Militares

Luiz Carlos Azedo: Um dia de cada vez

Para os militares, não se trata de esperar o traficante atirar para reagir, mas de matar o bandido que estiver ostensivamente armado na primeira oportunidade

“Só por hoje” é o lema dos dependentes químicos que participam de grupos de autoajuda, como Alcoólicos Anônimos. É a síntese do famoso método dos Doze Passos, criado nos Estados Unidos, em 1935, por William Griffith Wilson e pelo doutor Bob Smith, conhecidos pelos membros do AA como “Bill W” e “Dr. Bob”. Muito difundido no Brasil, é utilizado também por instituições que trabalham com recuperação de outras dependências, como a da cocaína, por exemplo. Começa sempre pelo reconhecimento da impotência para enfrentar a dependência. É mais ou menos essa a estratégia que será adotada pelo Palácio do Planalto na intervenção federal no Rio de Janeiro. Reduzir os indicadores de violência enfrentando o crime organizado com ações a cada dia.

Começou ontem, com as operações de bloqueio e fiscalização das fronteiras e pontos estratégicos do estado, com objetivo imediato de inibir o roubo de cargas, o contrabando de armas e a entrada de drogas. Domingo, no Palácio do Planalto, na reunião com ministros e assessores, entusiasmado com os resultados da pesquisa do Ibope que constatou 83% de aprovação para a intervenção federal, Temer decidiu que as ações deveriam buscar a redução dos crimes que mais geram insegurança na cidade, com ações nos locais de maior incidência e nos setores mais atingidos da economia. Na avaliação do governo, a reestruturação das forças policiais e o combate à banda podre das polícias Civil e Militar somente terão êxito se vierem acompanhados de resultados mensuráveis, que possam ser divulgados à população.

A estratégia “um dia de cada vez” tem tudo a ver com o calendário eleitoral, o projeto de reeleição do grupo palaciano que defende a candidatura de Temer e a necessidade de o presidente da República dar um cavalo de pau na agenda do governo, com o fracasso anunciado do esforço para aprovação da reforma da Previdência. Isso explica os desencontros entre o Palácio do Planalto e o general Braga Netto, comandante militar do Leste, nomeado como interventor federal para comandar a área de segurança, que abrange as polícias Civil e Militar, os bombeiros e o sistema penitenciário. O general interventor foi pego no contrapé pela rebelião no presídio de Japeri, no domingo, que acompanhou a distância. Na segunda-feira, em nota, explicou que ainda aguardava a aprovação do decreto pelo Congresso antes de assumir o comando efetivo do sistema de segurança fluminense.

Foi preciso que o ministro da Defesa, Raul Jungmann, viesse a público explicar a situação. Político, o ministro deixou claro que o cargo de interventor é civil e que o emprego das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem obedecerá aos comandantes militares. Disse também que a escolha do general se deveu ao fato de que a intervenção se limitou à segurança pública; se fosse mais abrangente, como chegou a ser cogitado, talvez fosse um economista, porque se pensou em intervir nas finanças do Rio de Janeiro. Numa situação dessa, aí seria o caso de o governador Luiz Fernando Pezão, já tão desmoralizado, entregar as chaves do Palácio Guanabara para o presidente da República.

Nos bastidores das Forças Armadas, como nos revelou o editor de Política do Correio, Leonardo Cavalcanti, há muita pressão para que o governo ofereça mais garantias legais para o emprego de forças do Exército, Marinha e Aeronáutica no combate direto aos traficantes. Mesmo com a mudança da legislação, que garante julgamento pela Justiça Militar em casos de processos penais, os militares consideram as salvaguardas insuficientes. Há dois raciocínios embutidos aqui: primeiro, a intervenção é um recurso extremo, que não pode fracassar como missão (há um exagero nisso, pois trata-se de uma ação de curto prazo e emergencial para um problema crônico, que demanda ações estruturantes de quase todas as políticas públicas); segundo, a lógica de guerra, na qual não existe o princípio de proporcionalidade do emprego da força, mas sim o da superioridade e letalidade. Trocando em miúdos, para os militares, não se trata de esperar o traficante atirar para reagir, mas de matar o bandido que estiver ostensivamente armado na primeira oportunidade. Essa salvaguarda não existe. O que pode haver, além do que já existe, é o mandado de busca e apreensão coletivo, pleiteado para permitir que as tropas façam revistas em busca dos esconderijos das armas dos traficantes.

Sucessão
Em meio a essa situação, o Alto Comando do Exército se reuniu ontem para discutir o futuro da Força. Na prática, iniciou-se a sucessão do comandante Eduardo Villas Bôas, que está muito doente, embora exerça plena liderança intelectual e comando efetivo das tropas. Serão escolhidos os substitutos de quatro generais que passarão à reserva em março: Juarez de Paula Cunha (Ciência e Tecnologia), Antônio Mourão (sem função), Theófilo Oliveira (Logística) e João Campos (comandante militar do Sudeste). Agora, o mais antigo oficial do Alto Comando é o general Fernando Azevedo e Silva, chefe de Estado-Maior, que passa a ser o sucessor natural de Villas Bôas, por ser o mais antigo. Ambos são amigos e afinados politicamente, ao contrário de Mourão, que estava afastado da tropa e sem poder de mando desde quando deu declarações admitindo uma eventual intervenção militar, numa reunião da Maçonaria em Brasília.


Luiz Carlos Azedo: Por que somos assim?

Nada indica que a renovação dos nossos costumes políticos ocorrerá com a implosão dos atuais partidos ou seu colapso nas eleições, por causa das eleições proporcionais e regionais

Ao contrário do que aparenta a política brasileira, na qual a “transa” substituiu os projetos, o Brasil é fruto das ideias. Elas antecederam o Estado e a nação, antes mesmo do descobrimento. E não há nenhum momento relevante da nossa história que não tenha resultado de um projeto ambicioso ou mesmo de um devaneio. Brasília, por exemplo. A crise que estamos vivendo na política brasileira é resultado da falta de ideias? Ou será fruto de um ajuste de contas entre uma espécie de novo “americanismo”, emergente no Judiciário, e o velho “iberismo” predominante no Executivo e no Legislativo?

Pode ser que sim. Mas a crise, indiscutivelmente, é coadjuvada por fenômenos que modificaram a face do Brasil e sua relação com o mundo. A urbanização acelerada e a globalização, respectivamente, ocorreram sem que o país estivesse preparado política e culturalmente para isso. Ao mesmo tempo em que transitaram da taipa para a alvenaria, as favelas e periferias são sendo plugadas pela revolução tecnológica em curso, na qual a velocidade da comunicação e das inovações entre em choque com velhas estruturas e instituições.

O livro Brasil, brasileiros. Por que somos assim? (Editora Verbena/Fundação Astrojildo Pereira), uma coletânea de artigos e ensaios organizada por Cristovam Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro, lança luzes sobre o momento que vivemos. Reúne textos de Alberto Aggio, Augusto de Franco, Bolívar Lamounier, Cristovam Buarque, Flávio R. Kothe, John W Garrison II, José de Souza Martins, Loreley Garcia, Lourdes Sola, Luís Mir, Marco Aurélio Nogueira, Marcus André Mello, Mécio Pereira Gomes, Paulo Cesar Nascimento, Socorro Ferraz e próprio Zander Navarro.

Esse grupo de historiadores, cientistas políticos e antropólogos realiza um esforço de interpretação da crise atual, na qual se registra um “deficit brutal de consenso e inteligência crítica”, nas palavras de Nogueira. Será que o brasileiro “perdeu a guerra para si mesmo”, como afirma Flávio Kothe, ao ressaltar que fomos incapazes de pôr para funcionar o nosso aparelho de estado e a economia? Talvez uma das chaves para compreensão de tudo isso esteja na evolução do nosso pensamento político.

O professor Francisco Weffort, em seu livro Formação do pensamento político brasileiro, destaca: primeiro, nos primórdios da colonização a meados do Império, nossos intelectuais e as elites não reconheciam a existência do povo como um ator do processo; segundo, a emergência tardia do Estado, que somente ocorre a partir da chegada de dom João VI e da Independência; terceiro, uma forte herança medieval, que mistura os aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da nossa realidade. Não é à toa que as marcas registradas do nosso “iberismo” são o patrimonialismo e o “sebastianismo”.

Longas transições
Foi apenas na Segunda República, a partir dos anos 1920 e 1930, que resolvemos as velhas dúvidas sobre a existência do povo e da sociedade. Três séculos de colônia, um século de Império e meio século de república agrária antecederam 50 anos de modernização, industrialização, urbanização, expansão da educação e criação das universidades aceleradas. Para isso, foram decisivas ideias de homens como Antônio Vieira, José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Hélio Jaguaribe e Roberto Campos. Sem eles, não teríamos as instituições políticas que deram sustentação a tudo isso, com todas as suas vicissitudes, nem políticos que ainda hoje influenciam o comportamento da nossa elite política, como Marques de Paraná, Rio Branco, Rui Barbosa, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves.

É preciso lançar um olhar para a história para compreender as mudanças no Brasil. A abolição da escravatura foi um ciclo longo, da proibição do tráfico (1850) à Lei Áurea (1888). Se desconsiderarmos a abertura de Ernesto Geisel, em 1974, a recente transição à democracia começou com a anistia, em 1979, e somente se completou com a eleição de Collor de Mello (1989). Todas as rupturas modernizantes no Brasil, porém, se deram de forma golpista e autoritária (1989, 1930, 1964).

Por causa das regras das eleições proporcionais, nada indica que a renovação dos nossos costumes políticos ocorrerá com a implosão dos atuais partidos ou seu colapso nas eleições; se houver um estouro de boiada, será em eleições majoritárias, seja para presidente da República, ou seja em alguns estados. A presença das redes sociais é um terreno em que predominam pensamentos radicais e as fake news, como nos revela a excelente série de reportagens de Leonardo Cavalcanti, editor de Política do Correio.

Esses e outros temas serão objeto de um debate imperdível entre o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), ex-governador de Brasília, um dos autores citados, e o professor de História Contemporânea Francisco José Barbosa, da Universidade de Brasília, na próxima terça-feira, a partir das 18h30, com mediação do jornalista Francisco Almeida. Local: auditório da Biblioteca Salomão Malina, no Conic (em frente à Praça Vermelha), no Setor de Diversões Norte, em Brasília. Haverá sessão de autógrafos.

 

 


Luiz Carlos Azedo: O par dialético

A economia voltou a crescer, mas a crise de financiamento do Estado impõe um “voo de galinha”. Com a mudança de cenário na economia mundial, o nosso velho desenvolvimentismo não tem vez

A esquerda brasileira tem uma forte tradição nacionalista, resultado da convergência de velhas concepções nacional-libertadoras e do populismo. Até o golpe de 1964, a luta contra o imperialismo era considerada mais importante do que a defesa da democracia. No governo João Goulart, por exemplo, a aliança entre comunistas, petebistas e pessedistas que levou Juscelino Kubitschek à Presidência foi rompida. A esquerda considerava um retrocesso político sua volta ao poder nas eleições marcadas para 1965, devido à sua “conciliação” com os Estados Unidos. Enquanto o líder petebista Leonel Brizola se lançava candidato a presidente (“cunhado não é parente”), o líder comunista Luís Carlos Prestes articulava a reeleição de João Goulart. A divisão do campo democrático por causa das ideias nacionalistas jogou os liberais nos braços dos setores conservadores liderados por Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, que articulavam o golpe de Estado. Entre eles estavam, por exemplo, o próprio Juscelino e aquele que viria a liderar a campanha das Diretas Já, Ulysses Guimarães.

Com a deposição de Goulart, o então presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzilli assumiu interinamente a Presidência da República, mas a junta militar (general Artur da Costa e Silva, brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e o almirante Augusto Rademaker), autodenominada “Comando Supremo da Revolução”, exigiu plenos poderes do Congresso para fazer cassações de mandatos e demitir servidores públicos. O historiador Hélio Silva conta que, em 8 de abril de 1964, um grupo de parlamentares, do qual fazia parte Ulysses, redigiu o ato constitucional a ser votado pelo Congresso para delegar esses poderes. No dia 9, porém, os militares editaram o Ato Institucional nº 1 (AI-1), que conferia poderes extraordinários ao Executivo e estipulava a eleição de um novo presidente e de um vice-presidente no prazo de dois dias. Em 11 de abril, foram eleitos indiretamente para a Presidência da República o general Humberto de Alencar Castelo Branco e, para a vice-presidência, José Maria Alkmin, indicado pela maioria do Congresso. Quatro dias depois, tomaram posse. Ulysses e outros pessedistas que apoiaram o golpe de 1964 logo romperam com os militares, sendo seguidos por políticos da antiga UDN. Juscelino e Lacerda foram cassados.

Uma parte da esquerda aprendeu a lição do golpe e passou a defender a democracia, mas outra optou pela luta armada, numa perspectiva de que a tomada de poder coincidiria com uma revolução, nos moldes da cubana. Tendo a guerra fria como pano de fundo, demorou para que os setores moderados da esquerda, como os antigos PCB, PTB e PSB, na ilegalidade, conseguissem convencer os demais de que o caminho da luta pela redemocratização do país passava pela disputa eleitoral e pelo apoio ao partido de oposição criado pelo próprio regime, o MDB, já então liderado pelo deputado Ulysses Guimarães e outros caciques pessedistas, como Amaral Peixoto e Tancredo Neves. Essa experiência de luta contra o regime militar levou a esquerda, na redemocratização, a inverter o chamado “par dialético”: a luta passou a ser democrática e nacional. Trocando em miúdos, subordinou-se o nacionalismo à defesa da democracia.

Desenvolvimentismo
Quando a esquerda chegou ao poder no Brasil, o mundo já não era o mesmo da guerra fria. O velho colonialismo havia acabado, logo se viu o Muro de Berlim ser derrubado e a antiga União Soviética se desintegrar, enquanto a China fazia as pazes com o capitalismo. Entretanto, o nacional desenvolvimentismo continuou sendo o eixo de sua doutrina econômica, principalmente porque a nossa industrialização fora protagonizada pala presença do Estado na atividade produtiva, num acelerado processo de substituição de importações. Era uma economia autárquica, que entrou em colapso após a crise do petróleo dos anos 1970. O Estado perdeu a capacidade de financiamento e o país passou por um longo ciclo de crises e baixo crescimento, com hiperinflação no governo Sarney e recessão no governo Dilma. Somente agora a economia voltou a crescer, mas a crise de financiamento do Estado continua impondo um “voo de galinha”. Por trás da crise, há uma mudança de cenário na economia mundial, na qual o velho desenvolvimentismo não tem vez.

No governo de Fernando Henrique Cardoso, o permanente choque entre desenvolvimentistas e social-liberais na equipe econômica já havia mostrado a resiliência das ideias nacionalistas; mas foi nos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff que elas dominaram a cena e demonstraram seu anacronismo em relação à globalização e às mudança tecnológicas que ocorrem no mundo. Quem acredita que o impeachment de Dilma Rousseff sepultou essas ideias está muito enganado. A recente entrevista do professor Luiz Gonzaga Beluzzo sobre a conjuntura política e econômica do país mostra bem isso. Entretanto, na Europa e nos Estados Unidos, o nacionalismo é a bandeira das forças mais conservadoras e retrógradas da Europa e dos Estados Unidos. Aqui não é muito diferente: a aposta na democracia e na integração do Brasil à economia mundial corre perigo nas eleições de 2018.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-par-dialetico/

 


Merval Pereira: O papel das Forças Armadas

O papel do presidente da República como Comandante Supremo das Forças Armadas não está bem definido na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que implanta o semipresidencialismo no país, o que poderá gerar conflitos entre o presidente, o ministro da Defesa e o primeiro-ministro. É o que avalia o cientista político Octávio Amorim Neto, professor associado da Ebape/FGV-Rio, que estuda esse sistema de governo há 20 anos, especialmente o utilizado em Portugal, onde atualmente é investigador visitante do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

A meu pedido, ele fez uma análise da PEC, que circula em Brasília no meio político, gerada em discussões entre o presidente Michel Temer e o ministro do Supremo Gilmar Mendes, que acumula a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Embora a mudança de sistema de governo não possa vigorar já na eleição de 2018, o Supremo Tribunal Federal tem na pauta próxima uma definição sobre se é possível fazer uma alteração do nosso sistema presidencialista apenas por emenda constitucional, depois que ele foi aprovado duas vezes por plebiscitos.

O semipresidencialismo que é proposto na PEC é o chamado regime premier-presidencial, em que o primeiro-ministro e o gabinete são coletivamente responsáveis apenas perante o Parlamento. Portugal desde 1983 e a Vª República Francesa são exemplos desse subtipo. É um sistema de governo cuja constituição estabelece um Chefe de Estado diretamente eleito pelo povo e um primeiro-ministro e um gabinete dependentes da confiança parlamentar.

Octávio Amorim Neto ressalta que as Forças Armadas resistiram duramente à adoção do parlamentarismo pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 em virtude da falta de clareza do seu lugar sob esse sistema de governo. Se formos rigorosos com definições, diz ele, a proposta de parlamentarismo que foi derrotada em março de 1988 — sob ameaças do general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército — criaria, na verdade, um regime semipresidencial, pois previa um Chefe de Estado diretamente eleito pelo povo e um primeiro-ministro e um gabinete subordinados à confiança do Legislativo.

Portanto, o cientista político da FGV-Rio considera “fundamental” que qualquer proposta de semipresidencialismo crie ou fortaleça órgãos que favoreçam a coordenação entre presidente da República, primeiro-ministro e ministro da Defesa no tocante ao emprego das Forças Armadas. O presidente da República as comandará, mas, segundo a PEC, caberá ao primeiroministro e ao gabinete a determinação da política de defesa.

Isso poderá gerar conflitos, adverte Octavio Amorim Neto, imaginando o seguinte cenário: o primeiroministro e o ministro da Defesa decidem que o Brasil enviará tropas para uma missão de paz da ONU. Porém, caberá ao primeiro-ministro emitir as ordens de emprego de unidades militares brasileiras na missão. E se o presidente da República discordar da decisão e se recusar a assinar as ordens?

Para reconciliar esse tipo de diferença é que existe o Conselho de Defesa Nacional, estipulado pelo Artigo 91 da Constituição de 1988. Todavia, esse Conselho tem sido rarissimamente convocado, comenta Octávio Amorim Neto, tendo se tornado irrelevante. Sob um regime semipresidencial, o Conselho poderá ser ressuscitado e ganhar relevo, se conseguir tornar-se um mecanismo eficaz de coordenação.

Octavio Amorim Neto chama a atenção para o fato de que não há menção ao Conselho no texto da PEC a que teve acesso e diz que o primeiro-ministro precisa ser incluído entre seus membros permanentes. E uma das possíveis soluções para a atual falta de importância do Conselho de Defesa Nacional seria inserir, na emenda de estabelecimento do semipresidencialismo, que o órgão se reunirá periodicamente.

 

 


Luiz Carlos Azedo: A lógica do medo

A “unidade dos contrários” acontece entre o ex-presidente Lula e o deputado Bolsonaro, que parecem manter um acordo tácito quanto à estratégia de campanha

Na política a unidade dos contrários é mais comum do que se imagina. Por exemplo, por trás do debate sobre a denúncia do ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Michel Temer, que tem por base a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, nem os governistas, nem a oposição, em sua maioria, querem que haja o afastamento e a continuidade das investigações. Daria muito trabalho reorganizar o governo tendo à frente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a um ano apenas das eleições de 2018; de igual maneira, um governo com 3% de aprovação, desgastado pela crise ética, sobre o qual pode-se jogar a responsabilidade pelas dificuldades enfrentadas pela população, interessa à oposição.

A mesma “unidade dos contrários” ocorre na relação entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que parecem manter um acordo tácito quanto à estratégia de campanha. Exploram o medo da população em relação a um suposto retrocesso político e social, o que é facilitado pelo fato de a continuidade do governo não ser uma alternativa de poder para 2018, nem ter condições de construí-la a partir de seu núcleo principal, seja por meio da candidatura à reeleição do próprio presidente Temer, seja lançando outro nome do governo, como o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que não consegue esconder essa ambição.

Essa estratégia é facilitada pela crise do PSDB, que vive um dos seus piores momentos na política brasileira, mesmo que o impeachment da presidente Dilma Rousseff parecesse pôr tudo a seu favor. Aécio Neves (PSDB-MG), que chegou a bater na trave em 2014, está fora da sucessão presidencial, assim como o senador José Serra (PSDB-SP), ambos desgastados pela crise ética. A bola da vez é o governador Geraldo Alckmin, de São Paulo, que ocupa o vértice do sistema de poder sob controle do PSDB, mas não tem o mando do partido. Presidente licenciado da legenda, Aécio sobreviveu às medidas cautelares do Supremo Tribunal Federal (STF), que foram rejeitadas pelo Senado, é o aliado principal de Temer e tem uma carta na manga, a eventual candidatura de Luciano Hulk, de quem é compadre, correndo por fora da legenda. Para complicar ainda mais, o prefeito de São Paulo, João Doria, pode ir à luta se estiver em melhores condições do que Alckmin.

Discurso único

Com Temer e Alckmin neutralizados, Lula e Bolsonaro nadam de braçada, cada qual ampliando a influência eleitoral à custa do medo que o outro provoca em parcelas do eleitorado que se vê sem alternativas robustas na disputa. Até agora, Lula explorou principalmente a resiliência dos militantes do partido e da base eleitoral cativa, sobretudo os 13 milhões de famílias beneficiadas por seu programa de transferência de renda. Isso o manteve à tona, mesmo já estando condenado pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, na Operação Lava-Jato. Agora, Lula parte para a ofensiva, restabelece conexões com as oligarquias nordestinas e explora o crescimento de Bolsonaro, para reagrupar os setores de esquerda que haviam se descolado do PT na crise ética e que começam a vê-lo novamente como alternativa de poder e “um mal menor”.

Bolsonaro também se aproveita dessa recidiva de Lula, se colocando como a única alternativa capaz de barrar a volta de Lula ao poder e o bolivarianismo, ao mesmo tempo em que adota um discurso autoritário e moralista, seja em relação aos costumes, seja quanto aos métodos de combate à corrupção. Também resgata velhas bandeiras nacionalistas, que já estiveram nas mãos de Lula, mas foram perdidas por causa dos escândalos, como a defesa da Petrobras e do pré-sal, além da Amazônia e suas jazidas minerais. Mas do ponto de vista da narrativa eleitoral, está funcionando. Candidato dos setores que defendiam uma intervenção militar, Bolsonaro inverte a equação: seria um militar no poder eleito por um regime civil. Isso seduz setores que deixam de vê-lo como ameaça à democracia, sem considerar que o golpe pode vir depois, mas que também não estão muito preocupados com isso, desde que seus interesses econômicos imediatos sejam atendidos.

O discurso único da elite política contra a Lava-Jato facilita muito a vida de Lula e Bolsonaro. Nada disso significa, porém, que ambos cheguem juntos ao segundo turno das eleições, isso é muito difícil, porque o medo que ambos disseminam pode convergir para outro candidato, com perfil ético e democrático, no decorrer do debate eleitoral.


Ruy Fabiano: O ocaso do poder civil

Em 1985, os militares deixaram o poder e voltaram aos quartéis; em 2017, os políticos temem deixar o poder e ir para a cadeia. É um desfecho patético para 32 anos de governo civil, o mais longo período de democracia desde a proclamação da República.

Mas, goste-se ou não, é o que há. O ciclo civil corre o risco de interrupção pela rejeição crescente que provoca na opinião pública. Pesquisas diversas atestam a descrença da população em seus representantes, na escala dos 80% a 90%, sem distingui-los.

A descrença derivou dos políticos para a política. E é disso que se nutrem os que postulam uma intervenção militar, como em 1964. Ocorre que, se há muita coisa em comum entre um período e outro – corrupção, desordem, subversão, desemprego -, há também muitas diferenças. Nestes 53 anos, o mundo mudou radicalmente.

No tempo da Guerra Fria, era menos complexo. O mundo estava dividido em dois, EUA e URSS; ou se estava de um lado ou de outro, capitalismo ou comunismo. A Igreja Católica, que era anticomunista – e hoje não é mais –, fazia toda a diferença: tinha presença forte na cena pública, inclusive na esfera intelectual.

Seu apoio foi decisivo - e não era isolado. Empresários, profissionais liberais, imprensa, intelectuais, artistas, entidades como ABI, OAB e Fiesp, para citar só algumas, estavam perfiladas contra o governo João Goulart, cuja posse, três anos antes, em face da renúncia de Jânio Quadros, já fora cercada de grande resistência e quase desemboca em guerra civil.

Foi preciso improvisar uma solução parlamentarista, que durou um ano. O retorno do presidencialismo acirrou os ânimos e a crise econômica fez o resto. Havia ainda sinais claros de que Jango (ou o seu entorno) preparava um golpe. Brizola, que era o Lula de então, dizia que o Congresso era um clube e que precisava ser fechado.

O Congresso, pois, em sua imensa maioria, apoiava a queda do governo – e, após decretá-la, votou maciçamente no marechal Castello Branco. Entre outros, Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Juscelino Kubitschek. Hoje o quadro é outro. A globalização pulverizou os antagonismos. Os atores da geopolítica internacional são mais numerosos – e o Brasil saiu da esfera de alinhamento automático com os EUA e diversificou seus parceiros.

A China é, hoje, seu principal mercado. Os próprios EUA vivem divisão ideológica interna sem precedentes, de que dão testemunho a tumultuada eleição e o risco de ingovernabilidade de Donald Trump.

Os militares brasileiros, pressionados por grupos civis de intervencionistas, estão cientes dessa complexidade, que imporia ações diplomáticas difíceis, com riscos de retaliação externa e luta interna aguerrida, como assinalou o general Hamilton Mourão.

Jango governou menos de três anos; não teve muito tempo para organizar o seu exército revolucionário. O PT governou quase 14 anos; teve mais tempo e meios de aparelhar a máquina estatal e costurar alianças que tornam mais cruenta a perspectiva de reação às Forças Armadas – e poriam o país diante de uma guerra civil.

Em 1964, não havia uma entidade como o Foro de São Paulo, que há 27 anos planeja – e executa - a ocupação ideológica do continente pela esquerda. Se não concluiu a obra, o Foro estabeleceu avanços consideráveis, que não são subestimados pelos militares.

Há ainda o crime, que naquela época não era organizado, nem dispunha do arsenal propiciado pelos bilhões do narcotráfico – e nem estava articulado com alguns partidos políticos do continente.

Nada disso, dizem as mais graduadas patentes do Exército, impedirá uma ação, desde que o clamor da sociedade se mostre nítido e insofismável. Até aqui, as manifestações intervencionistas, nos seus melhores dias, reúnem no máximo 30 mil pessoas. É pouco.

A mídia investe na solução política da crise e ignora a movimentação dos que defendem a ruptura - e que têm seu protagonismo restrito às redes sociais. Ali fazem muito barulho, mas nas ruas pouco. E é ali que a política trava suas batalhas decisivas.

A chave, no entanto, está com o Judiciário. O clichê segundo o qual as instituições estão funcionando, em face das prisões que alguns poucos juízes, como Sérgio Moro, têm decretado a figurões da política e do empresariado, é o que sustenta a normalidade.

Mas também aí o protagonismo do STF, em regra visto como negativo mesmo quando tem razão, dá substância à teoria das aproximações sucessivas, do general Mourão. O STF tem sido visto como uma espécie de coveiro da Lava Jato.

A semana se encerrou com a leitura de um parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, de autoria do deputado Bonifácio de Andrada, propondo o arquivamento da segunda denúncia de corrupção contra o presidente Temer.

O STF, por sua vez, reconheceu, por 6 a 5, que não pode suspender mandatos de parlamentares – prerrogativa do Congresso. Está na Constituição e não se refere apenas a Aécio Neves.

A esta altura, no entanto, o público não consegue dissociar na verborragia jurídica o que é legal do que é cumplicidade. E aposta na cumplicidade. Nesses termos e nesse ritmo, o desgaste do poder civil, no país que mata mais civis no mundo – cerca de 70 mil por ano -, avança cada vez mais. E a dúvida permanece: chegaremos a 2018?

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Míriam Leitão: Os custos da violência 

Nesta semana blindados das Forças Armadas voltaram a circular pela cidade e houve novos tiroteios na Rocinha. O custo da violência para o Rio e o país é incalculável, mas o economista Daniel Cerqueira, do Ipea, avalia que nacionalmente se perde pelo menos R$ 362 bilhões ao ano. A economista Joana Monteiro, presidente do ISP do Rio, lembra que o “Brasil vive uma tragédia do ponto de vista dos jovens".

Há prejuízos que se pode calcular, há outros que se pode apenas imaginar. Há custos econômicos e há perda para as famílias que ficam além de qualquer conta. A tragédia maior, diz Joana, é a dos jovens negros e pobres.

— Grande parte dos custos da violência está sobre as comunidades pobres e os que vivem nas áreas que são disputadas pelas facções. O Rio sofre com isso desde meados dos anos 1980, foi muito forte nos anos 1990. Houve esperança de melhora no final dos anos 2000, agora estamos de novo nesse cenário. A sociedade não tem muito claro o custo da violência — diz Joana.

Mesmo assim, os dois especialistas admitem que é preciso contabilizar, calcular os prejuízos tangíveis, porque a violência afeta a atividade econômica de diversas formas, na redução do turismo, produção, consumo. E, principalmente, nas mortes.

— O investimento feito em educação se perde se os jovens morrem. Tem o custo da despesa financeira do Estado, seja para manter o sistema de segurança, seja para manter o sistema prisional, seja para atender as vítimas da violência no sistema de saúde. A economia é atingida de diversas formas, porque as pessoas deixam de consumir produtos mais caros pelo medo de serem roubadas. No estudo que fizemos, a estimativa que chegamos, conservadora, é de que o custo da violência a cada ano é de 6% do PIB, algo em torno de R$ 362 bilhões em 2016. Claro que a tragédia é imensurável — diz Daniel Cerqueira, autor de um livro exatamente sobre o custo da violência.

O que explica o Rio, segundo Joana Monteiro, é que a cidade sempre esteve sob o controle de três facções criminosas que lutam entre si. Recentemente tudo isso piorou como reflexo do colapso financeiro estadual. Daniel acha que não houve trabalho de inteligência prévio à ação das Forças Armadas e das forças de segurança.

— Tudo que está sendo feito é uma reação midiática. Teria que ter um trabalho de inteligência para identificar os paióis de armas para ter efetividade. O que a gente viu foi o Exército fazendo perímetro, a PM entrou, mas o efeito não foi duradouro.

Joana acha que é muito forte afirmar que não houve trabalho de inteligência.

— Foi muito questionado por que não se agiu antes, por que não houve intervenção. Havia indicação de que haveria ocupação. É muito difícil, do ponto de vista operacional, ter certeza de quando vai acontecer um conflito. Até porque a Rocinha não é a única favela do Rio, e há vários indicativos disso em vários pontos da cidade.

A conversa com os dois especialistas com os quais gravei o programa dessa semana na GloboNews mostra o quanto é complexa a crise de segurança no Brasil e no Rio. A política das polícias pacificadoras deixou lições porque deu certo por algum tempo e é preciso refletir sobre o que levou a esse sucesso momentâneo para se construir uma proposta permanente.

— Não existe saída para a violência do Rio enquanto a gente tiver áreas conflagradas, com domínio de grupos criminosos armados. A nossa cidade nunca deixará de ser partida enquanto houver territórios que o Estado não controla, não detém o monopólio da força — diz Joana.

A economista acha fundamental entender as políticas, avaliar o que foi feito e voltar atrás quando for o caso. Para ela, além das UPPs, foi fundamental para o sucesso que houve tempos atrás o sistema integrado de metas. A informação e as metas são essenciais, diz ela.

Daniel lembra que as estatísticas mostram a queda de homicídios em alguns estados nos últimos anos: no Rio antes da última piora, em São Paulo e em Pernambuco no meio de um Nordeste em que as mortes aumentaram muito. É preciso avaliar o que deu certo e os erros, olhar dados, compartilhar números, ter metas. Pode ser o começo do avanço nessa área onde tudo, às vezes, parece perdido.

 


Luiz Werneck Vianna: Um imenso tribunal  

Banir a atividade política é nos deixar entregues a um governo de juízes ou militar

Em outros tempos bicudos, não tão distantes desses que aí estão, celebrado poeta popular lançou a profecia de que, no andar da carruagem em que nos encontrávamos, iríamos tornar-nos um imenso Portugal. A predição não se cumpriu. Aliás, Portugal está muito bem, e as reviravoltas do destino nos conduziram a um lugar de fato maligno, convertendo-nos num imenso tribunal. Vítimas da nossa própria imprevidência, testemunhamos sem reagir a lenta degradação do nosso sistema político – salvo quando o Parlamento introduziu uma cláusula de barreira a fim de evitar uma malsã proliferação de partidos, a maior parte deles destituída de ideias e de alma, barrada por uma intervenção de fundo populista por parte do Supremo Tribunal.

A política, é lição sabida, quando não encontra nas instituições terreno que lhe seja próprio se manifesta em outros, inclusive naqueles criados para uma destinação que, por origem, não lhe deveriam caber. Recentemente, vimos como a intervenção da corporação militar que pôs fim ao regime da Carta de 1946, ao banir os partidos e as instituições de representação do povo, trouxe para si o monopólio da atividade política em nome da luta contra a corrupção e de uma suposta subversão comunista. Caberia a ela a missão de regeneração ética do Brasil e de assentar novos rumos para a modernização econômica do País.

Mas os militares não eram ingênuos nas coisas da política. Força decisiva na fundação da nossa República, tornaram-se desde então um poder moderador de fato, tendo acumulado longa experiência no trato com a nossa complexa realidade social e política – a trágica intervenção militar em Canudos serviu-lhes de amarga pia batismal e o tenentismo, nos anos 1920, de um processo de seleção dos seus quadros para o exercício do poder que lhe viria, parcialmente, com a revolução de 1930 e de forma plena com o golpe militar em 1964.

Com esse lastro, foram capazes de estabelecer bases sólidas para o regime autoritário que implantaram e alianças políticas que reforçassem seu domínio. Nessas alianças se mantiveram os seus princípios, em particular os que definiam como objetivos nacionais permanentes, não foram principistas, atentos às consequências e à realidade em torno. Sob essa orientação fizeram política com as oligarquias que a eles se associaram e as favoreceram para a realização de tópicos significativos de sua agenda de modernização capitalista do País – no caso, exemplar o agronegócio – e lhes assegurarem bases para sua permanência no poder. Com sua atenção à política, souberam reconhecer a hora da retirada quando seu regime se viu assediado por irrefreável onda de protestos vindos da sociedade civil e da oposição que lhe fazia o MDB no Parlamento, admitindo participar da transição que, mais à frente, nos traria a democracia da Carta de 88, que, por sinal, ora nos cumpre defender das ameaças que a rondam.

Hoje, mais uma evidência do desamor da nossa história pelas linhas retas – nascemos tortos, filhos quasímodos da combinação de uma institucionalidade política modelada nos princípios do liberalismo com a escravidão –, estamos novamente sob o risco de recair no domínio de corporações estranhas à política, no caso as das que se originam no Terceiro Poder, cujo gigantismo entre nós já extrapolou em muito os papéis que o notável jurista Mauro Cappelletti admitia como legítimo nas democracias modernas.

Com efeito, a atual invasão do Poder Judiciário sobre as dimensões da política e das relações sociais não encontra paralelo em outros casos nacionais. A categórica judicialização da política, que até há pouco designava uma patologia mansa, no caso brasileiro perdeu acuidade, pois se vive à beira de um governo de juízes, a pior das tiranias, visto que dela não há a quem recorrer. Não se trata agora de um juiz intervir com leituras criativas da lei em casos singulares, uma vez que seu objeto é a própria História do País que se encontra em tela – o Brasil necessitaria, na linguagem dos procuradores, secundada por vários magistrados, “ser passado a limpo”.

Tal operação, que lembra as malfadadas vassouras de Jânio Quadros, não separa alhos de bugalhos e deixa em seu rastro um território infértil para a política num país de mais de 200 milhões de habitantes que não pode prescindir dela para enfrentar suas abissais desigualdades sociais e regionais. Decerto que a chamada Operação Lava Jato tem produzido efeitos benfazejos e, nesse sentido, precisa ser preservada, desde que expurgada dos elementos messiânicos que a comprometem e têm caracterizado a ação de muitos dos seus protagonistas, inebriados pelos aplausos dos incautos e dos pescadores em águas turvas.

O gênio de Gilberto Freyre já nos tinha advertido de que a especificidade da civilização brasileira se caracterizava em pôr antagonismos em equilíbrio, tópica bem estudada por Ricardo Benzaquen de Araújo em seu belo Guerra e Paz. Aqui, a tradição e o arcaico têm convivido com o moderno e a modernização, e temos sabido tirar proveito dessa ambiguidade para forjar nossa civilização. Somos, pela natureza da nossa formação, compelidos às artes da dialética, e a ética puritana nunca medrou entre nós, que mantemos parentesco com o barroco – tema bem desenvolvido por Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (B.H, UFMG, 1998).

Entre nós, equilibrar antagonismos foi operação que coube à política, cenário bem diverso do caso americano, que, no celebrado argumento de Tocqueville, reduziu a um mínimo, pela feliz conformação da sua formação histórica, a intermediação dessa dimensão na vida social, dado que estaria animada desde sua origem por práticas de auto-organização. Banir ou suspender a atividade política a pretexto de moralizá-la é nos deixar no vácuo, entregues a um governo de juízes ou a uma recaída num governo militar, e esse é um desastre com que contamos tempo para evitar.

 

 

 


José Roberto de Toledo: Militares em alta

“Intervenção” e “militar” estão em alta. Não só em Brasília e no noticiário político, mas na curiosidade dos brasileiros. Buscas no Google pela palavra “intervenção” bateram recorde na semana passada no Brasil. Não resta dúvida do motivo: na maior parte das vezes, a pesquisa é por “intervenção militar” e “intervenção constitucional”. O pico de interesse coincide com o vídeo do general Mourão levantando essa hipótese, e com o comandante do Exército, general Villas Boas, defendendo o subordinado na TV.

No Facebook, mídia social onde estão 8 entre cada 10 internautas brasileiros, as páginas em português que mais provocaram likes, comentários e compartilhamentos contendo o termo “militar” na semana passada foram “Mexeu com General Mourão, mexeu com toda nação” (sic) e “General Mourão, eu apoio” – aliás, o nome original desta última é “general Mourão presidente do Brasil”.

Desde as manifestações de rua pelo impeachment de Dilma, em março de 2015, o tema da intervenção militar não aparecia tão intensamente nas telas dos internautas brasileiros. Nem tantos defendiam abertamente que as Forças Armadas tomem o poder.

Vários fatores alimentam essa nostalgia militaresca: 1) abundância de notícias sobre corrupção federal sem perspectiva de punição daqueles que a população identifica como culpados, 2) desgaste da imagem do Judiciário, contaminado pela impopularidade recorde do Executivo e do Legislativo, 3) o perfil demográfico da população, da qual a maioria não tem idade para ter experimentado a ditadura militar terminada em 1985.

Somem-se as imagens de grupos de bandidos armados com fuzis disputando a bala o comando do tráfico de drogas na mais famosa favela do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que as autoridades não pagam em dia o salário dos policiais e chamam o Exército para tentar resolver a situação. Enquanto isso, ainda brilha na memória das pessoas a montanha de dinheiro atribuída ao ex-ministro Geddel Vieira Lima largada num apartamento em Salvador.

A cada assalto, bala perdida e assassinato, a onda de indignação é canalizada para o colo daqueles que, na visão edulcorada de um grupo cada vez maior de brasileiros, seriam os únicos capazes de resolver o problema – aqueles que não foram treinados para prender ou investigar, mas para dissuadir e matar. Parece a solução tentadoramente fácil para um problema complexo. Não são só os simpatizantes dos militares a comprar essa simplificação.

Na primeira manifestação de rua em Brasília contra o seu governo, Michel Temer usou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para colocar a soldadesca marchando na Esplanada dos Ministérios. Sob o regime de Garantia da Lei e da Ordem, os civis, na prática, declaram-se incompetentes e transferem aos militares poder de polícia para restabelecerem a normalidade. A cada vez que recorre à GLO, o governo Temer assume-se incapaz e vai mostrando-se mais fraco, para não dizer frouxo.

É nesse ambiente, com a indispensável ajuda de civis, que os militares interpretam livremente o caput do artigo 142 da Constituição. Pelo que dizem os generais, leem ali que “as Forças Armadas (…) destinam-se (…) à garantia (…) da lei e da ordem”. As partes suprimidas dizem categoricamente que os militares estão submetidos à autoridade suprema do presidente da República e que só poderão agir por iniciativa dos poderes constitucionais. Isso eles não leem. Nem seus crescentes seguidores e admiradores nas mídias sociais.

Quem alimenta a crença de que as Forças Armadas são autônomas e têm poder para atribuir a si próprias a missão de evitar o caos? O detentor dos poderes constitucionais que temer enquadrá-las.

 


Luiz Carlos Azedo: O cerco à Rocinha

Os traficantes cariocas dispõem de uma topografia favorável, enraizamento social e fonte permanente de financiamento: a venda de drogas

Quem leu Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e Abusado (2003), de Caco Barcellos, traça um inevitável paralelo entre a iniquidade social que deu origem ao povoado de Canudos, no sertão baiano, e a do Morro Dona Marta, na encosta de Botafogo, no Rio de Janeiro. Os Sertões conta a história de Antônio Conselheiro, um líder messiânico; Abusado, a de Marcinho VP, um traficante carioca. O soldado do tráfico é um jagunço urbano. Euclides de Cunha fez a cobertura da quarta campanha de Canudos (1896-1897) para o jornal O Estado de São Paulo. Seu livro, porém, escandalizou a opinião pública. Além de revelar a miséria e o abandono dos habitantes do interior do país, desnudou o despreparo do Exército para lidar com a situação.

Na terceira campanha contra Canudos, o coronel Moreira César, que havia reprimido a Revolução Federalista (1893-1895) e fora enviado pelo presidente Prudente de Moraes para acabar com a rebelião, liderou um desastre. Com canhões Krupp e armas de repetição, seus 1.300 soldados invadiram o arraial de 5 mil casebres com facilidade. Os jagunços não ofereceram resistência, bateram em retirada para os arredores, na caatinga, de onde fustigaram as tropas federais durante a noite. Moreira César foi morto por uma bala traiçoeira e a tropa se desorientou, perdida entre palhoças incendiadas. O tenente-coronel Tamarindo, que assumira o comando, ordenou a retirada: “É tempo de murici; cada um cuide de si!”. A fuga virou carnificina:

“Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas…(…) Um pormenor doloroso completou essa encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do tenente-coronel Tamarindo.
Era assombroso… Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca.”

O massacre
Em resposta, o ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, mandou para Canudos duas colunas com mais de 4 mil homens. De janeiro a setembro, o Exército penou. O próprio Bittencourt foi para a região organizar as linhas de suprimento e o cerco a Canudos. A morte de Antônio Conselheiro, possivelmente por disenteria, facilitou a vitória do Exército, que prometeu liberdade aos que se entregassem, mas bombardeou o arraial impiedosamente. Homens, mulheres e crianças foram degolados, a “gravata vermelha”. O corpo de Antônio Conselheiro foi exumado, decapitado e queimado. Mais de 12 mil soldados de 17 regiões do Brasil participaram do massacre de 25 mil pessoas. Mais tarde, as revelações de Euclides da Cunha levaram a jovem oficialidade a engrossar o Movimento Tenentista.

As Forças Armadas cercaram a Rocinha na sexta-feira. Têm homens treinados e equipados no Haiti para esse tipo de operação, mas enfrentam uma realidade diferente da caribenha, principalmente porque não estão numa ilha nem dispõem do mesmo amparo legal para intervir. Os traficantes cariocas dispõem de uma topografia favorável, enraizamento social e fonte permanente de financiamento: a venda de drogas. Estão em situação muito melhor do que os jagunços na caatinga. Um confronto aberto resultaria numa tragédia. O cerco à Rocinha é uma missão difícil, de resultados até agora pífios. Parece até ironia, mas as favelas do Rio receberam esse nome por causa dos casebres dos soldados que lutaram em Canudos e foram morar no Morro de Providência.

 


Luiz Carlos Azedo: A farda e a toga

A outra face da moeda da benfazeja não-intervenção dos militares na vida política nacional é o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu novo papel no equilíbrio entre os poderes

O velho fantasma do golpe militar ressurgiu no fim de semana, com a palestra do general Hamilton Mourão, diretor de Economia e Finanças do Exército, num evento da Maçonaria, sexta-feira, em Brasília. Duas frases despertaram lembranças do passado: “Ou as instituições solucionam o problema político retirando da vida pública os elementos envolvidos em todos os ilícitos ou então nós teremos que impor uma solução”; “Os Poderes terão que buscar uma solução. Se não conseguirem, temos que impor uma solução. E essa imposição não será fácil. Ela trará problemas. Pode ter certeza”. O vídeo da sua palestra viralizou nas redes sociais.

A palestra do general pegou de surpresa o presidente Michel Temer, que acionou o ministro da Defesa, Raul Jungmann, que conversou com o comandante da Força, general Eduardo Villas Bôas. A solução foi pôr panos quentes, manter o Palácio do Planalto longe do assunto e deixar por conta dos próprios militares a resposta ao gesto de aparente insubordinação. “Desde 1985 não somos responsáveis por turbulência na vida nacional e assim vai prosseguir. Além disso, o emprego nosso será sempre por iniciativa de um dos Poderes”, respondeu Villas Bôas, que reiterou o compromisso dos militares com “a manutenção da democracia, a preservação da Constituição, além da proteção das instituições”.

O comandante do Exército tem grande autoridade política e tem dado demonstrações de que compreende como poucos políticos a situação do país, além de revelar amadurecido compromisso com a ordem democrática. Mostra que aprendeu mais sobre o valor da democracia com o regime militar do que a maioria dos nossos políticos. Mas sofre os desgastes de uma doença degenerativa que dificulta sua mobilidade, o que abriu uma disputa surda na Força pela sua sucessão. Talvez o gesto de Mourão tenha a ver com isso, talvez o tenha tirado da fila. De qualquer forma, houve uma acomodação, as declarações foram minimizadas e Villas Bôas reiterou o compromisso com a Constituição: o Exército só intervém a pedido de um dos Poderes.

Desde a proclamação da República, o Exército, coadjuvado pelas demais forças, exerceu na marra — ou melhor com seus canhões e tanques — o papel de Poder Moderador, antes atribuído ao Imperador pela Constituição de 1824. Num país continental, cujas fronteiras foram traçadas na mesa das negociações diplomáticas, com exceção do Rio Grande do Sul e do Acre, o Exército forjou-se na luta contra rebeliões nas províncias, algumas das quais separatistas, como a Revolução Farroupilha e a Confederação do Equador. Canudos, a Revolta Constitucionalista de 32 e as tentativas de guerrilha no Caparaó, Vale da Ribeira e Araguaia reforçaram essa tradição de intervir para garantir a ordem política e social interna. A superação da mentalidade golpista e autoritária do Exército está se dando na prática, com a defesa da Constituição de 1988. Isso nos possibilitou atravessar dois impeachment, a hiperinflação e a recessão e nos permitirá superar a crise ética. O general Villas Bôas é um discreto e sagaz ator desse processo.

Poder moderador

Coube aos chamados “federalistas” encontrar uma solução para o problema do equilíbrio entre os poderes no regime republicano. Comparando as revoluções americana e francesa, o equilíbrio entre os dois poderes políticos (legislativo e executivo) nos Estados Unidos foi encontrado com o fortalecimento da Suprema Corte, que exerce o papel de contrapeso na teoria da separação de poderes, quanto na França o pensamento rousseauniano levou à aplicação radical da teoria pura da separação dos poderes, que resultou no que seria chamado de “ditadura do legislativo”. No Brasil, por causa da nossa cultura positivista e do presidencialismo (ao qual se aliam o velho sebastianismo e o caudilhismo), a força do Executivo somente não se impôs aos demais poderes em breves períodos: nas Constituintes de 1945 e de 1987 e no brevíssimo regime parlamentarista que garantiu a posse de João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros.

A outra face da moeda da benfazeja não-intervenção dos militares na vida política nacional é o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) e seu novo papel no equilíbrio entre os poderes, em que pesem todas as críticas ao estrelismo de alguns ministros, aos votos teatrais nas sessões da Corte transmitidas ao vivo e à chamada “judicialização” da política. O Supremo é que vem exercendo esse papel de “poder moderador”, fortalecido pelo fato de que deixou de ser uma vetusta instituição de poucos, misteriosos e poderosos indivíduos, somente conhecidos no alto mundo jurídico, para se tornar um tribunal com paredes de vidro, cujos ocupantes são reconhecidos nas ruas pela população.

É nesse contexto que entra em cena a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ontem substituiu Rodrigo Janot. De certa forma, da Constituinte de 1946 ao golpe militar de 1964, a imprensa pleiteou o papel de poder moderador, no vácuo do Judiciário submisso ao Executivo; depois da Constituição de 1988, essa atribuição também passou a ser reivindicada pelo Ministério Público, em aliança com os meios de comunicação, pois é uma grande tentação para ambos. Talvez o papel da nova procuradora-geral da República seja o de cumprir sua missão sem exercer o protagonismo que cabe ao Supremo na relação com os demais poderes, o que foi o grande erro de seu antecessor.