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Maria Hermínia Tavares: Um espectro ronda o PT

É importante ouvir Lula, goste-se ou não de suas palavras

O colapso político-eleitoral do PT em 2018, que abriu as portas do Planalto a Bolsonaro, fez encolher a sua bancada no Congresso. Mas não o tirou do pódio entre as 24 legendas ali representadas. Ainda que as próximas eleições municipais confirmem —ou mesmo agravem— a sangria de votos sofrida em 2016, o Partido dos Trabalhadores continuará sendo até onde a vista alcance o alicerce de qualquer barreira oposicionista ao predomínio da direita radical do capitão-presidente.

Por isso, é importante ouvir o seu comandante-chefe, goste-se ou não de suas palavras. E, no 7 de Setembro, ele fez afirmações num tom que de há muito não se ouvia. Na sua fala, é possível reconhecer o Lula capaz de ser íntimo dos que perderam pessoas queridas ou sua fonte de renda por causa da pandemia; dos que dependem do SUS; dos que sofrem discriminações de toda ordem e dos que têm medo do amanhã; ao lado da defesa da democracia e das liberdades ameaçadas pelo bolsonarismo.

Para os seus septuagenários coetâneos, porém, o discurso soou parecido ao do PT dos velhos tempos. Tempos do partido da crítica social radical, do igualitarismo social e do nacionalismo, da denúncia das oligarquias e dos poderosos —em suma, da agremiação que se fechava a alianças porque se apresentava como porta-voz sem par da “classe trabalhadora”. Oposição pura e dura, aversa à negociação política, o PT votou contra todos os planos de estabilização —do Cruzado ao Real— e não assinou a Constituição de 1988.

A retórica incisiva e a estratégia de apresentar candidatos próprios em eleições para cargos executivos importantes, além de disputar a Presidência sempre com o seu maior nome, deram frutos. Em 20 anos, o PT se transformou no maior partido da esquerda brasileira, e Lula, no político mais popular do país, conhecido mundo afora.

Mas o que serviu para fortalecer o PT na oposição não bastou para fazê-lo chegar ao governo. Só o conseguiu ao moderar o discurso na Carta ao Povo Brasileiro e trazer o centro para a vice-presidência, com José Alencar, em 2002, e o MDB para a coalizão de governo, em 2006.

Entre 2002 e 2016, o PT governou com um amplo enlace, que atravessava o espectro político da esquerda até a centro-direita —sem esquecer que, antes, a moderação política já havia tingido campanhas municipais do partido.

Repetir a retórica da recusa aos “pactos pelo alto” e a estratégia eleitoral dos primórdios pode confortar a militância fiel, mas não tem a amplitude necessária para afastar do horizonte o pesadelo da extrema direita. É um espectro a rondar o PT.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Ernesto Araujo, em suma, espalha caos e sombras

Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série Cárceres do veneziano Giovanni Piranesi

Percorrer o twitter do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, é como entrar nos espaços retratados nas gravuras da série “Cárceres” do veneziano Giovanni Piranesi (1720-1778). Pouca luz, ruínas, objetos estranhos pendurados no teto, escadas labirínticas que não levam a parte alguma. Em suma, caos e sombras.

De alguns tuítes emana um fartum conspiratório: “Infelizmente, eles não vão parar. Felizmente, nós também não.” Outros são tão presunçosos quanto vazios: “Uma sociedade não pode renunciar à ordem do espírito sem destruir-se a si mesma”. Entre uma que outra adulação ao chefe Bolsonaro, o tedioso registro de reuniões protocolares rivaliza com a rejeição de um dos pilares da ordem internacional contemporânea: “No mundo pós-Covid, precisamos de ações de cada país mais do que de ‘multilateralismo’”.

Ele não, mas de há muito os observadores conhecem a crescente importância de problemas que, por ultrapassar as fronteiras nacionais, não podem ser tratados apenas dentro de seus limites: intensificação do comércio e dos fluxos financeiros entre países; cadeias de produção regionalmente dispersas; ondas migratórias; aquecimento global; contrabando; tráfico de armas, drogas e pessoas —e, por fim, as pandemias. Sua existência explica a multiplicação dos instrumentos multilaterais, criados, lá atrás, para assegurar a paz. Sua complexidade e os conflitos entre desigualdade de poder das nações e regras da cooperação internacional dão conta da crise presente do multilateralismo.

Hoje o destino das instituições multilaterais depende de decisões tomadas em Washington e em Pequim. O Brasil pesa muito pouco nesta briga de cachorro grande, embora tenha trunfos importantes nos fóruns onde se discute o destino sustentável do planeta ou o comércio de produtos agrícolas.

Mas há outro espaço de ação internacional onde o Brasil poderia contar, não fosse a miopia nativista dos —vá lá a palavra— condutores de nossa política externa: a América Latina em geral e o espaço sul-americano em especial. O sumiço político do Brasil do seu entorno ajuda a fragmentar a região em grau raras vezes visto. Dividida, ela não conseguirá impedir, por exemplo, que a presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) lhe escape. Carente de mecanismos atuantes de consulta e cooperação, não logra oferecer solução própria para a tragédia venezuelana.

Hoje cada nação combate a seu modo o novo coronavírus. Se assim continuarem, quando vier a retomada, terão perdido oportunidade única de ter voz ativa nos movimentos a caminho de mudança da ordem internacional.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: A conversa necessária

Arte do diálogo para barrar a ascensão das forças antidemocráticas requer delicadeza

Em muito boa hora, Renato Janine Ribeiro publicou na revista Piauí de agosto o artigo “Diálogos urgentes”. Escrito da perspectiva da esquerda democrática, em que se situa o professor de filosofia da Universidade de São Paulo, trata-se de um apelo sereno e corajoso aos que com ele comungam dos mesmos valores. Convida-os a sair de suas bolhas para conversar com os adversários de ontem que, alojados na centro-direita e na direita, possam estar igualmente aflitos com o assédio à democracia representativa perpetrado por Bolsonaro e sua alcateia extremista.

O texto vem na esteira de uma sucessão de iniciativas de intelectuais públicos ou grupos de opinião que buscam construir, nas plataformas digitais, as pontes dinamitadas pela polarização política.

O apelo de Janine, no entanto, é mais ambicioso: inaugura a discussão de como transitar do círculo importante ¬—mas limitado— daqueles setores ou das convergências em votações no Congresso para a arena eleitoral na qual milhões de brasileiros definirão, neste ano e em 2022, o lastro político da democracia no país. Essa não é uma caminhada imune a percalços.

Antes de tudo, os democratas de esquerda têm de reconhecer que são —e sempre foram— minoria nas urnas. Os cientistas políticos Timothy Power e Rodrigo Rodrigues-Silveira dissecaram os resultados, por município, de 13 contendas para o Legislativo entre 2002 e 2014. Em artigo publicado na “Brazilian Political Science Review” 13(1) de 2019, demostraram que os eleitores deram maioria à direita e à centro-direita, em todos os pleitos. Mesmo quando o Executivo federal era ocupado pelo PT.

Tanto que, para ascender ao Planalto em 2002, o PT se deslocou para a centro-esquerda; e, para governar, se associou a partidos da centro-direita. Retomar o diálogo com esse eleitorado de inclinação conservadora e disputá-lo com o bolsonarismo não será coisa pequena.

Além disso, a conversa com as forças da centro-direita e da direita democrática não pode mirar a montagem de coligações eleitorais já no primeiro turno. De fato, a nova legislação que aboliu tais formações nos embates para as Câmaras e Assembleias torna a apresentação de candidatos majoritários, puxadores de votos, um imperativo de sobrevivência partidária.

Assim, a arte da conversa necessária para barrar a ascensão das forças antidemocráticas requer delicadeza, para não transformar competidores no primeiro turno em desafetos que prefiram se abster em vez de se aglutinar em torno do candidato de oposição à barbárie bolsonariana, qualquer que seja a sua cor política.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Os dilemas da reforma

A reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis

A Covid-19 teria efeito ainda mais devastador se a população brasileira não contasse com o SUS. A crise econômica, trazida pela virose, teria arrastado à miséria um número muito maior de famílias caso o auxílio emergencial não chegasse com rapidez a 65 milhões de pessoas. Nada disso é trivial —antes, são exemplos notáveis de capacidades estatais desenvolvidas nos últimos 30 anos.

Elas não podem ser esquecidas quando a reforma administrativa volta à agenda política. Poucos duvidam de que a reforma seja necessária: há ineficiências a superar e privilégios a combater. Ninguém imagina que a mudança seja fácil, dados os interesses contrariados que mobiliza e os limites fiscais que a enquadram.

Mas a reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis, de forma a permitir investimentos igualmente importantes. Refletirá, inevitavelmente, uma ideia de poder público.

Segundo o "Atlas do Estado Brasileiro 2019", publicado pelo Ipea, entre 1986 e 2017 cresceu expressivamente o número de servidores nos três níveis de governo. A expansão foi puxada pelo aumento das administrações subnacionais —dos estados e, sobretudo, dos municípios—, acompanhando o aumento de suas responsabilidades na provisão de serviços sociais. Quatro em cada dez servidores municipais são educadores ou profissionais da saúde. Nos estados, educação, saúde e segurança respondem por 60% do emprego público. O setor federal cresceu menos, e a sua participação no conjunto caiu.

O gasto com servidores ativos da União manteve-se relativamente constante como fatia do PIB, mas cresceu para cerca de ¼ da receita corrente líquida. O que aumentou de forma desmedida foram os gastos com aposentadorias e pensões. A longo prazo, a reforma da Previdência trará desafogo. Mas, no presente, a despesa total com servidores pressiona os orçamentos dos governos.

Um projeto de reforma administrativa que valha seu nome tem de decidir como assegurar que não faltem professores para turnos escolares compatíveis com o aprendizado; que haja profissionais da saúde para sustentar um SUS decente país afora; que existam fiscais ambientais; que a renda básica conte com pessoal competente no cadastramento e monitoramento; que haja carreiras para servidores capazes de coordenar programas intergovernamentais e avaliar seus resultados.

Pois o problema é real, e as escolhas, difíceis. Não ajudará muito se o debate virar guerra de chavões sobre a "destruição do Estado" ou os perigos do "corporativismo".

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.