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Querem nos segregar, diz jovem com deficiência sobre decreto de Bolsonaro

Quando Manu Aguiar nasceu com paralisia cerebral, em 1993, o médico disse à mãe da menina que ela não iria falar e não ia andar

Letícia Mori / BBC News Brasil

Hoje aos 28 anos, Manu não só fala e anda como faz faculdade na Universidade Federal do Paraná. A jovem de Ranchinhos, no litoral paranaense, diz que estudar em escola comum, ao lado de todas as outras crianças (com ou sem deficiência), foi essencial para chegar onde chegou.

Antes de ser matriculada no ensino regular, no entanto, ela estudou em uma escola especial para pessoas com deficiência, na infância.

"Eu tinha 5 anos quando a professora disse para mim mãe que eu tinha 'possibilidade de progredir' e a aconselhou a me matricular em uma escola regular", contra Manu. "Ela disse que se eu ficasse na escola especial, não iria avançar."

Manu considera importante mostrar sua perspectiva em um momento em que um decreto presidencial sobre educação especial está prestes a ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF).

A jovem Manu Aguiar
Manu Aguiar diz que estudar em escola regular foi essencial para sua formação. Foto: Arquivo pessoal

O decreto de Jair Bolsonaro, que institui a política nacional de educação para alunos com deficiência, entrou em vigor em outubro do ano passado, mas foi questionado na Justiça por uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ou seja, uma ação que argumenta que o decreto é inconstitucional.

No fim de agosto, o STF fez uma audiência pública para ouvir a sociedade sobre a questão, mas ainda não há data marcada para a votação em plenário. O decreto é considerado um retrocesso por grupos de pessoas com deficiência e por especialistas em educação.

Ele promove a criação de escolas especiais para pessoas com deficiência que "não se beneficiam" da educação regular, ou seja, um local onde elas não teriam convivência com alunos sem deficiência, que frequentam as escolas regulares.

"O decreto vai na contramão de todo um esforço nacional que é feito há 20 anos no Brasil para garantir o direito de crianças com deficiência à inclusão. A gente precisa que as crianças e adolescentes sejam incluídos em todos os ambientes, especialmente as escolas", afirma Pedro Hartung, presidente do Instituto Alana, entidade de defesa dos direitos das crianças que é amicus curiae na ação do STF.

Na semana passada, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que estudantes com deficiência "atrapalham o aprendizado de outros alunos". Ao se defender de inúmeras críticas que recebeu após a fala, Ribeiro disse à rádio Jovem Pan que foi "infeliz na escolha do termo", mas não recuou na sua posição.

Incentivar as escolas especiais seria voltar às normas instituídas em 1994 e que vigoraram até 2008, quando uma nova política passou a estabelecer como norma a integração de pessoas com deficiência no ambiente escolar comum.

O decreto de Bolsonaro não proíbe a matrícula em escolas regulares, mas na prática, é isso que vai acabar acontecendo, argumenta Manu. "Vai chegar um estudante com deficiência na escola e vão dizer que não dá para incluir, vão mandar para a especial."

Hartung afirma também que a criação de instituições especiais, além de segregar, retira recursos para adaptação de escolas regulares. "O orçamento para isso é limitado. É preciso que no próprio ambiente escolar a criança possa ter acesso a políticas inclusivas, aulas no contraturno, apoio. Se todo o recurso vai para a criação de escolas especiais, as escolas regulares param de receber melhorias."

Jonatan Silva
Jonatan estudou em escolas regulares e diz que experiência foi essencial. Foto: Arquivo pessoal

Matrículas negadas

Manu Aguiar teme que aconteça com os alunos com deficiência o que aconteceu com ela quando criança: teve a matrícula negada em diversas escolas regulares.

"Teve muita negação de matrícula aqui na época, diziam para colocar na escola especial. Minha mãe insistiu muito, foi de escola em escola pedindo, até que teve uma diretora que falou 'faz a matrícula e a gente vê o que faz depois'", conta Manu, que estudou a vida toda em escolas públicas.

A jovem é totalmente contra o decreto de Bolsonaro, e diz que é preciso investir na preparação das escolas regulares para receber alunos com deficiência, não promover a separação.

"Não temos menos valor para sermos segregados assim", diz Manu. "É preciso preparar o ensino regular, dar meios para os professores promoverem a inclusão e combater o preconceito", afirma.

Crescendo em uma época em que havia pouca conscientização sobre preconceito contra pessoas com deficiência (o chamado capacitismo), Manu conta que sofreu muito preconceito na escola comum, especialmente na adolescência, quando a escola a separou da turma onde ela tinha amigos e a menina sofreu bullying agressivo.

Inclusão é benéfica para todas as crianças, com ou sem deficiência, dizem educadores. Foto: UNICEF/BRZ/Ratão Diniz

"Eu recebia ameaças no MSN (antigo aplicativo de troca de mensagens), virei chacota. As pessoas falavam para os meninos: 'Você é muito feio, vai namorar com a Manu'. O pior momento foi quando uma menina colocou o pé na minha frente para eu cair no corredor", conta ela.

A paralisia cerebral faz com que Manu tenha dificuldade de mobilidade, e na época dos prédios não tinham rampas e instalações acessíveis. Ela também se cansava muito em escrever. "Meus pais compraram um notebook, porque na digitação eu era rápida. E parecia que tinham parcelado uma casa, de tão caro que era na época", conta.

A escola também foi se adaptando aos poucos, e dando os apoios previstos em lei, como um professor de apoio que a acompanhava fora do horário das aulas comuns.

Apesar de todos os obstáculos que enfrentou, Manu diz que não trocaria o ensino na escola regular pela especial. "Se há capacitismo, você tem que combater, educar, não segregar as pessoas que sofrem esse preconceito. Separar não é a solução", afirma.

Hoje, mais de 90% dos alunos com deficiência estão matriculados em escolas regulares. Foto: Rodemarques Abreu/SEMED

Chegando à universidade

Manu afirma que foi essencial ter o mesmo conteúdo que as pessoas sem deficiência e também a interação com todo mundo.

"O mundo é diverso e a gente não pode ficar numa caixa, numa bolha. Eu tirei nota baixa, tive que fazer recuperação, tinha os apoios que a lei prevê, aprendi a lidar com as adversidades. Só cheguei na universidade porque frequentei uma escola regular", diz a jovem.

"Hoje estou terminando a licenciatura em geografia e a gente pesquisa a área de educação inclusiva. As pessoas que continuaram na instituição especial onde eu estudei continuam lá até hoje", diz ela.

"As estatísticas estão aí para mostrar que, entre os estudantes com deficiência na universidade, raríssimos são os que vêm de escola especial. É um resultado que mostra que a educação inclusiva é o caminho."

O estudante universitário Jonatan Silva de Jesus, de 25 anos, também cresceu na época da política das escolas especiais (entre 1994 e 2008) e conta que só estudou em escolas regulares porque "muita gente bateu o pé".

"Foi graças à minha avó, que insistiu. E eu também, porque eu queria ir para a mesma escola dos meus primos", diz Jonatan, que tem paralisia cerebral.

"Na época não tinha inclusão, você não via deficientes na rua. Quando me matricularam, a escola falou 'é por sua conta e risco'", diz ele.

O jovem também acredita que não teria chegado à universidade se não fosse a educação que recebeu na escola regular. Hoje ele cursa educação física na faculdade, estuda inclusão e faz academia. "Treino há cinco anos, mas demorou 4 anos para uma academia me aceitar", diz ele.

"Muita gente recusa, tem medo que eu me machuque. Mas essa desculpa é muito ruim. Não tem adaptação? Então faz a adaptação", afirma.

Já na escola, disse, ele teve sorte ao encontrar uma professora que, embora não estivesse totalmente preparada para a inclusão, fez de tudo para que isso acontecesse.

"Ela falou vamos: aprender todos juntos. Onde eu tinha dificuldade, recebia ajuda, outros alunos me perguntavam. Eu fui bolando junto com professores algumas alternativas", afirma o jovem de Santana do Parnaíba, no interior de São Paulo.

"Ela procurava até atividades na educação física para eu fazer parte também. Me senti acolhido. Meus amigos também abraçaram a ideia e eu fui mostrando para eles também a minha realidade. Se eu tivesse ido para uma escola especial, ia viver numa bolha", afirma.

Jonatan diz que "até entende" pais que defendem a criação das escolas especiais. "Eu entendo, os pais querem proteger. E tem que proteger sim, mas não colocar em uma bolha de vidro e não deixar viver."

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58400488


‘Nós não queremos o inclusivismo’, diz ministro da Educação de Bolsonaro

Milton Ribeiro voltou a defender que algumas crianças com deficiência fiquem em 'classes especiais' no ensino público

Gabriel Shinohara / O Globo

BRASÍLIA — O ministro da Educação, Milton Ribeiro, voltou a defender que algumas crianças com deficiência não estudem na mesma sala de outros alunos. Segundo ele, o governo não quer “inclusivismo” e argumentou que certos graus e tipos de deficiência necessitam de classes especiais.

— Nós não queremos o inclusivismo, criticam essa minha terminologia, mas é essa mesmo que eu continuo a usar — disse em entrevista para a rádio Jovem Pan nesta segunda-feira.

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Segundo o ministro, 12% das crianças com deficiência nas escolas públicas têm um grau que “impede dela ter o convívio” dentro da sala de aula. Ele então comparou essas crianças com atletas paralímpicos.

— Isso é interessante, porque esse diagnóstico de limitações que as pessoas possuem é um diagnóstico feito pela sociedade. Estamos no meio das paralimpíadas, nós descobrimos que tem pessoas que têm limitações físicas, no caso, que não podem competir com outras que não tem. Nesse paralelismo, embora com grandezas diferentes, foi que eu me referia a esses 11,9%, 12% — explicou.

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De acordo com o ministro, entre essa porcentagem de estudantes que não teriam condições de acompanhar estão cegos, surdos e alguns graus de autismo.

— Dentro desses 12% temos algumas crianças que têm problemas de visão, elas não podem estar na mesma classe. Imagina uma professora de geografia: “aqui é o rio Amazonas” para uma criança que tem deficiência visual, são elas também. Tem outras que são surdas, por exemplo, tem uma gama de crianças, tem alguns graus de autismo e tem um grupo que a gente esquece que são os superdotados, que também estão nesse grupo, que precisam de uma atenção especial  — disse.

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O ministro ressaltou que a escola pública não pode recusar uma criança com deficiência e disse que a escolha continua sendo dos pais.

— A escolha quem faz é o pai e mãe, é ele quem coloca o filho lá, nenhum diretor tem autoridade de negar a matricula de uma pessoa que tem deficiência em uma escola pública,  elas não podem fazer isso, não é isso que estou falando.  Ele vai caminhar e vai poder entender, um pai que tenha condição de perceber que seu filho tem limitações e que aquilo não vai ajudá-lo de maneira alguma, então ele vai preferir colocar nessas classes especiais — apontou.

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As falas ocorrem após o Ministério da Educação (MEC) ter divulgado uma nota, na quinta-feira (19), para reafirmar o pedido de desculpas do ministro por declarar, em entrevista no dia 9 de agosto ao programa Sem Censura, da TV Brasil, que alunos com deficiência "atrapalham" em sala de aula.

Na terça-feira (17), Ribeiro havia tentado explicá-la durante uma palestra no Rio, mas repetiu que algumas crianças com deficiência "criam dificuldades" em sala de aula. As declarações foram criticadas por entidades de direitos de pessoas com deficiência.

Nesta segunda-feira, Ribeiro voltou a admitir que cometeu um erro quando falou que as crianças com deficiência “atrapalhavam” o aprendizado de outros estudantes, mas disse que um prejudica o desenvolvimento do outro.

— Não deixando de lado os deficientes, mas olhando também os outros 88% dos alunos que eventualmente podem ter também… Eu, quando usei a palavra atrapalhar eu fui infeliz, eu disse isso, mas usando com todo cuidado, vou fazer novamente, se usei a palavra atrapalhar, um atrapalha o outro. Nesse sentido de caminhar na educação. A palavra atrapalhar não é a melhor, a gente se equivoca, mas um prejudica o progresso do outro.

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E completou:

— A criança com deficiência tem que ter um olhar e um cuidado especial e é isso que o nosso governo quer ter, nosso governo quer ter um cuidado especial para com a criança com deficiência — finalizou o ministro.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/nos-nao-queremos-inclusivismo-diz-ministro-da-educacao-sobre-criancas-com-deficiencia-nas-escolas-25167927


Ribeiro, do MEC, diz que alunos com deficiência 'atrapalham' demais estudantes

Milton Ribeiro afirmou que crianças com deficiências "atrapalhavam" alunos sem a mesma condição

Nathalia Galvani / Correio Braziliense

Uma nova declaração polêmica do ministro da Educação Milton Ribeiro está repercutindo nas redes sociais. Em entrevista ao programa 'Sem Censura', da TV Brasil, na última segunda-feira (9/8), o político disse que crianças com deficiências "atrapalhavam" os demais alunos sem a mesma condição quando colocadas na mesma sala de aula.

“O que é inclusivismo? A criança com deficiência é colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia, ela ‘atrapalhava’ — entre aspas, essa palavra eu falo com muito cuidado – ela atrapalhava o aprendizado dos outros, porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento para dar a ela, atenção especial”, declarou o ministro.

Outras declarações feitas por Milton Ribeiro na mesma entrevista também causaram irritação em parte da população. Entre elas, o ministro disse que a "universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade".

"Tenho muito engenheiro ou advogado dirigindo Uber porque não consegue colocação devida. Se fosse um técnico de informática, conseguiria emprego, porque tem uma demanda muito grande", completou.

Além disso, ele também afirmou que reitores das universidades federais não podem ser 'esquerdistas, nem lulistas'. “Alguns optaram por visões de mundo socialistas. Não precisa ser bolsonarista. Mas não pode ser esquerdidas, nem lulista. Reitor tem que cuidar da educação e ponto final. E respeitar todos que pensam diferente. As universidades federais não podem se tornar comitê político, nem direita, muito menos de esquerda”, disse.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/2021/08/4944022-ministro-da-educacao-alunos-com-deficiencia-atrapalham.html


O governo retarda a internet nas escolas

O Senado aprovou um projeto que mandava o governo aplicar R$ 3,5 bilhões para assegurar o acesso dos alunos de escolas públicas à internet. Bolsonaro vetou a iniciativa

Elio Gaspari / O Globo

Um governo pode ter uma perna no atraso, outra na malandragem e a terceira em otras cositas más. O de Bolsonaro tem todas.

O Senado aprovou um projeto da Câmara que mandava o governo aplicar R$ 3,5 bilhões do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o FUST, para assegurar o acesso dos alunos de escolas públicas à internet. Bolsonaro vetou a iniciativa. Era o jogo jogado, pois é atribuição do presidente da República vetar decisões do Congresso. Jogando o jogo, o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro, e a lei foi promulgada. Sempre dentro do quadrado da Constituição, o governo recorreu ao Supremo Tribunal Federal. Perdeu.

Até aí, movia-se a perna do atraso de um governo que reluta em aplicar o dinheiro do FUST para levar a internet às escolas públicas durante uma pandemia. (A rede privada de ensino, quando teve meios, adaptou-se.)

Na semana passada, moveu-se a perna da malandragem. Um dia antes do fim do prazo dado pelo Supremo para que o governo se mexesse, Bolsonaro baixou uma Medida Provisória adiando o investimento de R$ 3,5 bilhões. Chutou a bola para cima, pois a MP vigorará por 120 dias, a menos que seja aceita pelo Congresso.

Passou-se quase um ano, e as escolas públicas não receberam um tostão. Alguém poderia argumentar que o governo tenta segurar as despesas da Viúva e uma conta de R$ 3,5 bilhões é salgada. Nessa hora, olhando-se direito, vê-se a terceira perna do governo.

Em dezembro de 2019 o repórter Aguirre Talento mostrou que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) havia soltado um edital que previa um gasto de R$ 3 bilhões para comprar equipamentos eletrônicos para a rede pública de ensino. Em tese, era uma iniciativa que melhoraria a conexão dos colégios com a internet. Na prática, a Controladoria-Geral da União viu que havia otras cositas más. Uma só escola de Minas Gerais receberia 30.030 laptops para seus 255 alunos (117,76 para cada um). A gracinha do esbanjamento repetia-se em 355 outros colégios. Além disso, o edital parecia viciado para beneficiar fornecedores afortunados.

Passou-se mais de um ano da exposição do jabuti, três novos ministros ocuparam o MEC, o FNDE trocou várias vezes de presidente, e até hoje não se sabe quem botou o jabuti no edital.

Azararam Costa e Silva

Um sábio que pesquisa a história do acidente vascular cerebral do presidente Costa em Silva suspeitava há tempo que ele morreu em dezembro de 1969, entre outros fatores, pela depressão em que caiu porque era tratado como uma criança. As pessoas falavam com ele como se a sua percepção tivesse sido lesada, quando tinha perdido movimentos e a capacidade de se expressar, mas sabia o que estava acontecendo.

A sabedoria convencional dizia que o AVC, uma vez iniciado, teria uma progressão inevitável. Assim, durante quatro dias, ele perdeu progressivamente a fala e os movimentos do lado direito do corpo. Ele teve uma isquemia, que é uma obstrução da circulação sanguínea no cérebro. (O derrame é o contrário, com o rompimento de um vaso.)

Hoje, uma vez diagnosticadas a tempo, as isquemias cerebrais podem ser tratadas com anticoagulantes.

Um artigo científico informa que em 1958, onze anos antes do AVC de Costa e Silva, o neurologista canadense Miller Fisher, em Boston, tratava isquemias com anticoagulantes. No Brasil, o fatalismo da progressão inevitável foi aceito ainda por muitos anos.

O presidente perdeu momentaneamente a fala no dia 27 de agosto. Recuperou-a, e voltou a perdê-la de vez na madrugada do dia 29, quando ainda conseguiu se expressar por meio de um bilhete.

O pelotão palaciano comandava o major médico que cuidava do paciente e levou-o para o Rio. Lá, ele foi examinado pelo neurologista Abraham Ackerman. Era tarde.

No dia seguinte, o marechal perdeu a capacidade de se expressar.

Se Costa e Silva estivesse em Boston no dia 27, seu destino teria sido outro.

Como ele estava em Pindorama, o pelotão palaciano blindou-o, escondeu a gravidade do caso, depôs o vice-presidente Pedro Aleixo e entregou o poder a uma junta militar composta pelos três ministros militares. Ela governou o país por um mês. Em 1988, o deputado Ulysses Guimarães chamou-os publicamente de “Os Três Patetas”. Quinze anos antes, o general Ernesto Geisel usava a mesma expressão, privadamente.

Alexandre e Barroso

Bolsonaro dá a impressão de que está metido numa briga com o ministro Luís Roberto Barroso, mas sabe que sua encrenca é com o ministro Alexandre de Moraes.

Barroso chegou ao Supremo vindo da sua banca de advocacia. A carreira de Moraes foi outra: ele veio do Ministério Público e foi secretário de Segurança de São Paulo.

Um aprendeu a defender seus clientes. O outro aprendeu a baixar o chanfalho em quem viola a lei.

Paulo Bolsonaro

O professor Delfim Netto está bonzinho. Com 14,8 milhões de desempregados no portfólio, o ministro Paulo Guedes resolveu atacar o IBGE, dizendo que suas estatísticas ainda estão “na idade da pedra lascada”. Delfim defendeu a instituição e disse que torcia para que a fala de Guedes “tenha sido um infeliz lapso verbal”.

Não foi. Tratou-se de um caso de contágio bolsonarista, semelhante aos lances do “vagabundos” do STF de Abraham Weintraub, do “pária” de Ernesto Araújo e da “boiada” de Ricardo Salles.

Paulo Guedes é ministro da Economia há mais de dois anos e não notou que convivia com um IBGE de Flintstones. Pior: levou para a presidência do instituto a economista Susana Cordeiro Guerra, doutora pelo MIT, e deixou-a ir embora.

O golpe, em 1961

O Brasil era governado por um tatarana que armava um golpe. As fake news da época eram tenebrosas.

No dia 9 de agosto de 1961, Jânio Quadros pediu ao Conselho de Segurança Nacional que examinasse um material, “tendo em vista a reunião ministerial referente às Guianas”. Era urgente, pois Jânio via ali um “intenso trabalho autonomista ou de emancipação nacional, com a presença de fortes correntes de esquerda, algumas, reconhecidamente, comunistas”.

Na chefia do gabinete da Secretaria Geral do Conselho, o coronel Golbery do Couto e Silva colecionou os seguintes informes, “cujos graus de confiança ainda não foi possível avaliar”:

“Informe nº 5: Pelo barco de pesca Z-189 desembarcaram em Amaralina, BA, cerca de 22 pessoas, trazidas por um submarino desconhecido, ali observado nestes últimos dias, o desembarque ocorreu em fins de julho.”

“Informe nº 6: Durante o corrente ano chegaram ao Brasil cerca de dois mil comunistas, da China Vermelha, técnicos em guerrilhas”.

Aziz disse tudo

O senador Omar Aziz, presidente da CPI da Covid, disse tudo, ao duvidar do que dizia o tenente-coronel da reserva Marcelo Blanco, ex-integrante do pelotão levado pelo general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde:

“Aqui não tem otário”.


Fonte: O Globo

https://oglobo.globo.com/politica/o-governo-retarda-internet-nas-escolas-25145799


Eugênio Bucci: O cerco à universidade

No início do mês a Reitoria da Universidade de São Paulo (USP) recebeu uma representação em nome do procurador-geral da República, Augusto Aras. No documento, os advogados de Aras reclamam de textos publicados na imprensa e nas redes sociais por um professor de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes, que, na visão deles, ofenderiam o atual chefe do Ministério Público Federal. A peça jurídica dedica quatro de suas 11 páginas a discorrer sobre o curriculum vitae da autoridade que se declara ofendida; em seguida, enumera o que afirma serem acusações inverídicas; e, ao final, requer que o caso seja levado à Comissão de Ética da USP para as providências que julga devidas.

Com efeito, o professor Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e Ciência Política, embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, pesquisador reconhecido pelos pares em temas como Direito Constitucional, Poder Judiciário e autonomia acadêmica, tem feito críticas duras ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério Público. Suas colunas semanais no jornal Folha de S. Paulo e seus posts no Twitter alcançam leitores em audiências diversas. A democracia garante-lhe a liberdade de expressão. De outra parte, por óbvio, quem se sinta injustamente atacado tem o direito, também democrático, de buscar formas de reparação. Até aí, nada de novo sob o sol – ou nada de novo sob a treva que nos tem sido mais frequente.

Há algo de impróprio, no entanto, na representação feita à USP em nome do procurador-geral, que solicita à cúpula universitária a punição de manifestações públicas de um dos seus docentes. São dois os equívocos.

O primeiro está na tentativa de transformar a universidade pública, que se define como um polo social e material de liberdade, em órgão de vigilância de opinião. Pleitear tal aberração é o mesmo que esperar que o sol esfrie os corpos na Terra. Não há razão nesse pedido. Mais ainda, não há nele a mínima compreensão do que seja a institucionalidade democrática.

O segundo equívoco decorre do primeiro, e o complica ainda mais. Os advogados que assinam a representação parecem não ter assimilado o conceito de autonomia universitária. Eles se dirigem à cúpula da USP mais ou menos como se fossem, no velho jargão dos despachantes de porta de cadeia, o sujeito que vai “dar parte” na delegacia, ou como um estudante de colégio interno que delata os colegas para o inspetor de alunos. Essa postura não cabe na vida universitária de uma sociedade democrática, não é assim que funciona.

Quando se diz que a universidade tem autonomia, o que se quer dizer, se é que ainda não estava claro, é que a universidade não deve obediência a autoridades que lhe sejam externas. Um ministro de Estado, um cardeal, um pai de santo ou um general não podem dar ordens às instâncias universitárias, pois não têm atribuições para pautá-las. Por certo, a universidade tem o dever de prestar contas à sociedade e a todos os órgãos de controle, mas não se subordina a nenhum comando externo, muito menos quando lhe cobram que enquadre o pensamento livre.

Por isso, a representação é equivocada. Seria apenas uma peça inoportuna e desajeitada caso vivêssemos no País uma situação normal. Como estamos naufragados num contexto de atordoante anormalidade, ela nos traz preocupações maiores. Embora possa não ter sido essa a intenção dos advogados, a peça que eles assinam aterrissa na mesa do reitor com sinais de ameaça. Talvez não seja esse o propósito do procurador-geral, mas na quadra da História em que nos encontramos e nos perdemos fica no ar um travo de intimidação. É algo que não está dito, mas pode muito bem estar pressuposto.

Olhemos o entorno. A todo momento a Lei de Segurança Nacional tem sido brandida contra jornalistas, chargistas, artistas e intelectuais. Em março, dois professores da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro, foram constrangidos a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por terem criticado o governo federal. Em níveis diversos, proliferam os torniquetes orçamentários contra a educação superior, que prejudicam mais o campo das humanidades, justamente onde mais pipocam ideias críticas e incômodas. As investigações policiais que atingem a administração universitária se paramentam de notas sensacionalistas e espetaculosas, como a primeira fase da Operação Torre de Marfim (o nome escolhido já diz tudo acerca de uma certa sanha antiacadêmica), cuja prepotência trouxe de arrasto a tragédia, com o suicídio do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017.

Naquele ano, o cerco em torno de pesquisadores, cientistas e intelectuais ligados à educação superior no Brasil crescia em brutalidade e arrogância, numa trilha de retórica violenta que em 2018 desfraldaria as bandeiras do bolsonarismo. Agora a universidade é bombardeada a todo tempo pelo poder, como se fosse inimiga da Pátria. Nesta hora infeliz, a representação do procurador-geral contra a USP vem piorar o ambiente.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-cerco-a-universidade,70003720292


Gaudêncio Torquato: O desmonte da ciência

É crise puxando crise. Mais uma agora ameaça jogar a ciência brasileira ou seus entulhos no fundo do poço. As instituições de ensino superior e técnico estão recebendo apenas 2,22% dos recursos anuais a que têm direito, deixando perplexos reitores de universidades federais e o alunado que recebe bolsas, comprometendo a assistência estudantil, frustrando pesquisadores, enterrando descobertas da ciência em profundo fosso.

Um desmonte nunca visto, daí a pergunta: qual o nome do ministro da Educação? E tudo isso ocorre em paralelo ao negacionismo dos gestores públicos, a partir do presidente da República, na administração da pandemia da Covid 19.

Impactos podem ser sentidos nos próprios campi, como o da Universidade Federal do Rio de Janeiro, antes um centro de excelência, entre os melhores do mundo. Hoje quase em ruína. Saudosos tempos da Universidade do Brasil. O que diriam alguns de seus reitores do passado, como Benjamin Franklin Ramiz Galvão, primeiro reitor e ex-membro da Academia Brasileira de Letras (ABL); o médico Raul Leitão da Cunha, o ex-ministro da Educação e Saúde Pedro Calmon e outros tantos deste naipe? Teriam vergonha do Brasil. Mas o feio retrato se vê em todo o País.

Alegam cortes para viabilizar o chamado “teto de gastos”. Isso justifica o desmanche brutal? A imagem é necessária: para salvar a vida de uma pessoa, ao invés de amputar um dedo, um braço, extirpam-se as veias. Claro que não haverá salvamento. Assim agem os burocratas. Ora, a educação é a base de uma Nação. Sem ela não há processo civilizatório, progresso, vida saudável. E um território deixa de ser Nação para virar só um pedaço de terra.

Sem educação emerge aquela moldura descrita pelo filósofo argentino José Ingenieros: “em certos períodos, a nação adormece dentro do país. O organismo vegeta; o espírito se amodorra. Os apetites acossam os ideais, tornando-os dominadores e agressivos. Não há astros no horizonte, nem auriflamas nos campanários. Não se percebe clamor algum do povo; não ressoa o eco de grandes vozes animadoras. Todos se apinham em torno dos mantos oficiais, para conseguir alguma migalha da merenda. É o clima da mediocridade… O culto da verdade entra na penumbra, bem como o afã de admiração, a fé em crenças firmes, a exaltação de ideais, o desinteresse, a abnegação — tudo o que está no caminho da virtude e da dignidade.”

E onde está a política no meio dessa mediocridade? Preocupada com outras coisitas que lhe rendem recompensas, como votos. Verbas para comprar tratores, inserir emendas no Orçamento, participar de foros com visibilidade midiática. Assim é a vida da representação parlamentar. Será que suas excelências não devem nada à educação que impulsionou suas vidas? Preferem a balança do pragmatismo: o que pode ser melhor para mim nesse momento?

E a ciência, mesmo sob loas e aplausos de alguns, acaba sacrificada por “outras prioridades”. O que diz o MEC? Os recursos, infelizmente, estão “condicionados”. Ou seja, condicionaram a educação. A esta altura, alguém sabe responder à pergunta acima: como é mesmo o nome do ministro da Educação?

P.S. O clamor foi tão intenso que o governo acabou dando um pouco mais de recursos às Universidades.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

Fonte:

Metrópoles/Blog do Noblat

https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-desmonte-da-ciencia-por-gaudencio-torquato


Cristovam Buarque: Sequestradores sonsos e tolos

Convencionou-se dizer que “crianças abandonam a escola”, quando o certo seria dizer que elas são “arrancadas da escola”, por um conjunto de forças: pobreza da família, inospitalidade dos prédios, descontinuidade por interrupção das aulas, desmotivação familiar ou dos professores, equipamentos obsoletos, métodos ultrapassados, falta de perspectiva de futuro, merenda ruim, desincentivo ao estudo. Tudo se passa como se o Brasil conspirasse para sequestrar as crianças para fora da escola. Isto acontecia no século XIX, nos Estados Unidos, contra as crianças negras.

Por quase um século, aquele país foi dividido entre estados escravocratas no Sul e abolicionistas no Norte, com permanente fuga de escravos em busca da liberdade do outro lado da fronteira. Havia rede de apoio aos fugitivos, da mesma forma que havia redes de políticos, advogados, policiais, que agiam no sentido contrário, sequestrando afro-americanos no Norte para levá-los de volta ao Sul. O “Clube do Sequestro”, como ficou chamado o mecanismo que fazia este processo, tinha agentes que retiravam crianças negras das escolas, e as levavam para juízes que autorizavam o envio para seus senhores, no Sul.

Ao conhecer a maldade destes sequestradores organizados, percebe-se que isto é feito no século XXI com nossas crianças que abandonam a escola e caem na escravidão que aprisiona e devora os sem educação. No Brasil não é necessário “Clube de Sequestro”, porque as condições sociais e educacionais forçam as crianças a abandonar a escola. Agimos como o “Clube do Sequestro” norte-americano, levando estas crianças à escravidão do desemprego, baixos salários, despreparo para enfrentar e usufruir do mundo moderno.

Os sequestradores americanos eram movidos por ganhos pessoais, a recuperação do patrimônio do proprietário e os honorários aos membros do “clube”. No Brasil, somos sequestradores sonos, com a hipocrisia de ignorar o analfabetismo como uma algema mental e a falta de educação como escravidão; não tiramos a criança da escola com nossos braços, apenas assistimos que ela fuja da escola sem qualidade. Fecham-se os olhos, deixam-se que elas se condenem, escondendo que se tira proveito disto.

A parcela que concentra a renda e a educação usufrui do trabalho com baixos salários dos que não estudaram: pedreiros que fazem suas mansões, vendedores nas praias, cuidadores de carro, empregados domésticos. O abandono das crianças e das escolas se explica porque a má educação é uma trincheira da escravidão ainda não plenamente abolida.

Para que os ex-escravos não se libertem plenamente, não se assegura boas escolas para eles nem para seus filhos. Aqui não fogem para Estados abolicionistas no Norte, mergulham no mar da deseducação e continuam escravas, servindo aos seus sequestradores sonsos. Esta é a lógica da perversa desigualdade escolar, que condena nossas crianças a abandonarem a escola, como fazia o “Clube do Sequestro” nos Estados Unidos, no século XIX. No lugar de trazer de volta para antes de 1888, simplesmente fechamos os olhos à fuga das crianças em direção à escravidão moderna.

Mas além da perversidade sonsa, somos tolos, porque não medimos o custo do sequestro para todos os brasileiros. Cada criança que abandona a escola provoca uma perda para o país e, portanto, para cada brasileiro.

Comparando com países que cuidaram da educação de suas crianças, como a Coreia do Sul, pode-se estimar que o PIB brasileiro seria o dobro do atual se na infância nossos trabalhadores não tivessem sido sequestrados para fora da escola. Fazendo o Brasil mais pobre do que seu potencial permite, tanto quanto a escravidão nos amarrava no século XIX. Além desta perda, a falta de educação exige gastos gigantes com assistência social, porque os sequestrados na infância não são capazes de se manter na vida adulta. Sequestramos crianças negando-lhes futuro, e todos perdem o que elas poderiam oferecer ao Brasil se tivessem recebido boa educação.

Somos sequestradores sonsos individualmente, ao explorarmos as crianças sequestradas quando adultas, e tolos socialmente, ao impedi-las de se prepararem para construir um país moderno que beneficiaria a todos.

*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília


BBC Brasil: Enem vai expor nova camada de exclusão entre alunos mais pobres

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que realizará sua edição 2020 em 17 e 24 de janeiro, vai escancarar novas camadas de desigualdade na educação surgidas durante a pandemia do coronavírus e que prejudicam principalmente os jovens mais vulneráveis no terceiro ano do ensino médio

Paula Adamo Idoeta, BBC News Brasil em São Paulo

A avaliação é de José Francisco Soares, especialista em mensuração de desigualdade de ensino que entre 2014 e 2016 foi presidente do Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pela aplicação do Enem e das demais avaliações da educação no país.

É também professor emérito da UFMG e cocriador do Indicador de Desigualdades Educacionais e Aprendizagens (IDeA), índice que avalia, em cada município brasileiro, o nível de aprendizagem e suas desigualdades entre diferentes grupos sociais e raciais.

Na prática, essas novas camadas de desigualdade a que se refere Soares farão com que alunos com melhores condições de estudar - por exemplo, os que tiveram segurança alimentar, acesso à internet e às aulas - ou que já tivessem concluído o ensino médio terão mais chance de conseguir vagas em universidades via Enem.

Isso em detrimento dos alunos mais vulneráveis, que ficarão mais distantes do ensino superior e, como consequência, com menos chance de renda maior e de oportunidades melhores de empregos no futuro. Os mais prejudicados, na visão de Soares, tendem a ser os alunos de ensino médio que não conseguiram acompanhar as aulas.

Criaria-se, assim, uma nova exclusão, mesmo entre grupos que tradicionalmente já tinham dificuldades de acesso ao ensino superior.

Para Soares, a despeito dos novos entraves para a realização do Enem, depois de um ano de ensino remoto e em meio a um novo pico de casos de covid-19 no país, não faria sentido adiar o exame novamente - ele avalia que o Inep tem estrutura logística suficiente e que, ao adiar as provas, jogaria-se no aluno o ônus por seu possível mau desempenho, em vez de tratar o problema como algo estrutural.

"Prefiro dizer: há um problema novo (de desigualdade) que a gente precisa tratar", opina.

O tema, porém, tem despertado intensos debates nos últimos dias. Na sexta-feira (8/1), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação na Justiça pedindo o adiamento do exame, afirmando que "não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de covid-19".

Em entrevista à BBC News Brasil, Soares comentou também sobre outras manifestações crônicas da desigualdade de ensino e de estratégias para combatê-las - usando, inclusive, a tecnologia, que na pandemia ganhou espaço inédito na educação.

Francisco Soares
Francisco Soares foi presidente do Inep (órgão do MEC) e ajudou a criar novo indicador de desigualdade na educação

Veja a seguir trechos da conversa, divididos por tópicos:

Enem: logística e desigualdades

Questionado pela reportagem se este será o Enem mais desafiador dos cerca de 20 anos de história do exame, Soares diz que a equipe técnica do Inep está preparada para as questões logísticas da prova mesmo nas condições impostas pela pandemia.

"Costumo falar que se o Brasil entrasse numa guerra, o coordenador logístico teria que ser alguém dessa equipe (do Inep), que há muitos anos vem conseguindo fazer o exame no país: a prova chega, os fiscais chegam, é muito impressionante. O Brasil tem essa capacidade logística também nas vacinas, nas eleições. Esse é um lado que dá um certo conforto", diz.

"Neste ano tem o desafio do distanciamento social, mas o número (de 5,7 milhões de inscritos) é muito menor. Não estamos batendo nos 9 milhões. Esse grupo experiente vai abrir os espaços necessários (para a realização da prova)."

Do ponto de vista de ensino durante a pandemia, porém, a questão é mais grave, diz Soares.

Apesar de acreditar que a desigualdade de acesso ao ensino superior é bastante amenizada pela Lei das Cotas - que reserva 50% das vagas de universidades e institutos federais a alunos de escolas públicas -, o Enem deste ano vai escancarar problemas que se aprofundaram.

"A vantagem (dos jovens) que estudam em escolas privadas e que têm na família um apoio maior vai se compondo de tal maneira que, quando chega a hora do Enem, é quase um jogo de carta marcada. Ele escancara as desigualdades. Só que neste ano isso ficou pior, porque criamos uma nova desigualdade, entre os alunos que estão terminando o ensino médio (e não conseguiram acompanhar as aulas) e os que já tinham terminado. Uma nova desigualdade entre os mais pobres. Criamos uma exclusão nova", explica.

"Não estou dizendo que a gente deve adiar o Enem, que não deve ter Enem. O que estou dizendo é que a gente precisa tratar disso de forma concreta. (...) Uma hipótese provável é que vamos ter menos estudantes de ensino médio das escolas públicas sendo admitidos (em universidades públicas, em favor de alunos que já haviam concluído o ensino médio antes da pandemia). Não é fácil, porque é uma distinção entre dois grupos que já eram excluídos. Por isso falo que estamos inventando uma nova desigualdade."

Uma possível solução, embora de implementação difícil, seria reservar vagas nas universidades públicas para alunos que estavam no terceiro ano, em proporção semelhante ao que cada universidade aprovou no ano anterior, diz ele.

Debate sobre adiamento do Enem

Embora as soluções não sejam fáceis, Soares acha mais eficiente focar os esforços nelas do que em discutir um eventual novo adiamento do Enem - que tem sido defendido por parte dos estudantes, analistas de educação e grupos políticos, para dar mais tempo de preparo aos jovens e tentar sair do pico da pandemia.

"Acho que (adiar) não teria nenhum efeito, basicamente. Temos um processo de seleção, infelizmente, que vai separar (jovens admitidos ou não no ensino superior). Prefiro perceber que houve uma nova desigualdade e não deixar esses alunos padecerem. Mas acho que o sistema tem que continuar", afirma.

"O Brasil tem (o hábito) de transferir culpa. Então, quando adio o Enem, estou também criando uma fantástica justificativa: 'você não passou, o problema é seu'. Prefiro dizer: há um problema novo que a gente precisa tratar. Não vai ser com algo episódico (adiamento) que vamos resolver."

Evasão escolar, a 'batalha' principal de 2021

Pesquisas de opinião recentes com pais de alunos da rede pública de ensino sugerem que um alto índice deles - até um terço - teme que os filhos abandonem a escola por conta da pandemia.

Para Soares, evitar a evasão escolar será o maior desafio da educação neste ano.

"Com todas as críticas que a gente pode ter, o país vinha melhorando ao longo desses anos. A primeira melhoria foi levar o aluno para a escola. (...) Onde começa o problema? Aos 13 anos. A criança entra na adolescência e começa a desistir (da escola). É isso que a pandemia vai acirrar", afirma.

Especialistas apontam que, ao sair da escola e entrar precocemente no mercado de trabalho - particularmente em um momento de crise econômica -, esse jovem iniciará uma trajetória de piores perspectivas profissionais, menores salários e menor chance de mobilidade social.

"Temos que cuidar para a criança não sair da escola. Esse é o esforço de todo mundo - da igreja, da cidadania, dos partidos, de quem for. Essa é a batalha deste ano. Com acolhimento, preciso criar um ambiente para trazer o aluno para a escola. Tem também os professores, que passaram um ano muito difícil. E eles precisam ganhar prioridade na vacinação. A gente precisava sinalizar que isso é importante. Falta no Brasil essa vontade de colocar a criança no centro (das políticas públicas)."

A evasão e a repetência escolares são também uma grande fonte de desperdício de recursos, uma vez que mantêm o sistema educacional mais inchado para atender alunos que demoram a completar - ou sequer completam - o ciclo de anos de estudo.

"Quando a criança sai ou toma bomba, eu tenho um sistema maior do que preciso. Então a criança precisa ficar na escola."

Desigualdades educacionais crônicas

O mais recente Índice Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal mensuração da qualidade do ensino no país e divulgado pelo Ministério da Educação em setembro, apontou avanços na educação geral do Brasil, embora poucos Estados tenham alcançado as metas previstas.

Mesmo esses avanços devem ser lidos com cautela, explica Soares, porque mascaram desigualdades educacionais invisíveis aos dados.

"Eu colocaria a 'melhora no Ideb' entre aspas. Porque o Ideb (mensura o desempenho escolar) das crianças que estão na escola. As que saíram, já era. É algo tipicamente brasileiro", diz o pesquisador.

"Imagina: você é brasileiro e saiu da escola por um motivo qualquer. Você é quem mais precisa da escola. Mas você não impacta o indicador. Isso é de um cinismo estrutural. (...) Além disso, temos uma expectativa muito baixa" em relação à educação pública, argumenta.

Estratégias para avançar: de tecnologia a ensino integral

"A pandemia trouxe problemas novos para os quais não temos solução. Como fazer a escola funcionar em uma situação como esta? Mas tem uma coisa importante que a pandemia está nos ensinando a amadurecer à força: está nos dizendo que, para vencer a desigualdade, preciso da tecnologia", defende Soares.

"Na saúde, estamos perto de ter um prontuário único (para cada paciente), algo que traz muitos problemas em potencial, mas também muita facilidade: quando você for atendida, o médico vai conhecer toda a sua história. Mas na educação a gente não tem esses dados. Com a tecnologia, talvez a gente tenha uma ferramenta (para acompanhar todo o desenvolvimento escolar), não preciso esperar até o aluno estar no cursinho (para diagnosticar problemas)."

Um avanço que tem sido comemorado por Soares e outros especialistas em educação é a aprovação recente, pelo Congresso, do Fundeb, fundo de dinheiro público para a educação básica que passa a ser permanente e obrigatoriamente ganhará mais recursos por parte do governo federal.

"Isso é uma coisa boa, mas temos que usar bem: oferecendo escola de tempo integral, para professor e aluno. (...) E uma quantidade enorme de jovens gostaria de, durante o ensino médio, ter alguma certificação (técnica). Uma vez, uma pessoa que veio instalar uma antena na minha casa me disse: 'terminei o ensino médio e não sabia nada. Precisei pagar (para se capacitar e conseguir seu emprego)'. De novo, olha como o país é: não deu nada a ele e, para ele ter emprego, teve de pagar."

"Então essa é uma primeira mudança razoável: junto com a escola, ter uma certificação. E colocar o ensino superior no horizonte (dos jovens de escolas públicas). Tem muita iniciativa interessante. As escolas de tempo integral de Pernambuco, por exemplo, têm uma disciplina de projeto de vida. Não é dizer ao aluno: 'sonhe'. É dizer 'você está aqui, pense no que vai ser feito (para crescer)'".

Mas o ponto de partida é de fato enxergar cada brasileiro como merecedor de uma educação de alta qualidade e de acesso pleno à cidadania, opina Soares.

"O Brasil é um país que tem uma porta de entrada para a cidadania. Nós precisamos vencer isso. É uma decisão que precisa estar na nossa cabeça: todo brasileiro tem que ser brasileiro. O sonho brasileiro é ser o opressor. 'Eu quero estar no seu lugar'. (Mas) o projeto que vai nos mover é dizer: 'eu vou puxar todo mundo para cima'."


Nova onda de Covid-19 na Europa divide governadores no Brasil sobre volta às aulas

Reportagem especial da Política Democrática Online de novembro mostra situação em cada Estado no país

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ao menos 16 redes públicas estaduais de ensino retomaram parte das aulas presenciais ou têm previsão de retorno às salas de aula, ainda em 2020, oito meses após o fechamento das escolas por causa da pandemia do novo coronavírus, em março deste ano. O risco de a segunda onda de Covid-19 chegar ao país aumenta o alerta para governadores.

Em outros oito estados, governadores já se posicionaram pela volta das atividades escolares presenciais somente no ano que vem. No Distrito Federal e em Minas Gerais, professores, sindicatos, governos e Ministério Público travam briga até na Justiça para o retorno das aulas nas escolas.

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O sinal verde para a volta às aulas tem como parâmetro portaria do Ministério da Educação (MEC) publicada em julho e que define diretrizes para a retomada das atividades presenciais. Entre elas, está a obrigatoriedade do uso de máscaras, distanciamento social de 1,5 metro e afastamento de profissionais que estejam em grupos de risco. No entanto, governos estaduais e municipais têm autonomia para definição do calendário pedagógico a fim de reorganizar as aulas nas escolas.

Nos estados que já reabriram as salas de aula gradativamente, as escolas devem seguir uma série de protocolos sanitários estabelecidos em portarias dos governos e continuarem oferecendo ensino a distância aos alunos que optarem por essa modalidade. Nessa lista estão Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.

Em geral, os governadores sustentam suas decisões na diminuição do número de casos de Covid-19 nos respectivos estados. As estruturas hospitalares emergenciais passaram a ser desmobilizadas. Dos leitos clínicos e de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) abertos a partir do início da pandemia, 65% já foram fechados. Por outro lado, o Brasil é o segundo país com mais mortes – atrás dos Estados Unidos – e o terceiro com maior quantidade de contaminações registradas – atrás dos Estados Unidos e da Índia.

A segunda onda de Covid-19 na Europa é um alerta importante aos governadores que decidiram optar por cautela e autorizar retorno às aulas presenciais somente em 2021 ou após a confirmação de uma vacina para imunizar a população. Nesse grupo, estão Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Roraima. Bahia e Rondônia ainda não firmaram posição sobre o assunto.

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Hélio Schwartsman: O que justifica as cotas?

Elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de alguém com base em suas características fenotípicas

Há dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas seriam uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego para não ver que existe racismo estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria, então, uma forma de fazer justiça.

Não gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal, favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados, aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.

No polo oposto, o branco preterido no vestibular não é necessariamente um descendente de traficantes de escravos. Para a ideia de reparação fazer sentido, temos de apelar à noção de culpa coletiva, que é bem problemática.

O outro caminho me parece melhor. Por ele, as cotas não se justificam pelo passado, mas pelo futuro. Há um bom corpo de pesquisas mostrando que, quando diferentes pessoas, com diferentes backgrounds e perspectivas, se põem a trabalhar sobre os mesmos problemas, as soluções encontradas tendem a ser melhores. O bacana aqui é que a racionalidade das cotas também salta do indivíduo para a sociedade, e a culpa coletiva dá lugar à responsabilidade social.

Considero essa justificativa aceitável, mas devo confessar que não sou um grande fã de cotas raciais. Por mais que douremos a pílula, elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de uma pessoa com base em suas características fenotípicas, que é justamente o que torna o racismo um problema moral.


Cristina Serra: O MEC e o exterminador do futuro

Ministro-pastor vê crianças como pequenos demônios contaminados pelo pecado

Quando o ministro da Educação, Milton Ribeiro, foi nomeado, em julho, a imprensa chamou a atenção para um vídeo de 2016 no YouTube em que ele, também pastor presbiteriano, prega aos fieis sobre o uso da “dor” como método pedagógico para disciplinar as crianças.

Depois de dois meses de silêncio, Ribeiro deu uma entrevista a “O Estado de S. Paulo” e, pela quantidade de disparates que falou, procurei o vídeo para melhor entender o personagem e o assisti na íntegra. Basicamente, o pastor considera que crianças são pequenos demônios, contaminados pelo pecado, e cabe aos pais aplicar “a vara da disciplina” para corrigi-los. Diz o reverendo: “Há uma inclinação na vida da criança para o pecado, para a coisa errada”. Daí, segundo ele, a necessidade da violência.

Ele segue com provérbios da Bíblia, como este: “Tu a fustigarás [a criança] com a vara e livrarás a sua alma do inferno”. Para que não haja dúvida, o dicionário aponta como sinônimos de fustigar: chicotear, açoitar, surrar, flagelar, machucar, espancar, entre outros.

O pastor insiste: “Castiga a teu filho, enquanto há esperança, mas não te excedas a ponto de matá-lo (…)”; “Não estou aqui dando uma aula de espancamento infantil. Mas a vara da disciplina não pode ser afastada da nossa casa”. Talvez um psiquiatra possa explicar a insistência na expressão “vara da disciplina”.

Na recente entrevista ao jornal, Ribeiro demonstrou homofobia, eximiu-se da responsabilidade de coordenar a rede pública de educação no país, menosprezou o sonho de milhões de brasileiros de conseguir formação de nível superior e, por fim, lavou as mãos quanto ao papel da educação na redução de desigualdades, tão agravadas pela pandemia. “Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil. Não tem como, vai fazer o quê?”. Foi como se dissesse: “E daí?”. Soa familiar? Na marcha acelerada do Brasil rumo ao retrocesso civilizatório, Milton Ribeiro não é um ministro. É o exterminador do futuro.


Bruno Boghossian: Ministro tenta superar antecessores em intolerância e improdutividade

Governo Bolsonaro usa educação como palanque para sua cruzada obscurantista

Jair Bolsonaro só não fechou o Ministério da Educação até agora porque precisa dele em sua cruzada obscurantista. Por quase dois anos, o governo ignorou o ensino público, tentou sabotar o financiamento do setor e explorou a pasta como palanque para seus retrocessos.

O terceiro chefe da área se esforça para superar Ricardo Vélez e Abraham Weintraub em improdutividade e intolerância. De uma só vez, Milton Ribeiro conseguiu fazer propaganda de visões preconceituosas e fingir que não têm nada a ver com disfunções da educação brasileira.

O doutor sugeriu ao jornal O Estado de S. Paulo que o ministério não tem interesse em melhorar a tecnologia nas escolas. Para ele, a dificuldade do ensino a distância durante a pandemia é problema dos outros.

“A sociedade brasileira é desigual, e não é agora que a gente vai conseguir deixar todos iguais”, afirmou. “Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil.”

Talvez Ribeiro estivesse mais interessado em conseguir um cargo no governo da Noruega, mas acabou ficando por aqui. Se estivesse insatisfeito, ele poderia procurar países onde ressoam alguns de seus valores, como o Iêmen ou a Mauritânia.

O ministro deu um show de discriminação e disse que a homossexualidade é uma “opção”, que ele atribui ao que chamou de “famílias desajustadas”. “Normalizar isso e achar que está tudo certo é uma questão de opinião”, declarou, na entrevista.

Ele sabe que não se trata de uma mera “questão de opinião”, mas usa a velha tática bolsonarista de esconder seus insultos atrás do argumento da liberdade de expressão. O ministro, que é pastor da igreja presbiteriana, alega que essa é apenas uma pauta conservadora, como se isso legitimasse o desaforo.

Ribeiro chegou ao governo com a chancela da ala militar e o carimbo de “moderado”, após a queda do piromaníaco Abraham Weintraub. Houve quem comprasse essa imagem. A única coisa que o doutor pretende moderar é a descrição dos horrores da ditadura nos livros didáticos.