Marielle

Eliane Brum: Como enfrentar o sangue dos dias

Conectar as periferias que reivindicam o lugar de centro e cujas lideranças estão marcadas para morrer é um dos maiores – e mais potentes – desafios de quem quer refundar a democracia no Brasil

Marielle Franco
A imagem de Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, na escadaria da Rua Cristiano Viana, no bairro de Pinheiros, em São Paulo JOÃO LUIZ GUIMARÃES

Este não é apenas um momento de brutalidade extrema no Brasil. É também um momento de potências emergindo. E começos de alianças até então impensáveis. É preciso perceber onde estão as possibilidades – e fazer frente àqueles que, diante da democracia corrompida do país, avançam sobre os corpos humanos.

A expectativa dos atores mais truculentos é de que a porteira foi aberta e desde então está tudo dominado. Mas acreditar que está tudo dominado é deixar de perceber que a violência se multiplica também porque não está tudo dominado. A violência da bandidagem instituída e não instituída é também uma reação a profundos avanços no interior dos Brasis. É nestes avanços que uma rede de proteção e resistência que consiga superar divergências não fundamentais precisa ser organizada. Porque a matança não para. Desde o assassinato de Marielle Franco, o medo de quem está na linha de frente aumenta e trespassa o país.

Neste exato momento, há pelo menos duas lideranças da floresta amazônica escondidas para não se tornarem, como Marielle, um corpo destruído à bala. Seus nomes: Francisco Firmino Silva, 68 anos, mais conhecido como Chico Caititu, e Ageu Lobo Pereira, 36. Seu crime: realizarem o que o Estado é obrigado a fazer mas não faz, que é a demarcação e implantação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Montanha e Mangabal. E também a proteção do território de floresta.

A única barreira entre o crime organizado e a destruição da floresta é o corpo dos ribeirinhos

Ao fazer o que o Estado deveria fazer mas não faz, os ribeirinhos enfrentam o crime organizado no rio Tapajós, na região de Itaituba, no Pará. Para aqueles que querem avançar sobre essa porção valorizada da Amazônia, a única barreira são os corpos dos beiradeiros que defendem o território de uma ameaça grande demais: o comércio internacional de madeiras e o ouro que acaba no mercado financeiro já lavado do sangue.

Chico Caititu e Ageu Lobo não são os únicos. Há homens e mulheres ameaçados de morte em toda a Amazônia brasileira e nas periferias das grandes cidades. Há lideranças na mira da bala em quilombos, terras indígenas, assentamentos, acampamentos, ocupações e favelas.

O medo de ser morto se alastra pelo país. Setores da classe média que apoiam essas lutas começam a temer por sua vida, um temor que se acirrou com a execução de Marielle Franco. Há os que acreditam ter a escolha de deixar de lutar. São os que têm o privilégio de um plano B ou o de simplesmente não fazer nada. Mas há os que não têm escolha porque esta é sua própria vida. Ou morte.

Chico Caititu está ameaçado de morte por sua luta em defesa da comunidade Montanha e Mangabal, do rio Tapajós e da floresta amazônica
Chico Caititu está ameaçado de morte por sua luta em defesa da comunidade Montanha e Mangabal, do rio Tapajós e da floresta amazônica LILO CLARETO

Como os dias se tornam mais graves, o momento é exigente para quem vive no Brasil. Diante do sangue das horas, como cada um vai se posicionar?

1) Marielle Franco e as forças emergentes

O assassinato de Marielle Franco apontou algumas realidades. A mais evidente é o limite superado no país sem limites. Destruir o corpo de uma vereadora no Rio de Janeiro sob intervenção federal, intervenção que esta mesma vereadora criticava, é uma declaração de pode tudo. Mas só se destrói aquilo que ameaça.

O fato de que uma mulher negra, lésbica, feminista, nascida na favela da Maré, tenha se tornado a quinta vereadora mais votada do Rio é um indicador de mudança. Marielle era uma bandeira de múltiplas lutas identitárias que havia conquistado um lugar nas instituições. Mas era bem mais do que isso.

Marielle ocupou uma posição dentro da política formal (pelo PSOL, um partido de esquerda), e tornou-se uma vereadora que trabalhava. Sua atuação era focada em políticas públicas para as mulheres, para os negros e para os LGBT – assim como por direitos humanos que se expressavam no concreto da vida cotidiana. Ela também denunciava as milícias e os abusos da Polícia Militar no Rio.

Marielle realizava, com o exemplo de sua própria vida, o discurso de que a política precisa se renovar no Brasil. E dava um corpo concreto, este que foi destruído, a algo transgressor nestes tempos de antipolítica: o de que a democracia ainda pode responder aos anseios de igualdade e romper com os destinos marcados.

Essa é a primeira realidade que a tornou uma pessoa perigosa para diferentes grupos que disputam o poder em diferentes instâncias.

Ao ser assassinada, Marielle revelou uma segunda realidade, esta ainda mais surpreendente: a de que os brasileiros, ora exibidos como polarizados e divididos, ora como passivos ou omissos, são capazes de se comover – e mover – por uma mulher nascida na favela, negra, lésbica e feminista.

Marielle Franco quebrou o paradigma dos choráveis do Brasil, aqueles por quem a maioria dos brasileiros faz luto e luta

Em nenhum momento se deve esquecer da força dessa ruptura simbólica. Com Marielle Franco há uma quebra de paradigma dos choráveis do Brasil. Como mulher negra e nascida na favela, Marielle Franco pertencia aos “matáveis” do Brasil, aqueles cujas mortes não causam espanto, normalizadas que são. O que seus assassinos não calcularam era que, com sua vida, ela já não era mais “matável”. O que ninguém poderia calcular é que Marielle havia se tornado também parte dos choráveis, aqueles por quem a maioria dos brasileiros faz luto e luta. Não é pouca coisa para um país como o Brasil.

Há ainda uma terceira realidade: as fake news foram derrotadas. A narrativa que buscava criminalizar Marielle Franco, inventando fatos sobre a vida dela que pudessem esvaziá-la como o totem que se tornou, foi vencida. As notícias falsas começaram com uma desembargadora do Rio de Janeiro, Marília de Castro Neves Vieira, que publicou uma mentira sobre Marielle no Facebook, e se espalharam através do site “Ceticismo Político”, ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL), milícia conhecida por propagar mentiras para desqualificar adversários próprios ou de políticos amigos.

Desde que as notícias falsas passaram a compor a paisagem também no Brasil, é a primeira vez que as milícias de ódio sofrem uma derrota dessa proporção. Não é pouca coisa.

Como o cotidiano no Brasil – e também no mundo – é brutal, e como o medo de ter o corpo destruído cresce a cada dia, há uma tendência de só enxergar uma marcha acelerada rumo ao autoritarismo. Essa marcha é um fato, mas não é o único. Há novas forças no Brasil disputando o poder e fazendo resistência.

A crescente influência das feministas negras em vários campos do debate nacional está entre as mais significativas. Historicamente, as mulheres negras constituem o grupo mais frágil do Brasil, um país de estrutura racista e com números alarmantes de estupros e violência doméstica. As negras chegaram ao Brasil como escravas vindas de diferentes pontos da África e, com a abolição sem abolição – ou com a abolição sem políticas públicas de inclusão –, tornaram-se o rosto das empregadas domésticas, até hoje em alguns lugares do Brasil um trabalho análogo à escravidão.

É interessante observar que, na tentativa de desqualificar a vida de Marielle, após o seu assassinato, e assim esvaziar os sentidos de sua morte, tentaram colar nela o rótulo de “mulher de traficante”. Afinal, se ela não era empregada doméstica, só podia ser mulher de traficante. Ou: se ela ousou sair do lugar de empregada doméstica, a negra trabalhadora, só poderia lhe restar o lugar de “vadia”, em mais uma expressão do preconceito contra todas as mulheres, mas bem mais forte contra as negras.

Não colou. Em grande parte porque Marielle representava em vida um conjunto cada vez mais influente de mulheres negras determinadas a mudar um destino marcado. Marielle não estava só nem é a única. Ela se tornou, com sua morte, o rosto vivo de um fenômeno coletivo cada vez mais forte, que tem denunciado o racismo com contundência também em áreas sensíveis como a cultura e a universidade. E, em alguns episódios, confrontado também as feministas brancas.

As feministas negras, que têm em Marielle um rosto, são uma força política com influência crescente na disputa tanto do presente quanto do futuro.

Marielle Franco é o rosto vivo de um movimento coletivo cada vez mais influente no Brasil, o das feministas negras
Marielle Franco é o rosto vivo de um movimento coletivo cada vez mais influente no Brasil, o das feministas negras JOÃO LUIZ GUIMARÃES

2) Onde as forças progressistas falham

As mulheres negras (e os homens negros), com atuação contra o racismo, são uma força. Mas há outras. Um dos grandes desafios deste momento é conectar forças políticas emergentes que, com exceção de umas poucas iniciativas, seguem desconectadas no Brasil. Há barragens bloqueando diferentes movimentos com lideranças ameaçadas de morte que deveriam estar juntos, disputando o agora, construindo uma rede comum de proteção e resistência – e pressionando o Estado.

O que a feminista negra Marielle Franco tem em comum com os ribeirinhos amazônicos Chico Caititu e Ageu Lobo?

Marielle Franco tornou-se uma voz incômoda quando atravessou uma barreira (ou várias) e ocupou um espaço de poder. E ocupou pela representação de várias minorias, que ela de fato representava ao mudar a realidade destas minorias pelo caminho das políticas públicas. Marielle era uma excelente vereadora e resgatava a dignidade de um legislativo com reputação abaixo do chão.

O que a feminista negra da Maré tem em comum com os ribeirinhos Chico Caititu e Ageu Lobo do Tapajós, estes que ainda não foram mortos, mas podem ser a qualquer momento? O fato de ter atravessado um muro.

Ageu Lobo, obrigado a deixar a floresta para não ser assassinado, é o presidente da comunidade ribeirinha Montanha e Mangabal, no rio Tapajós, no Pará
Ageu Lobo, obrigado a deixar a floresta para não ser assassinado, é o presidente da comunidade ribeirinha Montanha e Mangabal, no rio Tapajós, no Pará LILO CLARETO

O Brasil que enfrenta os tantos desafios desse momento histórico conta com uma geração com forte protagonismo em diversos campos, mas escassa formação política. O resultado dessa combinação aparece e cobra seu preço nos dias e nas lutas. É o ônus de ter vivido uma ditadura de mais de duas décadas e de não ter responsabilizado os assassinos e torturadores. A falta de formação política é um efeito direto da dificuldade de fazer memória do país.

No Tapajós, porém, realizou-se um acontecimento político – ou até uma reinvenção do que é a política em outros termos que não o dos brancos. Neste enclave amazônico, ribeirinhos e indígenas compartilham uma trajetória de conflitos. Afinal, os atuais beiradeiros dos rios amazônicos são descendentes de nordestinos pobres carregados até a floresta para cortar seringa na segunda metade do século 19 – e, em algumas regiões, também na Segunda Guerra Mundial (1939-45), como soldados da borracha. O território que ocuparam debaixo do jugo dos seringalistas era território indígena, de diferentes povos.

Os ataques – e as mortes – foram frequentes de lado a lado. Parte dos atuais ribeirinhos têm como avó ou bisavó uma indígena roubada de sua aldeia. Parte destas famílias se iniciaram com um estupro. Assim, por décadas, ribeirinhos e indígenas conviveram em diferentes pontos da floresta com mútua desconfiança, quando não aberta hostilidade.

Com o anúncio das grandes hidrelétricas, hostilidade e desconfiança começaram a ser superadas. A aliança se consolidou nesta segunda década do século, pela luta comum contra os grandes empreendimentos e também contra a omissão do Estado em prosseguir com a demarcação das terras. Ribeirinhos e indígenas perceberam que, caso não se unissem, seriam limpados do caminho para abrir espaço para megaobras do governo e para os interesses do agrobanditismo. A aliança estratégica foi decisiva para o Ibama arquivar, em 2016, o licenciamento do projeto da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. A usina, uma ameaça que continua assombrando a Amazônia, atingiria o território dos Munduruku e Montanha e Mangabal, entre outras comunidades ribeirinhas.

O rio Tapajós, um dos mais bonitos da floresta amazônica, é ameaçado por grilagem, comércio de madeira, desmatamento, garimpos e projetos de grandes hidrelétricas
O rio Tapajós, um dos mais bonitos da floresta amazônica, é ameaçado por grilagem, comércio de madeira, desmatamento, garimpos e projetos de grandes hidrelétricas LILO CLARETO

Chico Caititu, hoje marcado para morrer, é uma figura-chave nesta aliança. Em 2013, ele deixou sua roça na comunidade de Montanha e Mangabal, no Tapajós, para acompanhar os Munduruku na ocupação do canteiro de obras de Belo Monte, no Xingu. Estavam, o ribeirinho e os guerreiros Munduruku, a 800 quilômetros de sua terra.

Essa ocupação estratégica mostrou que a luta contra os grandes empreendimentos na Amazônia não poderia ser apenas local, entre os diretamente atingidos, mas do conjunto dos povos da floresta contra uma concepção de desenvolvimento e também de mundo que destruiria a eles e a floresta. Tanto que os guerreiros Munduruku, do Tapajós, se fizeram presentes no Xingu. E, com eles, estava Chico Caititu, o homem que costurou as pontes entre os Munduruku e Montanha e Mangabal, entre indígenas e ribeirinhos.

Em 2014, cansados de esperar por um governo que preferiria que eles não existissem, os Munduruku começaram a fazer a autodemarcação da terra indígena Sawré Muyby, a que estava no caminho dos grandes projetos hidrelétricos na bacia do Tapajós. Chico Caititu estava lá, ajudando-os. Em 2017, os ribeirinhos iniciaram a autodemarcação do Projeto de Assentamento Agroextrativista de Montanha e Mangabal. E os guerreiros Munduruku estavam presentes. Juntos, eles fizeram aquela que pode ser a aliança política mais arrojada do país para enfrentar o extermínio mútuo. Há muito a aprender com indígenas e ribeirinhos também sobre política.

Só não enxerga a enormidade dessa aliança, obviamente não imune a conflitos, quem não conhece a história do Brasil. É com essa aliança que a lei está sendo cumprida e as terras estão sendo autodemarcadas, confrontando governos que violaram e seguem violando a floresta amazônica e os povos da floresta. É ali que se encontra um dos principais processos de resistência contra uma ideia de Brasil que destrói a floresta e ignora o vasto conhecimento de seus habitantes, multiplicando os riscos representados pela mudança climática provocada por ação humana.

Aqueles que querem assassinar Chico Caititu e Ageu Lobo, o presidente da comunidade, desejam dinamitar pontes humanas. “Se eu não estivesse com os indígenas, estaria morto”, me disse Chico Caititu, já escondido. Ele deixou a comunidade com um grupo Munduruku, para alcançar Itaituba, a cidade mais próxima. E de lá foi para Brasília contar a sua história no Fórum Alternativo Mundial da Água, como estratégia de proteção.

Hoje, ele e Ageu estão escondidos em outra cidade, esperando a resposta ao pedido de inclusão no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. “Tou dentro de um buraco, escondido”, diz Chico. Ambos sofrem com uma gripe forte na zona urbana. E Ageu começa a demonstrar sinais de depressão, preocupado com a família que ficou e com a luta que precisa seguir.

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A "Vilinha", na comunidade Montanha e Mangabal, é onde vivia Ageu Lobo até dias atrás, quando teve que fugir para salvar sua vida. LILO CLARETO

Chico Caititu, Ageu Lobo e Pedro Braga, o vice-presidente da comunidade, estão no caminho da extração de ouro, madeira e palmito. Sem apoio do Estado, eles colocam o seu corpo na linha de frente, para cumprir a lei e impedir que a floresta e o rio sejam destruídos. Atrapalham os negócios que começam como crime, mas depois tornam-se legalizados. Que têm uma face local, mas se ramificam pelo país – ou a madeira não chegaria ao comércio internacional e o ouro não entraria no mercado financeiro.

Só a escuta dos que querem viver pode impedir o horror que é o som de um corpo destruído à bala

“Nosso maior sonho é continuar defendendo não só Montanha e Mangabal, mas o Tapajós e a floresta”, diz Ageu. “É muito duro pra nós saber que a gente não é criminoso, que a gente luta pelo bem coletivo, que a gente defende a floresta e que, por causa disso, a gente está ameaçado de morte, por causa disso a gente virou fugitivo.” Eles lutam por Montanha e Mangabal há muito, mas é a primeira vez que assumem ter medo de morrer.

Quando ribeirinhos como eles afirmam ter medo de serem assassinados, deveriam ser escutados. Só a escuta pode impedir o horror que é o som de um corpo destruído à bala.

3) Sobre a urgência de juntar os pontos

Pouco antes de Marielle Franco ser assassinada, Paulo Sérgio Almeida Nascimento, uma das lideranças da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), que representa 112 comunidades tradicionais, foi assassinado em Barcarena, a 40 quilômetros de Belém, no Pará. Ele e sua associação denunciaram a contaminação dos mananciais por resíduos sólidos da produção de bauxita de uma das maiores mineradoras do mundo, a norueguesa Hydro Alunorte.

Em fevereiro, rios e igarapés foram contaminados por uma lama vermelha e tóxica, causada por um vazamento comprovado pelo Instituto Evandro Chagas e só assumido pelo grupo norueguês bem mais tarde. Outros três dutos irregulares da Hydro Alunorte já foram encontrados. Paulo Sérgio foi a segunda liderança assassinada em menos de três meses na região. Ainda não há conclusão sobre as razões do crime. Outras três mulheres, segundo a Agência de Jornalismo Independente Amazônia Real, também lideranças, estão ameaçadas de morte.

Apenas dois dias separam os assassinatos de Paulo Sérgio Nascimento e Marielle Franco, mas as mortes foram apenas timidamente conectadas. Ainda que as geografias sejam diferentes, as lideranças mortas e ameaçadas de morte hoje no Brasil têm em comum o fato de questionarem interesses hegemônicos, confrontarem o crime organizado – o institucional e o não institucional – e representarem novas forças emergentes com crescente influência na disputa do presente.

Há muito mais em comum entre uma mulher negra da favela da Maré eleita para a Câmara de Vereadores do Rio e uma liderança cabocla, quilombola e ribeirinha do interior da Amazônia do que qualquer um deles teria com aqueles cujos interesses e privilégios são ameaçados por suas lutas. Mas, infelizmente, os diferentes movimentos têm dificuldades para atravessar as barreiras, também geográficas, e ampliar sua potência de agir.

Se os Munduruku e os ribeirinhos de Montanha e Mangabal fizeram uma aliança em nome da própria sobrevivência e da proteção da Amazônia, há uma enorme dificuldade de percepção dos movimentos urbanos de que esta é também uma luta pela retomada da cidade. Há estudos científicos bastante consistentes mostrando que a destruição da floresta atinge direitos básicos, como o direito à água, em cidades como Rio e São Paulo. E é um fato que os mais pobres são os mais atingidos pela mudança climática. Desigualdade e destruição ambiental são temas intimamente ligados.

Criança ribeirinha da comunidade Montanha e Mangabal no rio Tapajós
Criança ribeirinha da comunidade Montanha e Mangabal no rio Tapajós LILO CLARETO

Quando as barreiras são rompidas, há grande impacto. Basta lembrar da reação imediata e truculenta do setor atrasado do agronegócio quando a escola de samba Imperatriz Leopoldinense escolheu o Xingu e a destruição da floresta e dos povos da floresta como tema no Carnaval de 2017. Quem está no poder sabe o quanto as conexões entre as periferias podem ameaçar poder e privilégios.

Aqueles que são mortos, como Marielle Franco e Paulo Sérgio Nascimento, e ameaçados de morte, como Chico Caititu e Ageu Lobo, são justamente aqueles que representam novas ideias de ser Brasil. E que confrontam as estruturas de um país racista, desigual e com alta concentração de terra e de renda. Os mortos e os ameaçados de extermínio representam essas ideias também ao conseguir colocar seu corpo em lugares em que até pouco tempo atrás tinham entrada barrada.

O melhor – e o mais potente – do Brasil atual são as periferias que reivindicam o lugar de centro. São as lideranças desse movimento múltiplo que estão sendo mortas à bala.

O pescador Elio Alves da Silva, que virou poeta após ser expulso por Belo Monte, alerta que não temos nenhuma força se contamos apenas como um. Mas podemos romper as barragens se formos Eu+Um.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

 


Cristovam Buarque: Marielle continua

Conhecemos Marielle há 518 anos. Ela estava entre os índios que resistiram aos invasores portugueses que desceram na praia naquela tarde de abril de 1500, porque não aceitavam perder as terras que receberam dos pais e deixariam para os filhos. Não aceitaram a conversão imposta para um Deus estranho; não se deixavam escravizar; tentaram impedir que suas florestas fossem destruídas, suas filhas, violentadas.

Ela estava entre os negros que se revoltavam, ainda na África, contra o sequestro que sofriam, rebelavam-se durante as travessias do Atlântico nos malditos navios negreiros. Estava entre todos os que morreram lutando contra as argolas, as algemas, os pelourinhos, o trabalho forçado, as chicotadas, os assassinatos tolerados pelo sistema judiciário; e contra a trágica mancha vergonhosa da escravidão.

Reconhecemos Marielle sob o nome de Zumbi e cada um de seus guerreiros, também Gama e Nabuco e muitos outros que deram seus anos de vida e a própria vida na luta pela abolição; lutaram pela liberdade e pelos direitos dos negros, e para que, além da liberdade, tivessem um pedaço de terra onde trabalhar e uma banca de escola onde seus filhos pudessem estudar. Marielle esteve presente na luta de cada camponês pela reforma agrária, sempre adiada; ao lado de cada líder assassinado na luta pelo direito à terra; e dos que resistiram à migração necessária para as grandes cidades. O rosto de Marielle esteve presente entre os primeiros moradores das periferias a que eles deram o nome de favela.

Marielle estava presente ao lado de Tiradentes e dos inconfidentes, lutando pela independência. Ela fez parte dos revolucionários de 1817 e 1824, em Pernambuco, fuzilados ou enforcados no cadafalso; da mesma forma que, 200 anos depois, ela foi assassinada na calada da noite, por assassinos escondidos covardemente dentro de um automóvel ao lado.

Marielle estava ao lado de Chico Mendes, irmã Dorothy, Rui Frazão e outros que enfrentaram as armas no Araguaia. Estava com Herzog, Manuel Fiel Filho, com cada um dos que sofreram tortura, exílio, prisão, ao longo de duas décadas da história do Brasil; ao lado dos que caminharam em manifestações contra a ditadura, por “tortura nunca mais”, pela democracia, por eleições diretas. Ela assistiu à morte de Jonas e Ivan, em março de 1964, em Recife, e de Edson Luís, em março de 1968, no Rio de Janeiro. Marielle está entre todos os que lutam contra a corrupção na política, especialmente quando a corrupção vem dos próprios aliados.

Marielle faz parte, há 518 anos, dos que desejam e lutam para que os filhos dos pobres estudem em escola com a mesma qualidade dos filhos dos ricos; dos que batalham para que a economia brasileira sirva a nosso povo com a necessária eficiência e equidade; dos que combatem os governos demagógicos e irresponsáveis que condenam o povo à carestia da inflação; dos que lutam contra a destruição ambiental, para que nossos rios sejam bem cuidados e nossas florestas protegidas da voracidade do capitalismo selvagem ou do socialismo míope.

Há décadas, o rosto de Marielle está entre os travestis e gays maltratados nas ruas de nossas cidades ou assassinados pela intolerância dos preconceitos. Ele está entre os evangélicos que, no passado, sofreram perseguição, e entre os atuais praticantes de cultos afro-brasileiros, perseguidos, inclusive, por evangélicos sectários.

Marielle vive há séculos e continuará viva, porque sua chama não se faz de carne, mas de ideias, de valores morais, de princípios, de compromissos. Ela faz parte de um seleto grupo de mártires e militantes incorruptíveis, que levam suas lutas às últimas consequências, seja ao risco de morte, seja ao risco de incompreensão em vida. Ela vive em sua biografia de grande mulher e na história de um país que sonha virar uma nação; ela vive ao lado de todos os que participam do progresso moral da civilização, a partir deste pequeno pedaço da humanidade chamado Maré, na sofrida Rio de Janeiro, do injusto e ineficiente Brasil.

Ela vive porque, no mesmo instante em que quatro balas tiraram sua vida, milhares de outros, no Brasil e no mundo, despertam e gritam “Marielle, Presente, Nós Estamos Aqui”, reafirmando a luta pela democracia, contra a injustiça, a favor dos pobres, analfabetos, negros, mulheres, doentes, crianças, idosos, desempregados, desesperados, todas as vítimas de preconceito. Continuaremos a luta pela qual ela e tantos outros há 518 anos dão a vida e não morrem jamais. (Correio Braziliense – 27/03/2018)


Demétrio Magnoli: Marielle, um memorial impossível?

A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário

Os três PMs mortos no Rio num único dia, a quarta, 21 de março, os 30 assassinados em menos de três meses de 2018 e os 134 exterminados em 2017 são cadáveres anônimos, ao contrário de Marielle Franco. Longe das luzes e câmeras, estão também as 1.124 pessoas mortas pela polícia no ano passado, supostamente por resistência a intervenções policiais. A distinção entre a vereadora do PSOL e todos os demais tem sentido, pois a única vítima célebre foi, ao que tudo indica, alvo de um crime político. Mas o contraste entre luz e sombras também sinaliza a naturalização da barbárie que está em curso. É em nome de todos os mortos que seria preciso erguer um memorial a Marielle. Nunca, porém, uma estátua em mármore disponível para selfies de turistas ávidos por estilhaços da sofrida, folclórica “história dos nativos”.

“Tem que pagar por esse crime bárbaro”, disse o ministro Raul Jungmann, comprometendo a intervenção federal com a célere apuração dos nomes dos “executantes” e dos “mandantes”. Se a promessa for cumprida — especialmente na parte dos “mandantes”, sejam “de dentro ou de fora da polícia” — surgirá o esboço do memorial certo. Mas faltará ainda a substância: a separação radical entre o Estado e o crime organizado, por meio de uma profunda reforma da polícia. O passo decisivo depende menos de Jungmann ou do governo federal que da articulação dos partidos e da sociedade civil. O memorial jamais será erguido sem um consenso mínimo entre as principais forças políticas do Rio.

Uma campanha odienta nas redes sociais, estimulada por partidários de Jair Bolsonaro, almeja matar Marielle pela segunda vez, sugerindo uma associação entre a vereadora e o Comando Vermelho. No polo oposto, o PSOL e o PT reduzem a vítima à condição de cadáver útil, isto é, de um veículo inerte propício à difusão de discursos sectários. No lugar de alianças políticas em torno de metas comuns, os dois partidos entregam-se a um jogo de espelhismos que só interessa ao “bolsonarismo” — e, por extensão lógica, à facção bandida da polícia.

A narrativa psolista emana da ideia, caricatural e populista, de uma guerra entre o Estado e o “povo da favela”. No discurso de inúmeros porta-vozes do partido, Marielle é vítima da intervenção federal, que seria conivente com a polícia-bandida e as milícias. A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário — e, como consequência, desvia-se o foco das associações criminosas entre a polícia, as milícias e o narcotráfico. Chamemos isso de “imobilismo revolucionário”: no fundo, o PSOL está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não chegar ao poder, conduzindo o povo oprimido à redenção final.

A narrativa petista, por sua vez, emana da ideia do “golpe”. Dilma Rousseff: “o que aconteceu com a Marielle Franco faz parte de um dos atos deste golpe que desencadearam no Brasil desde 2016. Por que eu digo que faz parte? Porque o golpe não é um ato, o golpe é o processo.” Num ápice agônico de oportunismo, o PT pretende convencer-nos de que Marielle é Dilma e é Lula, de que os responsáveis pela execução da vereadora são o impeachment e a sentença condenatória do TRF-4. O discurso petista esconde, numa paisagem de brumas, o colapso da segurança pública no Rio e o fracasso da política das UPPs. Chamemos isso de “imobilismo eleitoreiro”: no fim, o PT está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não retornar ao Planalto.

A estátua em mármore, pontilhada por placas de metal exibindo palavras de ordem revolucionárias ou slogans eleitorais — isso é tudo que propõem o PSOL e o PT. Mas, desgraçadamente, os dois partidos são indispensáveis para a produção de um consenso democrático no Rio capaz de isolar a parcela da elite política associada ao crime.

“Crime organizado” distingue-se de criminalidade comum pela circunstância de que é um fruto da política. O crime se organiza quando agentes públicos estabelecem pactos de poder e negócios com facções criminosas. A força territorial do narcotráfico e das milícias atesta o grau de degradação da polícia, que deixou de ser um instrumento de manutenção da ordem pública para servir a diversos interesses privados em conflito. A intervenção federal restrita à segurança pública é insuficiente para restaurar a ordem. O nó precisa ser desatado na esfera política, por meio da unidade das forças democráticas em torno de um programa comum de reforma policial.

“Por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção!”, gritam os militantes psolistas, sacrificando o diálogo no caldeirão fervente da ideologia. A intervenção federal não resolve, por si mesma, a questão do colapso da segurança pública, como sabem os chefes militares experimentados. Mas a rejeição do PSOL e do PT à política democrática condena o Rio a depositar suas esperanças no improvável sucesso da operação militar. Nada de memorial, uma estátua na praça e uma cova rasa para os mortos sem nome — é só isso que teremos?

* Demétrio Magnoli é sociólogo

 


Paulo Siqueira: Querem executar os direitos humanos

Em 1964 no condado de Neshoba, no Missisipi, três jovens militantes do direitos civis, um negro e dois judeus, atuavam ajudando a registrar eleitores negros, numa campanha de aumentar a participação de negros nas eleições. Foram perseguidos, emboscados e executados. O governo da União dos EUA interviu no caso, e como houve resistência das autoridades locais, colocou quase duzentos agentes federais na cidade.

Quarenta e um anos depois, Edgar Ray Killen, um pastor Batista, então com 80 anos, foi condenado a 60 anos por ter planejado o assassinato e ter recrutado uma multidão para perseguir os jovens. Ele faleceu na prisão em janeiro de 2018 aos 92 anos.

Apesar das críticas a atuação do FBI no caso, o recado do governos americano foi claro: quem atentar contra o estado democrático de direito dos EUA, não importa quem seja, não importa o tempo que leve, nós iremos atrás de você com tudo. Esse crime gerou uma onda de indignação geral e acabou por contribuir para a criação da Lei dos Direitos Civis, que pôs fim aos diversos sistemas estaduais de segregação racial nos Estados Unidos.

Em 1975 Vladimir Herzorg, o Vlado, foi assassinado numa sessão de tortura no DOI-CODI de São Paulo. Militante do PCB, Vlado se apresentou voluntariamente pra prestar esclarecimentos e acabou torturado e morto, a versão oficial foi a de que havia se suicidado. Vlado era judeu, e como suicida deveria ser enterrado do lado de fora do cemitério israelita, porém o rabino Henry Sobel se recusou a tal indignidade e seu enterro se tornou num ato político contra a ditadura que juntou vários líderes de outras religiões como Dom Evaristo Arns, e apesar do bloqueio policial, a multidão compareceu em peso. A morte de Vlado impulsionou a mobilização contra a ditadura.

14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco, militante dos direitos humanos, negra, assumidamente bissexual, é executada em uma ação extremamente complexa, que entre outros fatores contou com disparos agrupados em ângulo preciso apesar do carro que ela ocupava ter vidros escurecidos, o ataque foi realizado em um local sem câmeras de vigilância, um carro clonado foi utilizado na ação, munição desviada da polícia federal, do mesmo lote de chacinas policiais em SP foi utilizada, a característica de execução não foi sequer disfarçada, como é comum em atentados contra a vida de pessoas com mandato ou que possam causar repercussão na sociedade.

Em todos os três casos a luta entre a defesa dos direitos humanos, do estado democrático de direito entrou em choque direto com grupos reacionários, incrustados nas estruturas de poder, com cumplicidade do estado e apoio social, interessados em manter velhas e anacrônicas instituições antidemocráticas, mas apesar de seu anacronismo, ainda reverberam dentro da sociedade e teimam em morrer.

Apesar da tragédia, quando uma mãe e um pai foram arrancados de sua existência, pulularam nas redes e na imprensa ataques a Marielle, desde dúvidas sobre suposto envolvimento com traficantes, pois uma mulher negra de favela só poderia ser eleita com apoio do tráfico, desfeita essa falácia com a objetividade do mapa de votação dela, se partiu para ataques pessoais mais graves, seu suposto envolvimento quando adolescente com um dos maiores líderes do tráfico carioca, traição a uma determinada facção criminosa, defensora de traficantes e bandidos até o mais terrível de todos os ataques, a relativização de sua tragédia, por ser mais uma dentre as milhares de vítimas anuais, a desconstrução de sua subjetividade, rejeitando sua condição de mulher, negra, favelada, afinal não foi por isso que fora morta, mas questionando como a sociedade se comoveu tanto por apenas mais uma assassinada, e os milhares de pais de família e as centenas de policiais mortos?

Realmente é raro a morte de um negro, em especial, uma mulher negra, favelada, causar tanta comoção. Como é raro uma mulher negra, favelada ser eleita. Sua morte provavelmente foi pelo incômodo que causou a determinado grupo, e a comoção por sua morte ainda causa incômodo, seja por sua posição política à esquerda, num momento histórico em que as esquerdas se desmontam no mundo, e em especial no Brasil, pagam o preço da corrupção e do desastre econômico, seja por ser ela uma defensora dos direitos humanos, os quais causam repulsa no brasileiro médio que busca em nomes como o de Bolsonaro o escape tanto para a esquerda, quanto para a agenda dos direitos humanos e da democracia, em crise também, demonstrada pela aversão aos políticos, aos partidos e às instituições democráticas, tendo em contraposição, as forças armadas, instituição de força, hierarquia, nacionalismo, seriedade e austeridade quase messiânica na visão desse mesmo brasileiro, herdeiro do português cruzado, milenarista, do bandeirante, do positivista, do estado novista e do nacional-desenvolvimentista, projetos nacionais de visão macro, moldados na ordem e progresso, onde o indivíduo e o drama humano não têm lugar.

Uma história de escravidão e exclusão

Lembremos que ao longo do século XIX, o processo civilizatório brasileiro teve importantes avanços, os castigos públicos foram resguardados devido à forte resistência popular, até a extinção do suplício, a extinção da pena de morte, também devido a forte comoção, mas em especial, após uma luta de décadas, a abolição da escravidão, que permitiu ao estado e à sociedade entender aquelas pessoas não mais como propriedades, animais de cargas, mas seres humanos, com suas subjetividades, seus sonhos e portadores de direitos, como o de decidir sobre seus destinos e poderem lutar por suas felicidades. Embora ainda fosse um processo em germinação, e na vida real, essa multidão de libertos foi jogada à própria sorte, para serem esquecidos, como em certa medida foram, e mergulharam na invisibilidade necessária.

Esses seres incômodos ressurgem na nova urbes, desenhada para ser o reflexo parisiense nos trópicos, na forma de violentos, perigosos, brutalizados, mal cheirosos, com magias e sons profanos, sensualizados, pouco inteligentes e com tendências ao crime e à preguiça. Meninos invadiram as ruas, e a questão dos jovens infratores chama atenção, pois quando incomodam, o poder público precisa se mover. Na república velha, a maioridade penal era aos 9 anos. Em 1927, o menino engraxate Bernadino de 12 anos, preso por agredir um cliente que não o pagou, foi barbarizado por cerca de 20 presos, sua tragédia provocou comoção e ajudou a instalação da maioridade penal no Brasil aos 18 anos e o tratamento especial para menores infratores.

O século XX seguiu entre avanços e retrocessos, com duas ditaduras que moldaram as instituições repressivas no Brasil. As polícias brasileiras, moldadas na repressão política, convivem há muito com os grupos internos de extermínio e a promiscuidade com o crime, assim como aceitam fazer o papel de braço armado para interesse político. A morte de José Rosa do Nascimento, o Mineirinho em 1962, traz à luz a política de extermínio que se consolida com grupos como a Escuderia Le Cocq, os 12 de Ouro, Mão Branca, Esquadrão da Morte entre outros. O excesso de brutalidade com a complacência do estado gera reação, e nos presídios do Rio, em especial Ilha Grande, surgem as facções criminosas, como forma de auto proteção entre os detentos da antiga lei de segurança nacional, a qual incluía criminosos políticos e criminosos comuns, como assaltantes de bancos.

O processo de redemocratização do país viu a organização dos moradores das favelas, no regime militar eram consideradas lumpen, que esquecidas pelo poder público fatalmente desapareceriam, visto que seus moradores lá estavam temporariamente por conta de seus trabalhos, muitos na construção civil, trabalho de natureza temporária, e portanto ao fim das obras, eles iriam embora. Ocorreu o contrário, e apesar de sua invisibilidade, as favelas continuaram e até prosperaram, seus moradores criaram raízes, tiveram filhos e aos poucos se organizaram. Lideranças surgiram. Marielle foi uma delas.

Em paralelo a esse processo, se radicalizou o da guerra “particular” entre os grupos de extermínio e as facções criminosas. Financiadas pelo tráfico de drogas, essas facções desenvolveram seu projeto político contra o estado e seu braço repressivo, a polícia. Líderes locais de tráfico viram as vantagens em se associar às facções que se expandiam, seja por adesão local, seja pela conquista pela força. Essa expansão se tronou pública com a guerra do morro Dona Marta em Botafogo, com ampla cobertura da imprensa que constatou a imobilidade da polícia, incapaz de evitar o confronto entre os grupos. As facções além de proverem suporte às quadrilha locais, trazem uma certa paz para os moradores, pois têm códigos de conduta para seus membros, que os proíbem de atacar moradores sem motivos, provém segurança contra assaltos e estupros, promovem certa ação social, como remédios, bailes, movimentam a economia local e são um fator de constante ameaça às polícias, que agora têm menos liberdade para atrocidades contra os moradores, visto que precisam estar em alerta o tempo todo. A chacina de Acari em 1990 é um exemplo, o assassinato dos policiais que desencadeou a vingança do grupo de extermínio Cavalos Voadores, foi motivada pelo excesso de violência daquela unidade aos moradores.

Uma guerra cotidiana

Ódios se acirram e esses grupos de extermínio oscilam entre a corrupção e a promiscuidade com o tráfico e a política da eliminação física do que consideram “o inimigo” que hoje paga, amanhã deve ser morto. A sociedade apoia essa política de extermínio e reclama dos direitos humanos como obstáculo para a polícia poder fazer seu trabalho e acabar com o crime no Brasil. O argumento é o de que homens armados com fuzis devem ser abatidos. A diferença se dá em que realmente um elemento armado, ainda mais com um fuzil é uma ameaça e somente o policial no local da operação pode decidir se o alveja ou tenta negociar sua rendição, decisão que deve ser tomada em frações de segundo, outra totalmente diferente é executar uma pessoa rendida e jogar seu corpo numa vala. Nenhum policial tem esse direito. Contra isso se levantava a voz de Marielle. Essa guerra que ceifa jovens favelados, em especial negros, cobra sua taxa também em policiais mortos, que também são vistos como inimigos, e não agentes da lei, e ao serem descobertos em ações de assalto, ou capturados em alguma operação, não merecem perdão. Contra isso, também se levantava a voz de Marielle.

Marielle defendia os direitos humanos naquilo que nós brasileiros detestamos, o respeito aos direitos de quem quer que seja. Sua trágica morte, levanta os que defendem o estado democrático de direito, mesmo dentro das polícias, e que sentem o avanço do conservadorismo, do teocratismo, das forças pouco comprometidas com a democracia. O desafio é demonstrar à sociedade brasileira, que defender os direitos humanos, é defender também a punição firme da criminalidade, combater a insegurança pública e defender o combate à corrupção, aos grupos traficantes e de milicianos que dominam favelas e bairros. Ser firme contra a violência que assola o país.

É raro que uma mulher negra e favelada receba atenção por ter sido assassinada. Mas nesse caso, há que se indignar a sociedade pois foi uma operação montada contra a democracia e o estado brasileiro.

Não quiseram somente calá-la, quiseram passar um recado claro, alto e em bom som de que não devemos atacar os interesses do crime organizado, dos grupos de extermínio e dos agente do estado envolvidos.

Gritaram alto para todos os negros e negras do país para que se calem e fiquem em seu lugar.

Gritaram alto contra os defensores dos direitos humanos para que se calem e não saiam de casa.

Gritaram alto contra a intervenção federal para que não mexa com eles

Foi um tapa na cara de todos nós.


Cacá Diegues: Quem matou Marielle?

O assassinato da vereadora e de Anderson não pode ter sido obra de fanáticos aflitos, incapazes de suportar a diferença entre discursos políticos
Afinal de contas, o que desejavam os assassinos de Marielle e Anderson? Podemos muito bem não descobrir nunca quem eram eles; mas vai ser difícil viver sem saber o que queriam os criminosos com aquela barbaridade. Por que fizeram isso?

Vi, na televisão, o braço direito do assassino descansando sobre o encosto do banco traseiro do carro prateado que perseguia o das vítimas. A imagem não era lá essas coisas, mas dava para perceber o relógio excessivo apertado em seu pulso direito e, se não me engano, o anel com pedra alta em um de seus dedos daquela mesma mão. Um dos dedos que haveria de apertar, dali a pouco, o gatilho da arma que mataria Marielle e Anderson.

O assassinato dos dois não pode ter sido obra de fanáticos aflitos, incapazes de suportar a diferença entre discursos políticos. O gesto tresloucado de rapazes ansiosos para pôr em ordem o mundo conforme o que pensam dele. Se fosse assim, a morte de Marielle e Anderson não teria sido tão simples e discreta, tão sem som, sem manifestos e gritos de qualquer espécie. Não foram tiros descabidos, selvagens e desmedidos que os mataram. Mas apenas o que o matador precisava, muitos, oportunos e certeiros. Tiros profissionais.

Nenhum político, nem qualquer soldado; nenhum policial, nem qualquer traficante; nenhum civil, nem qualquer militar; ninguém, sem preparo específico, seria capaz de executar tal operação. Só mesmo um bom profissional poderia deixar seu braço direito descansar por horas no encosto do banco traseiro do automóvel, esperar friamente pela tardia saída da vítima de seu compromisso noturno, segui-la em dois carros prateados para que um a bloqueasse na altura precisa de uma escuridão sem câmera aberta, e ele pudesse, através da janela de vidro do carro dela, atirar quatro vezes precisas na cabeça de Marielle.

Em 1954, eu era um adolescente começando a me interessar por política, quando ocorreu o atentado da Rua Tonelero, contra o então deputado Carlos Lacerda. Com a ajuda de meu colega de ginasial César Augusto Coelho Guimarães, até hoje um guia a quem peço sempre socorro, acompanhei a crise que acabou, poucas semanas depois, com o suicídio de Getúlio Vargas. Ali, os paus-mandados eram desastrados pistoleiros da Baixada Fluminense que foram logo identificados. O que destampou a tampa da crise, chegando ao suicídio de um presidente da República, foi a busca pelos mandantes. A rigor, até hoje não se sabe direito quem encomendou o atentado, botaram a culpa num negão da segurança palaciana e ficou por isso mesmo.

A morte de Marielle provocou outro tipo de crise, porque não se tratava de eliminar um adversário político, mas de fazer sangrar uma ideia que a vítima cultivava. Uma ideia tão perigosa que seus inimigos fizeram questão de nos avisar, de arma na mão, que não a admitiam. A escolha de Marielle, como mártir neste sacrifício exemplar, não se deu por causa de seu poder de modesta vereadora; as balas que a atingiram visavam a ferir a mais contemporânea forma de amor que ela incorporava — os direitos humanos. Marielle precisava ser destruída, como exemplo e aviso, pelos que não acreditam no ser humano e no seu direito de rir e sonhar, no seu direito de lutar pela felicidade e de ser feliz. Marielle foi morta por quem desejava matar o amor.

Não sou capaz de dizer como tudo isso vai acabar. Assim como não esperávamos o seu começo, talvez não sejamos capazes de adivinhar o futuro dessa crise. Mas se queremos mesmo um mundo de irmãos e de paz, tenhamos a coragem de usar a morte de Marielle para nos aproximar e não nos dividir, para nos unir e isolar dessa união aqueles que não acreditam no ser humano, os que querem o mesmo que os mandantes desse crime, um mundo como lugar do pecado, um mundo de restrições e domínio de uns sobre os outros.

O sacrifício de Marielle nos deixa a obrigação de estarmos todos juntos na construção democrática deste país que vagueia por aí, sem rumo e sem história, entregue aos mandantes da morte de Marielle, sejam eles quem for. Vamos garantir as eleições deste ano e a posse de quem quer que seja legitimamente eleito. E, depois das eleições, a nossa colaboração ou a nossa ardente oposição ao programa vencedor, com a ideia de que fazemos isso em nome do progresso e do amor, sem tentar adivinhações sobre o que vai pela cabeça do outro lado.

Gostaria de reproduzir aqui um pedacinho de lindo artigo de Flávia Oliveira, a propósito do assassinato de Marielle:

“Você pode apoiar o livre mercado, fazer campanha pelas privatizações, professar fé nas parcerias público-privadas, investir em ações, ouro e gado. E defender os direitos humanos. Esses princípios não são monopólio da esquerda. Tampouco são incompatíveis com a direita. Têm a ver com mulheres e homens, manos e minas, pobres e ricos, pretos, brancos e indígenas, prostitutas e moralistas, recatadas e malandros, crianças, jovens e idosos, gays, lésbicas, trans e héteros. Direitos humanos são para todos”.

É disso que estamos falando.

* Cacá Diegues é cineasta

 


Sergio Augusto de Moraes: Marielle e a crise da democracia

Por tudo de libertador, humanamente elevado e heroico que Marielle encarna e simboliza, sua execução bárbara e a de seu motorista Anderson é uma das piores afrontas à nossa democracia. Concentra num momento breve, e assim realça, o quotidiano surdo da brutalidade, da lei do mais forte, que a todo tempo submete amplas camadas do povo brasileiro em sua secular história de opressão.

Passados mais de 30 anos das lutas que culminaram na Constituição de 1988, no fundo se trata da mal resolvida questão democrática. Não se consolidaram e menos ainda avançaram as inegáveis conquistas democráticas daquele pacto constitucional.

De um lado, reproduz-se o contexto histórico de autoritarismo, compadrismo, patrimonialismo, clientelismo, coronelismo, e corrupção, patrocinado pelas forças do atraso, mantendo um povo atemorizado, manipulado, carente de informação e educação, alienado, preso a crenças e valores de séculos passados.

De outro lado, as forças sociais e políticas modernas, herdeiras que são das conquistas de 1988, tem sido incapazes de construir a unidade necessária ao enfrentamento de nosso passivo social histórico.

O erro vem também dos que subestimam a importância decisiva das instituições democráticas que já temos. Tomam-nas como um elemento dado, trazido de um passado autoritário, capturadas irremediavelmente por elites reacionárias e atrasadas, como se não estivéssemos ameaçados por retrocessos maiores. A democracia que temos lhes é meramente instrumental que, ao mesmo tempo, se usa e se repudia. É ferramenta de uma pedagogia da desconfiança, do “nós contra eles”, seja para conduzir o povo atrás de um líder iluminado, seja para apostar no levante popular em algum dia absolutamente indeterminado, que a tudo destrua e refaça numa “outra” democracia.

Mas o Brasil moderno, daquelas mesmas bases sociais, de ampla gente, diversa em comportamentos, valores e opções políticas, anseia por cidadania e direitos plenos para todos, com olhar no futuro e no que há de progressista no resto do mundo.

Temos as lições da obra inacabada da Constituição de 1988. Quebrara-se em seguida a unidade das forças democráticas que nos levara até lá, paralisando desde então seu impulso democrático e reformista. E agora temos a dolorosa lição destas horas em que somos Marielle. Não há saída fora das instituições democráticas que temos. Não há saída fora da cooperação com os agentes do Estado brasileiro. Não há saída sem a unidade de todos os democratas.

Sergio Augusto de Moraes é engenheiro, diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro

 


Marielle Franco para sempre viva e presente no #ProgramaDiferente

Quem matou a vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, e seu motorista Anderson Pedro Gomes na noite de quarta-feira, 14 de março de 2018, certamente não deve ter imaginado a repercussão que essa execução teria, muito menos o tamanho da comoção que tomaria conta das pessoas no Brasil e no mundo. Passados sete dias, o assunto segue como pauta obrigatória. O esclarecimento do crime, a identificação e a punição dos culpados para resultar em um mínimo de justiça por essas mortes encomendadas, é uma exigência de todos nós.

O que se viu nesta semana foi o acirramento do ódio e da polarização que tem tomado conta da política nacional. Já chamávamos atenção faz tempo para os riscos que esse confronto bárbaro entre esquerda e direita poderia causar. De um lado e do outro, o extremismo insano atropela a indignação natural por esse ato absurdo, covarde e desumano. No meio do tiroteio verbal - tão ou mais inconsequente que os tiros que matam inocentes - tentaremos buscar um pouco de racionalidade, bom senso e equilíbrio na análise dos fatos.

Neste #ProgramaDiferente especial, quem fala sobre Marielle Franco, a sua história e as suas causas é ela própria. Infelizmente, ela passa a ser conhecida da maioria das pessoas e ouvida por todos apenas a partir da sua morte trágica. Mas, quem melhor que Marielle para falar da pauta da mulher negra, jovem, favelada, feminista, lésbica? De temas polêmicos levantados nos últimos dias, como sobre a sua eleição ter se dado sobretudo com votos da zona sul carioca. Quem é Marielle e porque ela viverá para sempre em cada um de nós? Assista.


Alon Feuerwerker: Caso Marielle - Em eleições, o primeiro elemento decisivo é a capacidade de reunir a própria tropa

A precondição de competitividade nas eleições, como em qualquer tipo de batalha, é o exército. Se não tiver outro jeito, recrutem-se mercenários. Mas isso não é o preferível. A tropa luta melhor quando pode exibir uma causa, quando está munida da -olha aí a palavra da moda- narrativa. Ainda que o objetivo último seja o butim, causas trazem o indispensável glamour.

Uma coisa é dizer que se apoia tal candidato porque ele vai arrumar um emprego, ou uma casa, ou uma cirurgia, ou um empréstimo camarada no BNDES. Outra coisa é dizer que o Brasil precisa ser salvo do PT, ou de Bolsonaro, ou dos populistas, ou dos fascistas, ou dos bolivarianos, ou dos racistas, ou dos gastadores, ou dos neoliberais. Essa lista é infinita.

Narrativa eleitoral precisa ter 1) fácil compreensão e 2) aderência à realidade, ser verossímil. O argumento que o militante vai desenvolver na mesa do bar a favor do candidato tem de ser simples de manejar e encaixar no conjunto de fatos. Vale aqui a velha máxima do debate: tudo o que precisa ser muito explicado não é bom.

Quando um acontecimento encaixa na narrativa, ele tem a capacidade de potencializar a rearrumação das forças. Algumas vezes decisivamente. A morte de João Pessoa ajudou a deflagrar a insurreição de 1930. Quando se conheceram melhor os detalhes do assassinato, a revolução política que levou Getúlio Vargas ao poder já era um fato.

O fuzilamento de Marielle Franco trouxe à narrativa da esquerda um ingrediente poderoso de verossimilhança, e isso terá efeito. A ideia de que Dilma Rousseff foi removida do poder fraudulentamente, por forças cujo objetivo é aprofundar as desigualdades e injustiças que marcam a sociedade brasileira, ganhou um ponto de agregação visível e facilmente compreensível.

Enquanto Marielle estava viva, a batalha das narrativas vinha algo equilibrada. Segundo a direita, o impeachment de Dilma foi constitucional e tirou do Planalto um governo que afundou a economia e quebrou a Petrobras. E as reformas agora estão ajudando a recuperar os empregos, e precisam continuar com o novo presidente a partir de 1o. de janeiro de 2019.

Já para a esquerda, foi um golpe antinacional e antipopular, que instalou ilegalmente um governo programado para entregar nossas riquezas ao imperialismo e reverter a ascensão social dos pobres. E a intervenção federal na segurança do Rio é uma face desse componente demofóbico, bem exibido na ideia de que mais repressão é a melhor receita contra o crime.

Enquanto o jogo de narrativas estava parelho, vinha também equilibrada a coesão ideológica de ambos os campos. A morte de Marielle mudou essa conta. A direita não bolsonarista agora procura mais distância do líder nas pesquisas sem Lula. E a brutalidade do assassinato da vereadora deu cores vivas à explicação de mundo que vem dos porta-vozes da esquerda.

Hoje está mais fácil a esquerda ser ouvida com atenção na mesa do boteco. Isso não é pouco. Se, ou quando, Lula for preso, um partidário terá mais plateia para explicar que ele não está condenado por causa da corrupção, pois todos os acusados de partidos da direita estão soltos, mas por ter governado para os pobres. "Viu o que aconteceu com a Marielle?”

É mais provável que as eleições presidenciais sejam decididas no segundo turno. Dois fatores serão fundamentais, e estão interligados: 1) a capacidade de levar seu eleitor para votar e 2) a capacidade de construir uma narrativa eficaz para demonizar o outro lado. A centralidade do tema da corrupção facilitava a vida da direita. Agora a coisa se complicou.

Inclusive pelas circunstâncias do jornalismo. Abrir espaço para causas de minorias ou maiorias socialmente massacradas tem sido válvula de escape para neutralizar acusações de reacionarismo. Isso acabou reforçando um jornalismo de causas e narrativas, marcado pelo efeito-manada. Mas quando a onda vira, quem até ontem ria passa a não achar tanta graça assim.

Então o jogo está jogado? Não. Melhor é ter cautela. Uma característica do efeito-manada, como naqueles filmes de faroeste com búfalos, é que a correria pode inesperadamente mudar a direção. E fazer vítimas entre quem desencadeou a coisa. O equilíbrio político no Brasil é instável. E as eleições ainda estão longe. Mas que a esquerda ganhou um fôlego, isso é inegável.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


 Marcelo Tognozzi: O nome disso é terrorismo

É preciso parar com a hipocrisia e chamar as coisas pelo seu nome correto. O que está acontecendo no Rio de Janeiro é terrorismo. Não existe outra definição. Quantas vezes a cidade parou por capricho dos barões do tráfico ou por causa das suas guerras? Quantas vezes nos últimos dez, 15 anos, os comerciantes de Ipanema foram obrigados a fechar as portas pela bandidagem que tiraniza a comunidade Pavão-Pavãozinho? Quantas vezes isso aconteceu na Penha por obra e graça dos mandatários da Vila Cruzeiro? O assassinato da vereadora Marielle Franco foi mais um ato de terror, praticado por quem aprendeu há muito tempo que o poder de verdade é o poder das armas e do dinheiro. O resto é perfumaria.

O Rio de Janeiro é uma cidade oprimida. Há décadas o carioca, seja rico ou seja pobre, tem medo de andar nas ruas, do arrastão nas praias, dos assaltos, dos tiroteios, dos sequestros. São milhões governados pelo medo, pela hipocrisia dos que governam pactuados com o regime de terror imposto por diversas facções, cada uma no seu território, seja a Rocinha, o Alemão, o Jacarezinho, São Carlos, Rato Molhado, Prazeres, Adeus, Boréu, Mangueira, Vigário Geral, Salgueiro, Maré, Vila do João, Vila Vintém, Vidigal, Pau da Bandeira, Chapéu Mangueira e tantos outros. Não existe favela livre no Rio. São Milhões comandados pelo medo. Pobres, ricos, remediados, todos misturados, de São Conrado a Santa Cruz.

O escritor espanhol Fernando Aramburu expos as entranhas do grupo terrorista ETA no seu best seller Pátria. Durante décadas o Norte da Espanha, conhecido como país Basco, uma das regiões mais ricas da Europa, foi dominada pelo terror. Comunidades inteiras eram tiranizadas, execuções eram feitas a qualquer hora com tiros, bombas e, principalmente, a arrogância e a soberba dos que tem certeza da impunidade.

Mesmo presos, seus líderes eram exaltados, exatamente como fazem com Marcinho VP, Fernandinho Beira Mar e outros “heróis” tratados como mito pela imprensa e reverenciados pelos jovens, que crescem com a visão distorcida de que poder é opressão e violência, não importa se vem da polícia ou da cocaína. E isso não acontece só aqui. Pablo Escobar ainda é reverenciado na Colômbia, assim como El Chapo no México. O mais incrível é que as vítimas destes assassinos, que sofreram com os tiroteios e todos os transtornos, ainda são capazes de reconhecer neles qualidades incríveis. É como bater palma para Hitler ou Slobodan Milosevic. A diferença é que estes últimos chegaram ao poder pela política e os outros pelo pó.

A liberdade faz a diferença. A tirania é igual para todos: o sofrimento é o mesmo, o medo é o mesmo, assim como a sensação de impotência, a insegurança, o nojo de ser obrigado a se submeter a um poder movido unicamente pela violência. Os tiranos são iguais, sejam eles do ETA, do Comando Vermelho, do PCC, das milícias, das Farc, dos Amigos dos Amigos, da Família do Norte, dos nazistas, dos talibans ou do Boko Haran.

Na promulgação da Constituição de 1988, Ulysses Guimarães lembrou que “a sociedade é Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”, numa homenagem ao deputado executado pelos terroristas da ditadura militar. Em 2018, a sociedade é Marielle, não os covardes planejadores e executores da sua morte. É este o recado a emergir dos protestos em todo o Brasil.

Não interessa se para alguns ela era defensora dos direitos humanos e, para outros, defensora de bandidos. Nem se era jovem, de esquerda ou negra. Antes de tudo era representante de um povo dominado e oprimido por traficantes e milicianos, eleita legitimamente, consciente do seu papel e merecedora de todo respeito. Foi executada em plena jornada de trabalho, tratada como lixo pelos terroristas. É num momento como este que o verdadeiro estado democrático de direito tem de reagir, usar toda sua força e legitimidade para defender a sociedade e a democracia. Não pode transigir.

O ministro Raul Jungman, deveria reconhecer que o tal estado paralelo é na realidade um estado de terror, capaz de se impor pela força das armas pesadas e da cumplicidade dos demagogos, corruptos e usurpadores; uma elite podre, leniente com a bandidagem e com enorme desprezo pelos pagadores de impostos que financiam toda esta impostura. A cada eleição fizeram desta sociedade sem escola, sem saúde e sem segurança, cumplice e refém. Permitiram a ampliação dos domínios do terror na medida que o verdadeiro Rio de Janeiro ia descendo a ladeira. Mesmo sendo o maior produtor de petróleo, sua Bolsa de Valores minguou, a indústria encolheu, a academia virou sucata, o dinheiro rareou, a decadência mostrou sua cara desbotada no abandono de uma das mais lindas capitais do mundo.

É preciso acabar com o terror, não apenas em nome da liberdade de expressão, de votos, de palavras, de escolhas, mas porque isso representa dar um basta à tirania à opressão, à condenação de milhões de pessoas à pobreza. Nossos verdadeiros heróis foram Mauá, João Cândido, Milton Santos, Carolina Maria de Jesus, os milhões de negros, mulatos, índios, caboclos, imigrantes da Europa, África, Oriente e Ásia que com sua multiplicidade de talentos, energias e culturas ergueram o Brasil que herdamos e o transformaram numa das dez maiores economias do mundo. Os barões do pó não foram, são e nem nunca serão heróis, merecem apenas repúdio e nojo.


Elio Gaspari: Marielle, Manuel Fiel e Riocentro

Execução é recado da bandidagem a Braga Netto. Só as investigações poderão dizer quem armou os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes. O crime aconteceu 26 dias depois do “lance de mestre” de Michel Temer, decretando intervenção federal na Segurança do Rio de Janeiro.

Um dia antes de sua execução, Marielle denunciou o assassinato de Matheus Melo, um jovem trabalhador que saíra da igreja, deixara a namorada em casa e ia para o Jacarezinho, onde vivia: “Chega de matarem a nossa gente”, escreveu Marielle. A família de Matheus acusa uma patrulha da PM de ter atirado nele.

A execução da vereadora revela que os criminosos mandaram um sinal ao governo e à sociedade, demarcando a extensão de seu poder: Aqui a gente manda e mata. Quando delinquentes se julgam protegidos pela anarquia e, sobretudo, pela desorientação e derretimento da autoridade, esse é um desdobramento natural da crise.

O presidente Michel Temer preferiu o “lance de mestre” da intervenção federal na Segurança do Rio a uma natural intervenção ampla e desmilitarizada no governo de Luiz Fernando Pezão e do PMDB. Dois episódios de demarcação de território ocorridos com chefes militares merecem ser lembrados.

1976: GEISEL MOSTRA QUEM MANDA
Na noite de 18 de janeiro de 1976, na hora do “Fantástico”, o governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, telefonou para o presidente Ernesto Geisel:

— Desculpe incomodá-lo. Morreu outro preso no DOI. Outro enforcamento.

— Paulo, não tome providência nenhuma. Você terá notícias minhas.

Morrera no DOI do II Exército o metalúrgico Manuel Fiel Filho. Três meses antes, haviam matado o jornalista Vladimir Herzog no mesmo DOI.

Enquanto viveu, o general Geisel esteve convencido de que a morte de Fiel foi um desafio direto à sua autoridade. Em pouco tempo ele decidiu demitir o comandante da guarnição de São Paulo. Passou a noite sem dormir, pensando nas consequências. Não consultou ninguém e, na manhã seguinte, o general estava fora do comando.

Se alguém queria demarcar autoridade, a linha estava traçada.

1981: FIGUEIREDO MOSTRA QUE NÃO MANDA
Na manhã de 1º de maio de 1981 o presidente João Batista Figueiredo soube que explodira uma bomba no Riocentro, matando o sargento que a carregava e ferindo um capitão do DOI do Rio, que estava ao seu lado. Na primeira versão, teria sido coisa da esquerda, e Figueiredo rejubilou-se. Mais tarde, veio a correção: “Há indícios de que foi gente do nosso lado.”

(O atentado pretendia demarcar território, colocando no seu lugar o coronel que chefiava a seção de informações da guarnição local e prometera reprimir explosões de bancas de jornais, uma delas comprovadamente saída do DOI.)

Figueiredo era um cavalariano cinematográfico, desbocado e impulsivo. O leão miou e, naquele dia, começou uma operação abafa que persiste até hoje, pois o capitão que estava no carro chegou a coronel e jamais foi repreendido.

Os autores do atentado demarcaram o território da autoridade, corroeram a Presidência de Figueiredo e o regime. Ele se acabaria quatro anos depois, com o general deixando o palácio por uma porta lateral.

2018, QUEM MANDA?
As execuções de Marielle e Anderson foram uma mensagem da bandidagem pública e privada ao general Braga Netto. Foi serviço de profissionais, tanto pela escolha do alvo como pela própria ação. A ideia de que há “direitos humanos”, mas não podem existir “direitos dos manos” é apenas um trocadilho vulgar. Para os criminosos privados e públicos esse é o melhor dos mundos. Quando o dilema é ter medo do bandido ou da polícia, não faz diferença temer a um ou a outra.

A intervenção no Rio começou com o exercício demófobo da ameaça de buscas, apreensões e capturas coletivas, seguida pelas retroescavadeiras da prefeitura destruindo quiosques na Vila Kennedy. Brasília continuou produzindo planos e parolagens. Havia até um evento programado para comemorar o primeiro aniversário do “lance de mestre.” Contra a bandidagem do estado, até agora nada.

Nessas cabeças, uma negra que cresceu em favela do Rio defendendo mulheres pobres e homossexuais é apenas mais uma. Assim como um seringueiro do Acre era apenas mais um. E assim, mataram Chico Mendes.

 


Merval Pereira: Desvios políticos

Assassinato de Marielle exacerba radicalismos. O brutal assassinato da vereadora Marielle Franco está exacerbando a radicalização política, levando a que direita e esquerda, categorias políticas consideradas à beira da extinção que um mundo pós-moderno tensionado pelos fundamentalismos e preconceitos ressuscitou, mostrem suas faces perversas.

Historicamente, vemos que essa divisão no Rio tem levado governantes ligados à esquerda e à direita a tomarem atitudes, ou deixarem de tomá-las, em relação ao tráfico de drogas e às milícias de acordo com sua ideologia política, permitindo que a situação de descontrole chegasse ao ponto em que estamos.

De um lado, acusações nem sempre anônimas, como é o caso da desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, lançam sobre a vereadora assassinada insinuações de ligações com o tráfico de drogas e facções criminosas. O melhor exemplo desse estado de coisas é o silêncio do deputado federal Jair Bolsonaro, um dos favoritos na eleição para presidente da República.

Um assessor explicou que o que ele gostaria de dizer seria polêmico, então prefere silenciar por enquanto. Mas mandou um filho seu retirar do Facebook uma mensagem de pêsames para a família da vítima. Para quem considera que “bandido bom é bandido morto”, é possível imaginar sem erro o que Bolsonaro gostaria de dizer. E é certo que ele aguarda a confirmação das teorias que ligam a vereadora Marielle a traficantes e facções criminosas para se pronunciar. Como se esse fato, se confirmado, justificasse a barbárie.

De outro, esquerdistas e anarquistas em geral apressam-se a atribuir à intervenção militar na segurança pública do Rio o assassinato da vereadora, tentando aproveitar-se do cadáver político para atingir objetivos que não vislumbram alcançar na ação política tradicional depois que o ex-presidente Lula ficou inviabilizado para a disputa presidencial por ter sido condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro em um dos vários processos a que responde na Justiça.

Esses desvios políticos, que levam cada um dos lados a defender seus “bandidos preferidos” — a direita equivocadamente apoiando as forças policiais que se desviam da legalidade formando milícias ou bandos paramilitares, e a esquerda a tratar traficantes de drogas e armas como vítimas de uma sociedade desigual, e não como criminosos comuns que colocam em risco a maioria da sociedade, principalmente os mais desprotegidos — vêm sendo cevados há muitos anos pela cegueira ideológica.

Quando se transfere uma comunidade inteira para uma Vila Kennedy sem estrutura mínima, está se semeando o império dos fora da lei que dominam o conjunto habitacional desde sempre. Quando se autorizam construções de alvenaria nas favelas sem um planejamento urbanístico mínimo, sem cuidados sanitários básicos, sem a presença dominante do Estado, está se criando um ambiente propício ao crime organizado.

Quando se enxerga no nascedouro das milícias paramilitares uma solução para combater o crime organizado dos traficantes, está se alimentando essa polarização criminosa que disputa o domínio territorial nas comunidades menos protegidas pela força do Estado, substituído pelos mesmos milicianos ou traficantes.

A pretexto de combater o tráfico, faz-se vista grossa para os milicianos e policiais militares que se utilizam do crime para combater o crime e substituí-lo por uma nova ordem tão perversa quanto a anterior. E os que trabalham em ações sociais nas favelas e comunidades carentes e aceitam passivamente as atrocidades que os traficantes e facções criminosas impõem aos moradores, sem denunciá-los com a mesmo veemência com que denunciam os desvios dos maus policiais, também contribuem para esse estado de coisas.

Passeatas contra o domínio dos traficantes e facções criminosas nas comunidades carentes inexistem. Mas passeatas contra a intervenção militar na segurança pública ou contra governos, essas são estimulantes. Enquanto a questão da segurança nacional for tratada como uma simples disputa entre esquerda e direita políticas, com os dois lados cometendo o equívoco de apoiar bandos criminosos em disputa, o país não se livrará dessa situação perversa. Sem contar com o risco já verdadeiro de que candidatos ligados a milícias e ao tráfico ganhem assento no Congresso.

Incentivar a violência de rua e deslegitimar as instituições democráticas é estimular a insegurança, pois a desordem ajuda os grupos criminosos. Apoiar as Forças Armadas, sem deixar de monitorar suas ações através de mecanismos da sociedade civil, significa apoiar a defesa da democracia e dos direitos humanos, que são afrontados diariamente pelos traficantes, milicianos e policiais civis e militares desviados de suas funções, não pelo aparato de segurança institucional que existe para defender os cidadãos de bem.


Correio Braziliense: "Foi uma execução. E nada justifica," afirma Etchegoyen sobre Marielle

Ministro-chefe do GSI diz que a polícia deve trabalhar com todas as possibilidades para chegar aos autores do crime contra a vereadora Marielle Franco. Para ele, a intervenção federal no Rio de Janeiro foi a opção que restou para controlar a violência no estado

Por Leonardo Cavalcanti  e  Paulo de Tarso Lyra

Dois dias depois do assassinato da vereadora do PSol-RJ Marielle Franco, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Sérgio Etchegoyen, é taxativo: foi uma execução. Em entrevista exclusiva ao Correio, um dos homens fortes do governo Michel Temer e mentor da intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro vai além, apontando para camadas reacionárias que minimizaram o episódio. “Tenha sido ela mais ou menos agressiva, aguerrida, não interessa. Não há nada que justifique a execução, ela tinha a idade das minhas filhas”, resumiu.

O general, de 66 anos, assessor direto de Temer nas questões de segurança, afirma que o delegado responsável pela investigação precisa colocar à mesa todas as opções possíveis, sem descartar nada. A única convicção de Etchegoyen é que é uma loucura achar que o assassinato foi realizado para enfraquecer a ação das forças de segurança no Rio. “(Era) uma vereadora contra a intervenção. Estamos fazendo política rasteira em cima de um cadáver trágico. Eu achava que haveria uma reação à intervenção. A reação que eu estava imaginando era mais confronto entre facções, porque, quando você intervém, reduz o espaço dessa gente”, justificou.

Etchegoyen também não hesita em defender a atuação no segundo maior estado do país. “Eu vejo a intervenção como o que sobrou. O governo se envolveu lá atrás, investiu dinheiro, decretou a garantia da lei e da ordem e liga a televisão durante o carnaval, e acontece o que aconteceu? Quem estava cuidando do Rio de Janeiro?”, questionou com a habilidade, inclusive, para escapar das críticas de açodamento. “Em qualquer tempo, nós teríamos dificuldade. Se nós parássemos para planejar isso um mês depois, seria mais um mês perdido. Na consideração política, o tempo é uma variável”. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:

O crime contra a vereadora tem todas as características de execução...
Não tem todas as características, foi uma execução. As razões para aquela execução, eu acho que não é prudente abandonar nenhuma. Eu, se fosse o delegado, deixaria todas em cima da mesa e iria afastando. Isso aconteceu há dois dias, com que velocidade anda a polícia técnica, os exames balísticos, a verificação de todas as câmeras? Tem que ouvir gente. Discorde-se ou se concorde, a moça tem a idade das minhas filhas. Tenha sido ela mais ou menos agressiva, aguerrida, não interessa, não há nada que justifique a execução. Não há nada que justifique que a execução de um adversário é uma opção presente no campo político. O que justifica no jogo político em um país sadio utilizar a execução? Porque compensa. Vamos imaginar a prisão dos assassinos neste momento, agora. O que vai acontecer? Eles vão ser presos preventivamente, vai se discutir quanto tempo essa prisão vai levar, vai haver uma investigação e eles vão ser julgados. Quando? Daqui a um ano e pouco, dois anos, vamos imaginar que ande rápido pelo clamor, mas eles continuam soltos, aí vão para a segunda instância, tem mais um período para caminhar. Vai se discutir se na segunda instância podem ser presos ou não, vamos para a terceira instância e vai até o trânsito em julgado, lá na frente. Quando chegar ao trânsito julgado, cinco ou seis anos, não sei ser otimista, nem pessimista, mesmo porque não sou advogado. Eles foram condenados a 30 anos, o máximo, vão cumprir 1/6 da pena e aí começa a progressão, eles vão cumprir cinco anos. Se tiver biblioteca vai reduzir mais um pouquinho e vão cumprir três anos. É com isso que nós estamos lidando.

O senhor está dizendo que esse ato vale a pena.
91,5% dos casos não são descobertos. O dela, pelo clamor, as pessoas que dependiam do trabalho dela certamente vão ajudar, tem o disque denúncia. Eu sou otimista, acho que se chega aos pervertidos, em quem fez isso. Pega um cidadão que coloca essa opção de execução de alguém como uma opção disponível, essa pessoa que acha que é uma coisa da vida dela, botar um fuzil, seguir alguém e fazer a execução que fez. Tente se colocar nessa situação, uma pessoa que é capaz de fazer um negócio desse, qual a expectativa de vida que ela tem? Será que não tem consciência que, com o tipo de vida que leva, daqui a pouco é a vez dela? Eu imagino que quem está em uma vida dessa, a qualquer momento… O cara olha para o horizonte dele, lá na frente vai pegar cinco anos de cadeia na pior hipótese.

No meio político começou a circular uma versão de que a inteligência trabalha com a possibilidade de o assassinato ser uma reação à intervenção...
Se isso fosse verdade, teríamos a inteligência mais burra do mundo. Não é possível, uma burrice monumental. Dois dias depois, sabemos a linha. Matou-se uma adversária da intervenção para protestar contra a intervenção? Mataram uma menina que tinha uma atuação política que incomodava muita gente e podia incomodar ao máximo, nada justificava uma torpeza dessa. Tem um lado muito triste, nós estamos fazendo política rasteira em cima de um cadáver trágico. Eu achava que haveria uma reação à intervenção. Mas não isso.

E qual seria essa reação?
A reação que eu estava imaginando era mais confronto, porque, quando você intervém, reduz o espaço dessa gente. O problema do Rio é que é o único lugar do mundo que o domínio de uma atividade criminosa implica no domínio de um território. Por isso tem fuzil lá porque é com fuzil que se detém território, não é com pistola. O fato de o Rio de Janeiro ter essa característica, e coloca uma intervenção, a polícia para subir o morro, bota as Forças Armadas para cercar o morro, começa a reduzir o espaço. Desde o ano passado, a gente, o governo, vem fazendo operação em círculos externos do Rio de Janeiro, da linha imaginária. Assunção, Santa cruz, Lima, Bogotá. Esse circo externo, eles negaram muita logística. Vou dar um dado para vocês. Vou pegar o exemplo da Amazônia. Em 2016, foram aprendidos na ordem de 6 toneladas de droga. Em 2017, 22 toneladas. Em janeiro de 2018, 8 toneladas, porque nós aumentamos a pressão na fronteira. Essa droga produz dinheiro, que vai produzir arma. Foram apreendidas mais de 700 armas. Mais de 100 mil cartuchos de munição, mais de cento e tantas toneladas de maconha e de cocaína. O Rio de Janeiro está ficando asfixiado, e com a presença policial, agora, mais dura.

Qual a reação que o senhor imaginava?
Um choque entre as facções. Ou elas vão se unir, ou disputar, ou virá apoio de fora. E aí, você já deve ter ouvido a história do PCC chegando ao Rio de Janeiro. Muito mais organizado que o Comando Vermelho. O PCC é uma estrutura departamental clássica. O comando vermelho é mais uma confederação. Enfim, imaginava-se que podia haver esse choque.

As regras sobre a atuação nos morros mudarão?
Tem que haver essa mudança na legislação e acho que está andando. O congresso elegeu um pacote que é chamado Pacote de Segurança Pública coordenado pelo Alexandre Moraes, do STF, e ele está andando.

Do ponto de vista do serviço de inteligência, a intervenção é viável?
Eu vejo a intervenção como aquilo que sobrou. Como a gente atua na intervenção? A Agência Brasileira de Inteligência é o órgão central do sistema brasileiro de inteligência. É o órgão que tem que integrar todas as inteligências que trabalham, e são muitas, 32, em benefício, nesse caso específico, da intervenção. Quais são as inteligências? Policial, , ANTT, Defesa, polícia estadual, Polícia Federal, toda essa estrutura é integrada pela Abin.

A Abin coordena?
A Abin responde à orientação que recebe. A competência, do ponto de vista do conhecimento, está lá. Esse é o papel que a gente desempenha na intervenção. É um fato administrativo, e isso tem sido pouco compreendido, não quer dizer que a culpa é de quem não compreendeu, às vezes, a culpa é de quem está falando. A intervenção é um ato administrativo, chegaram ao Rio,  tiraram a fatia de poder correspondente à polícia, segurança pública e administração penitenciária e nomearam um governador. De fato, tem dois governadores, um que governa tudo, menos isso, e outro que governa segurança pública e administração penitenciária, é muita coisa. Esse governador do Rio de Janeiro não recebeu nenhum poder extraordinário, não recebeu nada além do que está na Constituição do Estado que diz respeito a isso. As Forças Armadas não receberam mais competência do que têm com a garantia da Lei e da Ordem, que foi contínua desde julho do ano passado. A Polícia Militar e a Civil continuam com suas competências preservadas e fazem o trabalho delas. O problema todo era gestão, credibilidade de um sistema de gestão, de modelo. Existem problemas nas polícias do Rio? Óbvio, mas voltamos à questão da gestão, como lidar com eles. Aí você coloca um interventor que não tem compromisso nenhum com a próxima eleição nem com partido nenhum. Se o presidente coloca na intervenção do Rio de Janeiro a dona Maria ou seu João, alguém vai se lembrar que eles tinham uma ligação com o deputado fulano, vereador sicrano. Num momento extremamente complicado que estamos vivendo, tem que colocar alguém crivelmente neutro. O problema do Rio, o que aconteceu no carnaval, o gatilho que disparou a intervenção, foi a não foto, não filme. O governo vem investindo, desde muito no Rio, o que não tinha para investir.

Como assim?
Foi a primeira vez que o governo se envolveu, investiu dinheiro, colocou meios, decretou a garantia da lei e da ordem, colocou uma coisa tão longa trabalhando nisso em cima da garantia da ordem lei e da ordem que é desgastante, trabalhosa. E aí, liga a televisão durante o carnaval, e acontece o que aconteceu. Tinha claramente um vazio. Quem está cuidando do Rio? Será que é o primeiro ano que teve carnaval? Não era previsível que fôssemos ter problemas no carnaval?

Não foi muito rápida essa decisão, como no improviso?
Eu acho que o tempo é uma decisão política. Eu não sei responder sobre a decisão política do Temer. Em qualquer tempo, teríamos dificuldade. Se nós parássemos para planejar isso um mês depois, seria mais um mês perdido. Na consideração política, o tempo é uma variável.

Em cima da banda podre das polícias e das milícias, não deveria ter sido uma ação efetiva no primeiro momento?
Por que não é? Eu não vi publicado, também não ouvi, mas não tenho dúvida de que estão tratando. No segundo dia da intervenção foram presos um agente penitenciário, um delegado da Polícia Civil e cinco policiais ligados ao crime organizado. A primeira coisa que fizeram foi mudar os comandos. As figuras que foram colocadas ali, toda a sociedade aprovou, tem uma mensagem muito clara, não estou comparando com os outros. Aqui existem pessoas de conduta irretocável, aprovadas pela sociedade, por diversas organizações civis, esse é um grande recado. Agora, você pode decretar um ato institucional número 1, sair caçando todo mundo ou vai produzir investigação, dar o direito contraditório de defesa, fazer um devido processo legal e tomar as providências?

Nesse processo, avançou-se em relação às corregedorias, por exemplo?
As corregedorias foram contratadas com o governo do Rio. Em janeiro, assinou o memorando de entendimento e o item número 1 era a criação de corregedorias, autônomas, mais independentes. A corregedoria da PM está na PM, a corregedoria da Polícia Civil está na Polícia Civil e tinha a terceira corregedoria na Secretaria de Segurança Pública. Lá atrás, antes da intervenção federal, foi acertado com o governador do estado que essas corregedorias seriam autônomas e independentes. Já tem um compromisso do estado para fazer isso.