça assume a pasta sob o manto de desconfiança que significou a demissão de seu antecessor. Ele assume já com um nome definido para a direção-geral do órgão de investigação: Alexandre Ramagem, atual diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), entra no lugar de Maurício Valeixo, que foi exonerado por Bolsonaro à revelia de Moro. A queda de Valeixo foi a gota d'água para Moro, que disparou acusações graves contra Bolsonaro em seu discurso de saída. “O presidente me disse mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas”, afirmou Moro.

Logo após a acusação, em um pronunciamento à imprensa ainda na sexta-feira, Bolsonaro reconheceu e legitimou o direito de querer ter alguém com quem possa ter contato direto na Polícia Federal, a exemplo do que já faz com outros órgãos de inteligência do Governo. “Quero um delegado com quem eu possa interagir. Por que não?”, questionou, ressaltando que tinha este tipo de relação com a Abin, que era, até agora, dirigida por Ramagem.

É depois dessas revelações públicas de alta voltagem que Mendonça e Ramagem assumem suas novas posições no Governo, agravadas ainda pela divulgação de notícias que mostram investigações comprometedoras que envolvem seus filhos, Carlos e Flavio Bolsonaro. Carlos, vereador no Rio, é apontado como um dos cérebros de um esquema criminoso de notícias falsas que beneficia a narrativa do seu pai. A investigação é da Polícia Federal dentro do inquérito conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Já Flavio, senador, é apontado pelo Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro como nome chave num esquema de financiamento de imóveis da milícia no Rio, a partir de dinheiro obtido de rachadinhas, o confisco de salários de seus funcionários de gabinete dos tempos em que foi deputado estadual. Nas redes sociais, Ramagem foi acusado de ser próximo da família Bolsonaro e uma foto em que ele aparece ao lado de Carlos viralizou. No domingo, questionado nas redes sociais sobre a imagem que circulava e a aproximação de seu filho com Ramagem, Bolsonaro soltou um “E daí?” nas redes sociais. Na segunda-feira, voltou a dizer à imprensa que não via problemas na aproximação.

As trocas ocorrem no momento em que o Supremo Tribunal Federal autorizou um pedido de investigação feito pelo procurador-geral, Augusto Aras, sobre as acusações de Moro a Bolsonaro por suposta tentativa de interferência política na Polícia Federal e por falsificar a assinatura de seu então ministro da Justiça, na exoneração de Valeixo feita do Diário Oficial —Moro afirmou que não sabia da confirmação da demissão e que, apesar de seu nome aparecer no documento, não o assinou.

Mendonça, o novo ministro da Justiça, foi convidado para assumir o cargo na segunda-feira. Ele é pastor da Igreja Presbiteriana Esperança de Brasília e pode ser a escolha do presidente para ocupar no final deste ano uma vaga no STF —Bolsonaro já havia dito que queria alguém “terrivelmente evangélico” para este lugar. O nome dele não era o mais cotado para o ministério inicialmente. No final de semana, o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, chegou a ser anunciado para o cargo pela imprensa. Apesar de não ter existido uma confirmação oficial, seu nome era o que circulava nos bastidores. Oliveira tem ligação estreita com Bolsonaro e sua família. Advogado e major da reserva da Polícia Militar, ele chegou a chefiar o gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro em seu primeiro mandato como deputado. Apesar de a relação de Mendonça com a família não ser tão próxima, ele é visto como um homem fiel ao presidente.

Ramagem, por sua vez, foi chefe de segurança do então candidato a presidente durante a campanha eleitoral e goza da confiança dos filhos. É delegado da Polícia Federal, e atuou na coordenação da segurança de eventos em 2014 e 2016, para a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil, respectivamente. Ambos ficam sob a pressão de atuar a favor das instituições ou do personalismo do presidente, que se vê cada dia mais acossado por críticas diante da administração bélica que promove no campo político em meio a uma pandemia que já matou, oficialmente, mais de 4.543 brasileiros, fora o que a subnotificação não consegue constatar.

Sem rumo claro no campo da Saúde com outra substituição ruidosa, de Henrique Mandetta por Nelson Teich —que ainda não disse a que veio—, e sinais controversos na economia, Bolsonaro agora entrega a Justiça e a Polícia Federal a nomes que podem reforçar seu autoritarismo em mais um retrocesso perigoso para o Brasil, na visão de especialistas. “A Polícia Federal vai voltar a ser o que foi antes da Constituição, quando era uma polícia política de perseguição a adversários a mando do presidente e de proteção dos amigos”, afirmou Pedro Abramovay, diretor para a América Latina da Open Society Foundations, ao repórter Felipe Betim.


Pacote de medidas criminais e nova lei de abuso de autoridade: Veja análise de Henrique Herkenhoff

Jurista analisa medidas em artigo que produziu para a revista Política Democrática online

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Professor doutor do Mestrado em Segurança Pública da UVV-ES (Universidade de Vila Velha do Espírito Santo), Henrique Herkenhoff diz que o Brasil começou 2020 com um pacote de medidas criminais sancionado na mesma ocasião em que uma nova lei de abuso de autoridade entrava em vigor. A análise dele está publicada em artigo que produziu para a 15ª edição da revista mensal Política Democrática online, editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.

» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online

Herkenhoff, que também é presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/ES (Ordem dos Advogados do Brasil no Espírito Santo), diz que a matéria de ambas as leis já era tratada nas Ordenações Afonsinas de 1446, passando pelas Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), que, por decreto de D. Pedro I, continuaram em vigor no Brasil. “A única diferença é que as Ordenações Portuguesas, sem nenhum pudor ou disfarce, diziam que certas garantias eram exclusividade dos fidalgos, ao passo que algumas penas e a tortura eram um privilégio das classes ‘vis’”, escreve ele.

Em todo caso, conforme mostra o artigo da revista Política Democrática online, as penas da nobreza eram executadas “sem baraço e sem pregão”, isto é, sem algemas e sem exposição na mídia. “Ademais, essas últimas ‘novidades’ no campo do Direito Processual Penal nitidamente se contrabalançam, de maneira que nos parece ouvir aquilo que um personagem de Il Gattopardo (Giuseppe Tomasi di Lampedusa) dizia: ‘A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude’”, afirma o autor.

De acordo com Herkenhoff, mesmo a melhor reforma traz complicações. “A delação premiada, por exemplo, revelou-se indispensável, mas, em julgamento recente e acertado, o STF decidiu que, embora na falta de disposição legal expressa, os réus colaboradores devem falar antes dos demais, o que implicou a anulação de processos importantes”, afirma, para continuar: “Resolver definitivamente as controvérsias de interpretação leva tanto tempo que, invariavelmente, um novo pacote de reformas é editado antes que o primeiro tenha sido digerido’.

Herkenhoff também foi secretário de Segurança do Estado do Espírito Santo (2011/2013), desembargador federal (2007/2010), procurador e procurador regional da República (1996/2007). Neste último cargo, ele integrou a Missão Especial de Combate ao Crime Organizado e o Conselho Penitenciário Estadual.

Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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Henrique Herkenhoff: Antes uma Justiça rápida do que nunca

Dentre as propostas apresentadas pelo Ministro Moro, a possibilidade de transação penal ampla, a plea bargain, tende a passar quase despercebida pela população em geral, o que é compreensível, porque ela só gera impacto nas poeirentas e burocráticas vielas do processo penal. Ela possibilita um acordo entre o Ministério Público e a defesa, por meio do qual são dispensados os trâmites processuais e a colheita judicial da prova, porque o réu confessa o crime em troca de uma pena reduzida e ajustada entre as partes naquele exato momento. Este espaço não permite esgotar o tema, mesmo superficialmente, então trataremos agora apenas de suas vantagens, para discutir os senões na próxima semana.

É óbvio que esta medida acelera o processo criminal e poupa trabalho de todos os envolvidos: defesa, acusação e juiz, impactando muito no acúmulo de processos e, portanto, melhorando a prestação de serviços pelo Judiciário. Quem está habituado aos tribunais sabe que a maior parte das ações criminais é apenas uma longa agonia de resultado absolutamente previsível. Em uma típica prisão em flagrante por tráfico, por exemplo, só resta fazer um laudo pericial, invariavelmente confirmando a constatação inicial da natureza da substância: o resto é formalidade. O juiz, livre então de muitos processos demorados, mas sem complexidade, poderia dar maior atenção àqueles em que a prova seja realmente problemática, ou em que existam questões jurídicas de alta indagação.

O mais importante, no entanto, é que essa transação segue lições de pensadores tão diferentes quanto Adam Smith, Beccaria e Piaget: a punição mais eficaz não é necessariamente aquela mais severa, mas a certa e imediata. Ao próprio réu interessa definir o quanto antes sua situação, mas este projeto de lei permitiria, antes de mais nada, aplicar desde logo um castigo abrandado, em vez de simplesmente permitir ao réu responder em liberdade a uma infinita ação criminal: infelizmente, uma vez solto, quase todo acusado supõe que o seu problema está “resolvido”, que sua conduta “não deu em nada” e que ele está livre e incentivado a reincidir; quando finalmente vem a primeira condenação, ele já arrasta uma longa lista de outras infrações, e vai passar muito tempo atrás das grades. E, claro, a sociedade já sofreu muito com esse prende-e-solta.

Não há nada de dramático nessa medida, nem adrenalina, mas ela certamente será a mais eficaz de todas.

*Henrique Geaquinto Herkenhoff é professor do Mestrado em Segurança Pública da UVV


Elio Gaspari: Moro pôs a bola em campo

Pacote do ministro inaugurou governo Bolsonaro e, ao discuti-lo, Congresso precisa mostrar a que vem

Sergio Moro lapidou o discurso desconexo de defesa de lei e da ordem que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República. Para listar apenas alguns aspectos do pacote do ministro, homicida ficará trancado por, pelo menos, três quintos da duração da sentença; condenados na segunda instância irão para a tranca e caixa dois passará a ser crime.

A repressão aos crimes de colarinho-branco será tão dura quanto aquela que habitualmente atinge pessoas de pele negra. Essas propostas serão festejadas nos balcões das lanchonetes, por onde passam pessoas que têm medo de andar na rua à noite.

Moro quer trazer para o direito brasileiro a instituição saxônica das "soluções negociadas". Na essência, elas permitem um acordo entre réu e a Promotoria. O cidadão reconhece sua culpa, negocia a redução da pena com o promotor e com isso descongestiona-se o Judiciário.

Na teoria, faz sentido. Na prática, toda importação de regras do direito saxônico equivale a tentar calçar um par de stilettos de Christian Louboutin nos pés de um jogador de futebol.

O calo resultante da divulgação por Moro, no meio da campanha eleitoral, de um anexo irrelevante e inconclusivo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci está na memória política do país.

Felizmente, Moro fala agora em "soluções negociadas". Até há pouco falava em "plea bargain", talvez para evitar uma das traduções possíveis e evitando a palavra "barganha".

No Judiciário americano todas as delações protegidas pela teoria curitibana da "bosta seca" teriam sido mandadas ao lixo. Lá, se um delator diz uma coisa e outro diz o contrário, mexe-se na bosta seca, empesteia-se a sala e anula-se uma delas, ou as duas.

A solução negociada entre o réu e o Ministério Público pode ser um sonho de consumo. Contudo, no Brasil, leis suecas convivem com uma realidade haitiana. No que vai dar, não se pode saber. Afinal de contas, o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, da PM do Rio, jamais faria um acordo com a Promotoria.

O "Caveira", senhor da milícia de Rio das Pedras, era amigo de Fabrício Queiroz. Sua mãe e sua mulher foram empregadas por ele no gabinete de Flávio Bolsonaro porque, nas palavras do colega, "a família passava por grande dificuldade, pois à época ele estava injustamente preso." Libertado, "Caveira" foi absolvido. Não se sabe por quê, está foragido. Na outra ponta, qualquer preso que está apanhando numa delegacia faz qualquer acordo.

Num ponto o projeto de Moro parece um jabuti. Quando ele diz que um juiz poderá deixar de impor uma pena ao agente público se "o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

Falta definir "medo" e "violenta emoção". Os policiais cariocas que mataram um cidadão que empunhava uma furadeira e outro que carregava um guarda-chuva tiveram medo, foram surpreendidos ou estavam emocionados?

A proposta de Moro acertou no atacado. Contém apenas lombadas no varejo, mas o Congresso terá tempo para aperfeiçoar o projeto e pode-se acreditar que senadores e deputados não tentarão proteger o instituto do caixa dois.

O surgimento de uma bancada com toques de demagogia haitiana será um contraponto à demagogia sueca. Nesse sentido Moro desviou-se das duas.

O ministro passou a vida no gabinete de juiz, onde sua caneta mudava a realidade. Na nova cadeira, fez tudo direito com a caneta, mas a realidade continuará a assombrá-lo. As milícias do Rio e as quadrilhas do Ceará expuseram-se logo que ele chegou a Brasília, e continuam lá.

 


O Globo: Projeto de Moro obriga prisão após condenação em segunda instância

Sugestão deve ser incluída no Código de Processo Penal

Por Jailton de Carvalho e André de Souza, de O Globo

BRASÍLIA — Pacote de reforma penal apresentado nesta segunda-feira pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, aos governadores prevê o cumprimento de pena de prisão imediatamente após condenação em segunda instância.

Pelas regras em vigor, a Justiça pode autorizar a prisão do condenado. Pela proposta de Moro, a prisão se torna obrigatória. “Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos", diz um dos artigos da proposta do ministro. A sugestão deve ser incluída no Código de Processo Penal.

O texto de Moro deixa, no entanto, uma brecha para o não cumprimento imediato da condenação. "O tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivelmente levar à revisão da condenação", diz outro trecho da mesma proposta.

Num outro trecho, a proposta do juiz prevê redução de pena de policiais acusados de cometer excessos numa determinada ação. O projeto não elimina a possibilidade de punição a um policial, a chamada exclusão de ilicitude, conforme defendia o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Mas prevê que "o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

Condenados por corrupção
A proposta também estabelece que os condenados por crimes de corrupção passiva, corrupção ativa e peculato devem cumprir a pena inicialmente no regime fechado. Atualmente, a definição do regime fechado depende mais do tempo de condenação, sendo aplicado em geral quando a pena é de pelo menos oito anos.

A proposta aumenta o tempo para progressão de pena no caso de alguns crimes hediondos. Hoje, um condenado precisa cumprir dois quintos da pena para ter direito, ou três quintos no caso de reincidência. Pelo projeto de Moro, o tempo passará para três quintos quando o crime resulta em morte da vítima.

Além disso, o projeto estabelece que "a progressão de regime ficará também subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir".

Crimes hediondos
O projeto também proíbe, durante o cumprimento da pena em regime fechado, as saídas temporárias de condenados por crimes hediondos.

O pacote do ministro também prevê aumentar a pena de prisão de integrantes de organizações criminosas. A mesma sobrecarga deverá ser aplicada a pessoas que, mesmo com condenação anterior definitiva ou com condenação imposta por órgão colegiado, voltem cometam crimes violentos.

Pela proposta de alteração da lei 10.826/2003 "a pena é aumentada da metade se: I - forem praticados por integrante dos órgãos e empresas referidas nos arts. 6º, 7º e 8º desta Lei; ou II - o agente possuir registros criminais pretéritos, com condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado", diz texto divulgado pelo ministro.

Pela sugestão do ministro, juízes poderão autorizar que agentes de segurança usem bens apreendidos em investigações criminais. Hoje policiais já costumam usar sobretudo carros apreendidos em casos relacionados a tráfico de drogas. Mas sem previsão legal explícita, essa prática tem provocado controvérsias. Em alguns casos, até resultam em desvios de conduta.

"O juiz poderá autorizar, constatado o interesse público, a utilização de bem sequestrado, apreendido ou sujeito a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal para uso exclusivo em atividades de prevenção e repressão a infrações penais", diz um dos tópicos da proposta.

Acordo entre Ministério Público e acusados
O projeto também altera o Código de Processo Penal para incluir o "plea bargain", um modelo de justiça criminal comum nos Estados Unidos com possibilidade de acordo entre Ministério Público e acusados, em que estes se declaram culpados e conseguem alguns benefícios sem a necessidade de julgamento.

As penas poderão ser reduzidas até a metade e aplicadas de imediato. Também poderá haver a substituição do regime de cumprimento da pena por outro mais brando ou até mesmo por medidas alternativas, dependendo da gravidade do crime. O acordo terá que passar pelo crivo de um juiz que analisará sua legalidade e voluntariedade.

O governador de São Paulo, João Doria, indicou que ele e os demais chefes dos executivos estaduais vão atuar pela aprovação do pacote, mobilizando os parlamentares.

— A proposta do ministro é que esse projeto de lei seja apresentado no Congresso e que tenha o apoio dos governadores através de suas bancadas. Terá o apoio. As propostas como um todo estão bem formatadas, bem apresentadas, com pequenas nuances, pequenas sugestões para seu aprimoramento — disse Doria.

Envio ao Congresso
As propostas devem ser enviadas até quarta-feira ao Congresso Nacional. Uma cópia do pacote de medidas já foi entregue por Moro ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) nesta segunda-feira, antes da reunião do ministro com os governadores. Durante o encontro, Moro apresentou as linhas gerais a reforma penal a 12 governadores e representantes de mais 13 estados.

Num vídeo divulgado no domingo, Moro afirma que as medidas são necessárias para reforçar o combate ao crime organizado, à corrupção e também para conter o crescimento do número de homicídios no país. Num dos trechos da proposta, destinado a mudar parte da lei 12.850/2013, o ministro redefine o conceito de organização criminosa.

"Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, e que: I - tenham objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) ano", diz o documento.

Será tida ainda como organização criminosa associação de quatro ou mais pessoas em âmbito "transnacional" e que se " se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas."


O Globo: Moro vai investigar a origem de R$ 174,5 bilhões que foram regularizados

Dinheiro estava no exterior sem registro na Receita Federal e foi regularizado graças a programas de incentivo editados por Dilma Rousseff e Michel Temer

Por Thiago Herdy, de O Globo

SÃO PAULO — A gestão do futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, quer investigar a origem dos R$ 174,5 bilhões que pertencem a brasileiros, estavam no exterior sem registro na Receita Federal e foram regularizados graças a dois programas de incentivo editados nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer.

As medidas promoveram a anistia de crimes como evasão de divisas e sonegação fiscal, mediante mera declaração de posse dos valores e de sua licitude, sem que houvesse qualquer tipo de análise sobre a origem dos recursos ou da capacidade econômico-financeira de seus beneficiários.

O plano de Moro é incrementar a integração entre a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e unidades de inteligência financeira, em especial o Conselho de Atividades Financeiras (Coaf), para verificar o uso dos valores por organizações criminosas — tanto aquelas com atuação violenta, como tráfico de drogas e armas, quanto as envolvidas em crimes de colarinho branco. Essas condutas não estão anistiadas pela lei.

Criado em janeiro de 2016 para aumentar a arrecadação federal, o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct) permitiu que brasileiros declarassem recursos mantidos no exterior mediante pagamento de 30% do valor ao governo na forma de tributos e multa. Em 2017, uma nova fase do programa foi lançada. Nas duas edições, 27 mil contribuintes e 123 empresas declararam valores que resultaram em promessa de pagamento de multa de R$ 52,6 bilhões.

A lei que formalizou o programa proibiu a abertura de investigação tendo a declaração como único indício de crime, com o intuito de incentivar adesão e evitar autoincriminação, um direito constitucional.

No entanto, a perspectiva da equipe de Moro é destravar essa barreira a partir de outros caminhos investigatórios, em especial aqueles oferecidos pela integração do Coaf aos órgãos de investigação criminal e o cruzamento de bases de dados que hoje operam isoladas umas das outras.

Desde que aceitou ir para o governo a convite de Jair Bolsonaro (PSL), Moro solicitou a transferência do Coaf do ministério da Fazenda para o da Justiça. Naquele momento, o ex-juiz já pensava no nome de quem o ajudaria a otimizar a atuação da unidade de inteligência financeira: o auditor fiscal Roberto Leonel Lima, chefe da área de investigação da Receita Federal em Curitiba e cérebro do órgão na atuação na Lava-Jato do Paraná. Relatórios de evolução patrimonial e movimentações financeiras e fiscais produzidos pela equipe liderada por Lima ajudaram a revelar desvios de mais de R$ 40 bilhões na Petrobras.

O auditor foi convidado a integrar a equipe de transição do governo Bolsonaro. Na sexta-feira, foi oficialmente anunciado como futuro chefe do Coaf, com atuação ampliada.

A função do órgão é detectar qualquer operação financeira acima de R$ 10 mil e informar autoridades financeiras e policiais, para que verifiquem indícios de atividades ilícitas. Transações como a repatriação de valores no âmbito dos programas dos governos Dilma e Temer também serão alvo do Coaf. Por exemplo: contribuintes que declararam valores, trouxeram-nos para o país e repassaram a terceiros serão alvo de investigação caso não exista lastro econômico a justificar a posse dos recursos.

Mais provas

Para autoridades, se antes o programa de regularização de valores no exterior tinha aparência de segurança e garantia de impunidade para criminosos, agora se apresenta como “vulnerabilidade”, na medida em que formaliza provas de que alguém recebeu dinheiro do exterior não declarado. A lei prevê que beneficiados pela anistia guardem por cinco anos comprovantes da origem lícita dos recursos declarados, prazo que vence entre 2021 e 2022.

Em pelo menos um caso concreto, a declaração de recurso no exterior já serviu a investigações. Foi na própria Lava-Jato, sob a jurisdição de Moro. Márcio de Almeida Ferreira foi gerente da Petrobras até 2013, ano em que tinha patrimônio oficial de R$ 8 milhões. Em 2016, aderiu ao programa e retificou seu patrimônio para R$ 64,2 milhões, cuja maior parte está em offshores no exterior.

Preso na 40ª fase da operação e convidado a demonstrar em documentos a natureza lícita dos recursos, disse não tê-los à disposição. Ele alegou se tratar de lucro da venda de imóveis. “É implausível que, se os ativos tinham origem lícita, não tenha o acusado guardado qualquer documento a respeito da conta”, escreveu Moro na sentença em que o condenou a dez anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Colega do dirigente na Petrobras, o ex-gerente Edison Krummenauer disse que os dois receberam propinas de fornecedores da estatal. Ferreira nega e diz não haver provas. Seus advogados recorrem no TRF-4.


El País: Após críticas, Sergio Moro pede exoneração e deixará a magistratura

Juiz estrela da Lava Jato entregou seu pedido de exoneração no TRF-4. A partir de segunda, ele se dedicará exclusivamente à transição do Governo Bolsonaro

Por Afonso Benites, do El País

A partir da próxima segunda-feira, Sergio Moro, o juiz símbolo da operação Lava Jato, deixará a magistratura. Ele entregou nesta sexta seu pedido de exoneração ao desembargador Thompson Flores, presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. A partir de janeiro, Moro será ministro da Justiça e Segurança Pública no Governo do ultradireitista Jair Bolsonaro (PSL). A exoneração de Moro foi assinada pelo desembargador horas depois de entregue.

O futuro ministro estava afastado da 13ª Vara Federal de Curitiba desde o início deste mês, quando aceitou o convite do presidente eleito para ingressar em seu Governo. Em princípio, ele gozaria de férias até janeiro e só depois pediria seu desligamento do cargo, que ocupa há 22 anos.

Mesmo estando em período de férias, Moro participou das reuniões da equipe de transição de Bolsonaro, em Brasília, na semana passada. Como não estava desligado de sua função, recebeu críticas por estar atuando concomitantemente em dois poderes, Executivo e Judiciário. “Houve quem reclamasse que eu, mesmo em férias, afastado da jurisdição e sem assumir cargo Executivo, não poderia sequer participar do planejamento de ações do futuro governo”, afirmou Moro. Ele chamou essas queixas de “controvérsias artificiais”.

Na justificativa de seu pedido de exoneração, o ainda juiz justificou que não havia solicitado a demissão porque gostaria de manter a “cobertura previdenciária” de seus familiares até que pudesse assumir o ministério. Na prática, ele queria que seus dependentes recebessem pensão caso ele viesse a sofrer algum acidente ou morrer antes de assumir o ministério. No documento, ele cita que é alvo de ameaças.

Em 22 anos de carreira, Moro se destacou no combate a crimes financeiros. Primeiro, entre 2003 e 2007 quando tocou o caso Banestado. Depois, a partir de 2013, quando foi o responsável por julgar as ações em primeira instância da operação Lava Jato. Era a assinatura dele que constava das condenações de uma série de políticos, doleiros e empreiteiros envolvidos no esquema de desvio de recursos públicos.

Entre as estrelas retiradas do cenário político por Moro estão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu (PT) e o ex-deputado federal Eduardo Cunha (MDB). Todos condenados por ele nos últimos anos. Foi por conta de uma decisão do juiz que Lula foi impedido de concorrer à presidência da República neste ano contra Bolsonaro.

No Ministério da Justiça, caberá a Moro debelar as suspeitas de que ele teve uma atuação política enquanto era juiz. Nos últimos dias, ele começou a fazer um rascunho da equipe que o assessorará na pasta. Entre os cotados para ocuparem cargos especiais estão três delegados que atuaram na Lava Jato: Érika Marena, Luciano Flores e Igor de Paula.

Com a saída de Moro da Justiça Federal, a magistrada Gabriela Hardt, que é a substituta dele, assume interinamente suas funções. Nas próximas semanas, deve ser aberto um concurso interno de remoção para a 13ª Vara Federal. Apenas os magistrados que atuam na 4ª região (nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) participam da disputa. Só depois da análise dos documentos dos inscritos é que o novo titular será definido. Pra definir o responsável, primeiro leva-se em conta o tempo no cargo de juiz federal. Depois, a antiguidade no exercício no cargo de juiz substituto na 4ª Região. Por último, o critério de classificação no concurso público.


Vinicius Torres Freire: Ministro terá poder de investigação do governo e informação sobre crimes financeiros

O ministério que Sergio Moro deve assumir não seria mais do que a velha pasta da Justiça não fosse a incorporação de duas instituições importantes: a CGU (Controladoria-Geral da União) e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Com a CGU, Moro passaria a comandar uma espécie de polícia administrativa e a inspetoria do governo.

Com o Coaf, terá algum controle sobre uma agência de inteligência que recebe, analisa e encaminha ao Ministério Público e à polícia denúncias de lavagem de dinheiro e uso de recursos para fins criminosos, terrorismo inclusive.

Desde que foi criada, em 2003, a CGU teve ligação direta com o presidente da República —ora é um ministério. O Coaf é filho da lei de lavagem de dinheiro, de 1998, desde sempre abrigado no Ministério da Fazenda.

No mais, a Justiça de Moro vai reabsorver as polícias federais, deslocadas neste ano para o breve Ministério da Segurança.

Moro não será o xerife absoluto de CGU e Coaf, regulados por leis até bem estritas. Mas instituições podem ter sua atuação reforçada, ampliada ou até laceada, a depender de quem as comande e componha.

Além do mais, CGU e Coaf devem mudar, até porque serão necessárias leis para transferi-las para a Justiça e redefinir seus comandantes, pelo menos.

Não foi possível confirmar se Moro reivindicou a CGU, mas próximos de Jair Bolsonaro dizem que o futuro ministro pediu para ficar com o Coaf. Lê-se por aí que Moro levará apenas "parte do Coaf", o que ora não faz sentido.

A CGU avalia, audita, controla e pode investigar procedimentos, programas e servidores do governo inteiro.

É uma espécie de promotoria de defesa contra ineficiências, corrupção e outras irregularidades no Executivo. Agora, será subordinada a um ministro.

Quem vai comandá-la, com qual autonomia? Seja como for, um órgão de controle supraministerial estará sob Moro —como inspetor-geral, digamos, terá mais poder.

A lei de lavagem de dinheiro de 1998 obriga pessoas e instituições a prestar informações de transações suspeitas.

A lista de obrigados é aqui impublicável, de tão grande, mas o setor financeiro, seus órgãos de fiscalização e todos os envolvidos em transações de bens e serviços de grande valor estão obrigados a registrar ou notificar negócios a partir de certa monta ou suspeitos. Incluem-se aí transações financeiras, com imóveis, joias, arte e outros bens de luxo, produtos do agronegócio ou passe de atletas.

Tais informações devem ser enviadas ao Coaf, que pode requisitar dados cadastrais de pessoas, analisa o caso e reporta possíveis rolos ao Ministério Público ou à polícia. Órgãos muito parecidos existem em vários países civilizados. Gente graúda do Ministério Público diz que o Coaf funciona de modo razoável.

O Coaf não tem poder de investigação autônomo e no máximo aplica penas administrativas. É comandado por 11 conselheiros, funcionários de carreira indicados por vários ministérios e agências de Estado, com presidente nomeado pelo ministro da Fazenda. Vai mudar, claro. Mas como?

Em sua carreira, Moro trabalhou essencialmente com lavagem de dinheiro. Escreveu um livro sobre o assunto ("Crime de Lavagem de Dinheiro", Saraiva). Quer que as informações do Coaf sejam utilizadas para orientar sistematicamente a polícia e inquéritos.

No mais, sabemos apenas que os poderes e os inimigos de Moro não serão poucos.


Elio Gaspari: Moro no governo dos ‘humanos direitos’

Sergio Moro lustrou a biografia de Jair Bolsonaro e de seu futuro governo ao aceitar o superministério da Justiça. Foi um tiro na mosca, pois seu trabalho à frente da Lava-Jato tornou-se um marco na História da política nacional, faxinando a corrupção do andar de cima.

Ao se sentar na cadeira, será apresentado a outro tipo de corrupção sistêmica, aquela que ofende os direitos dos cidadãos. Ele entrará num governo em que o futuro ministro da Defesa, general da reserva Augusto Heleno, disse que “direitos humanos são basicamente para humanos direitos”. Desfolhando as mazelas da criminalidade nacional, acrescentou: “É um absurdo tratar isso como uma situação normal. É situação de exceção que merece tratamento de exceção”.

Quais tratamentos de exceção Moro sancionará, ninguém sabe.

O futuro governador do Rio de Janeiro, oficial da reserva da Marinha, singra um discurso apocalíptico e anuncia que “não vai faltar lugar para colocar bandido, cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota em navio em alto-mar.” Pura demagogia, e Witzel conhece a história dessas cadeias flutuantes. Elas se chamavam “presigangas” e eram usadas na Colônia e no Império. A última “presiganga” de que se tem notícia funcionou no navio Raul Soares, onde puseram presos políticos em 1964.

Os discursos repressivos de hoje têm amplo apoio popular, o que os torna mais perigosos, pois quando ficar demonstrada a vacuidade do palavrório, os demagogos mudarão de assunto.

Sergio Moro diz que a sua prioridade será o combate à corrupção e ao crime organizado. Por falta de experiência na área criminal do andar de baixo, descobrirá isso quando cair sobre sua mesa o caso de alguma roubalheira que usava um posto de gasolina da Baixada Fluminense para lavar dinheiro da corrupção e do tráfico. Puxando os fios, como ele fez em Curitiba, será fácil descobrir poderes que se instalaram no século passado, sobreviveram à ditadura, aninhados nos desvãos dos DOI e ressurgiram com a redemocratização, sambando na avenida e negociando nos palácios.

Hoje, como sempre, os ferrabrás ganham desenvoltura quando sentem-se amparados pela opinião pública. Alguns ministros da Justiça, como Seabra Fagundes e Milton Campos, sentiram o cheiro de queimado e foram-se embora. Outros, como o professor Luís Antônio da Gama e Silva, redator do AI-5, inebriaram-se. Cada um escolhe seu caminho, e Moro escolherá o seu.

Pode-lhe ser útil a lembrança do que ocorreu com Carlos Medeiros Silva quando se sentou naquela cadeira, em 1966. Um coronel que servia no gabinete apresentou-se:

— Ministro, vim conhecê-lo. Sou o representante da linha dura aqui no ministério.

Medeiros era um mineiro miúdo e discreto. Cioso da autoridade, sobretudo da sua, respondeu:

— Coronel, agradeço muito seus relevantes serviços, mas o senhor está dispensado. Agora, o representante da linha dura aqui sou eu.

O ‘Posto Ipiranga’ contatou Moro
“Isso já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, disse o general da reserva Hamilton Mourão na última quarta-feira.

O vice-presidente eleito referia-se à primeira sondagem da equipe do candidato Jair Bolsonaro para atrair o juiz Sergio Moro. O intermediário, segundo o general, foi Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do capitão.

Segundo Moro, “isso não tem uma semana”. Portanto, teria acontecido depois do dia 27 de outubro. Mourão falou em “semanas”. Quantas?

Moro e Guedes prestariam um grande serviço à moralidade pública se esclarecessem a data precisa desse contato, até porque o próprio presidente eleito mostrou-se confuso ao tratar do episódio.

O esclarecimento seria desnecessário para qualquer outra pessoa, mas Moro interferiu no processo eleitoral no dia 1º de outubro, quando liberou um trecho da colaboração do ex-ministro petista Antonio Palocci. Foram 11 páginas de parolagem que ganharam a previsível repercussão, pois faltavam seis dias para o primeiro turno.

O “contato” teria ocorrido “durante a campanha”, o que é esquisito, mas seria jogo limpo. Se ele aconteceu antes da liberação do depoimento de Palocci, teriam sujado o jogo, e a conduta de Moro deveria ser analisada pelo Ministério Público e pelo Conselho Nacional de Justiça.

A ação do Judiciário está contaminada pela onipotência. Felizmente o Supremo Tribunal Federal derrubou todos os atos relacionados com o arrastão realizado em 17 universidades de nove estados nas últimas semanas. Todas as ações foram determinadas por juízes.

No início de outubro completou-se um ano do suicídio de Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina mandado para a cadeia por uma magistrada e proibido de entrar na instituição.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, pretendia votar em Bolsonaro, mas digitou 13. Resolveu fazer uma assinatura da “Folha de S. Paulo”, para entender como o presidente eleito acabará com o jornal de Octávio Frias de Oliveira e de seus filhos.

Lendo o que disseram Jair Bolsonaro e seus oráculos, o governo pretende cortar a publicidade oficial de jornais e emissoras que mentem. Por cretino, Eremildo teme que acabem aqueles que recebem publicidade oficial para mentir.

Mercado e ‘mercado’
Paul Volcker acaba de publicar nos Estados Unidos um livro de memórias. Nele conta a sua épica batalha para derrubar a inflação de dois dígitos no final do século passado. É uma ode ao serviço público, escrita por um funcionário que, aos 91 anos, ainda usa o roupão que comprou em 1953.

Com 2,01 metros, Volcker foi para a direção do Fed em 1979. Ganhava US$ 110 mil anuais e mudou-se para Washington com US$ 57.500. Alugou uma quitinete de estudante e, uma vez por semana, levava para a casa da filha suas roupas sujas. A mulher do homem mais poderoso da finança mundial, diabética e sofrendo de artrite reumática, ficou em Nova York, teve que arrumar um emprego e alugou um dos quartos do apartamento do casal.

Para a turma do papelório:

Volcker refere-se dezenas de vezes ao mercado. Num trecho, lidando com o que seria a credibilidade do presidente do Fed na praça, escreveu “mercado”, entre aspas. Quem vive no Brasil sabe como são diferentes o mercado e o “mercado”.

Para quem está de olho em um cargo na ekipekonômica de Bolsonaro:

Um dia Volcker foi chamado à Casa Branca e levado para a biblioteca (onde não haveria grampo, acredita). Lá, diante de um silencioso presidente Ronald Reagan, o chefe da Casa Civil, James Baker, disse-lhe: “O presidente ordena que você não suba os juros antes da eleição”.

Volcker conta: “O que fazer? O que dizer? Fui-me embora, sem abrir a boca.”

Reagan já morreu, mas o chefe da Casa Civil, Baker, que está vivo, contestou apenas o fraseado e a palavra “ordena”. De qualquer forma, os juros ficaram onde estavam.