Mariana

Cristina Serra: Cinco anos de lama e impunidade

Ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama em Mariana

Cinco anos depois do maior desastre socioambiental do Brasil —o colapso da barragem de Fundão, em Mariana (MG)—, os atingidos vivem uma tragédia judicial. Até hoje ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama e de descaso que matou 19 pessoas em 5 de novembro de 2015. Dos 22 denunciados, 15 já se livraram do processo.

Além disso, as vítimas têm que lidar com uma disparidade de forças descomunal no Judiciário para tentar obter justas reparações. É difícil entender que as duas maiores mineradoras do mundo, Vale e BHP (controladoras da Samarco, dona da barragem), não tenham sido capazes de realizar estudos sobre o impacto da lama de rejeitos de minério na saúde dos moradores da bacia do rio Doce.

Sem esses estudos, como estabelecer valores adequados para as compensações? É sobre esse pano de fundo que se desenrola a trama judicial. Um episódio recente é esclarecedor. O Ministério Público Federal entrou com mandado de segurança contra atos do juiz Mário de Paula Franco Júnior, encarregado dos processos cíveis.

Segundo o MPF, nos acordos de indenizações, homologados pelo juiz, as pessoas só recebem os pagamentos se assinarem a quitação definitiva e a desistência de qualquer ação no exterior. A cláusula chama atenção porque a Justiça britânica está para decidir se aceitará uma ação bilionária contra a BHP, que tem uma de suas sedes no Reino Unido. Um escritório de lá representa 200 mil atingidos, alegando a morosidade do Judiciário brasileiro.

As indenizações, segundo o MPF, foram fixadas em tempo recorde, sem prévia análise de danos e em valores irrisórios. O dano moral, por exemplo, foi calculado em R$ 10 mil. Os procuradores levantam suspeitas de "lide simulada" entre o escritório de advocacia que lidera os pedidos de indenização (formado em junho deste ano) e as mineradoras, que, de forma inusual, não contestaram as sentenças. O juiz Mário Franco Júnior disse que não se manifestará.


Cristina Serra: A (in)segurança das barragens

Nova lei não alterou brecha crucial na fiscalização

O Congresso aprovou, e o presidente sancionou, a nova política nacional de segurança de barragens de mineração. Perdeu-se uma excelente oportunidade de aperfeiçoar a fiscalização para tentar evitar a repetição de tragédias como a de Mariana (2015) e a de Brumadinho (2019).

A nova lei não alterou uma brecha crucial na fiscalização. Investigações revelaram graves suspeitas de irregularidades na elaboração dos laudos de estabilidade das barragens das mineradoras Samarco e Vale.

Por que o laudo é essencial? Porque é o documento que as empresas apresentam aos órgãos fiscalizadores atestando que sua barragem está segura.

Aí temos dois problemas. Primeiro: o laudo é elaborado por auditor contratado pela mineradora, configurando relação comercial que pode gerar conflito de interesses. Segundo: se o laudo atesta a segurança, a barragem vai para o fim da fila da inspeção in loco. Na prática, esse sistema autodeclaratório faz com que a própria empresa determine se receberá ou não a visita dos fiscais. Nos dois casos, as empresas tinham os laudos em ordem. Deu no que deu.

A solução desse nó não é fácil. Mas o Congresso nem sequer enfrentou a questão. Dado o peso econômico e político das mineradoras, não é difícil imaginar o porquê. É bem verdade que a nova lei aumentou o valor das multas, antes um trocado. Mas Bolsonaro vetou o trecho que destinava o dinheiro para o caixa do órgão federal fiscalizador, a Agência Nacional de Mineração, que se vê à míngua para inspecionar mais de 700 barragens.

Os dois desastres somados mataram 299 pessoas e poluíram dois importantes rios do Sudeste: Doce e Paraopeba. Daqui a menos de dois meses, Mariana completará cinco anos. Os três povoados mais atingidos não foram reconstruídos, e indenizações ainda são discutidas. Estudos recentes mostram altos níveis de toxicidade no rio e em sua foz, no Atlântico, com graves impactos para a saúde humana, flora e fauna. O processo criminal anda a passos de cágado, e a tragédia se perpetua dia após dia.


Míriam Leitão: É preciso haver uma nova Vale

Não basta um novo presidente, após Mariana e Brumadinho, é preciso haver um comando que consiga fazer a transição para uma nova Vale

A queda de Fabio Schvartsman é condição necessária, mas não suficiente para começar a trabalhar por uma nova Vale. As duas tragédias foram tão devastadoras para o país e para a companhia que a reconstrução da imagem só será possível com uma mudança radical na mineradora. A Vale precisava de um nome forte e significativo que iniciasse uma revolução de valores, atitudes e administração da empresa.

A licença do presidente, e sua substituição por pessoa da própria empresa, sem qualquer referência à necessária mudança, não reconstrói a reputação, nem encaminha a solução de qualquer dos inúmeros problemas nos quais a empresa continua soterrada. Em nota divulgada ontem, a Vale disse que a escolha de Eduardo Bartolomeo para diretor-presidente foi uma forma de trazer um “executivo sênior” para o comando. Mas ele ocupa o cargo interinamente.

A comparação é imperfeita, mas vamos lembrar a Petrobras. Atingida por casos de corrupção, por má gestão, interferência política, a empresa teve crise reputacional, alto endividamento e prejuízos. Houve um momento que não conseguia sequer fechar um balanço. Não adiantou trocar duas vezes de presidente. Foi preciso recomeçar com novos parâmetros, a partir da gestão de Pedro Parente. O processo ainda não terminou, mas a companhia voltou ao lucro e tem regras de conformidade mais rígidas.

A Vale provocou duas tragédias ambientais por não ter como fundamentais os valores da preservação do meio ambiente e até da vida humana entre seus parâmetros. O rompimento da Barragem de Fundão em Mariana poderia ter acendido todas as luzes vermelhas no painel corporativo. Houve apenas a troca de presidente, depois que Murilo Ferreira foi se esvaindo em cada aparecimento público pela inépcia como lidou com o problema. Saiu sem prestígio e com os bolsos cheios de milhões de reais dados pela empresa pelo fim antecipado do contrato.

Fábio Schvartsman chegou com fama de midas. Transformara a Klabin e garantia que faria muito mais pela Vale. Em todas as manifestações públicas ele mostrou excesso de autoconfiança, como no dia em que garantiu, diante de um entusiasmado mercado financeiro, que a solução do caso de Mariana era exemplar.

Nunca foi solucionado o caso Mariana, e ele está na raiz de Brumadinho. Foi exatamente por não ter feito o que devia que a tragédia se repetiu. A empresa deveria ter seguido roteiro básico: rever todas as barragens, enfrentar, ao custo que fosse, a mudança de tecnologia de armazenagem nos velhos e novos depósitos de rejeitos, trabalhar com o princípio da precaução em cada caso onde houvesse risco. Além, é claro, de ter reparado os danos humanos e ambientais de Mariana, mostrando estar realmente comprometida com a mudança.

Pelos detalhes divulgados após Brumadinho se vê que a empresa fez a revisão das barragens mas preferiu acreditar que jamais aconteceria o pior cenário. Foi capaz de manter nas proximidades, e na linha de risco, até seus funcionários. Deixou que instâncias inferiores detivessem informações essenciais para a tomada de decisão. Criou uma entidade, a Renova, como forma de se distanciar do problema. A recuperação dos danos do desastre de Mariana passou a ser de responsabilidade da Renova, e a direção da Vale criticava a entidade como se não fosse parte do problema.

Será preciso muito mais do que foi feito até agora para a empresa começar a mudar de fato. Sua relação com o meio ambiente, do qual extrai seus produtos, tem sido predatória, seu descuido com a vida humana é criminoso. Essa é a principal mudança que precisará fazer.

O mercado financeiro tem um olhar peculiar. Quer saber de ativos e passivos, fluxo de caixa e cotação das commodities. A Vale perdeu agora o grau de investimento não pelos crimes que cometeu, mas porque tem um passivo potencial muito grande que pode reduzir sua rentabilidade no futuro. O valor da ação caiu quando o mercado quantificou esses danos e subiu diante da alta do preço do minério de ferro.

O mundo é muito maior que isso. E a mudança da Vale tem que mirar esse objetivo mais amplo e permanente: transformar sua relação com as comunidades nas quais atua, com o meio ambiente e com os rios. Se ela não mudar de fato, ela morre. Empresas deixam de existir quando não sabem reagir às grandes crises. A mudança tem que ir muito além da alteração de nomes ou novos truques de publicidade. É preciso um comando para a empresa que consiga fazer uma transição real para uma nova Vale.


José Goldemberg: Licenciamento e desastres ambientais

É possível ser mais rigoroso e proteger a população sem impedir o desenvolvimento

Os desastres ambientais de Mariana e Brumadinho põem na ordem do dia, com alta prioridade, o problema do licenciamento ambiental. Isso significa uma séria inversão de prioridades do governo federal.

A reorganização administrativa promovida em janeiro levou à extinção e realocação de várias áreas ligadas a questões ambientais, o que indicava uma visão desenvolvimentista em que o licenciamento ambiental parece ser um obstáculo ao desenvolvimento.

Essa era explicitamente a visão do governo militar em 1972, por ocasião da primeira Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que levou à criação de Ministérios do Meio Ambiente (ou órgãos equivalentes) na maioria dos países do mundo. A visão do governo na época era a de “desenvolver primeiro” e se preocupar depois com as consequências sociais e ambientais decorrentes.

Apesar disso, o professor Paulo Nogueira Neto, da Universidade de São Paulo (USP), conseguiu convencer o presidente Médici a criar, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) no Ministério do Interior, à frente da qual permaneceu até 1985 e onde conseguiu introduzir toda a legislação e os órgãos administrativos da área ambiental no País.

A criação da Sema deveu-se mais ao prestígio pessoal de Paulo Nogueira Neto, integrante de tradicional família paulista, e sua reputação científica do que a uma compreensão clara da necessidade do governo militar de conciliar desenvolvimento com proteção ambiental.

Ele era visto com reservas por grupos interessados na expansão da ocupação da Amazônia, mas com seu perfil não confrontacional conseguiu introduzir no País legislação ambiental moderna, copiada de países da Europa e dos Estados Unidos. O melhor exemplo é o da criação da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb), em São Paulo. O sucesso em resolver o problema ambiental de Cubatão, no governo Montoro (1986-1989), deu à Cetesb estatura e prestígio para enfrentar outros desafios.

Isso não ocorreu, contudo, em muitos outros Estados e certamente não no governo federal, em que órgãos como o Ibama frequentemente não tiveram apoio para pôr em prática a excelente legislação criada por Paulo Nogueira Neto.

Estamos pagando hoje o preço disso com os desastres de Mariana e Brumadinho. E o governo Bolsonaro não ajudou nada, até agora, a resolver os problemas reais do setor ao reduzir o status do Ministério do Meio Ambiente (que até cogitou de extinguir) e tolerar entrevistas e declarações de membros de sua administração desqualificando a defesa do meio ambiente como inspirada por agentes internacionais e de modo geral “xiita” nas suas reivindicações.

A realidade é outra e esta é uma boa hora de recolocar o problema nos termos corretos.

A legislação atual tem basicamente dois instrumentos para forçar o cumprimento das normas ambientais adequadas: multas e interdições. A aplicação de multas revelou-se insuficiente, como o próprio presidente Bolsonaro tem declarado, porque a judicialização dos processos tornou-a inoperante. O único instrumento eficaz é o poder das agências ambientais de interditar empreendimentos. Foi o uso dela que permitiu à Cetesb “limpar” Cubatão, 40 anos atrás.

Sucede que a decisão de interditar é suscetível a influências políticas: se os órgãos ambientais não tiveram respaldo e apoio ativo dos prefeitos (nos municípios), dos governadores (nos Estados) e do presidente da República (na área federal), a interdição não é eficaz.

Exemplo na área federal é dado pela redução dramática do desmatamento na Amazônia conseguida pela ministra Marina Silva entre 2005 e 2010, que contou com o apoio entusiástico de setores importantes da sociedade, o que intimidou os promotores do desmatamento. Algo semelhante ocorreu no governo Collor, em 1991, quando a ação da Polícia Federal e o monitoramento do desmatamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - que foi tornado público - levaram a uma redução do desmatamento, que recomeçou a subir no governo Fernando Henrique. Em ambos os casos foi a firmeza e a coragem do governo federal que apoiou os técnicos da área ambiental a cumprir suas tarefas. Não foi preciso criar novas leis, mas decidir cumpri-las.

Esta é uma situação parecida com a Operação Lava Jato e o papel do juiz Sergio Moro. A legislação anticorrupção, com delação premiada e outros dispositivos legais, já existia, mas foi a coragem do juiz em aplicá-la que fez toda a diferença.

Isso não significa que a legislação ambiental não possa ser aperfeiçoada e simplificada - sem perder o rigor -, sobretudo definindo melhor as características específicas dos empreendimentos. Licenciar uma pequena central hidrelétrica numa fazenda no interior não precisa ter a complexidade de licenciamento de uma grande usina hidrelétrica.

Para evitar novos desastres, como em Mariana e Brumadinho, o governo federal precisa demonstrar claramente que vai aplicar as leis vigentes, “doa a quem doer”. Somente assim os técnicos e engenheiros responsáveis pelos projetos e pela fiscalização ambiental se sentirão respaldados para propor a interdição de projetos inadequados e não conceder novas licenças sem a permissão de medidas protetoras da população.

Licenciar uma barragem como a de Brumadinho, permitindo que abaixo dela fossem instalados uma pousada e um refeitório da Vale, ultrapassa as raias do absurdo na sua irresponsabilidade. E poderia ter sido evitado por uma simples medida administrativa.

Não é possível, como querem alguns, resolver os problemas da pobreza no País mantendo a natureza intocada. Mas é possível fazer um licenciamento ambiental mais rigoroso e ágil, que proteja a população sem impedir o desenvolvimento.

* José Goldemberg, professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo


Vinicius Torres Freire: Brasil na lama e em ruínas

Além do vômito letal da represa de lixo da Vale, obras públicas caem aos pedaços

Faz mais de cinco anos, a gente tem a impressão de que o Brasil está em ruína progressiva. O sabor político do sentimento depende do gosto ideológico do freguês. Quanto ao sentido literal da expressão “ruína”, há sinais e sintomas evidentes de que o país está caindo aos pedaços.

Por exemplo, qualquer pessoa sensata vai se perguntar como é possível que se repita em três anos um horror como esse das barragens de Minas Gerais, essa desgraça revoltante na represa de lixo da Vale. Mas a coisa já ia longe.

A gente está com a pulga atrás da orelha de uma cabeça com cabelos em pé, aqui em São Paulo. Há notícias em série sobre o mau estado das pontes e dos viadutos da capital do estado mais rico e mais cheio de universidades de ponta do país.

No final do ano passado, um viaduto da marginal do Pinheiros cedeu e foi interditado. Na semana que passou, foi a vez de um viaduto que liga a marginal do Tietê à Via Dutra.

Oito pontes e viadutos vão passar por vistoria de emergência, entre eles duas pontes sobre a marginal do Tietê.

As marginais são uma das duas grandes vias de circulação expressa e de saída da cidade. Se param, a cidade não consegue chegar nem na breca.

Problema local? Hum.

O investimento do setor público, a despesa em “obras”, afunda mais que viaduto paulistano. Na soma dos gastos dos governos federal, estaduais e municipais, o investimento médio de 2015 a 2017 baixou 36,6% em relação à média dos anos “bons” de 2004 a 2013.

Baixou em termos relativos, em proporção do PIB, um desastre (estas contas são baseadas nas séries de investimento calculadas pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Ipea).

O investimento é insuficiente para manter e reparar a infraestrutura, segundo os especialistas (é menor que a depreciação). A baixa é brutal nos governos estaduais, o dobro da queda relativa do investimento feito pelo governo federal e pelos municípios.

Em português claro, isso quer dizer que não há dinheiro suficiente para manter, que dirá melhorar, estradas, pontes, viadutos, açudes, barragens etc. O país está apodrecendo fisicamente.

Para piorar, sem obras novas ou consertos, a economia demora a se recuperar. A construção civil foi o grande setor mais desgraçado da economia durante a recessão. Parou de piorar, mal e mal, apenas no ano passado.

Além da falta de dinheiro, escassearam vergonha na cara e competências. Convém lembrar que as maiores empreiteiras eram comandadas por gângsteres, máfias que compravam governos, leis etc. Sabe-se lá mais o que aprontaram.

Desconhece-se o motivo da nova desgraça mineira, mas sabemos de algumas coisas:

1) leis ambientais rigorosas não faltam; há baderna ou coisa pior na fiscalização;

2) muita gente e negócios estão no rastro possível do vômito letal dessas barragens que se esboroam;

3) não há meios de avisar essa gente que fica no caminho do mar de lama tóxica ou modo de tirá-las de lá a tempo. Quando acontece um desastre, por acidente ou incompetência criminosa (a ver), as pessoas morrem como vítimas de bala perdida nos tiroteios das metrópoles brasileiras. Isso é descaso.

Incúria, corrupções, burrices e ignorâncias brasileiras básicas e, ainda pior agora, a falta de dinheiro devem nos deixar mais alertas. Alguém ainda se lembra da desgraça, da tristeza infinita, do Museu Nacional? A queima da memória brasileira, a ponte que caiu ou a lama da mineração podem ser sintomas de coisa pior.


Bruno Boghossian: Repetição de tragédias mostra que Brasil tem uma indústria do perdão

Fiscalizações e multas não existem por capricho ou por desejo autoritário dos governantes

Empresários gostam de se queixar de abusos em fiscalizações e punições aplicadas por órgãos oficiais. Para eles, existe uma “indústria da multa” no Brasil que prejudica os negócios. Catástrofes como o rompimento da barragem de Brumadinho sugerem que o país tem, na verdade, uma indústria do perdão.

A repetição de tragédias é um indício de que alguns setores se acostumaram com a boa vontade dos governantes. Companhias continuam rodando com operações inseguras, enquanto o Estado se contenta em fazer inspeções para inglês ver.

A supervisão de determinadas atividades privadas existe não por mero capricho ou por um desejo autoritário dos governantes. Na essência, esse controle é necessário porque contribui para reduzir riscos e prevenir danos graves ou irreparáveis.

As vidas dos funcionários da Vale se perderam para sempre em Brumadinho. Danos ambientais como os observados em Mariana em 2015 não serão recuperados nesta geração.

Jair Bolsonaro disse que seu governo não tem “nada a ver” com a tragédia. A rigor, ele tem razão. Havia muito pouco a fazer em apenas 25 dias de mandato. O episódio, no entanto, deveria acordar o presidente e seus ministros que sonham em afrouxar algumas regras de controle sobre o empresariado.

Os trabalhadores soterrados em Minas e a poluição do rio Doce explicam por que uma fiscalização severa não é só uma bandeira dos "ongueiros" —como o lobby antiambientalista costuma chamar seus rivais.

A redução da burocracia e do controle estatal pode ser muito boa para quem já segue as normas e trabalha com segurança, mas também acaba livrando a cara dos culpados.

Ninguém foi punido até agora pela tragédia de 2015, segundo os procuradores do caso. A Vale era sócia da mineradora que operava aquela barragem. Dois anos depois, um novo presidente assumiu a empresa com o lema “Mariana nunca mais”. Agora, precisou reconhecer: “Como vou dizer que a gente aprendeu se acaba de acontecer um acidente desses?”.


Míriam Leitão: Mais um rio de lama da Vale

Por Alvaro Gribel (A colunista está de férias)

A Vale e a indústria de mineração do país estão em xeque. O segundo rompimento de grandes proporções em barragens de rejeitos mostra que os eventos não são isolados. Há falhas na segurança da empresa e na fiscalização pelos órgãos reguladores. Até quem acompanhou a tragédia de Mariana teve dificuldades para explicar o que aconteceu ontem. Há uma suspeita: o setor cresceu demais nos últimos 20 anos, a produção de minério de ferro aumentou exponencialmente, mas os investimentos em segurança não subiram na mesma intensidade. Tudo indica que as barragens no país não estão suportando o volume de extração. Em Brumadinho, a presença da sede administrativa da empresa — e até de um restaurante — no caminho do fluxo de lama sugere que os estudos de contingência foram ignorados ou falharam completamente. A Vale é a nossa maior exportadora, a segunda maior mineradora do mundo e a terceira maior empresa listada na bolsa brasileira. Essas duas tragédias em um período de três anos colocam em dúvida a sua capacidade de expansão. O custo humano, se confirmado, será novamente irreparável.

‘Fiscalização precária’
Para o procurador José Adércio Leite Sampaio, coordenador da força-tarefa Rio Doce, do Ministério Público Federal, tanto a Vale quanto funcionários da empresa podem ser responsabilizados criminalmente, caso sejam detectados culpa ou dolo nesta tragédia. O MP também avaliará indenizações na área cível. Ele diz que a fiscalização dos órgãos reguladores continuou precária, mesmo após Mariana. “Criou-se a Agência de Mineração, mas houve apenas mudança de nomenclatura. São dois técnicos para fiscalizar 450 barragens”, afirmou.

Exploração acelerava
A produção da Vale na região de Brumadinho acelerou em uma década, acompanhando a cotação do minério de ferro. A área de Paraopeba produziu 16,5 milhões de toneladas em 2009. Era a época da crise financeira internacional. Duas das dez minas do Sistema Sul estavam fechadas porque tinham custo de produção elevado. O preço da commodity voltou a subir, e a extração cresceu para 22,5 milhões em 2010. Já em 2018, foram retirados 26 milhões de toneladas de Paraopeba, onde está a mina do Córrego do Feijão. No ano, a alta foi de 3,4%. Curiosamente, Paraopeba era a única das áreas do Sistema Sul que aumentava a produção em 2018.

Mais resíduo que minério
No Relatório de Sustentabilidade de 2017, a Vale anunciava investimentos de US$ 182 milhões na gestão de barragens de minerais ferrosos. A companhia tinha 150 barragens no país. No total, em 2017, a Vale anunciou ter gerado 729 milhões de toneladas de resíduos em toda a sua operação. A produção de minério de ferro foi de 366,5 milhões de toneladas.

Governo tem reação rápida
A reação do governo Bolsonaro em tudo se diferenciou da do governo Dilma, em 2015, em Mariana. Um gabinete de crise foi criado rapidamente, três ministros se deslocaram para a região, e o presidente fez um pronunciamento curto, mas correto. Sua presença no local é aguardada hoje, apesar de ele ter uma cirurgia agendada para a próxima segunda-feira.

Visão de mercado
A queda de 12% dos papéis da Vale em Nova York marcou a volta de um pesadelo para o acionista, conta Pedro Galdi, da corretora Mirae. “A mina de Feijão é pouco representativa na produção da Vale, contribui com 2% do total. O problema para a companhia é outro. O rompimento atingiu pessoas, há o risco de contaminação dos rios. O ônus financeiro tende a ser grande”, disse. A mineradora está financeiramente equilibrada.

Menos investimento e dívidas
Nos últimos anos a Vale vinha passando por um processo que os economistas chamam de “desalavancagem”. Ou seja, tinha como objetivo a redução do seu endividamento, o que de fato aconteceu. Em 2015, a empresa tinha uma dívida bruta de R$ 112,6 bilhões. Einar Rivero, da consultoria Economática, conta que o total caiu para R$ 67,3 bi em 2018. O bom preço do minério ajudou e a geração operacional de caixa saltou 40%, para R$ 52 bi. Mas, no período, a empresa cortou dois terços do investimento.

Com Marcelo Loureiro


El País: Brumandinho luta contra o tempo em busca dos desaparecidos sob a lama

Rompimento de barragem da Vale em Minas, três anos após Mariana, põe Brasil de joelhos diante das falhas de segurança e proteção ambiental na mineração. Ao menos nove pessoas morreram e 413 estão sem contato com a empresa. "Como posso dizer que aprendemos com Mariana?", diz presidente da multinacional

Por Afonso Benites, Carla Jiménez e Heloísa Mendonça, do EL País

 

O Brasil cai de joelhos de novo em Minas Gerais. Uma barragem em Brumadinho, na grande Belo Horizonte, rompeu espalhando morte. A estrutura era de responsabilidade da mineradora Vale, que já esteve no olho do furacão em 2015 quando uma represa também ligada à companhia em Mariana, no mesmo Estado, cedeu, e matou 19 pessoas, além de deixar sequelas, algumas irreparáveis, no meio ambiente. Três anos depois, o país assiste nesta sexta-feira, consternado, a um novo desastre ainda mais grave, que já matou ao menos nove pessoas e hospitalizou outras cinco. A Defesa Civil informa que pelo menos 413 funcionários e terceirizados da mineradora ainda estão sem contato. “Com enorme pesar dizemos que isto é uma enorme tragédia, que nos pegou totalmente de surpresa. Estou completamente dilacerado com o que aconteceu”, disse Fabio Schvartsman, presidente da Vale. Havia pouco mais de 400 pessoas, entre funcionários e terceirizados, no momento do acidente. Era a hora do almoço, e parte do empregados estava no refeitório da empresa. “O restaurante e um prédio administrativo foram soterrados”, reconheceu o executivo, que está desde 2017 no comando da mineradora.

Uma grande operação de atendimento e resgate está montada na região de Brumadinho. Ao menos 172 funcionários da Vale já estão a salvo enquanto os bombeiros dizem ter resgatado ao menos 100 pessoas ilhadas pela lama e outras 9 já soterradas pelo rejeitos da mineração. Na manhã deste sábado, o presidente Jair Bolsonaro e parte de sua equipe farão um sobrevoo pelo local da tragédia e, quando regressar da viagem, ainda em Belo Horizonte, deverá anunciar novas ações por parte da União. "Depois de Mariana, a gente esperava que não tivesse uma outra (tragédia). Mas infelizmente temos esse problema agora”, disse o novo presidente, que fará essa passagem por Minas antes de fazer, na segunda-feira, uma cirurgia para a retirada da bolsa de colostomia, sequela do atentado a faca que sofreu em setembro passado.

Assim que soube do incidente em Brumadinho, o Governo Bolsonaro instaurou um gabinete de crise e determinou o envio de contingente militar lotado em Juiz de Fora para ajudar no socorro de vítimas e nas ações da Defesa Civil. Conforme o Palácio do Planalto, três ministros também seguiram para Minas Gerais para avaliar o tamanho do desastre: Ricardo Salles (Meio Ambiente), Gustavo Canuto (Desenvolvimento Regional) e Bento Albuquerque (Minas e Energia).

Ainda sobram perguntas sobre o que aconteceu em Minas Gerais, mas o certo é que o acidente elevou a temperatura de um debate sobre a abordagem do Governo Bolsonaro para a gestão e proteção ambiental. O presidente brasileiro sempre demonstrou desdém pelo assunto e chegou a cogitar o fim do ministério do Meio Ambiente. Seu Governo já se mostrou favorável à intenção flexibilizar o licenciamento ambiental e dar mais autonomia às empresas para a gestão de projetos que demandem gestão de recursos naturais.

Imagem do repórter fotográfico Alexandre Araújo, que sobrevoou a área em helicóptero dos bombeiros.
Imagem do repórter fotográfico Alexandre Araújo, que sobrevoou a área em helicóptero dos bombeiros. ALEXANDRE ARAÚJO

Licenciamento e alertas de ambientalistas

O caso da Vale, além de tudo, é emblemático. A barragem de Brumadinho estava em vias de ser desativada –de fato, segundo a companhia, desde 2015 não recebia novos rejeitos da mineração– e tinha uma licença ambiental desde dezembro, concedida pela estadual Secretaria de Estado de Meio e Desenvolvimento Sustentável (Semad). “O empreendimento, e também a barragem, estão devidamente licenciados, sendo que, em dezembro de 2018, obteve licença para o reaproveitamento dos rejeitos dispostos na barragem e para seu descomissionamento (encerramento de atividades)”, afirmou a Semad. Segundo o presidente da Vale, a barragem havia sido auditada por consultorias que atestavam estabilidade, e a empresa fazia revisões periódicas da estrutura. Uma das companhias que a auditaram foi a alemã Tuv Sud, segundo Fabio Schwartsman. A empresa contava ainda com um sistema de sirenes de emergência para avisar potenciais perigos, mas há dúvidas se elas funcionaram durante o acidente. Os primeiros relatos ouvidos pelos bombeiros é de que não houve alerta sonoro antes do tsunami de lama.

Os ambientalistas e ativistas da região contestam tanto a Semad quanto a Vale sobre a situação da represa. Afirmam que há anos denunciavam os problemas da barragem, construída com a técnica mais barata e considerada menos segura, segundo os especialistas. "Se a lei proibisse a construção de barragens à montante (feita com os próprios rejeitos) acima de comunidades humanas, como fazem muitos países, teríamos menos desastres", afirma Guilherme Meneghin, promotor responsável pelo caso do desastre de Mariana.

O panorama de Brumandinho está longe de ser isolado, ou um problema do atual Governo. Só em Minas Gerais há cerca de 450 barragens e ao menos 22 delas não têm garantia de estabilidade. A ex-senadora Marina Silva foi uma das vozes que elevaram o tom para apontar o erro do Brasil na gestão pública e privada com recursos naturais. “Depois de 3 anos do grave crime ambiental em Mariana, com investigações ainda não concluídas e responsáveis punidos, a história se repete como tragédia em Brumadinho. É inadmissível que o poder público e empresas mineradoras não tenham aprendido nada”, escreveu ela eu seu Twitter. "Como posso dizer que aprendemos após o acidente de Mariana?", disse também o próprio CEO da Vale, que viu as ações da empresa despencarem nas bolsas no Brasil e no exterior. Segundo o canal GloboNews, o Governo de Minas conseguiu na Justiça uma decisão que obriga a empresa a ajudar no resgates e congela um bilhão de reais das contas da multinacional.

Para Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, acidentes como este não são casuais. “Tragédias dessa magnitude não são acidentes, são crimes”, disse ela à revista Época, um lema que correu as redes sociais. "Que a tragédia de Brumadinho abra os olhos do Governo. Meio ambiente não é zoeira de esquerda: é respeito à vida das pessoas e do planeta. O Governo deve regular e fiscalizar com mais energia sem demonizar quem disso se ocupa", escreveu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no Twitter.

À medida que passava o tempo, a tragédia de Brumandinho ia ganhando mais detalhes. Segundo as autoridades, não foi apenas uma barragem a se romper, mas três no complexo: o primeiro estouro de lama levou a que mais duas represas cedessem. Até a publicação desta reportagem, não havia uma lista oficial com o nome de desaparecidos. A angústia corria por telefone e grupos de WhatsApp na região, que trocavam informações sobre as tentativas de contato. "Muito provavelmente iremos resgatar somente corpos", disse o governador de Minas, Romeu Zema.


Metrópoles: A tragédia de Mariana (MG) vista pela janela do trem EFVM

Metrópoles percorreu os 905 km da Estrada de Ferro Vitória a Minas para mostrar como a exploração mineral mudou a paisagem e rotina dos moradores da região

Por Eumano Silva, Portal Metrópoles

Todos os dias, à tarde, os irmãos Guilherme, 11 anos, e Vinícius, 7, sobem a passarela acima dos trilhos para ver o trem passar. Os dois garotos moram em uma casa verde construída ao lado da linha férrea, em Governador Valadares (MG), e se divertem com a gigantesca máquina em movimento sob seus pés. Acompanhados do pai, o motorista Ivair Silva dos Santos, 45, eles observam com atenção o trânsito de vagões carregados de minério de ferro ou de passageiros.

Estudiosos, falantes e cheios de planos, os dois meninos convivem bem com a proximidade da linha férrea. “A vida aqui é um pouco perturbada por causa do barulho, mas gosto de ver os trens para entender como funcionam”, conta o mais velho. “Tenho até vontade de ser maquinista”, diz o caçula, em alusão ao profissional responsável por conduzir os enormes aparatos mecânicos.

Igo Estrela/Metrópoles

Placehold

Guilherme e Vinícius, acompanhados do pai, Ivair Silva dos Santos, observam com atenção o trânsito de vagões da EFVM

Como acontece com boa parte dos habitantes da região, a família Santos aprecia os trajetos de trem. De vez em quando, pais e filhos percorrem o trecho até Vitória. “Não gosto muito da comida, mas a viagem é confortável e a gente pode ver a paisagem”, enfatiza Guilherme. “Vale a pena fazer esse passeio por causa da satisfação de olhar pela janela e por também poder andar nos vagões”, acrescenta Ivair.

A Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) está presente no cotidiano da população de Governador Valadares e de dezenas de cidades desenvolvidas ao longo dos trilhos. Construída a partir de 1902 por iniciativa de empresários mineiros e capixabas, teve o primeiro trecho inaugurado dois anos depois. Desde então, os comboios carregam pessoas, bagagens e minérios em um percurso sinuoso – traçado, sobretudo, em função das margens do Rio Doce.

Estrada de Ferro Vitória a Minas

1904

Inauguração do primeiro trecho da Estrada de Ferro Vitória a Minas, construída por empresários de Minas Gerais e do Espírito Santo. Traslado entre os dois estados, principalmente de madeira extraída das matas

1906

Inauguração da Estação Colatina

1915-1918

Interrupção da obra em decorrência da Primeira Guerra Mundial

Década de 1920

Inauguração da estação de Ipatinga (MG)

1940

Na Estação Desembargador Drummond, no município de Nova Era (MG), primeiro trem carregado de minério de ferro de Itabira (MG). Exportação de 5.750 toneladas do porto de Vitória para os Estados Unidos

1942

Nacionalização da EFVM pelo governo Getúlio Vargas. Fundação da estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)

1944

Inauguração da Aços Especiais de Itabira (Acesita). Aço produzido na fábrica segue, pela ferrovia, para os portos de Vitória

1950

Troca das locomotivas a vapor pelas movidas a diesel. EFVM compra cinquenta dessas máquinas

1954

Vagões de aço substituem os de madeira

1958

Criação da Usiminas, em Ipatinga (MG)

1968

Inauguração de um estaleiro de soldas em Governador Valadares (MG), para auxiliar na montagem de trilhos

Década de 1970

Duplicação de toda a ferrovia da EFVM e instalação do Controle de Tráfego Centralizado, para supervisionar todas as operações da via férrea

1984

EFVM atinge a marca de 1 bilhão de toneladas transportadas desde a inauguração

1997

Privatização da Companhia Vale do Rio Doce

2007

CVRD passa a se chamar Vale

2014

Aquisição de novos trens, da Romênia, mais seguros e confortáveis

No final de 2018, a EFVM é a única linha ferroviária de passageiros que opera diariamente no Brasil. Todas as manhãs, às 7h, um trem sai de Cariacica, na grande Vitória, com destino a Belo Horizonte. Meia hora depois, um comboio semelhante deixa a capital mineira rumo ao Espírito Santo.

Pelas janelas dos vagões, os viajantes vivem um pouco do ambiente que, no passado, inspirou poetas e compositores. Em 1960, Manuel Bandeira escreveu o poema Trem de Ferro, eternizado na música de Tom Jobim: “Foge, bicho/Foge, povo/Passa ponte/Passa poste/Passa pato/Passa boi/Passa boiada/Passa galho/De ingazeira/Debruçada/Que vontade/De cantar!”.

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A Estrada de Ferro Vitória a Minas faz parte do cotidiano da população mineira

Em outro clássico do século passado, o poeta Ferreira Gullar fez a letra de Trenzinho do Caipira, composição do maestro Heitor Villa-Lobos. “Lá vai o trem com o menino/Lá vai a vida a rodar/Lá vai ciranda e destino/Cidade e noite a girar/Lá vai o trem sem destino/Pro dia novo encontrar/Correndo vai pela terra.”

Cerca de um milhão de pessoas embarcam e desembarcam todos os anos nas 30 estações distribuídas pelos 905 quilômetros da EFVM. Os trens transportam mais de 100 milhões de toneladas de 40 tipos de produtos, com destaque para o minério de ferro extraído e exportado pela Vale S.A., antiga Vale do Rio Doce, ex-estatal, privatizada em 1997.

Mapa

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No mesmo ano, a empresa tornou-se concessionária da Estrada de Ferro Vitória a Minas, contrato válido por três décadas. Na perspectiva da população local, a Vale e os trens proporcionam momentos de alegria para crianças e têm significativa importância no transporte das famílias.

Os vagões carregados de pedra também simbolizam adversidades traumáticas para os moradores das cidades e fazendas ribeirinhas. O rompimento da barragem do Fundão, no município de Mariana (MG), em novembro de 2015, provocou a inundação do Rio Doce com lama de rejeitos de mineração.

A Vale é sócia da Samarco, empresa responsável pela represa rompida. As pedras retiradas das minas produtoras de despejos iguais aos que entupiram mais de 600 km do Rio Doce e chegaram ao Oceano Atlântico são escoadas pela ferrovia como commodities.

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O avanço da atividade mineradora foi ancorado no transporte sobre os trilhos da EFVM

Maior desastre ambiental do país, a tragédia destruiu povoados, matou 19 pessoas e arrastou os detritos das escavações realizadas nas montanhas mineiras até o Oceano Atlântico, mais de 600 km abaixo da obra rompida. Para arrancar milhões de toneladas de pedras transportadas pelo trem Vitória-Minas, as mineradoras têm construído gigantescas represas, como a do Fundão, para despejar rejeitos.

Tragédia de Mariana

1973

Criação da empresa Samarco, sociedade entre a brasileira Samitri, pertencente à Belgo-Mineira, e a norte-americana Marcona Mining Company

1984

Grupo australiano The Broken Hill Proprietary Company Limited (BHP) adquire controle da Marcona

2000

Privatizada, a Companhia Vale do Rio Doce compra a Samitri

2008

Início das obras da barragem do Fundão

5 de novembro de 2015

Estouro da barragem provoca avalanche de lama e rejeitos e invade os primeiros povoados

Novembro de 2015

Nos dias seguintes, indígenas da reserva Krenak, cortada pelos trilhos, fecham a ferrovia no município de Resplendor (MG) e fazem manifestação contra o impacto da sujeira no Rio Doce

21 de novembro de 2015

Pelo leito do Rio Doce, lama da Samarco chega ao Oceano Atlântico

Março de 2016

No município de Belo Oriente (MG), moradores bloqueiam a linha férrea para cobrar ações da Samarco

Maio de 2016

Em Baixo Guandu (ES), habitantes interditam a linha férrea para exigir pagamentos e auxílios da Samarco

Lançado em outubro deste ano, o livro Tragédia em Mariana: a história do maior desastre ambiental do Brasil Escrito, de autoria da jornalista Cristina Serra, faz uma reconstituição minuciosa e primorosa da catástrofe. A obra conta o drama das comunidades assoladas pelos destroços e revela as falhas de engenharia e gerenciamento que levaram ao rompimento da barragem.

A jornalista fez um resumo dos danos causados na zona rural. “Das 195 fazendas atingidas, 25 foram totalmente destruídas. A lama arrastou tratores, ordenhadeiras, motores, bombas, tanques de leite e balanças, num total de 293 máquinas e equipamentos. Mais de 160 mil metros de cerca e 1.596 animais, a maioria gado, foram levados na enxurrada”, relata Cristina.

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Antes de trafegar com os vagões abarrotados de minério de ferro, a EFVM firmou-se, na primeira metade do século 20, no escoamento de madeira extraída das matas de Minas Gerais e do Espírito Santo. Em 1943, depois de estatizada, a ferrovia ganhou um ramal até Itabira.

A expansão da mineração na região central de Minas Gerais e no vale do Rio Doce a partir da década de 1960 preservou a importância econômica da ferrovia. Os professores Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Cristiana Losekann, da Universidade Federal do Espírito Santo, produziram o livro Desastre no Vale do Rio Doce: antecedentes, impactos e ações sobre a destruição, lançado em 2016.

Na obra, os dois acadêmicos apresentam um histórico detalhado do avanço da atividade mineradora, ancorada no transporte sobre os trilhos da EFVM, e das consequências do rompimento da barragem do Fundão.

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“Na trajetória da exploração mineral, a Segunda Guerra Mundial promoveu novas funções econômicas para a bacia do Doce, especialmente com a intervenção do governo brasileiro ao assumir a EFVM por meio da Companhia Vale do Rio Doce, criada com o fito de explorar o minério de ferro de Itabira”, diz trecho da publicação.

Essa nova frente de exploração das riquezas naturais patrocinou a instalação, em 1943, de um ramal ferroviário até Itabira (MG). O governo Getúlio Vargas tinha interesse em extrair o minério de ferro até a cidade imortalizada nos versos de Carlos Drummond de Andrade no poema Confidência do Itabirano: “Itabira é apenas uma fotografia na parede/Mas como dói”.

Três anos depois da tragédia, o verde da vegetação ocupa as áreas cobertas de lama em 2015. Parte da reconstituição se deve aos trabalhos da Fundação Renova, instituição criada pela Samarco para executar medidas que atenuassem os danos acarretados pelo barro e reduzissem os prejuízos causados à imagem da empresa.

Desde o fatídico episódio, a comunidade de Governador Valadares não confia no líquido das torneiras – seja para beber ou cozinhar. Muitas famílias compram água mineral. Outras recorrem a poços artesianos ou a nascentes da região. “Busco em uma mina a uns seis quilômetros de distância. Às vezes, tenho até vontade de mudar daqui por causa dessa situação”, conta o motorista Ivair.

Em Colatina (ES), a sujeira produzida pela mineradora Samarco complicou a vida do agricultor Gilberto Pereira Freitas, 41, e de sua companheira, Rosa Cordeiro, 48. O incômodo perdura três anos depois do rompimento da barragem do Fundão.

Sem confiança para utilizar a água disponibilizada pela prefeitura, duas vezes por semana o casal recorre a uma mina na periferia da cidade a fim de pegar cerca de 60 litros do líquido. “Usamos para beber e fazer comida”, explica Gilberto, enquanto enche os garrafões.

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Em Colatina (ES), a sujeira produzida pela mineradora Samarco complicou o acesso à água

Os danos provocados pela tragédia estimularam protestos da população atingida. Em três momentos, a regularidade do trem restou prejudicada. Ainda em novembro de 2015, no município de Resplendor (MG), os indígenas da reserva Krenak, que é cortada pelos trilhos, fecharam a ferrovia para se manifestarem contra o impacto da sujeira no Rio Doce. A vida e as tradições desse povo giram em torno do rio.

Nos municípios de Belo Oriente (MG), em março de 2016, e de Baixo Guandu (ES), em maio do mesmo ano, moradores bloquearam a linha férrea com o objetivo de cobrar da Samarco o pagamento de auxílio para vítimas da catástrofe e o restabelecimento da distribuição de água.

A presença da atividade econômica que motivou o estrago ambiental fica evidente na geografia vista da janela do vagão. Montanhas recortadas por máquinas escavadoras e leitos de rio tomados por resíduos das jazidas denunciam a agressividade da extração mineral em grande escala.

O desastre de Mariana matou quase toda a população de peixes do Rio Doce e afetou a vida dos ribeirinhos. Dentro do vagão, o pedreiro Roberto Carlos Siqueira, 51, se recorda de quando pescava para reforçar a renda da família. Depois da lama do Fundão, os cardumes praticamente desapareceram.

“Ninguém mais compra os peixes do Rio Doce, as pessoas pensam que estão contaminados”, reclama Roberto Carlos, que morou em uma ilha fluvial entre 1990 e 1994. Outra tragédia, desta vez pessoal, complicou ainda mais a sobrevivência do pescador. Ele também trabalhava como vaqueiro e pedreiro, isso até cair de um andaime e quebrar uma perna e os dois braços – após o acidente, foi obrigado a usar muletas.

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Roberto Carlos Siqueira perdeu renda, pois parou de pescar após os cardumes praticamente desapareceram do rio

Roberto Carlos mora em uma fazenda da família. Com frequência, pega o trem para ver um filho que reside em Ipatinga (MG), no Vale do Aço. As amplas acomodações facilitam os deslocamentos. “Enquanto Deus me der vida e saúde, vou usar essa ferrovia”, diz o ex-pescador. “A viagem é mais segura e mais barata do que se fosse de ônibus”, conclui.

O bilhete de Belo Horizonte a Cariacica, maior percurso, custa R$ 73,00 na classe econômica. Na Executiva, mais espaçosa, é cobrado o valor de R$ 105,00. De ônibus convencional, paga-se pelo menos R$ 119,00 – na categoria mais confortável, a mesma viagem sai por cerca de R$ 150,00.

Outra entusiasta das viagens de trem sofreu as consequências da enchente de sedimentos. Funcionária pública e moradora de Governador Valadares, Edna Aparecida de Souza, 56, precisou comprar galões de água para beber, fazer comida e lavar roupa. “Só resolvemos a situação depois que meu irmão mandou furar um poço artesiano”, diz.

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Edna Aparecida de Souza é passageira assídua do transporte ferroviário

Há mais de 30 anos, Edna usa os serviços da estrada de ferro. Na maioria das vezes, para fazer percursos curtos. Mas, recentemente, esticou a jornada até Belo Horizonte. “Gostei demais da cidade, vou pegar o trem para ir lá outras vezes”, comenta.

Raísa Zan tem 27 anos e, desde os dois, conhece os vagões da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Ela nasceu e vive em Resplendor (MG). Regularmente, visita a avó em Ipatinga. As duas cidades ficam na beira da ferrovia. “Este trem marcou todas as gerações daqui, desde meus avós. Faz parte da nossa cultura”, ressalta a jovem, enquanto olha para a geografia do vale do Rio Doce.

Formada em Relações Internacionais, Raísa morou, nos últimos anos, na Colômbia e nos Estados Unidos, onde se acostumou com o transporte ferroviário. “Eu ia muito de Peabody, no estado de Massachussets, para Boston”, relata.

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“Este trem marcou todas as gerações daqui, desde meus avós. Faz parte da nossa cultura”, salienta Raísa Zan

Na memória de Raísa, porém, permanecem nítidas as lembranças dos passeios de infância sobre os trilhos mineiros. “Para falar a verdade, tenho saudade do tempo em que não tinha ar-condicionado. As janelas eram abertas e os moradores de Tumiritinga vendiam cocada e pé-de-moleque para os passageiros”, recorda-se, ao fazer alusão a mais um município de Minas Gerais cortado pela linha de ferro.

Dos tempos de criança, ela também se lembra do pó de minérios que entrava pelas laterais dos vagões. “Chegávamos em casa com o corpo coberto por uma camada brilhante, isso era uma grande brincadeira para a meninada”, menciona.

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A mudança que permitiu a refrigeração da viagem ocorreu em 2014, quando a Vale comprou 56 novos vagões para substituir os antigos. Fabricados na Romênia, os carros importados têm padrão semelhante ao dos trens que circulam na Europa. Os vidros fechados acabaram com o comércio informal de comida.

Hoje, os passageiros têm um vagão-restaurante e outro com lanchonete para comprar alimentos e bebidas sem álcool. O almoço simples – arroz, feijão, farofa e carne – é servido ao preço de R$ 16,00. Um carrinho com biscoitos, sucos e café circula pelos vagões.

Para Tania Marcia da Silva Dornelas, 56, os deslocamentos de trem sempre fizeram parte da programação da família. Depois de se casar, mudou-se para Pompéu (MG), cidade beneficiada por uma ferrovia conectada à Vitória-Minas. Como os pais dela tinham fazenda em Resplendor, as idas ao local eram frequentes.

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De acordo com Tania Marcia da Silva Dornelas, viajar sobre os trilhos era sinônimo de diversão para a garotada

Muitas vezes, Tania levou turmas de sobrinhos para passear de trem. Chegou a viajar com 16 crianças. “As viagens eram as melhores para a meninada, pois podiam brincar. Os pais também ficavam tranquilos, por causa da segurança”, diz a passageira. Mais de uma vez, ela convidou vizinhos de Pompéu para conhecer as belezas naturais da propriedade rural.

No mesmo vagão, viaja Madalena Zeferino de Oliveira, 60, moradora de Juatuba (MG). A aposentada usa a ferrovia desde os 13 anos e guarda na memória as mudanças no trem e na paisagem. No dia da entrevista concedida ao Metrópoles, ela estava acompanhava os pais, que moram em Conselheiro Pena, outra cidade do vale do Rio Doce.

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“A vantagem das janelas fechadas é que não entra mais poeira dentro dos vagões”, conta Madalena Zeferino de Oliveira

Apesar do tom nostálgico usado para falar do passado, Madalena aprecia as novidades. “A vantagem das janelas fechadas é que não entra mais poeira dentro dos vagões. Às vezes, a gente ficava sujo com o carvão dos vagões de carga. Agora, é tudo mais limpinho”, pontua.

Manifestações saudosistas são comuns entre usuários e profissionais das ferrovias. O mecânico aposentado José Idemar Nunes, 68, vive desde a infância em uma casa colada à linha de trem, do outro lado da passarela usada pelos garotos Guilherme e Vinícius. “Sou do tempo da maria fumaça”, diz, referindo-se às locomotivas movidas a lenha, usadas até meados da década de 1950.

Ativas desde o início da ferrovia, essas máquinas foram substituídas por outras mais modernas, a diesel ou elétricas. “Com tanto tempo aqui, para mim, o barulho do trem é como canção de ninar”, acrescenta.

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José Idemar Nunes vive desde a infância em uma casa colada à linha de trem

Com boa parte do tempo ocupada nos cuidados com a mulher, que se encontra doente, Idemar cruza quase todos os dias a ferrovia pela passarela para, do outro lado, tomar uma dose de cachaça em uma mercearia. Dos tempos de criança, ele guarda as lembranças do futebol jogado com os amigos perto da ferrovia.

Hoje, muros paralelos aos trilhos impedem esse tipo de diversão arriscada. A meninada tinha outro hábito, ainda mais perigoso. “A gente costumava jogar pedras no trem, só de brincadeira”, revela.

A melancolia aparece com mais força nas palavras de João Batista Lima Freitas, 66, ex-maquinista das locomotivas da Vale. Depois de trabalhar por 23 anos na empresa, ele se aposentou da profissão que escolheu muito cedo. “Desde menino, eu sonhava em conduzir esses trens”, confidencia.

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“Desde menino, eu sonhava em conduzir esses trens”, confidencia João Batista Lima Freitas ex-maquinista das locomotivas da Vale

Em entrevista concedida ao Metrópoles na praça em frente à estação de Governador Valadares, João Batista deu algumas explicações básicas sobre a máquina de ferro. Contou, por exemplo, que os trilhos da estrada Vitória-Minas são de bitola estreita, adequada para uma linha que serpenteia no caminho traçado pelo Rio Doce.

“Bitola” é o padrão adotado por uma ferrovia para definir a largura entre os trilhos. No caso da EFVM, a distância é de um metro. Com essa característica, as curvas não podem ser tão fechadas e a velocidade máxima é inferior à das linhas de bitola mais larga. A Estrada de Ferro Carajás, entre o Pará e o Maranhão, por exemplo, usa outro padrão, com 1,6 metro de largura.

As memórias do ex-maquinista preservam um episódio angustiante vivido em Aymorés (MG). Certa noite, João Batista conduzia o trem a uma velocidade de 47 km/h na travessia da cidade quando um homem pulou na frente da locomotiva. Sem tempo para frear, atropelou o cidadão, jogado a muitos metros de distância.

Sem saber o que tinha acontecido, seguiu viagem e, somente no dia seguinte, soube detalhes da ocorrência. Antes de se jogar nos trilhos, o homem tentou suicídio ao pular de um caminhão em movimento, mas, ao cair em cima de umas plantas, sobreviveu.

Em mais uma tentativa de tirar a vida, o sujeito saltou dentro de um rio. Embora não soubesse nadar, fracassou novamente em seu intuito, pois foi parar em um banco de areia.

Para surpresa do maquinista, o homem também havia falhado na noite anterior. Por mais incrível que pareça, depois do impacto do trem, ele se levantou e, em seguida, saiu do local caminhando. A descoberta foi um alívio para João Batista.

Casos alegres e tristes compõem o vasto repertório vivido por viajantes frequentes ou esporádicos, de todas as idades, levados pelos trilhos da EFVM nas montanhas de Minas e do Espírito Santo. O movimento cadenciado dos vagões embala os sonhos de crianças, a exemplo de Guilherme, o menino que quer conduzir locomotivas, e também de pessoas já adultas, como João Batista, o ex-maquinista que sente saudade do tempo em que comandava comboios de até três quilômetros de comprimento.

De suas poltronas, os passageiros contemplam cenários cinematográficos. Montanhas verdes, rios, cachoeiras, fazendas e faixas de reservas florestais. Os viajantes veem também matas devastadas devido à retirada de madeira e aos morros esburacados pelas máquinas da mineração, imagens que testemunham a ocupação, desde o início do século passado, do corredor de exploração econômica aberto em torno da EFVM.

Tragado pela enchente de lama da Samarco, o Rio Doce segue seu curso e arrasta, há três anos, os despojos da terra escavada durante a mineração descontrolada. Nas suas margens, o povo padece em razão da falta de água limpa. Pela janela do trem, passa um pouco da história do Brasil.


Fernando Gabeira: O interminável mar de lama  

“Quantas toneladas/ exportamos de ferro? Quantas lágrimas/ disfarçamos sem berro?” Estes versos de Drummond contam uma longa história da mineração em Minas. Uma história que se confirmou pela anulação do processo de Mariana sobre o mar de lama que provocou 19 mortos, dezenas de lares perdidos e um rio envenenado.

O processo foi anulado porque a polícia teria lido e-mails da empresa, sem autorização. Ela só poderia ler e-mails de um período determinado. O argumento da anulação: violência contra a privacidade da Samarco.

Tenho dificuldades em entender por que a quebra da privacidade de uma empresa é superior à morte de 19 pessoas, destruição de comunidades e envenenamento do mais importante rio do litoral brasileiro.

Foi o maior desastre ambiental do Brasil. Precisa ser julgado. Se a polícia leu e-mails demais, basta neutralizar as informações não permitidas. O essencial está lá: a lama, as mortes. O desastre não é um segredinho da Samarco. É uma realidade que todos que viram sentiram e choraram.

No fim da semana, ao chegar em casa, soube que houve um saque a um caminhão de carne tombado. Para mim isso não é novidade. Vejo e filmo, constantemente, saques a caminhões nas estradas brasileiras. No entanto, este tinha um componente especial: ninguém se importou em socorrer o motorista. O saque se prolongou por quase uma hora, antes que chegassem os bombeiros e retirassem o pobre homem dos escombros.

Se junto esses fatos é para enfatizar como é grave um momento em que a vida humana perde seu valor. Um vereador do Rio chegou ao extremo de cobrar propina para liberar corpos do IML. A própria morte passa ser um objeto de negociação.

No seu livro sobre o homo sapiens, Yuval Noah Harari reflete sobre a linguagem humana. Ela não nasceu apenas da relação com as coisas, da necessidade de alertar sobre o perigo, ou mesmo do interesse das pessoas pela vida das outras, da fofoca. Uma singularidade da linguagem humana é sua capacidade de falar de coisas que não existem materialmente, de um espírito protetor, de um sentimento nacional. Esses mitos que nos mantêm unidos ampliam nossa capacidade produtiva e nossas conquistas comuns.

O que está acontecendo no Brasil é o esgarçamento dessa ideia de pertencer ao mesmo país, de partilhar uma história e um futuro.

O mito da nacionalidade é bombardeado intensamente em Brasília por um sistema político decadente. Eles voltam as costas para o povo e decidem, basicamente, aquilo que é de seu interesse pessoal.

Os laços comuns se dissolvem. Não há mais sentimento de comunidade, e daí para adiante é fácil dissolver os laços entre os próprios seres humanos.

No sentido de partilharmos aspirações comuns, já não somos mais um país. E caminhamos para uma regressão maior desprezando as possibilidades abertas pela linguagem, pelos ancestrais que a usavam para grandes conquistas coletivas.

Somos dominados por um sistema político cínico, que se alimenta, na verdade, da repulsa que nos provoca. Mais repulsa, mais indiferença, isto é, menos possibilidade de mudanças reais.

Quando visitei Israel, um motorista de ônibus, ao ver um incêndio, parou, desceu e foi apagá-lo. Muitas vezes na Europa vi gente reclamando quando se joga lixo na rua. E os próprios suíços chamando a polícia quando há barulho depois das dez da noite.

Isso não é aplicável à nossa cultura de uma forma mecânica. Eu mesmo devo fazer barulho depois das dez. Mas o que está por baixo dessas reações é a sensação de pertencer a um todo maior, de ter responsabilidades com ele.

A degradação política conseguiu enfraquecer esse sentimento no Brasil. Eles fingem encarnar um país e quem os leva a sério acaba virando as costas também para esse país repulsivo.

O resultado desse processo destruidor está aí. Reconheço que mecanismos de desumanização estão em curso em todo o mundo e que fazem parte de um processo mais amplo. Mas é uma ilusão pensar que nossas vidas são apenas um reflexo de uma época que tritura valores. Existem razões específicas, made in Brazil, que nos fazem recuar em termos civilizatórios.

A expressão “elite moralmente repugnante” foi durante muitos anos aplicada aos setores dominantes do Haiti. Ela pode ser transferida para Brasília.

A coexistência silenciosa e indiferente diante dessa realidade vai minar os próprios fundamentos da vida comum.

Os versos de Drummond não se limitam a descrever a tragédia mineral: quantas toneladas de ferro, quantas lágrimas disfarçadas?

O Brasil vai recuperar a força de sua humanidade quando se rebelar. Enquanto aceitar silencioso as afrontas que vêm de cima, a tendência é abrir mão de suas conquistas de homem sapiens e mergulhar numa noite de Neandertal.

O sinais estão aí. Adoraria estar enganado.

*  Fernando Gabeira é jornalista


Prefeito de Mariana, do PPS, pede socorro ao Congresso

O prefeito de Mariana, Duarte Júnior, do PPS, pediu que o Congresso Nacional ajude os municípios mineradores como o dele elaborando leis que acabem com o teto de multas por crimes contra o meio ambiente, que obriguem as mineradoras a arcar com todos os custos decorrentes de acidentes com barragens e também impondo a elas o pagamento do CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais) e do ISS (Imposto sobre Serviços).

Duarte Júnior participou, nesta quarta-feira (18), de audiência pública na Câmara em que quatro comissões se uniram para discutir a tragédia de Mariana: Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Legislação Participativa; Direitos Humanos e Minorias; e Fiscalização Financeira e Controle.

Totalmente dependente da mineração, conforme salientou o prefeito, Mariana deixará de arrecadar o CFEM e o ISS a partir de janeiro. “Serão R$ 7 milhões a menos nos cofres do município. Se a gente não achar uma saída para que a empresa seja também responsável na manutenção desses tributos eu digo que a tragédia em Mariana será muito maior do que nos parece agora, porque serviços básicos terão de ser paralisados”, alertou Duarte Júnior.

O presidente nacional do PPS, deputado Roberto Freire, defendeu, na audiência, que as comissões promotoras da reunião elaborem um projeto de decreto legislativo imediatamente para suspender a vigência de um decreto da presidente Dilma Rousseff que considera o rompimento da barragem em Mariana um evento natural para efeito de recebimento de Fundo de Garantia. “Esse desastre tem uma responsabilidade clara e objetiva de uma empresa, a Samarco. É um absurdo que o governo baixe um decreto que possibilite a ela fugir dessa responsabilidade”, advertiu Freire.

O Ministério Público alertou, durante a audiência para os riscos do decreto. Freire sugeriu ainda que as comissões busquem junto ao Poder Executivo uma forma de atender “com a presteza devida” as vítimas do rompimento da barragem. “Não pode, sob hipótese alguma, o governo federal abrir um espaço para que essa empresa possa se defender como se desastre natural fosse o que ocorreu em Mariana”.

O presidente do PPS pediu também que a Câmara cobre mais fiscalização na atividade mineradora por parte do governo federal. “O que ocorreu era mais ou menos uma crônica anunciada”, lamentou. O deputado Sarney Filho, que presidia a reunião, classificou o decreto de Dilma de “trapalhada”.

Responsabilização

O prefeito ressaltou que a Samarco é totalmente responsável pela tragédia em Mariana e deve arcar com todas as consequências. Ele defendeu que o dinheiro arrecadado com a multa de R$ 250 milhões imposta pelo Ibama seja distribuído pelos municípios atingidos pela lama de resíduos que destruiu o distrito de Bento Rodrigues, inviabilizou a vida de populações indígenas e ribeirinhas e que já está no Espírito Santo.

Duarte Júnior afirmou que o momento em Mariana ainda é muito difícil. “A tristeza é grande porque ainda há muitos desaparecidos. Isso não fecha o ciclo das famílias. Então, há uma desolação enorme pelas pessoas que ainda não foram encontradas”, disse o prefeito, ao defender que as buscas continuem.

Para Duarte Júnior, é inadmissível que uma empresa do porte da Samarco, que une a Vale do Rio Doce e a BHP Billiton, maior mineradora do mundo, tenha garantido que tinha um plano de emergência, mas que na verdade não havia previsto nem mesmo um botão do pânico, para avisar os moradores abaixo da barragem que tinha havido um rompimento.

Para Duarte Júnior, a solidariedade dos moradores fez toda a diferença na tragédia de Mariana. “Bento Rodrigues demonstrou algo muito importante para todos nós: que o ser humano tem seu valor, sim, e que o que aconteceu lá só não foi pior porque as pessoas se preocuparam com seu próximo. Temos em Bento Rodrigues vários heróis”. Essas pessoas, disse o prefeito, entraram na lama para salvar os outros e foram avisar os demais moradores do desastre.

Fonte: Assessoria do PPS