Mathias Alencastro

Mathias Alencastro: Três lições da Alemanha

Sucessão de Merkel mostra caminhos para democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita

Mathias Alencastro / Folha de S. Paulo

Terminou a campanha eleitoral na Alemanha e, pela primeira vez, o partido que sair na frente terá de encontrar pelo menos dois outros aliados para formar o governo. O processo de formação de um novo governo deve se prolongar por alguns meses, mas um cenário de impasse a longo prazo, como nas vizinhas Holanda e Bélgica, parece descartado.

popularidade de Olaf Scholz, apontado em todas as sondagens como o mais preparado para assumir o cargo, assim como o desejo de alternância depois de 16 anos de governo CDU, confere um ascendente à SPD nas negociações com potenciais aliados. O resultado do pleito também traz ensinamentos para todas as democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita.

A primeira é a resiliência da centro-esquerda. A SPD defendeu o programa mais progressista das últimas décadas, mas apresentou um candidato sóbrio e pragmático, que foi vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças nos últimos anos.

pandemia, que muitos esperavam ser um prato cheio para os populistas, acabou reforçando as credenciais dos candidatos versados na administração do Estado. Dada como morta depois da debacle do Partido Socialista francês em 2017, a centro-esquerda está voltando a contar na Europa, com governos da Península Ibérica à Escandinávia, passando agora, provavelmente, pela Alemanha.

A segunda é a dificuldade da direita tradicional diante da emergência da extrema direita. A toda-poderosa CDU não conseguiu recuperar o eleitorado perdido para a AfD, que se manteve acima dos 10% e consolidou sua presença em nível regional. Exceção feita ao Reino Unido, onde Boris Johnson conseguiu federar as direitas em torno do brexit, o campo conservador parece irremediavelmente dividido nas democracias liberais.

Muito se fala do drama da renovação da esquerda, mas a origem da crise de governabilidade europeia tem sua origem no outro lado do espectro ideológico.

A terceira dinâmica é a emergência da crise climática como tema de campanha. De acordo com todos os cenários, os Verdes devem se afirmar como a terceira maior força política e regressar ao governo, depois da experiência bem-sucedida dos anos 1998-2005 liderada pelo lendário Joschka Fischer, àquela altura ministro das Relações Exteriores.

Vencedor destacado na população abaixo de 50 anos, o partido está bem posicionado para encabeçar o governo nos próximos dez anos.

Para o Brasil especificamente, o surgimento da SPD e dos Verdes deve reforçar o ativismo internacional nas questões democráticas e ambientais da Alemanha, sempre muito contida nos tempos de Merkel.

Martin Schultz, um dos principais quadros da SPD e forte candidato a assumir uma pasta ministerial em uma eventual coalizão liderada pelo partido, foi até Curitiba para encontrar o ex-presidente Lula na cadeia. Quanto aos delinquentes neonazistas que Bolsonaro recebeu no Alvorada, eles continuarão sendo irrelevantes no futuro Parlamento.

Esses pequenos sinais também devem ser levados em conta na hora de especular sobre a reação da comunidade internacional em caso de contestação do resultado das presidenciais brasileiras em 2022.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/09/tres-licoes-tiradas-da-eleicao-da-alemanha.shtml


Mathias Alencastro: 7 de Setembro será decisivo para o futuro da extrema direita

Manifestação de bolsonaristas na próxima terça está intimamente ligada à invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro

Mathias Alencastro/ Folha de S. Paulo

Todos concordam que a história da manifestação de setores extremistas no 7 de Setembro está intimamente ligada à invasão do Capitólio dos Estados Unidos no dia 6 de janeiro, no apagar das luzes da Presidência de Donald Trump. Bolsonaristas conseguiram replicar na perfeição os dois primeiros atos da trama trumpista: a polêmica do voto impresso jogou dúvida sobre a fiabilidade do sistema eleitoral, e os inúmeros ataques às instituições radicalizaram as manifestações.​

O terceiro ato é o mais imprevisível. Bolsonaristas descrevem o assalto ao Capitólio como uma insurreição popular que almejava a tomada de poder em Washington —prova disso, o governo brasileiro foi um dos últimos a reconhecer a vitória de Biden. Uma leitura dos acontecimentos desmentida pelas autoridades americanas. Segundo o último relatório do FBI, publicado uma semana atrás e submetido à comissão de inquérito parlamentar do Congresso, apenas 40 dos 600 delinquentes indiciados pelos mais de 1.000 atos criminosos se envolveram em algum nível de planejamento antes do evento. Os envolvidos não pretendiam dar um golpe. Mas a violência fundadora dos seus atos assegurou a Donald Trump o momento catártico indispensável para perpetuar seu movimento além do mandato de quatro anos marcado por dois impeachments e centenas de milhares de mortes evitáveis na pandemia, sem contar as cinco vítimas no ataque ao Capitólio.

E deu certo. Mais de um ano depois, todo potencial candidato às prévias republicanas de 2024 precisa se ajoelhar publicamente diante do ex-presidente. Para o desespero dos moderados, o episódio do Capitólio tornou a radicalização do partido irreversível. Mas a aura de Trump não é sinônimo de poder eterno para ele e a sua família. Na ausência de uma alternativa política, o trumpismo é perpetuado por fanáticos e pragmáticos, aliados e traidores. O seu legado, no entanto, é disputado por lideranças como o governador da Flórida e disseminador profissional da variante delta, Ronald DeSantis, e a ex-embaixadora dos Estados Unidos na ONU Nikki Haley. Para essa nova geração, Trump está longe de ser uma eminência parda. Ele é uma referência simbólica e, no melhor dos casos, uma plataforma de campanha. A partir do Capitólio, o trumpismo deixou de ser um projeto individual e passou a funcionar como um movimento competitivo e heterogêneo.

Essa constatação nos obriga a olhar para outra dimensão do 7 de Setembro além da dicotomia entre golpe e eleição: a disputa pelo poder entre os extremistas. Sem um partido ou outro tipo de estrutura política organizada além da folclórica Cpac da América Latina, reunida neste fim de semana, o capital eleitoral de Bolsonaro pode ser rapidamente pulverizado entre diferentes herdeiros autoproclamados a nível estadual e nacional. Isso ajuda a entender por que a manifestação de 7 de Setembro tem suscitado grande interesse entre os pretendentes a guardiões do bolsonarismo pós-2022. Os acontecimentos desta semana serão sem dúvida importantes para o futuro da democracia. Mas eles prometem ser ainda mais decisivos para o futuro da nova extrema direita brasileira.

*Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/09/7-de-setembro-sera-decisivo-para-o-futuro-da-extrema-direita.shtml


Mathias Alencastro: Impossível não ver brexit como deflagrador da emancipação europeia

Europeístas que caricaturavam acordo como uma aventura chauvinista precisam rever sua posição

Longe vão os tempos da Europa paralisada pelas suas contradições sociais e subordinada aos imperativos dos aliados estratégicos. Horas depois de concluir o brexit, Bruxelas avançou para um amplo acordo de investimento com a China. A mensagem para a Presidência de Joe Biden é cristalina: a ordem ocidental não existe mais, e a União Europeia pretende triangular com as duas potências globais.

Impossível não ver o brexit como o elemento deflagrador da emancipação europeia. Desde que o Reino Unido decidiu a sua partida num referendo realizado no auge do vandalismo digital, a UE, entre outros feitos, selou um até então impensável acordo para a federalização da dívida dos países membros.

Isso posto, os europeístas que caricaturavam o brexit como uma aventura chauvinista precisam rever a sua posição.

Com o passar das emoções, o brexit deixou de ser visto como uma contingência e apareceu como uma inevitabilidade provocada pelas tensões ideológicas do Partido Conservador, a posição ambígua do Reino Unido dentro do mercado interno europeu e a experiência histórica dos britânicos com o imperialismo, que continua sendo o motor da sua identidade nacional.

Isso não salva a biografia de Boris Johnson, um bufão que provavelmente será varrido na próxima eleição. Mas seu legado será muito mais robusto do que o de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro.

Aos trancos e barrancos, Boris assegurou ao Reino Unido uma rede respeitável de acordos comerciais.

O tratamento secundário conferido ao mercado financeiro nas negociações com a UE e a adesão unilateral a objetivos climáticos ambiciosos revelam que Boris ambiciona para o Reino Unido algo mais do que um paraíso fiscal sobre a Tâmisa.

Mais importante ainda, os últimos episódios da novela China mostram que os valores humanistas europeus ficaram do lado britânico do canal da Mancha. Bruxelas não hesitou em trocar promessas vagas sobre o trabalho forçado em Xinjiang pelo acesso da indústria franco-alemã ao mercado de consumidores da potência asiática. Entretanto, Londres já concedeu três milhões de passaportes para os cidadãos de Hong Kong, oprimidos por Pequim.

Alertas sobre uma implosão iminente do Reino Unido são fantasistas. A adesão de um país à União Europeia depende da aprovação de todos os Estados membros. Para a Espanha, em plena decadência monárquica, aceitar a integração de uma Escócia independente seria a melhor forma de provocar a secessão da Catalunha.

Com efeito, no que toca à coesão interna dos Estados, os britânicos, apesar dos seus problemas, seguem na frente dos europeus. A despedida de Angela Merkel, agendada para este ano, será um mergulho no desconhecido para a Alemanha.

Emmanuel Macron, cada vez mais isolado na Europa, perdeu o controle do seu governo. A França é o único membro do Conselho de Segurança que fracassou no desenvolvimento da vacina. Lenta e errática, a campanha de imunização é rejeitada pela maioria da população.

Se a arquitetura da União Europeia saiu reforçada da pandemia, o mesmo não se pode dizer da coesão interna das suas nações.

*Mathias Alencastro é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Mathias Alencastro: Para os progressistas, chegou a hora da destruição criativa

O desespero dos caciques e o sumiço dos expoentes do fisiologismo são o principal indício de que a renovação partidária e geracional veio para ficar

A construção da candidatura presidencial do PT em 2018 se articulou em torno de duas disputas regionais. A cidade de São Paulo, maior reserva de votos petista no Sudeste, e Pernambuco, onde Lula investiu todo o seu capital político para isolar Ciro Gomes.

A ascensão de Guilherme Boulos e o racha em Recife provocado pela disputa entre João Campos e Marília Arraes devem inviabilizar a repetição dessa estratégia e alterar o cálculo da disputa presidencial.

Um revés para os petistas, imputável à sua franja mais conservadora, que assumiu o controle da Direção Executiva durante a prisão de Lula. Desde então, o jogo da política foi preterido em favor dos arranjos burocráticos, e o debate programático substituído pela exaltação acrítica.

O abandono de São Paulo em plena pandemia a um candidato bairrista, quando o seu competidor interno era um notável ex-ministro da Saúde, é o retrato de um partido devorado pela sua própria burocracia.

Para manter algum grau de relevância, a Executiva do PT está condenada a ceder espaço às lideranças nordestinas, que movimentam a massa do seu eleitorado e sempre se mostraram favoráveis a novas alianças com partidos de todos os quadrantes. O ano de 2020 vai entrar para a história como um momento de destruição criativa.

Constará nessa história que a hegemonia petista terá sido dinamitada pela criação de novas alternativas, ao invés das guerras judiciárias e ameaças de violência política que caracterizaram a última década.

Guilherme Boulos não apenas introduziu temas e tecnologias fora do alcance dos vetustos quadros petistas, mas também levou o PSOL de São Paulo a deixar de ser um movimento de contestação para se tornar um polo de poder capaz de agregar as principais figuras da centro-esquerda.

Simbolicamente, ele contará no segundo turno da eleição municipal com o voto de Tabata Amaral, uma das mais empolgantes lideranças que emergiram desde o fatídico desmanche da social-democracia em 2018. Essa aliança de circunstância outrora impensável de duas figuras antagônicas do campo progressista deve-se ao declínio do PT, mas também do seu rival histórico na social-democracia, o PSDB.

Ao acatar a indicação de um vice que vai contra os seus valores para alimentar as ambições de João Doria, Covas contribuiu para a primeira frente verdadeiramente ampla da era Jair Bolsonaro, mas não da maneira como ele provavelmente almejava.

Vista como uma heresia, a comparação entre Guilherme Boulos e Tabata Amaral é particularmente relevante para entender a tomada de poder da nova geração. Ambos se construíram na luta contra as estruturas partidárias. Os campeões em testosterona do PDT não hesitaram em perseguir Tabata pelo crime de pensar por conta própria.

Num patético gesto de centralismo autoritário, Gleisi Hoffman ameaçou de exclusão do PT os militantes que aderissem à candidatura de Boulos, antes de terminar a campanha sabotando os esforços do seu próprio candidato. O desespero dos caciques e o sumiço dos expoentes do fisiologismo de esquerda, como Márcio França, são o principal indício de que a renovação partidária e geracional veio para ficar.


Mathias Alencastro: Ruptura da diplomacia dos EUA acaba com papel de xerife do mundo

Confronto com China será maior legado do mandato de Donald Trump

Para um presidente que se define como ultranacionalista, Donald Trump se mostrou sempre muito investido, e por vezes até fascinado, pelas tramas de política externa.

A sua atitude de desprezo pelas instituições internacionais, tratadas como burocracias decadentes, contrasta com a forma apaixonada com que lidou com outras agendas diplomáticas.

Aos trancos e barrancos, ele redesenhou os jogos de poder em certas regiões do mundo e redefiniu o debate da política externa nos Estados Unidos.

A forma como estabeleceu os termos do confronto entre os Estados Unidos e a China será, sem dúvida, o maior legado do seu primeiro mandato. Pouco importa que a guerra comercial seja inócua ou até contraproducente.

Feito notável, Trump deixou claro para o cidadão médio norte-americano a maneira pela qual os planos de Pequim impactam a sua existência. Daqui para a frente, a identidade dos EUA se construirá em função da China.

O Oriente Médio é outro espaço transformado pelas suas iniciativas. Washington encerrou o ciclo iniciado pela Primavera Árabe com a transferência de poder regional do Egito, transformado em prisão a céu aberto, e da Síria, arrasada pela guerra civil, para a Arábia Saudita e as petromonarquias do Golfo Pérsico.

Causa espanto o entusiasmo de alguns com o potencial transformador dessas novas lideranças, mais conhecidas por decepar jornalistas, perseguir mulheres e chacinar populações inteiras, como no Iêmen. Mas deve-se reconhecer que as relações entre Israel e seus vizinhos saíram da inércia depois de décadas.

Em outros casos, Trump destacou-se pela inconsequência ou desinteresse.

A diplomacia tela quente na Península da Coreia trouxe pouco mais do que manchetes de jornais sobre cimeiras tão bizarras como fúteis. Para a desilusão dos teóricos do imperialismo, Trump tratou a América Latina como uma terra insignificante. Até a questão da Venezuela, de alto potencial eleitoral, acabou terceirizada para o senador Marco Rubio e o secretário de Estado, Mike Pompeo.

O declínio da influência americana na Eurásia trouxe consequências inesperadas. A União Europeia acabou reforçando sua coesão interna, como se viu nas negociações pelo pacote econômico de luta contra a pandemia. Os charlatões do brexit, que viram ruir o sonho de uma grande aliança com os Estados Unidos, tentam se virar com Canadá e Austrália.

No mediterrâneo, os atores regionais já operam em modo pós-Otan, com a Turquia emergindo como a principal antagonista política e militar dos europeus depois da Rússia.

Muitos pensam que, numa eventual derrota de Donald Trump, a ordem internacional irá se reconstituir num estalar de dedos do novo presidente Joe Biden. Isso seria subestimar as consequências dos últimos quatro anos.

A ruptura da diplomacia dos Estados Unidos abriu um espaço inesperado para potências médias consolidarem a sua autoridade. A questão não é saber se os Estados Unidos conseguem retomar o protagonismo, mas se a figura de xerife do mundo, criada por Washington, voltará um dia a existir. ​

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Mathias Alencastro: Centro-esquerda está saindo renovada e fortalecida da era populista

No Brasil, porém, a Executiva Nacional do PT resiste graças a falácias

Poucos discordam que a sequência marcada pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a detenção de Lula em 2018 definiu o atual projeto do Partido dos Trabalhadores. Todavia, outra dinâmica não menos importante, comum a outras formações de centro esquerda, também influenciou esse processo.

Os anos 2015-2020 são caracterizados pela ascensão e queda de novas formações de esquerda como o espanhol Podemos, a França Insubmissa e, mais importante ainda, pela tomada de poder de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico.

Todos defendiam uma estratégia de acirramento da contestação política e de mobilização apaixonada das bases.

Eles ofereceram o respaldo teórico e prático ao PT para dar uma guinada programática depois de treze anos no poder. Naquela altura, a prioridade do partido era evitar ser ultrapassado pela esquerda.

O que resta dessa experiência? Dirigido por uma tirania familiar, o Podemos virou uma muleta ineficiente do governo Pedro Sánchez.

A França Insubmissa fracassou na sua tentativa de capturar o eleitorado de esquerda órfão do Partido Socialista. Os trabalhistas sofreram algumas das suas mais humilhantes derrotas sob o comando de Jeremy Corbyn.

Contra todas as expectativas, a pandemia abriu um novo capítulo. O moderado Keir Starmer reconstruiu as fundações dos trabalhistas no Reino Unido e, em poucos meses, recuperou a popularidade perdida nos anos Corbyn.

Na França, ambientalistas e socialistas triunfaram nas municipais. Juntos, eles formam a alternativa mais credível ao governo Macron, firmemente ancorado à direita. Um pouco por todo o lado, a centro-esquerda está saindo renovada e fortalecida da era populista.

No Brasil, porém, a Executiva Nacional do PT resiste graças a duas falácias. A primeira é denunciar a eleição de Jair Bolsonaro como parte de uma interminável conspiração contra o partido. A segunda falácia é a ideia de que o PT deve continuar girando em torno de Lula.

O advento do Consórcio do Nordeste, a maior força de oposição ao governo, e a atuação dos melhores quadros petistas nas discussões da Frente Ampla, deixam claro de que isso não passa de uma ilusão sustentada por burocratas desprovidos de capital eleitoral.

O PT não é o primeiro grande partido de centro-esquerda a ter dificuldades em gerir a transição para a oposição depois de um longo período no governo. Basta olhar para a travessia do deserto dos trabalhistas depois da queda de Tony Blair. Tampouco é o primeiro partido a ter de lidar com a onipresença de um líder histórico. Por décadas, o Partido Socialista francês viveu na sombra do seu fundador e idealizador, François Mitterand. Embora delicadas, essas questões seriam facilmente superadas por uma nova geração de dirigentes.

Mas o PT é a única formação que optou por renovar o mandato de uma Comissão Executiva Nacional com uma agenda rejeitada pela sociedade e descartada no mundo inteiro. Por isso, não vale a pena perder tempo tentando debater as sempiternas querelas sobre golpe, Lava Jato e a Venezuela. Para a atual Executiva do PT, o único projeto é o impasse.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra)


Mathias Alencastro: Jair Bolsonaro é um Viktor Orbán da série B

Analogias entre brasileiro e autocratas mais bem-sucedidos parecem cada vez mais desproporcionais

Depois de mais uma semana de acontecimentos tirados de um episódio de "Família Soprano", a aura de Jair Bolsonaro, que tanto intimidava no começo do mandato, nunca esteve tão abalada.

Declarar que o presidente será lembrado como uma gripezinha da democracia brasileira seria completamente prematuro. Mas as analogias entre Bolsonaro e os autocratas mais bem-sucedidos da nossa era parecem cada vez mais desproporcionais.

Tome-se por exemplo o caso do húngaro Viktor Orbán, idolatrado por Ernesto Araújo. Objeto de fascínio dos analistas políticos, o seu regime iliberal é frequentemente apontado como o destino natural do governo Bolsonaro.

Se esse for o caso, o caminho ainda é longo. Ativista político desde os anos 1980, Orbán preparou o fechamento do regime durante décadas. Criou um partido que se tornou indissociável do Estado e um império midiático para instaurar um culto à sua personalidade e mobilizar a sociedade em torno do ódio aos imigrantes.

Transformou a luta anti-soviética numa cruzada eurocética e organizou uma frente regional, atrelando graúdos como Marine Le Pen e Matteo Salvini ao seu país de 10 milhões de habitantes.

Bolsonaro comanda um partido que cabe numa planilha de Excel, a Aliança pelo Brasil. Entra em parafuso com uma investigação sobre um punhado de blogueiros e uma horda de robôs iletrados. Apoiou golpes em países vizinhos, mas nunca chegou perto de liderar o Mercosul. Precisa recorrer a truques de tiranos de araque da África do Norte e da América Central para contrabandear para o exterior o seu ministro mais assanhado.

Falando no fugitivo, a educação é o coração da batalha de todo aspirante a autocrata. Orbán desencadeou a sua revolução cultural com uma ofensiva contra a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo seu inimigo designado George Soros. A instituição era, segundo ele, o templo do cosmopolitismo que estava arrastando a Hungria à decadência moral. Hoje, seus professores continuam ensinando, mas a partir da Áustria.

Abraham Weintraub chegou para implementar o “Future-se”, um programa de destruição do Ministério da Educação travestido em reforma neoliberal. Entregou uma montanha de medidas provisórias e portarias mal escritas, muitas delas derrubadas na Justiça.

Pretendentes a autocratas fracassados e falidos não são necessariamente mais inofensivos e impopulares do que os seus modelos.

O vandalismo barroco de Weintraub pode provocar danos tão profundos como a meticulosa subversão praticada por Orbán e companhia. Mas são danos de natureza diferente, causados por pessoas com ambições e capacidades distintas.

Há um longo debate para saber se os homens fortes definem a história ou se a história avança à revelia deles. Hoje poucos discordam que Vladimir Putin, Narendra Modi e Viktor Orbán estão escrevendo o futuro das suas nações.

Quiçá Bolsonaro virá a ganhar um lugar nesse sinistro panteão. Mas por enquanto temos de deixar no ar a possibilidade de que uma parte dos brasileiros, na sua ânsia suicida de alçar ao poder um homem forte, tenha comprado gato por lebre.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Mathias Alencastro: Vida e morte da frente ampla

Escolha de Jilmar Tatto é fim de uma era

A esquerda brasileira padece de uma ilusão portuguesa. Muitos acreditam que a famosa geringonça, a aliança entre socialistas, bloquistas e comunistas, seria, na sua encarnação tropical, uma parceria entre PT, PC do B e PSOL.

Mas o gênio do premiê português, António Costa, chefe e idealizador do projeto, está na sua capacidade de mobilizar esses partidos da esquerda para ocupar o centro do tabuleiro político.

Com o apoio envergonhado dos seus aliados, ele capturou as bandeiras conservadoras do rigor fiscal e da segurança pública.

Na semana passada, Costa, em mais um gesto de ruptura, aproveitou o desconfinamento para declarar o seu apoio à reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente de centro-direita.

Moscou, Istambul, Budapeste, capitais políticas e financeiras estão na linha de frente do combate ao populismo de seus respectivos chefes de governo. Em todas essas cidades, os progressistas foram além da experiência portuguesa, juntando partidos de todos os bordos.

Em Budapeste, a esquerda chega ao extremo de advogar a aproximação com fações da extrema direita opostas a Viktor Órban. Vale tudo em nome da luta contra o autoritarismo.

Enquanto isso, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a intransigência do parisiense Ciro Gomes, a relutância de Lula em reconhecer o colapso da hegemonia petista, e as micro-querelas do PSOL inviabilizaram a frente ampla. Uma fraquejada indigna do momento histórico.

Seguindo o exemplo do resto do mundo, as capitais estaduais deveriam servir de bastião de resistência contra o governo Bolsonaro e de laboratório para uma nova plataforma política.

Em disso, as lideranças proporcionaram um espetáculo de egocentrismo semelhante ao do segundo turno das presidenciais de 2018.

Mas há novidades. No sábado (16) os membros dos diretórios regionais do PT na cidade de São Paulo indicaram para disputar a prefeitura Jilmar Tatto, um candidato sem dimensão nacional e apelo além dos militantes.

Um fiasco anunciado que dará força aos comandantes petistas nordestinos, ansiosos por assumir as rédeas do partido nas negociações nacionais para 2022.

Aí a conversa será outra. Transformado pela pandemia, o Consórcio do Nordeste está criando as condições para a emergência de uma geringonça nos moldes da portuguesa.

Basta olhar para a parceria produtiva entre Rui Costa e ACM Neto e, além do petismo, para as conversas exploratórias entre Flávio Dino e Luciano Huck.

Assombrado pelas suas derrotas recentes, o campo progressista demora a se transformar.

Mas nada de desespero: a formação de uma aliança tranversal que incorpore o melhor do petismo está muito mais avançada do que o marasmo atual deixa transparecer.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).