michelle bolsonaro

Hélio Schwartsman: E os R$ 89 mil?

Será total desmoralização se apurações sobre Flávio não virarem um processo

O Celso Rocha de Barros talvez não concorde, mas acho que dá para afirmar que Bolsonaro foi finalmente moderado. Não o foi pelo cargo, nem pelos militares, nem pela Covid-19, mas pelo duplo temor de sofrer um processo de impeachment e de ver familiares na cadeia por "rachadinhas" e sabe-se lá mais o quê.

Não penso que o presidente tenha se convertido à institucionalidade nem deixado de acalentar a esperança de um autogolpe, mas, independentemente do que se passe no recôndito de sua mente, o fato é que o Bolsonaro de hoje tem pouco a ver com o que assumiu a Presidência em janeiro de 2019 ou com o que, poucos meses atrás, fazia ameaças não tão veladas ao STF. Ele mordeu a língua e sentou gostosamente no colo do centrão.

A questão que se coloca é se ele poderia ter adotado essa atitude desde o início, poupando o país de parte dos dissabores vividos no último ano e meio. Receio que não. O governo Bolsonaro é essencialmente reativo. Para mudar seu comportamento, foi preciso que o presidente sentisse o cheiro de encrencas grossas e visse que sua popularidade não depende só da base de extrema direita --a ajuda emergencial que a administração inicialmente não queria acabou sendo um presente dos céus.

Seja como for, é positivo que o governo esteja se entendendo com o Congresso em vez de demonizá-lo. A política, afinal, é um jogo de negociações e compromissos. Mas, ao contrário do que Bolsonaro e outras altas autoridades parecem desejar, é inadmissível que a Justiça entre em qualquer tipo de acordo, entendimento ou "détente".

O Judiciário só age quando provocado e, uma vez provocado, não pode deixar de agir. Será a desmoralização completa do sistema de Justiça se as apurações sobre Flávio Bolsonaro, que já reuniram uma enormidade de indícios de irregularidades, não virarem um processo e se os investigadores esquecerem os cheques de Queiroz para a primeira-dama.


Elio Gaspari: Puseram Michelle numa fria

Usando-se a marca da mulher do presidente atraem-se áulicos e espertalhões

A repórter Constança Rezende mostrou que o vírus dos áulicos capturou R$ 7,5 milhões que o frigorífico Marfrig doou ao governo em março para a compra de 100 mil testes rápidos para detectar o coronavírus. Testaram zero e a história dessa maluquice é uma viagem ao mundo da burocracia, da bajulação e das espertezas.

Aos fatos:

No dia 23 de março a Marfrig ofereceu o dinheiro à Casa Civil da Presidência da República.

A primeira encrenca. Dias depois o Itaú-Unibanco fez o certo. Anunciou a doação de R$ 1 bilhão para o combate à pandemia sem colocar um só tostão na máquina do governo. Bolsonaro dizia que “brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”.

No dia 20 de maio a Casa Civil informou que o dinheiro seria usado “com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”. Levaram dois meses para processar a informação. Já haviam morrido 18.959 pessoas. O ministro Paulo Guedes dizia que tinha um amigo inglês capaz de fornecer 40 milhões de testes por mês ao Brasil.

Passaram maio e junho. A 1º de julho a Casa Civil mudou de ideia e perguntou à Marfig se o dinheiro dos testes podia ser usado no projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao programa Pátria Voluntária, de Michelle Bolsonaro, mulher do presidente. Diante de tantos nomes bonitos, quem seria capaz de dizer não? A essa altura já tinham morrido 60.194 pessoas.

Juntaram-se dois erros. Num, o dinheiro iria sabe-se lá para onde. No segundo, caiu na velha cumbuca das obras assistenciais da mulher do presidente. Salvo no Comunidade Solidária de Ruth Cardoso, elas quase sempre foram uma fábrica de encrencas. Geridas por áulicos, apurrinharam as vidas de Maria Thereza Goulart e de Rosane Collor de Mello.

O dinheiro da Marfrig foi doado para a compra de testes, mas os çábios expandiram o alcance. Iria também para medicamentos, comida ou material de limpeza. Qualquer coisa, enfim. A Associação de Missões Transculturais Brasileiras, outro nome bonito, recebeu R$ 240 mil. No seu endereço funcionava um restaurante, mas seu presidente informa que, por ser uma associação, “só tem endereço fiscal”. Fica combinado assim.

Marquetagens e manobras burocráticas puseram Michelle Bolsonaro numa fria. Ela, como acontecia com Maria Thereza Goulart e Rosane Collor de Mello, não administra o dinheiro dos programas a que empresta seu nome. Usando-se a marca da mulher do presidente atraem-se áulicos e espertalhões. Ao final a conta vai para a senhora.

A Casa Civil informa que só a Fundação Banco do Brasil sabe o destino exato dos R$ 7,5 milhões da Marfrig. Se o dinheiro não serviu para testar pessoas, o caso pode servir para testar a capacidade do governo e do Banco do Brasil de dizer que aconteceu com o ervanário. O Itaú-Unibanco sabe para onde foi cada centavo do bilhão que doou.

UM GRANDE REPUBLICANO

Acaba de sair nos Estados Unidos o livro “The Man Who Ran Washington” (“O Homem que Mandou em Washington - A Vida e os Tempos de James Baker III”). Ele comandou as campanhas de três presidentes republicanos. Foi chefe da Casa Civil de Ronald Reagan e George Bush 1º, secretário de Estado e do Tesouro.

Junto com seu parceiro de duplas de tênis Bush 1º, administrou a diplomacia americana durante o colapso da União Soviética e a reunificação da Alemanha. Se isso fosse pouco, articulou a equipe de advogados que garantiu a presidência dos Estados Unidos para Bush 2º. Nela incluiu John Roberts, atual presidente da Corte Suprema.

Nascido numa família de advogados texanos, James Baker foi criado no conforto. Para quem viu as baixarias de Donald Trump no debate de terça-feira, sua vida mostra que existem conservadores e republicanos decentes.

A única eleição que disputou mostra quem ele era. Seus marqueteiros mostraram-lhe que o adversário deixara em liberdade um criminoso que mais tarde mataria duas pessoas. Baker recusou o tema. Ele achou que a acusação seria pessoal. Perdeu a eleição.

O autor do livro é o jornalista Peter Baker, sem parentesco com o biografado. A fábrica que produzia conservadores craques como Bush 1º e James Baker está temporariamente fechada. Aos 90 anos, leva a vida em Houston, caçando e pescando.


Ricardo Noblat: Bolsonaro assiste indiferente ao tiro que Michelle deu no próprio pé

Ele tem medo de quê?

O vídeo com a música “Micheque”, da banda de rock Detonautas, não parecia destinado a virar um campeão de audiência no Youtube quando ali foi postado no último dia 4.

De autoria de Tico Santa Cruz, vocalista da banda, a letra da música foi inspirada pela descoberta de que Fabrício Queiroz depositou 89 mil reais na conta de Michelle Bolsonaro.

Mas aí, na quinta-feira dia 25, a primeira-dama prestou queixa na Delegacia de Crimes Eletrônicos do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), em São Paulo.

Ela quer que sejam processados por calúnia, injúria e difamação todos os que passaram a chamá-la de “Micheque” nas redes sociais, inclusive os roqueiros da banda. Resultado?

Foi um tiro no pé. Até a quinta-feira, a sátira dos Detonautas somava quase 700 mil visualizações. No início desta madrugada, ultrapassou a marca de 1 milhão e 330 mil. Um sucesso!

Não foi a música que colou em Michelle o apelido de “Micheque”. O apelido foi replicado quase 9 milhões de vezes no Facebook, Twitter e Instagram entre 22 de agosto e 21 de setembro.

A banda apenas surfou na onda e se deu bem. O que espanta é que ninguém no governo, nem mesmo o presidente Jair Bolsonaro, tenha aconselhado Michelle a não fazer o que fez.

A ira da primeira-dama é justa. Ela nada teve a ver com o dinheiro depositado em sua conta. Foi usada. Ao que tudo indica, o dinheiro era um negócio particular entre Queiroz e seu marido.

Bolsonaro poderia ter poupado a mulher do constrangimento a que se vê exposta. Por que não se apressou em esclarecer o motivo pelo qual Queiroz depositou 89 mil reais na conta dela?

Que tipo de vantagem política imagina extrair da iniciativa que teve Michelle de procurar a polícia? Por que insiste em permanecer calado? Está com medo do quê?


El País: As mulheres do poderoso clã Bolsonaro

A atual esposa e as duas ex do presidente compõem uma extensa família cujo lema poderia ser “política (ou poder) acima de tudo”. Investigações sobre Queiroz rondam primeira-dama

Embora o núcleo duro do clã Bolsonaro seja claramente masculino, ele também inclui mulheres, as três com quem o presidente compartilhou sua vida, as mães de seus filhos. Por motivos diferentes, elas também são notícia. A atual esposa, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, de 38 anos, protagonizou o fenômeno viral da semana por conta de um dinheiro de origem suspeita que recebeu de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro. A segunda mulher, Ana Cristina Valle, uma advogada de 53 anos, também sob suspeita por esse mesmo caso de desvio de dinheiro público. E a primeira, Rogéria Nantes Nunes Braga, de 65 anos, mãe dos três filhos mais velhos do mandatário, os três políticos profissionais com vários mandatos legislativos nas costas, cogita disputar as próximas eleições municipais por uma vaga na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.

Juntas, compõem uma árvore genealógica complexa, uma família com vários ramos cujo lema poderia ser “política (ou o poder) acima de tudo”, parafraseando seu lema de Governo, “Brasil a cima de tudo, Deus acima de todos”. Os laços −incluindo os trabalhistas e políticos− sobrevivem às rupturas sentimentais. Desde que se casou pela primeira vez, em 1978, Jair Bolsonaro nunca chegou a ficar um ano solteiro.

Formou uma dessas famílias cada vez mais comuns, mas que pouco tem a ver com a família clássica apregoada pelas Igrejas evangélicas que tantas alegrias lhe deram em forma de votos. Cinco filhos de três casamentos, exatamente como seu admirado Donald Trump.

Michelle Bolsonaro, em setembro, num evento em Brasília.
Michelle Bolsonaro, em setembro, num evento em Brasília. ALAN SANTOS / PR

A primeira-dama do Brasil é uma mulher discreta quase três décadas mais jovem que o presidente. Evangélica, mãe da única filha de Bolsonaro, Laura ―a menina por quem esse presidente machista baba. Conheceram-se no Congresso quando Michelle era secretária de outro deputado. Às vezes ela participa de algum ato governamental de perfil social ou acompanha seu marido, mas sempre em segundo plano. Raramente fala em público. Foi vista usando máscara antes que fosse obrigatório, nada a ver com ele, sempre relutante. E, assim como ele e vários ministros, acaba de superar o coronavírus sem consequências graves.

Uma ameaça explícita de Bolsonaro a um jornalista se voltou como um bumerangue contra ele na última semana, embora sua esposa é que tenha sido colocada sob os holofotes. No domingo passado, um repórter perguntou ao presidente sobre umas transferências suspeitas de um amigo da família preso por corrupção, e Bolsonaro lhe respondeu com uma frase inadequada para um chefe de Estado, mas que não destoa de seu histórico de grosserias: “Tenho vontade de encher tua boca de porrada”. Nas horas seguintes, mais de um milhão de tuiteiros o bombardearam com a pergunta que o deixou nervoso e ficou sem resposta: “Presidente @JairBolsonaro, por que sua esposa Michelle recebeu 89.000 reais de Fabrício Queiroz?”. Essa quantia foi depositada na conta da primeira-dama, como descobriu a polícia. A pergunta continua sem resposta. Michelle também não abriu a boca.

É um caso complicado, coisa que no Brasil não é incomum. A polícia suspeita que o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, administrava com Queiroz, seu faz-tudo, um sistema para ficar fraudulentamente com parte dos salários de assessores de seu gabinete, quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. E é aí que aparece a conexão com a segunda esposa de Jair Bolsonaro, a mãe de Renan, o único filho que não está na política. Aos 22 anos, ele estuda direito. Embora tenham se separado há mais de uma década, Ana Cristina Valle −que não usa o sobrenome de seu ex− colocou parentes como funcionários nos escritórios legislativos de Flávio e de seu irmão Carlos, familiares que agora estão sendo investigados pela polícia por repassar ao chefe parte de seus salários, uma prática conhecida como “rachadinha”.PUBLICIDADE

Jair Bolsonaro, Renan Bolsonaro e Ana Cristina Valle, em uma imagem compartilhada nas redes sociais da ex-esposa.
Jair Bolsonaro, Renan Bolsonaro e Ana Cristina Valle, em uma imagem compartilhada nas redes sociais da ex-esposa. FB CRISTINA BOLSONARO

O Bolsonaro pai tem conseguido manter boas relações com suas ex-esposas. As duas saíram em sua defesa quando a ocasião exigiu e pediram votos para ele. Isso também não causa muita surpresa se olhamos para os Bolsonaro mais como uma marca ou como uma empresa.

O presidente foi militar antes de iniciar uma longa e insignificante carreira de deputado enquanto ia colocando sua prole na política. A jogada funcionou. Tem cada um dos filhos mais velhos colocado em uma casa legislativa. Flávio, 39 anos, é senador, o calcanhar de aquiles de uma família que fez da luta contra a corrupção sua grande bandeira política. Carlos, 37 anos, é vereador no Rio. E Eduardo, de 36, deputado federal. Seu pai os defende com unhas e dentes.

Rogéria Nantes Nunes Braga, primeira esposa de Bolsonaro, com o filho Eduardo.
Rogéria Nantes Nunes Braga, primeira esposa de Bolsonaro, com o filho Eduardo.FB ROGÉRIA BOLSONARO

Dizem que Jair Bolsonaro tem mais instinto que inteligência. O fato é que, depois de um ano e meio no poder, com uma trajetória repleta de escândalos, sua popularidade está mais alta que nunca. Escrúpulos, certamente, não lhe sobram. Quando se separou de Rogéria após uma década de casamento, Bolsonaro fez com que Carlos, então com apenas 17 anos, concorresse contra ela nas eleições municipais, para que não fosse reeleita vereadora. O jovem obteve três vezes mais votos que sua mãe e ficou com a cadeira na Câmara do Rio, que ainda ocupa. Está em seu quinto mandato. Agora Rogéria aspira a reconquistar o cargo no Rio, nas eleições municipais de novembro. Seus planos de concorrer como vice na chapa do prefeito Marcelo Crivella, um pastor evangélico, esfriaram, mas quem sabe, ainda faltam três meses.