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Maria Hermínia Tavares: Cegos para o século 21

Nem partidos progressistas atentam para o crescimento sustentável

Brasil e Estados Unidos têm a pior resposta do mundo à pandemia. Também disputam a corrida para ver quem ostenta as piores políticas ambientais. A opinião é do economista Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, numa entrevista ao jornal Valor Econômico, publicada na sexta (3).

As duas questões não aparecem juntas por capricho do professor. No mundo civilizado, a reconstrução dos sistemas econômicos atingidos pela Covid-19 ampliou o espaço para o debate de soluções compatíveis com formas de produzir, consumir e viver mais sustentáveis do ponto de vista ambiental.

Na Europa, a partir da cruzada de Greta Thunberg, a proteção do ambiente vem ganhando espaço na política institucional, com o engajamento de presidentes e primeiros-ministros de centro direita ou da esquerda social-democrata. Uns e outros respondem à opinião pública e ao crescimento de partidos e candidatos verdes, cuja mais recente prova de força se deu nas eleições francesas de semanas atrás. Nos Estados Unidos, a proposta do Green New Deal nasceu no Partido Democrata —e é conhecido o compromisso de seu candidato a presidente, Joe Biden, com políticas que combatam as mudanças climáticas em curso.

Que o presidente Bolsonaro venha marchando na contramão do mundo civilizado no trato do meio ambiente não causa grande espanto, embora produza espanto no exterior e repulsa na sociedade organizada.

Já não são apenas os cientistas e os gestores das agências públicas e privadas, além das organizações não governamentais, que se movimentam contra as políticas destrutivas do governo de extrema direita. Na terça-feira (7), executivos de 38 grandes companhias que atuam no país e quatro entidades de representação de interesses empresariais enviaram uma carta-manifesto ao general Hamilton Mourão, vice-presidente da República e presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Nela, declaram-se preocupados com o ritmo do desmatamento da floresta e recomendam que a retomada da economia se paute pelo princípio do baixo carbono, da inclusão das comunidades locais e da valorização da biodiversidade.

A iniciativa inclui em boa hora o crescimento sustentável na agenda da reconstrução econômica pós-pandemia. Mas não irá longe se continuar ausente das cogitações das agremiações políticas —com a solitária exceção da Rede, de Marina Silva. Nem procurando com lupa é possível encontrar qualquer menção ao tema nos documentos partidários ou nos pronunciamentos de seus líderes, mesmo os mais progressistas. Eles parecem quase tão cegos para o século 21 quanto o governo a que se opõem.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: Brasil entra na lista de Bachelet

Há correspondência entre a perversidade de Bolsonaro no trato da pandemia e do ambiente e a nossa política externa

Reunido em Genebra, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas ouviu nesta terça-feira (30) o relatório da alta comissária Michelle Bachelet sobre os efeitos da Covid-19 para a situação dos direitos humanos no mundo.

A ex-presidente do Chile censura de maneira forte e direta a atitude dos governos que, ao negarem o perigo de contágio pelo vírus e ao mesmo tempo apostarem na polarização política, pode agravar a severidade da pandemia. O seu relatório chama pelo nome os países que a preocupam: Belarus, Brasil, Burundi, Nicarágua, Tanzânia —e, naturalmente, Estados Unidos.

A crítica de Bachelet acrescenta outra demão de desgaste à corroída imagem internacional do Brasil. Agora é o descaso do governo em face da pandemia; nas duas semanas anteriores foi o seu descompromisso com a proteção ambiental. Vinte e nove fundos europeus de investimento e pensão, além de eurodeputados e importantes organizações do bloco empenhadas na defesa do meio ambiente, foram a público denunciar que a conivência de Brasília com o desmatamento criminoso da Amazônia põe em risco o aporte de capitais de risco ao país, nossas exportações de commodities e o futuro do acordo comercial Mercosul-União Europeia.

Todo país constrói sua imagem com boa diplomacia, mas a resposta alheia depende tanto ou mais da percepção do que ocorre dentro de suas fronteiras. A derrubada da hiperinflação e as reformas econômicas do governo Fernando Henrique, o esforço bem-sucedido de seu sucessor Lula para reduzir a pobreza e as desigualdades e o empenho de ambos em fortalecer as instituições democráticas deram lastro à nossa política externa no passado recente.

Os dois presidentes e seus hábeis chanceleres Luiz Felipe Lampreia, Celso Lafer e Celso Amorim lideraram a alta do prestígio do Brasil, uma democracia de massas empenhada em reduzir o atraso e as injustiças, aspirando a maior protagonismo nos foros multilaterais.

Não por acaso, saúde e ambiente foram áreas em que a diplomacia do soft power brasileiro se destacou, tanto na batalha pela quebra das patentes de medicamentos retrovirais quanto na Rio-92 e conferências seguintes do gênero, nas quais o regime internacional de mudanças climáticas foi ganhando vigor e legitimidade. Isso não teria sido possível sem consistentes políticas domésticas de combate à Aids e de proteção ambiental.

Hoje, continua havendo perfeita correspondência entre a perversidade de Bolsonaro no trato da pandemia e da devastação ambiental e a vergonhosa política externa de Ernesto Araújo. E assim fomos parar na lista de Bachelet.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: A mentira pode pouco

Notícias estão longe de ter a influência sobre os eleitores a elas atribuída

Há quem tenha acreditado que, por volta de 2018, um dos filhos de Lula foi flagrado circulando por Dubai numa Ferrari banhada a ouro. Há também os que estavam convencidos de que, no tempo da Lava Jato, o juiz Sergio Moro era financiado pela CIA.

Algumas dessas notícias patentemente falsas circularam velozmente pelas redes sociais entre o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro.

Ainda hoje, não são poucos os que creem que a enxurrada de rumores absurdos, que atulharam as caixas de mensagens dos usuários da internet durante a campanha eleitoral, expliquem a vitória do “mito” da extrema direita. Da mesma forma como, no exterior, teriam sido responsáveis pelo êxito de Donald Trump, em 2016, ou dos que queriam a Inglaterra fora da União Europeia, no plebiscito também naquele ano.

No país, a convicção da importância maléfica da desinformação intencional baseia-se em parte no acesso muito amplo dos brasileiros à internet —em especial ao WhatsApp, YouTube e Facebook— e na sua feroz utilização pelos bolsonaristas radicais.

Pela importância do assunto, convém olhar para os estudos que deram ao tema atenção rigorosa. Pesquisas feitas principalmente nos EUA indicam que a crença em notícias falsas é bem maior entre pessoas com simpatias por partidos e que a sua aceitação cresce quando as fake news confirmam convicções políticas anteriores. Eleitores apartidários são menos suscetíveis a rumores políticos fabricados.

Resultados semelhantes foram encontrados numa pesquisa feita em Minas Gerais, perto das últimas eleições, pelos cientistas políticos Frederico Batista Pereira, Natalia Bueno, Felipe Nunes e Nara Pavão, apresentados no excelente artigo, submetido para publicação, “Motivated reasoning without partisanship? Fake News in the 2018 Brazilian elections” (Raciocínio motivado sem partidarismo? Notícias falsas nas eleições brasileiras de 2018).

Eles constataram que simpatizantes do PT tendem a acreditar em notícias falsas favoráveis ao partido, enquanto antipetistas aceitam aquelas que reforçam suas crenças anteriores. Os dois grupos não mudam muito de posição mesmo ao serem informados de que era tudo mentira. Eleitores apartidários, a maioria no Brasil, são bem mais céticos diante de informações falsas.

Patranhas políticas, digitadas por humanos ou impulsionadas por robôs, poluem o ambiente social e provavelmente contribuem para aumentar a polarização do eleitorado, reforçando posições extremas.

Nesse sentido, fazem mal à democracia. Mas estão longe de ter a influência sobre os eleitores a elas atribuída. Ainda bem.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: Além do básico

A renda mínima é a base firme do sistema de proteção social

No programa Roda Viva da última segunda-feira (15), o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, observou que a Covid-19 pôs sob uma lente de aumento a espantosa pobreza do Brasil e confrontou os brasileiros com a obrigação moral e os problemas práticos de enfrentá-la.

Nessa empreitada, empenham-se algumas das melhores cabeças de economistas e sociólogos, que puseram em discussão o imperativo de um programa permanente de garantia de renda mínima para além do bem-sucedido Bolsa Família. O objetivo é incluir um segmento ainda maior dos brasileiros pobres e de precária inserção no mercado de trabalho.

Há muitas ideias sobre a mesa. Elas diferem na abrangência, na forma de operação e na relação com os programas assistenciais existentes —especialmente os maiores: o próprio Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada.

Em comum, preocupam-se com a sustentação financeira do futuro programa e com o entrosamento entre responsabilidade social e fiscal. Por esse motivo, os autores das diferentes propostas as associam necessariamente a medidas de reforma tributária.

Não resta dúvida de que, em um país com pobreza e miséria tão extensas, a garantia de renda mínima é a base firme e fundamental de qualquer sistema de proteção social que se pretenda decente. Mas ele tem, universalmente, outros componentes, como a atenção à saúde e à educação básica, que neste momento requerem reforço, além das aposentadorias e do seguro-desemprego.

A amarga experiência da pandemia revelou a força e as limitações de nosso Sistema Único de Saúde, desigual na sua cobertura estado a estado, precário no atendimento hospitalar de emergência e de maior complexidade, limitado em recursos humanos e vergonhosamente subfinanciado ao longo do tempo. A calamidade provocada pelo novo coronavírus não teria sido tamanha no Amazonas se o SUS de lá não fosse tão frágil.

Da mesma forma, será muito difícil para milhões de brasileiros escapar da pobreza se a educação pública não os tiver habilitado para ocupações de mais alta qualidade e remuneração.

A epidemia que expõe nossas mazelas sociais e os limites das políticas tradicionais de inclusão cria também a oportunidade de se avaliar em conjunto nosso sistema de proteção social. O desafio é fazê-lo com financiamento em bases sólidas. Como vem insistindo a pesquisadora Marta Arretche, da USP, no passado o país fez política social de inclusão mantendo um sistema regressivo de tributos. Hoje, não haverá avanço social possível se, ao mesmo tempo, não forem criadas formas mais progressivas de taxação.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: O pior dos exemplos

Bolsonaro sabota esforços para conter a destruição trazida pelo coronavírus

Três meses depois da chegada da Covid-19, o país continua tateando em relação a tudo o que é importante para enfrentá-la. Muitos estados e municípios ensaiam a flexibilização do distanciamento social sem a segurança mínima que só a capacidade de rastrear os atingidos é capaz de dar. A única preocupação do presidente na matéria parece ser a de empurrar para governadores e prefeitos a imensa conta da catástrofe sanitária e econômica em curso.

Ou é ilusão, ou má-fé da parte dele. A sua responsabilidade é inequívoca e se desdobra em muitos planos: na falta de coordenação da política sanitária que caberia ao ministério cujo titular mudou três vezes em um mês; na hostilidade gratuita à Organização Mundial da Saúde, apartando o país das redes internacionais de cooperação nessa área literalmente vital; na demora em adotar medidas de proteção aos mais pobres e vulneráveis, aos empregados com carteira, aos pequenos empreendedores e às milhares de empresas necessitadas de apoio —iniciativas cujo porte mesquinho foi em parte corrigido pelo Congresso; na ausência, enfim, de qualquer noção do que fazer nos próximos meses, para não falar no próximo ano.

Como se fosse pouco, Bolsonaro comportou-se por palavras e atos como o principal agente desorganizador dos esforços para conter o impacto destrutivo do novo coronavirus. Desinformou os brasileiros e incentivou o desrespeito ao isolamento social, que até o momento é o único redutor comprovado da velocidade da contaminação.

Recente pesquisa nacional de opinião realizada pelo DataPoder360 mostra a população dividida ao meio entre os que se sentem e os que não se sentem seguros para sair de casa e retomar as suas atividades. Sintomaticamente, entre os 28% que apoiam Bolsonaro chega a 73% a proporção daqueles que acham seguro abandonar o distanciamento social. No grupo dos que o desaprovam, são apenas 37%.

À parte isso, estudo ainda inédito dos pesquisadores Ivan F. Fernandes, Gustavo A. Fernandes e Guilherme A. Fernandes —“Ideologia, isolamento e morte: uma análise dos efeitos do bolsonarismo na pandemia de Covid19”— mostra que a votação de presidente no primeiro turno, por município, tem correlação negativa com a taxa de isolamento, e correlação positiva com mortes por Covid-19. Ou seja, ali onde ele teve mais votos, o isolamento é menor e, em decorrência, maior o número de óbitos.

Embora os resultados não permitam dizer que as atitudes de Bolsonaro explicam o descaso de seus eleitores com a própria saúde e a dos outros, na melhor das hipóteses as suas bravatas o estimulam.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: O resgate do respeito

Reconstruir nossa política externa exigirá mais que a volta a princípios consagrados

Na semana passada, os principais jornais brasileiros publicaram importante artigo pedindo a reconstrução da política externa do país. Assinaram o texto todos os ex-ministros de Relações Exteriores desde o governo Sarney, um notável diplomata e um ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Com a cacife de quem conduziu a diplomacia nacional nos últimos 28 anos, o grupo critica implacavelmente a destruição de nossa autoridade além-fronteiras, levada a cabo pelo atual governo. E propõe que a atuação do país volte a se pautar pelos princípios que desde muito cedo vertebraram a conduta e a identidade nacional diante do mundo: autonomia frente às nações poderosas, universalismo, multilateralismo e defesa da solução pacífica de conflitos.

Assim como a Covid-19, mais dia, menos dia, este governo passará —e com ele o chanceler que tão bem o espelha na mediocridade e na fúria descerebrada contra as melhores tradições diplomáticas brasileiras. Mas as circunstâncias sob as quais o país terá de reconquistar o respeito alheio posto abaixo pelo obscurantismo serão provavelmente muito diversas daquelas que favoreceram nossa ascensão internacional nas últimas décadas.

As projeções mais razoáveis sobre o estado do mundo pós-pandemia apostam não em mudanças radicais, mas no acirramento de tendências já presentes antes da chegada da peste. Elas parecem apontar para a erosão do que os estudiosos denominaram a ordem internacional liberal --o conjunto de normas, regras e organizações supranacionais de natureza econômica e política, estabelecidas ao término da 2ª Guerra Mundial. As instituições de Bretton Woods e as que surgiram e se multiplicaram no âmbito das Nações Unidas definem sua arquitetura multilateral.

O definhamento do apoio dos Estados Unidos a tais instituições, que Trump não iniciou, mas acentuou —bem como sua preferência por ações unilaterais, além da encarniçada disputa com a China—, as enfraquecem e deslegitimam. Basta ver a campanha xenófoba do presidente americano contra a Organização Mundial da Saúde desde a eclosão da pandemia. Tais organismos decerto não haverão de perecer, mas talvez ofereçam espaço menor para países como o Brasil buscarem reconhecimento e protagonismo.

Nesse ambiente adverso, reconstruir a política externa brasileira demandará mais do que voltar aos princípios consagrados: será imperativo traduzi-los em novas formas de ação. Algo que nem passa pela cabeça do patético chanceler, mas desafia todos quantos aspirem a que o país resgate o respeito internacional perdido.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Salve o SUS

É sobre ele que recai a responsabilidade de atender à maioria das vítimas do vírus

"Temos sido salvos pelas nossas instituições", disse Joseph Stiglitz em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, no último domingo. O Prêmio Nobel de Economia se referia ao mesmo tempo aos Estados Unidos e ao Brasil, governados por presidentes populistas, incapazes e desinteressados em liderar os esforços nacionais de enfrentamento do coronavírus.

O americano destaca a importância, em seu país, do Centro de Controle de Doenças e dos médicos que lutam contra a pandemia. No Brasil sem presidente para o que de fato importa, é sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) que recai a responsabilidade de atender à imensa maioria das vítimas do vírus. Por essa razão, não será demais entender como logramos construir uma das maiores estruturas públicas de saúde do mundo.

O SUS nasceu do compromisso das forças que se opuseram à ditadura militar com o princípio de que a saúde deveria ser um direito garantido a todos os brasileiros, o que não acontecia até então. Uma rede nacional de médicos sanitaristas progressistas concebeu o sistema e ganhou os políticos democratas, que o inscreveram por inteiro na Constituição de 1988.

Para universalizar o acesso à saúde, o SUS promoveu a articulação e a divisão de responsabilidades e recursos entre os serviços de saúde dos três níveis da Federação. Antes, estes se ignoravam, eram redundantes e deixavam sem atendimento os brasileiros mais pobres.

Nos governos de Fernando Henrique Cardoso fincaram-se os marcos institucionais do sistema, incluindo a vinculação constitucional dos seus recursos --tão combatida pelos ultraliberais--, o que lhe permitiu sobreviver em tempos de escassez. Nos governos do Partido dos Trabalhadores, o sistema público de saúde ganhou musculatura, com novos programas, ampliação da oferta de serviços às populações mais vulneráveis, formação de recursos humanos e melhoria de gestão.

Os problemas do SUS sempre foram múltiplos e de difícil trato: a qualidade desigual do atendimento pelo país afora, filas, congestionamento em hospitais, falta de médicos, oferta limitada de tratamento para doenças mais graves: indícios de que os recursos quase sempre foram insuficientes para dar conta da gigantesca tarefa.

Mas não é para se enfeitar que o atual ministro da Saúde usa jaqueta com o monograma do SUS: 3/4 da população são atendidos pelo programa, e perto de 2/3 dos brasileiros em mais de 5.300 municípios são cobertos pelas equipes de Saúde da Família.

Será preciso lembrar disso quando, no pós-pandemia, tivermos que enfrentar a dura discussão sobre o que caberá ao setor público como tarefa e como recursos.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebra


Maria Hermínia Tavares: Pato manco

Jair Bolsonaro está politicamente isolado

Defensor do isolamento parcial, Jair Bolsonaro está politicamente isolado. Discursos e atitudes insanas, que ameaçam a já limitada capacidade do país de enfrentar a devastação do coronavírus, receberam o repúdio dos governadores.

O Congresso substituiu o Executivo inoperante ao aprovar o projeto de lei —ainda não sancionado— que garante renda mensal de R$ 600 aos mais pobres entre os pobres. Além do vice, Mourão, os ministros Guedes e Moro se distanciaram do chefe ao apoiar as posições do colega Mandetta em relação à quarentena.

A entrevista coletiva armada na segunda-feira (30) para mostrar ao titular da Saúde qual é a cadeia de comando no combate à Covid-19 não foi conduzida pelo presidente, mas pelo chefe da Casa Civil, um general.

Empresários importantes, abandonando a prudência que costuma fazê-los buscar o regaço do governismo, não escondem ter perdido a confiança inicial no “Posto Ipiranga” da economia. O Twitter e o Facebook apagaram mensagens das contas de Bolsonaro por suas falsidades sobre a pandemia.

No exterior, seu comportamento literalmente singular provoca espanto e chacota. Disparates de sua lavra foram desmentidos pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde. O tiro na mosca partiu de Ian Bremmer, o número 1 da Eurasia, influente empresa de consultoria de negócios. “Comparado a Bolsonaro”, fulminou, “Trump parece um Churchill”.

Os americanos chamam de pato manco o presidente em final de mandato. Com o sucessor já eleito, o poder lhe escapa, só lhe resta limpar as gavetas de seu gabinete e oferecer aos visitantes, cada vez mais raros, o café frio servido pela copeira.

Com pouco mais de um ano no Planalto, Bolsonaro é um pato manco precoce. Precisaria muito mais do que a morna fala fingida desta terça-feira (31) na televisão a fim de reaver o crédito das lideranças políticas, o respeito de seus ministros e o apoio da opinião pública não tomada pelo fanatismo. Para isso, teria que vencer a cláusula pétrea dos seus traços mais autênticos —ignorância e truculência.

O Brasil vive a inédita experiência de um presidencialismo sem presidente. Em circunstâncias normais, Bolsonaro estaria com os dias contados. Mas, na crise sanitária que só está começando, todos os esforços estão dirigidos a reduzir seu impacto, medido em vidas e privações. Uma comoção pública é tudo o que não convém provocar numa hora dessas.

Ainda assim, as lideranças políticas estão fazendo seus cálculos. Que encontrem a fórmula de assegurar estabilidade política, preservando as liberdades civis e as regras democráticas. Pois a saída será pela direita.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: Pulsão autoritária

Bolsonaro aparenta acatar regras democráticas, mas estimula quem quer aboli-las

Visto da perspectiva da opinião pública, o país continua dividido em duas porções quase iguais: a dos que gostam do governo (34%) e a dos que o abominam (36%). Neste fevereiro, a pesquisa mensal XP mostra que o grupo simpático ao presidente tem tamanho e solidez razoáveis.

Nada afeta os apoiadores do ex-capitão. Nem os vagares da recuperação econômica, nem os desacertos na educação, nem as ameaças ao meio ambiente. Muito menos a sequência de agressões a jornalistas, autoridades públicas e forças de oposição que Bolsonaro dispara, ao falar de improviso, às portas do Palácio, para delícia de sua patuleia.

A esta altura, um presidente que jogasse o jogo democrático estaria buscando ampliar seu círculo de apoiadores, acenando para aqueles que declaradamente o reprovam. Ao contrário, quando fala e, sobretudo, quando cala, Bolsonaro se compraz em despejar gasolina na fogueira acesa pelos radicais que, em seu nome, soltam barbaridades nas redes sociais, sem serem desautorizados. Também em seu nome, os filhos tuiteiros papaguearam o apoio do clã ao motim dos PMs do Ceará e às milícias.

Em seu nome fala igualmente quem organiza —agora com seu apoio declarado— a manifestação contra o Congresso e o Supremo marcada para 15 de março. Para tanto, usam imagens dos ministros militares que ocupam o terceiro andar do Planalto, com exortações golpistas do tipo “Os generais aguardam as ordens do povo”, “Fora Maia e Alcolumbre”, ou reproduzindo o sonoro palavrão que o general Augusto Heleno dirigiu ao Legislativo.

Ainda em seu nome colhem-se assinaturas para o novo partido do bolsonarismo, cujo símbolo, gravado em placa dourada feita de cartuchos de bala, não deixa dúvidas sobre o tipo de disputa política preferido pelos seus filiados.

O jogo do presidente é inequivocamente dúplice: ele aparenta acatar as regras democráticas, mas estimula todos quantos gostariam de aboli-las, em nome seja lá do que for.

As lideranças do Congresso, a cúpula do Judiciário e os governadores vêm resistindo a cada provocação, dando testemunho da força das instituições democráticas. Da mesma forma, a imprensa tem reagido às ofensas aos seus profissionais e ameaças às respectivas empresas. Assim também a miríade de entidades que formam a sociedade civil organizada.

Pode-se apostar que a soma de todas essas forças será mais do que suficiente para neutralizar as pulsões autoritárias do bolsonarismo. O que não se pode, definitivamente, é negar que existam, que se aninham no cerne do poder e contam com o apoio de parcela ponderável da população.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Perigo no terceiro piso

Militares somam 9 dos 22 ministros deste governo

"Ficou completamente militarizado o meu terceiro andar", disse o presidente Bolsonaro ao substituir por um general do Exército na ativa o ministro Onyx Lorenzoni, até então chefe da Casa Civil e último político profissional a ter gabinete no Palácio do Planalto. Agora, são todos militares os ministros instalados no coração do governo: coordenando a ação dos diferentes ministérios, fazendo a articulação do Executivo com o Legislativo ou ainda assessorando a Presidência em assuntos de segurança.

Ao todo, eles somam pouco mais de 40% dos que comandam o primeiro escalão: 9 em 22 ministros, sem contar o vice-presidente Mourão. Essa porcentagem supera a da Venezuela de Maduro, onde membros das Forças Armadas comandam 30% das pastas. E é inédita entre as democracias dignas do nome.

Ao mesmo tempo em que se cercou de fardas, Bolsonaro —ele mesmo ex-capitão de carreira tumultuada— tratou de blindar o sistema de previdência dos militares do enxugamento geral promovido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Por fim, no primeiro ano de seu governo, pautado pelos esforços de austeridade fiscal, o presidente encontrou recursos para projetos importantes da Marinha e protegeu o orçamento da Defesa de cortes que atingiram outros setores. Como observou o professor Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, no Boletim Macro do IBRE-FGV de fevereiro, que circula esta semana, o Orçamento de 2020 deixa patente a preferência aos gastos com Defesa sobre os dispêndios na área social.

É possível que as Polianas de costume, embaladas pela ilusão de vivermos em tempos normais, considerem que não há nada de incomum nos afagos do governo à instituição militar. Muito menos no engajamento de lideranças reconhecidas da corporação no dia a dia da gestão nacional. Afinal, argumentam, a nação precisa contar com três Armas bem equipadas; remuneração e previdência decentes são devidas a quem tem como missão proteger o país; além disso, mais do que a vestimenta, contam a dedicação e competência na condução das tarefas de governo.

É fato. Mas sabemos também, por dura experiência própria, que, ao deixarem as Forças Armadas sua posição de defensoras do Estado e da Constituição, sendo arrastadas pelas disputas políticas do dia a dia dos governos, o resultado é igualmente desastroso para a corporação e para a democracia.

Mais perigoso ainda se os governos têm inclinação populista. Veja-se a Venezuela de Maduro, hoje sustentado nas Forças Armadas, primeiro cooptadas, depois corrompidas e, enfim, transformadas em guarda pretoriana do ditador.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: O último dique

Sociedade e instituições são diques contra populistas

Sob presidentes populistas, as democracias sempre correm risco. Mas elas podem morrer, como na Venezuela, Hungria e Filipinas, ou continuar vivas, como na Itália e Estados Unidos.

Os autocratas tratam de enfraquecer o sistema, atacando a imprensa independente, desqualificando os adversários e atiçando os seguidores com a linguagem chula que uns e outros tanto apreciam. Só que o desfecho da ofensiva depende de muito mais do que isso.

Aqui, como em toda parte onde populistas ascenderam ao poder, a sociedade organizada e, especialmente, as instituições políticas, funcionam como diques de contenção aos seus piores intentos. Assim têm se conduzido —para surpresa de céticos e cínicos— o Congresso, as instâncias superiores do Judiciário, setores do Ministério Público e as Defensorias.

Outra barreira robusta é a reação de governadores eleitos sob diferentes equações políticas, a demonstrar o papel do sistema federativo para limitar o raio de ação do governo nacional. Numa Federação, é pouco provável, se não impossível, o alinhamento automático dos estados a Brasília —mesmo quando são amplos os recursos de poder concentrados no Executivo federal.

Além de sua relativa autonomia, os governadores fazem seus cálculos políticos de olho naqueles que os escolheram e podem reelegê-los ou apoiá-los em voos mais ambiciosos. Do paulista Doria ao maranhense Dino, governadores têm voz própria, e alguns deles a usam de forma incisiva sempre que Bolsonaro ensaia alguma iniciativa mais desastrada e danosa ao pluralismo democrático e aos direitos dos cidadãos.

Mas nossa Federação não termina nos estados. Sua base é formada por 5.570 municípios, que têm em comum governos escolhidos pelo voto popular. Ele será exercido outra vez neste ano. As eleições locais têm pelo menos dois efeitos importantes sobre a política nacional. De um lado, tende a haver uma correlação entre os resultados obtidos nos municípios e a composição da Câmara Federal dois anos depois. Afinal, prefeitos e vereadores atuam como cabos eleitorais de candidatos à Casa.

De outro lado, embora falte à maioria dos municípios cacife para influir no jogo nacional, o resultado em algumas capitais é politicamente relevante. Faz diferença para a saúde da democracia no país que, por exemplo, São Paulo continue a abrigar manifestações artísticas que o governo federal tentou censurar. Ou que Porto Alegre possa seguir inovando no transporte coletivo. Ou ainda que, no futuro, sob um governo progressista, o Rio de Janeiro venha a ser um modelo de política civilizada de segurança pública.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: O ovo da serpente

É hora de usar as leis da democracia para impedir que a serpente do terrorismo saia à luz

Na madrugada da véspera do Natal, coquetéis molotov atingiram o prédio onde funciona a produtora do grupo humorístico Porta dos Fundos, no Rio.

Logo depois, em um vídeo que circulou nas redes sociais, um grupo que se dizia pertencer à “família integralista” reivindicou a autoria do atentado. O vídeo era caseiro: a encenação —tendo como fundo o estandarte da organização, à frente a bandeira do Império do Brasil e um mascarado dando o recado— plagiava mensagens de grupos terroristas.

O texto pueril chamava os humoristas de militantes do “marxismo cultural” empenhados em “destruir o povo brasileiro, suas crenças e seu patrimônio imaterial”. Tudo tão malfeito e patético que o primeiro impulso seria minimizar o episódio, atribuindo-o a um bando de lunáticos, desejosos de exumar a Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado, dos anos 1930, importada da Itália fascista.

Afinal, já há algum tempo, grupos do gênero tem existência virtual nas profundidades mais lamacentas da internet, sem consequências perceptíveis. Entretanto ignorá-los seria um erro, pois os dias são outros. O terrorismo está firme e presente no mundo, ombro a ombro com os movimentos sociais de direita em ascensão e o crescimento eleitoral de partidos extremistas, nos Estados Unidos e na Europa.

Seus agentes constituem uma fauna variada formada de supremacistas brancos, islamofóbicos, antissemitas, racistas de todos os naipes ou anti-imigrantes, tendo em comum a prontidão para a violência contra seus alvos. Dados atualizados e análises fundamentadas do fenômeno foram reunidos pelo Start – Consórcio Nacional para o Estudo do Terrorismo e das Respostas ao Terrorismo, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos (https://start.umd.edu//).

Estudiosos atribuem a multiplicação do terrorismo de direita ao aumento da polarização política e à alta do populismo nos Estados Unidos e na Europa. Também aqui é possível que isso esteja acontecendo, embora os alvos sejam outros: os artistas e todos quantos prezam a liberdade de criação.

A guerra ao chamado marxismo cultural declarada por Bolsonaro, alguns de seus ministros e auxiliares próximos e pelo guru terraplanista da família —que nada sabem nem de marxismo, nem de cultura— pode ter produzido seu primeiro fruto envenenado na véspera de Natal. Como no conhecido monólogo de Brutus, na tragédia “Júlio César” de Shakespeare o que vemos hoje é apenas o ovo da serpente que, “ao ser chocado, há de tornar-se peçonhento”.

É hora de usar as leis da democracia para impedir que a serpente do terrorismo saia à luz.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.