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Michel França: Pobreza estrutural

Existe vasta literatura voltada para compreender os mecanismos que retroalimentam a pobreza. Com o intuito de enfrentar esse desafio, diversas iniciativas e políticas públicas têm sido propostas e adotadas. Na economia, epidemiologia e psicologia têm ampliado a discussão em torno dos potenciais efeitos positivos de investimentos na primeira infância e na juventude.

Durante esse período da vida, são aprendidas habilidades que influenciam os resultados alcançados na idade adulta. Considerando o contexto americano, estudos empíricos mostraram que o ambiente em que crianças e jovens estão inseridos consegue explicar uma parcela significativa das condições de saúde, desempenho educacional, engajamentos sociais e envolvimento futuro em atividades criminais.

Além do impacto social, também existem desdobramentos econômicos relevantes. Estima-se que cerca de 50% da variabilidade dos ganhos ao longo da vida entre as pessoas poderia ser explicada pelas habilidades desenvolvidas até os 18 anos de idade (“The economics of human development and social mobility”, 2014).

No entanto, construir essas habilidades não é algo trivial. Requer considerável esforço e políticas públicas bem orientadas. Existem inúmeros fatores que atuam conjuntamente no processo de formação de uma pessoa.

Um deles é a influência da família. Sabe-se que há uma expressiva correlação entre a renda domiciliar e o desempenho de um indivíduo. Isso ocorre porque a renda está associada a várias características que influenciam diretamente o progresso individual.

A literatura mostra, por exemplo, que crianças que vivem em ambientes desfavorecidos vão entrar em contato com um vocabulário significativamente menor, e isso leva a pior rendimento escolar.

Os pais, que podem ser considerados os primeiros professores de um indivíduo, costumam apresentar baixo conhecimento formal para transmitir a seus descendentes. Além disso, famílias carentes tendem a encorajar menos as crianças no seu processo de aprendizagem.

Possivelmente, o círculo de amizades dessas crianças será formado por pessoas que apresentam baixo nível educacional. Desse modo, o potencial aprendizado derivado das interações humanas também fica comprometido.

Isso tende a fazer com que transferências irrestritas de renda apresentem fraco efeito no processo de desenvolvimento das habilidades de um indivíduo. Deve-se pontuar que as políticas de transferências de renda desempenham um importante papel na suavização das restrições derivadas da pobreza. Entretanto, também é necessário realizar intervenções que ajudem a corrigir outras distorções sociais geradas pelos locais de nascimento.

Nesse cenário, estudos empíricos têm encontrado evidências de que intervenções voltadas para a primeira infância e juventude apresentam significativo potencial de ajudar a quebrar o ciclo de perpetuação da pobreza.

No caso dos Estados Unidos, iniciativas bem-sucedidas conseguiram impactar positivamente o desenvolvimento cognitivo de crianças e melhoraram as capacidades não cognitivas de adolescentes.

Simples programas de mentoria, por exemplo, têm significativo potencial de fornecer informações valiosas para os jovens desfavorecidos, ajudando, assim, a fazer melhores escolhas.

Sem uma intervenção profunda e organizada do Estado, é difícil imaginar que conseguiremos vencer a pobreza estrutural, pois existem muitos canais pelos quais o status socioeconômico se reproduz entre as gerações.

O texto é uma homenagem à música “Não é Sério”, interpretada por Charlie Brown Jr. e Negra Li.

*Michael França é doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/michael-franca/2021/05/pobreza-estrutural.shtml


Michael França: O que a decadência do Brasil tem em comum com a do futebol?

Para um país que sonhava com a série A das economias, a série B já é uma dura realidade

Final da Copa de 2002, 33 minutos do segundo tempo, Ronaldo Nazário, também conhecido como “Fenômeno”, marca o seu segundo gol sobre o badalado goleiro alemão. A vitória está selada. O Brasil consolida seu domínio no esporte mais popular do planeta e se torna pentacampeão mundial.

Ao mesmo tempo, atletas brasileiros como Kaká, Rivaldo, Ronaldinho e Ronaldo figuram regularmente entre os melhores do mundo. Para muitos, a seleção brasileira é considerada um orgulho nacional e o time a ser batido.

O tempo passa, o futebol evolui, e o Brasil fica para trás. Clubes ao redor do mundo passam por um profundo processo de profissionalização da gestão, modernização estrutural e altos investimentos na formação de jogadores.

Enquanto isso, no Brasil, quem dão as cartas são os cartolas. Muitos desses, além da incapacidade de gerar valor para o futebol nacional, se tornam especialistas em aumentar os seus patrimônios.

Regularmente, apostam em jogadores mais velhos em detrimento da juventude. Com a falta de transparência nos gastos, aumentam o endividamento dos seus clubes sem investir na melhoria da infraestrutura. A gestão ineficiente leva grandes clubes ao rebaixamento.

A limitação administrativa não fica somente nos clubes, mas perpassa todas as entidades ligadas ao futebol. Na falta de preparo, sempre vence o discurso barato.

Tudo tem custo, mas também benefício potencial. Essa afirmação, embora aparentemente trivial, parece não ser bem compreendida por muitos brasileiros. A Copa do Mundo de 2014 é simbólica nesse sentido.

Fora de campo, em um país com graves problemas sociais, a escolha é usar dinheiro público para construir estádios superfaturados para sediar o evento.

Dentro das quatros linhas, nas semifinais, a Alemanha dá uma aula de como a boa gestão pode impactar o futebol. Nesse contexto, as péssimas escolhas da sociedade brasileira ficam visíveis também dentro de campo.

Porém, isso não é suficiente para mudar a mentalidade dos brasileiros. Chega o intenso verão carioca de 2019 e, com ele, dez jovens jogadores morrem, queimados, em um incêndio enquanto dormem em contêineres no alojamento do centro de treinamento do Flamengo. Clube que tem obtido no período recente expressivos retornos financeiros com a venda de jovens revelações.

Em muitos aspectos, o futebol é uma caricatura especial da sociedade brasileira. Talvez uma das características mais marcantes seja a falta de apreço pelas futuras gerações.

Assim como no futebol, o desprezo do país com a formação dos seus cidadãos é evidenciado regularmente nas escolhas sociais. A pandemia ajuda a ilustrar isto: bares abertos e escolas fechadas. Com isso, Brasil se tornou um dos países em que as crianças passaram mais tempo sem aulas presenciais.

O descompasso fica ainda mais claro quando se olha para as transferências públicas entre os grupos etários. Laura Muller Machado e Ricardo Paes de Barros chamam a atenção para isso e destacam um estudo da Cepal de 2014 que aponta que os idosos recebem cerca de seis vezes mais gasto público do que a juventude (“O legado de uma pandemia”, 2021).

A exclusão de talentos é outra caricatura nacional interessante. Curiosamente, os negros são bons só dentro de campo e, fora dele, o mundo do futebol é dominado pelos homens brancos.

Nesse cenário, a falta de uma gestão eficiente voltada para formação e a promoção de talentos afeta a produtividade da economia e, consequentemente, a competitividade.

Assim, para um país que sonhava jogar em grande estilo na série A das economias globais, a série B já é uma dura realidade. E, no ritmo que a deterioração está acontecendo, a série C não está distante.

O texto é uma homenagem à música “Brasil”, de Cazuza, George Israel e Nilo Romero.

*Michael França é doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo; foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper.