memórias

Nas entrelinhas: Traído por Garcia, situação de Doria é insustentável

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

Difundiu-se no Ocidente que a palavra Weiji significa crise e oportunidade em chinês, simultaneamente. Essa tradução é atribuída ao linguista norte-americano Benjamin Zimmer, num editorial de um jornal em língua inglesa para missionários na China, de 1938. Ganhou popularidade após um discurso antológico de John F. Kennedy, em Indianápolis, no dia 12 de abril de 1959. Desde então, integra o vocabulário otimista de políticos, consultores, economistas e executivos. A crise do PSDB seria, assim, uma oportunidade de refundação.

O sinólogo Victor H. Mair, da Universidade da Pensilvânia, porém, lembra que essa interpretação não é absoluta: enquanto wei significa “perigo, perigosos; causar perigo, ameaçar; risco; precário, precipitado; alto; medo, pavor, receio”, ji pode ter outros significados, como “ocasião apropriada, ponto crucial, momento incipiente, segredo, ardil”. Esse é o ponto em que se encontra a crise do PSDB, cuja cúpula resolveu descartar a candidatura do ex-governador João Doria, mas ainda não sabe como fazê-lo por acordo.

O presidente do PSDB, Bruno Araújo, não construiu uma saída negociada para Doria e percorreu um roteiro que esgarçou demais as relações dentro do partido, em razão de manobras, dissimulações e traições. A prévia realizada para escolher o candidato do PSDB, na qual o ex-governador paulista foi vencedor, revelou-se muito mais um ardil para afastá-lo do Palácio dos Bandeirantes do que um processo de escolha democrática, como fora concebido na origem.

Doria venceu as prévias com apoio dos que hoje o estão defenestrando da candidatura, depois de alijar da disputa o ex-governador gaúcho Eduardo Leite, que pleiteava a vaga de candidato a presidente da República.

Pela primeira vez em sua história, o PSDB não se apresenta como alternativa de poder, abdica de propor os rumos do país. Os bastidores da reunião de terça-feira da cúpula do PSDB, para a qual Doria não foi chamado, nem de longe se parecem com os encontros liderados por Franco Montoro, José Richa, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Euclides Scalco, Jaime Santana e outros fundadores da legenda.

Muitas vezes, eram almoços ou jantares frugais, nos quais a experiência política de alguns e as ideias iluministas de outros teciam uma praxis política inovadora para os padrões brasileiros, em busca de um projeto social-democrata que se plasmasse à realidade nacional. Esse PSDB não existe mais, está se acabando melancolicamente.

Naqueles encontros, os interesses do país, a lealdade e o compromisso entre seus líderes eram mais importantes do que as eventuais divergências sobre como levar adiante as ideias comuns. Hoje, o que está acontecendo não é a falta de consenso — é a falta de projeto mesmo. A transa política passou a ser o modus operandi do PSDB no Congresso.

Sua bancada mergulhou de cabeça no orçamento secreto do Centrão e está mais preocupada em aumentar a fatia no fundo eleitoral do que em construir uma alternativa de poder, que se contraponha ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao presidente Jair Bolsonaro, que hoje polarizam as eleições.

Falta combinar

No domingo passado, Rodrigo Garcia sugeriu a Doria que desistisse da candidatura e lhe comunicou que faria campanha em São Paulo sem sua companhia. Foi um xeque-mate na candidatura. Uma conversa como essa seria inimaginável entre Mario Covas e Geraldo Alckmin ou José Serra e Alberto Goldman, por exemplo.

Garcia é uma invenção de Doria, que cometeu o grave erro de terceirizar a política como governador e cuidar apenas da gestão administrativa e financeira de São Paulo, uma das causas de sua rejeição e da falta de apoio político.

Quando Doria descobriu que estava sendo sabotado pelo vice e ameaçou concorrer à reeleição, permanecendo no Palácio dos Bandeirantes, era tarde demais. Levou um ultimato dos aliados de Garcia, que ameaçaram até destitui-lo do cargo com um impeachment. Nunca houve um precedente desta ordem na política paulista. Agora, não existe a menor possibilidade de Doria manter sua candidatura, sem apoio de Garcia, que ocupa o vértice do sistema de poder interno do PSDB pela força do cargo.

Bruno Araújo é um operador político do governador paulista. Ontem, na reunião com os presidentes do Cidadania, Roberto Freire, e do PMDB, Baleia Rossi, desligou os aparelhos e decretou a morte cerebral do Doria candidato. Antes, bloqueou os recursos da pré-campanha e decidiu cobrar os R$ 12 milhões do fundo partidário que já foram gastos pelo ex-governador paulista para se movimentar e estruturar a pré-campanha.

Garcia também comunicou aos aliados que está fora da campanha de Doria, cujo apoio, agora, se restringe aos empresários amigos e a poucos deputados leais. O consenso secreto a que chegaram os protagonistas da candidatura única, que será submetido às direções partidárias e foi anunciado ontem, é um segredo de polichinelo: a pesquisa quantitativa e qualitativa feita sob encomenda para demover Doria apontou a senadora Simone Tebet (MDB-MS) como a candidata mais competitiva de centro, por ter menos rejeição e ser menos conhecida. Só falta combinar com os eleitores.

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Lembraivos de 1964 Não custa nada | Imagem: reprodução/Correio Braziliense

Nas entrelinhas: Lembrai-vos de 1964! Não custa nada

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

O título da coluna é um trocadilho com o título do livro de Ferdinando Carvalho sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado pela Biblioteca do Exército, em 1981. Antes, o general havia escrito duas obras sobre o mesmo tema, porém ficcionais: Os Sete Matizes do Rosa e Os Sete Matizes do Vermelho, ambos em 1977.

Àquela altura, a luta armada contra o regime militar havia sido dizimada, com seus lideres mortos, presos ou no exílio. O PCB estava quase completamente desbaratado e os remanescentes de seu Comitê Central, entre os quais Luiz Carlos Prestes e Giocondo Dias, viviam no exílio. Embora defendesse a via eleitoral como forma de luta principal pela redemocratização, um terço dos seus dirigentes fora assassinado e apenas meia dúzia permanecera no país, na mais profunda clandestinidade.

Entretanto, o que estava em curso era a abertura política, alargada e acelerada pelas sucessivas derrotas eleitorais do regime, cujo projeto de institucionalização como “democracia relativa” já havia fracassado. Batido nas eleições de 1974 e 1978, seria derrotado novamente em 1982, depois da anistia política que trouxera de volta os exilados e às ruas os prisioneiros políticos.

O general João Batista Figueiredo, cada vez mais enfraquecido na Presidência, era desafiado pelos porões do regime, em atentados terroristas cujo desfecho foi a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento e feriu um capitão do Exército ao seu lado. O artefato seria detonado no local onde se realizava um grande show artístico comemorativo do 1º de Maio, com milhares de estudantes e sindicalistas.

Ferdinando de Carvalho fez a cabeça de muitos militares hoje reformados e alguns jovens cadetes e oficiais que voltariam ao poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) — entre eles o ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota, o hoje general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.

A matéria prima dos livros é o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 7.098 (1964-1966), responsável por apurar as atividades do PCB no território nacional, que coordenou. Muito do que os militares e a direita ideológica brasileira, hoje, falam sobre a esquerda no Brasil são uma reprodução de suas teses, lançadas no começo dos anos 1980 como uma tentativa desesperada de impedir a redemocratização do país.

Memória

Domingo, recebi uma ligação do ex-deputado Marcelo Cerqueira, um dos líderes da campanha pela anistia, preocupado com a conjuntura política: “Estou me sentindo em 1963”. Diretor da UNE à época, Marcelo viveu intensamente o processo político que antecedeu o golpe militar de 1964. Emoldurada pela guerra fria, a vitória de João Goulart no plebiscito para restabelecer o presidencialismo derivou para a radicalização, cujo desfecho foi a destituição do presidente da República.

O comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, no qual Jango anunciou a decretação das reformas de base — que o Congresso havia rejeitado —, serviu apenas para acirrar ainda mais a crise, que desaguaria na sua destituição, em 31 de março daquele ano, com três navios da Marinha norte-americana ao largo do Espírito Santo, prontos para intervir.

Marcelo e o então presidente da UNE, José Serra, hoje senador do PSDB por São Paulo, estavam entre aqueles que tentaram jogar água fria na fogueira, como San Thiago Dantas. Os líderes estudantis chegaram a procurar o marechal Castelo Branco, que até então dizia defender a legalidade, nos esforços de apaziguamento. Mas a rota de colisão entre os militares e Jango já era irreversível. E a maioria da opinião pública acreditava que o país caminhava para o comunismo, o que não era verdade.

O problema era outro. O principal líder do PTB, o partido de Jango, o ex-governador gaúcho e deputado federal Leonel Brizola, queria ser candidato a presidente nas eleições convocadas para 1965, mas era inelegível por ser cunhado do presidente da República. Os candidatos favoritos eram o ex-presidente Juscelino Kubitschek (PSD) e o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN). JK era o candidato da conciliação, Lacerda o do confronto.

O líder comunista Luiz Carlos Prestes articulava a reeleição de Jango, em aliança com o PTB, o que provocou a ruptura da aliança com o PSD, que levara Juscelino ao poder em 1955.

Jango era um estancieiro gaúcho, de viés populista, formado no trabalhismo de Alberto Pasqualini e San Thiago Dantas. Não tinha nada de comunista. Se decidisse apoiar JK, mantendo a aliança de 1955, muito provavelmente não teria ocorrido o golpe militar. Considerado imbatível, Juscelino era visto como um retrocesso pela esquerda, o que foi um grave equívoco. O retrocesso era o golpe militar.

Com sinal trocado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas para a Presidência, também é visto como um retrocesso por amplos setores da sociedade. Bolsonaro tenta se aproveitar da situação para se manter no poder, mesmo que perca a reeleição, com uma narrativa que nos remete ao ambiente pré-golpe militar de 1964, na percepção daqueles que viveram aqueles momentos. Entretanto, os tempos são outros.

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Ricardo Noblat: Livro de general é um alerta sobre a fragilidade da democracia

Para que a história não se repita

Com seu livro de memórias recém-lançado pela Fundação Getúlio Vargas, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército entre 2015 e 2019, atirou numa coisa e acertou em outra.

Se ele pretendeu reforçar a ideia de que as Forças Armadas não se metem em assuntos políticos pelo menos desde o fim da ditadura militar de 64, conseguiu exatamente o contrário.

Em abril de 2018, às vésperas de o Supremo Tribunal Federal aceitar ou não um pedido de habeas-corpus que poderia libertar Lula preso em Curitiba, Villas Bôas postou no Twitter:

“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

À época foi dito que Villas Bôas apenas refletia o ânimo dos seus companheiros de farda. Antecipava-se a possíveis manifestações raivosas de subordinados. Não queria perder o controle da tropa.

Por isso ou por aquilo, intimidado, o Supremo negou o habeas-corpus por 6 votos contra 5 e manteve a prisão de réu condenado em segunda instância. Lula continuou encarcerado.

Foi o general, que é portador da ELA, doença degenerativa do sistema nervoso, que procurou a Fundação Getúlio Vargas interessado em dar seu depoimento para a posteridade.

E o fez ao longo de 13 horas, repartidas em cinco dias, em conversa amena conduzida pelo professor e pesquisador Celso de Castro, autor de diversos livros sobre a temática militar.

Castro deixou-o falar sem contestá-lo nenhuma vez e sem pedir maiores detalhes sobre os fatos relatados. É de supor, portanto, que o general só falou o que quis, conforme planejado.

Villas Bôas conta que a mensagem postada no Twitter de advertência ao Supremo não foi obra exclusivamente sua, mas também do Alto Comando do Exército.

“Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse”, diz Vilas Bôas. Não diz que “coisa” era, nem como ela poderia se manifestar. Uma rebelião? Uma tentativa de golpe?

Mas como, se o Exército e as demais armas são apolíticos como diz e repete o general ao longo do seu depoimento? Como, se são fielmente cumpridoras do papel que lhes reserva a Constituição?

A primeira versão da mensagem foi escrita por seu estafe e sob sua orientação, sendo submetida depois aos integrantes do Alto Comando do Exército residentes em Brasília.

Em seguida, ela foi transmitida aos demais comandantes de área para que a endossassem ou sugerissem ajustes. Recebidas as sugestões, a mensagem ganhou sua redação definitiva.

Jair Bolsonaro respirou aliviado quando leu a mensagem no Twitter. Era deputado federal e há pelo menos dois anos estava em campanha como aspirante a candidato a presidente

Neste governo, Villas Bôas, general da reserva, é assessor do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República. Ao empossá-lo, Bolsonaro emitiu todos os sinais de que lhe é grato.

Por quê? Talvez porque Villas Bôas respaldou sua candidatura à reboque de generais e de soldados que já o apoiavam. Cada quartel foi uma célula de Bolsonaro, e não será diferente em 2022.

O chefe das Forças Armadas, segundo a Constituição, é o presidente da República. É ele, e somente ele, quem em nome delas pode falar sobre temas políticos de repercussão geral.

Aos comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, cabe falar sobre assuntos administrativos e aqueles diretamente afeitos aos cargos que ocupam.

A fala de Villas Boas não foi a de um chefe que se dirige aos seus subordinados. Foi um pronunciamento em nome do Exército e a propósito do momento político que o país atravessava em 2018.

Não faltou provocação (“Quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras?”). Nem ameaça (O Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”).

Militar não é igual a civil. O que os distingue não é só a farda que um veste e o outro não. Militar tem acesso a armas pesadas, pilota brucutu, maneja tanques e é treinado para matar.

O que um deles fala, soa diferente do civil que diga o mesmo. Porque um tem a força capaz de pulverizar literalmente quem quer que seja. O outro, só a força da palavra.

Não é apenas a saúde dos brasileiros que está ameaçada pelo vírus que o governo Bolsonaro ignorou o quanto pôde. A saúde da democracia segue sob ameaça.