maria hermínia tavares

Maria Hermínia Tavares: Nem tudo é desastre; na pandemia, temos capacidade de fazer boa ciência

São inaceitáveis as idas e vindas na discussão dos recursos destinados à Fapesp

Há mais de duas décadas, o historiador José Murilo de Carvalho usou dados de pesquisas de opinião para refletir sobre o que os concidadãos se orgulhavam. No artigo “O motivo edênico no imaginário brasileiro”, concluiu que apenas a natureza grandiosa —os céus, mares, rios e florestas— gratificava a sociedade. Nada do que os humanos haviam legado ou estivessem construindo causava admiração: o povo era visto, antes, com ceticismo e desprezo.

Com efeito, há muito de negativo a apontar nessa obra perversa que, ao longo do tempo, produziu uma nação de iniquidades e injustiças; predação e violência; ignorância e superstição; notável insensibilidade (das elites) pela sorte alheia (a dos mais vulneráveis); de promiscuidade entre interesses privados e órgãos estatais; de apropriação patrimonialista de recursos e agências públicas.

Mas nem tudo é desastre. Na pandemia, o país descobriu a virtude de ter atendimento de saúde universalizado por meio do SUS, a importância de contar com o aconselhamento de cientistas bem formados e com um robusto sistema de produção de conhecimentos e suas aplicações.

É na Fundação Oswaldo Cruz e no Instituto Butantan que estão sendo desenvolvidas —em parceria com empresas e instituições acadêmicas internacionais— as vacinas que nos ajudarão a enfrentar em melhores condições a crise sanitária.

Essa capacidade não brota da noite para o dia. Requer, além de muito investimento, a segurança de que estará garantido por décadas e a gestão competente de sua utilização.

Como é feito pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp), instituição modelar que sustenta o sistema paulista de pesquisa, permitindo a formação de quadros para as universidades, as empresas e a administração pública; a geração de saberes em todas as áreas e a criação de startups inovadoras.

Todos os pesquisadores em atividade aqui residentes tiveram algum apoio da Fapesp —quando não foram por ela financiados durante toda a carreira profissional.

Eis por que são inaceitáveis as idas e vindas que marcaram a discussão dos recursos destinados à fundação, durante os meses em que estiveram em pauta, primeiro as medidas de ajuste fiscal, e agora o orçamento do próximo ano no estado. Mesmo que o governador, pressionado, tenha enfim se comprometido a repor os R$ 454,6 milhões subtraídos à entidade no PL 627/2020.

Em momento de aperto fiscal e futuro incerto, financiar ciência é prioritário. A ponto de definir se, mais adiante, os brasileiros poderão se orgulhar de algo além da natureza —vá lá o ufanismo— dadivosa.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: O traçado de um desastre amazônico

Pressões sobre a mata, seus habitantes e sua biodiversidade vêm de muitos lados

"A Amazônia é o coração biológico do planeta Terra, e ele já não está mais batendo de forma saudável", costuma comparar o cientista Carlos Nobre, voz influente no debate sobre o aquecimento global.

Identificar em detalhe as ameaças a esse formidável bioma e localizá-las na vastidão dos seus 8,2 milhões de km2 é o propósito do "Atlas Amazônia sob Pressão 2020", recém-lançado pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georeferenciada (Raisg), consórcio que reúne organizações não governamentais de seis dos nove países que o abrigam.

São 23 mapas preciosos, acompanhados de textos que descrevem os riscos à integridade da floresta. As cartas permitem seguir as mudanças, em geral negativas, ali ocorridas entre 2012 e 2018, oferecendo um amplo panorama do desastre ambiental em curso e dos processos que o desencadeiam.

As pressões sobre a mata, seus habitantes e a biodiversidade nela abrigada vêm de muitos lados. Entre 2001 e 2009, queimadas acidentais ou, sobretudo, resultantes da expansão da agricultura e da pecuária cobriram um território equivalente ao da Bolívia --por sinal, o segundo maior responsável, depois do Brasil, por esse tipo de catástrofe.

Como se sabe, ou se deveria saber, a degradação da floresta começa pelo fogo, mas pode vir também com obras de infraestrutura, desfigurando a paisagem à margem de estradas ou no entorno de hidrelétricas.

A mineração legal e a extração de petróleo são dois outros fatores de pressão em quase todos os países amazônicos. Além de destruir a floresta, contaminam os rios e, por tabela, os peixes que alimentam os humanos. Pior ainda quando se trata de mineração ilegal. O atlas identificou nada menos de 4.472 locais de atividades extrativas ilícitas, muitas de escala média ou grande, localizadas principalmente no Brasil (58%) e na Venezuela (32%), não raro em áreas de preservação ambiental ou em territórios indígenas. Ilegais são também os plantios de coca nas matas devastadas da Colômbia e do Peru.

O atlas permite uma visão mais complexa dos problemas da Amazônia. Além disso, expõe os governos incapazes de se contrapor aos interesses privados predatórios --quando não coniventes com eles--, alheios ao destino das populações da região e medíocres demais para criar estímulos ao aproveitamento sustentável das riquezas imensuráveis da floresta tropical.

Fosse outro o governo brasileiro, este seria o momento de transformar o Tratado de Cooperação Amazônica de 1978 em instrumento de diplomacia efetiva capaz de promover um esforço compartilhado pela saúde do coração do planeta.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Bolsonaro não acabou

Seria um equívoco ler seu destino nas cartas distribuídas nas eleições municipais

As eleições municipais confirmaram o que se viu em 2018: o Brasil dobrou à direita –muito embora os partidos que se beneficiaram dessa virada sejam muitos e diferentes em tamanho e relações com o governo.

De seu lado, mesmo derrotadas, as esquerdas se revelaram competidoras aguerridas em capitais e cidades maiores. Ganhando ou perdendo, mobilizaram os jovens e estão levando pautas progressistas às Câmaras Municipais.

Com razão, comentaristas tem destacado que vitoriosos foram os partidos de oposição a Bolsonaro situados no centro-direita e na direita. PSDB, MDB e DEM governarão o maior número de brasileiros, mesmo tendo perdido Prefeituras. Também é verdade que os candidatos abertamente apoiados pelo presidente foram derrotados; a maioria, já no primeiro turno.

Não está claro, porém, o que isso diz da força política do chefe do governo. E seria um equívoco ler seu destino nas cartas distribuídas nas eleições municipais. Primeiro, porque, salvo o PTB, todas as siglas ajuntadas no centrão, que o sustentam no Congresso, cresceram de forma muito significativa.

Depois, porque, amargando embora a derrota de seus candidatos, o presidente sem partido tem ainda o apoio de 37% dos brasileiros, segundo a pesquisa XP-IPESP, feita após o primeiro turno. Uma porcentagem muito próxima à do primeiro mês de seu mandato (40%), em franca recuperação do seu pior momento, em maio deste ano (25%).

Especialistas no estudo da opinião pública costumam estimar que algo em torno de 15% do eleitorado forma o núcleo duro dos adeptos de Bolsonaro. De fato, a pesquisa “Impactos Políticos da Pandemia”, coordenada pelo cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, encontrou, em duas rodadas, respectivamente 15,2% e 18,5% dos entrevistados que se dizem dispostos a votar de novo nele em 2022.

No poder, o ex-capitão deu cara e alcance nacional à minoria extrema que já existia no país, mas não tinha um líder com o qual pudesse identificar-se na grosseria da fala, no primarismo da visão de mundo e no medievalismo em matéria de valores e condutas. Essa extrema direita não se esfumará.

Antes, continuará a mostrar presença no dia a dia e na arena eleitoral. Sua relação com os outros tons da direita dependerá de muitas coisas: por exemplo, do que o governo fará ou deixará de fazer diante do repique da pandemia, com as vacinas, com a economia. Mas também das estratégias das direitas ­—das mais próximas ao governo às mais centristas— e, em menor medida, do que façam as esquerdas daqui até 2022. Bolsonaro não acabou e dificilmente acabará tão cedo.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: O muro invisível do racismo

Todos reagiam com espanto diante da possibilidade de suas condutas serem discriminatórias

"Pois é, professora, ele não tinha cara de aluno da USP", comentou comigo o policial militar, meio sem graça, em particular. Estávamos no fim de uma reunião entre representantes da corporação e a Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Tratava-se de saber por que o policial havia dado um empurrão no único negro que se envolvera em um incidente menor com um grupo de estudantes.

Fui ouvidora-geral da USP entre 2014 e 2017. Nesse período, recebi queixas semelhantes de alunos abordados pela segurança do campus ou a quem um professor perguntava se realmente faziam parte daquela classe. Tinham em comum apenas a condição de serem negros. Tampouco eram brancos alguns daqueles cujo comportamento alunas viam ­como assédio. Não eram acontecimentos frequentes. A rigor, foram raros nos quatro anos em que ali atuei. Mas sempre me chamou a atenção o fato de envolverem jovens que, por serem negros, não pareciam estar no lugar certo numa instituição de ensino superior que, naqueles anos --hoje nem tanto--, era muito, muito branca.

Não me cabia investigar a autenticidade das denúncias. Pelo sim, pelo não, sempre as tratei como verdadeiras. Chamava os envolvidos, explicava o que pesava contra eles, ouvia o que tinham a dizer e lhes informava que racismo é crime --inadmissível na universidade e em qualquer outro lugar. Todos reagiam com espanto diante da possibilidade de que sua conduta pudesse ser interpretada como discriminatória.

Nenhuma das pessoas com quem falei --alunas, professores, membros da guarda universitária ou da PM-- se reconhecia racista. E não creio que fosse por cálculo ou cinismo. Parecia-lhes razoável desconfiar da presença de quem não pertencia àquele lugar, por sua cor e decerto por destoar dos códigos compartilhados do vestir ou do agir.

Talvez seja essa a melhor tradução do que se tem chamado racismo estrutural. A abominação se materializa nos processos e mecanismos impessoais que distribuem de forma desigual entre negros e brancos, pobres e ricos, não só renda e riqueza, mas acesso a escolas e universidades de bom nível, serviços essenciais, pontos de consumo e de lazer --entranhando formas segregadas de convívio social. Mas, muito especialmente, configura padrões mentais, maneiras de ver a si, os seus e os outros, que naturalizam o preconceito a ponto de torná-lo inconsciente.

Como lembrou nesta Folha no último domingo o empresário negro Ian Black, "o pior do nosso racismo não está no sujeito que xinga uma pessoa negra na rua, mas na estrutura invisível que a impede de entrar nos lugares em que hoje os brancos são maioria".

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: A desastrosa marcha à ré do combate à pobreza e à desigualdade

Os mais ricos ficaram com quase todo o crescimento da renda de 2017 para cá

Nos últimos dez anos, perdemos a luta contra a pobreza e a desigualdade, objetivo incontornável de qualquer país que se quer decente. Essa é a conclusão do primoroso trabalho "Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza", escrito por três ases --os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares-- e recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, na série Textos de Discussão.

Ali se lê que os ganhos conseguidos entre 2012 e 2014 --e que davam prosseguimento a uma longa trajetória virtuosa de redução do número de pobres e das disparidades de renda-- cessaram com a crise econômica de 2015-2016 e foram literalmente revertidos nos dois anos seguintes.

O desarranjo da economia não atingiu a todos da mesma forma nem ao mesmo tempo. A derrocada começou no governo Dilma, provocada por uma leitura míope dos obstáculos da hora, conduzindo a soluções ineficazes para superá-los.

Mas foi ao longo da difícil recuperação que teve início em 2017, já sob o comando da centro direita de Temer & Meirelles, que a sorte dos mais pobres foi selada. Segundo os estudiosos citados, os brasileiros mais ricos se apropriaram de cerca de 80% do crescimento da renda no período, enquanto os ingressos da metade mais pobre caíram 4%. Na mesma proporção cresceu a desigualdade. Sem sombra de dúvida, esse aumento foi o responsável pela ampliação da pobreza.

Os pesquisadores demonstram que o inchaço do desemprego e a queda dos salários foram os vilões da tragédia que desfez sonhos e esperanças de milhões de famílias e multiplicou o número dos sem-teto nas grandes cidades.

A Previdência Social também teve seu papel: os maiores benefícios destinaram-se aos grupos de melhor remuneração. Finalmente, o estudo revela terem sido quase nulos os efeitos compensatórios dos programas de proteção da renda, como o Benefício de Prestação Continuada, o Seguro Desemprego e o Bolsa Família, cujos recursos não acompanharam o aumento dos que a ele teriam direito.

Uma administração que produziu muito progresso, mas não as condições fiscais para sustentá-lo, seguida de outra que em dois anos promoveu impressionante retrocesso social são responsáveis pela marcha à ré do país e pela perda de uma década de mitigação das injustiças.

Não é provável que o quadro melhore neste governo: reduzir pobreza e desigualdade não faz parte de sua agenda retrógrada. Que, ao menos, os democratas com preocupações sociais aprendam com o estrago e se preparem para fazer melhor.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Na defesa da Amazônia, apenas jogo de cena

Apego a ideias arcaicas impede que o país volte a ter relevância internacional nas questões ambientais

A vitória de Joe Biden abre uma fresta de esperança de que se possa evitar a catástrofe climática provocada pelo aquecimento do planeta. O esperado retorno dos EUA ao Acordo de Paris, a disposição da União Europeia a abraçar uma agenda de recuperação econômica verde e o compromisso unilateral da China com a descarbonização total até 2060 dão margem a moderado otimismo.

Nesse quadro, o Brasil poderia voltar a ser um ator internacional relevante, numa das poucas arenas nas quais tem trunfos consideráveis. Para tanto, porém, o governo teria de abandonar a sua tola atitude negacionista, munindo-se de ânimo e aptidão para conter o desmatamento, a fim de proteger a Amazônia e sua biodiversidade —o cerne de nossa questão ambiental.

Apesar da limitada capacidade estatal de fazer cumprir as regras existentes, o país tem um bom marco legal e bons instrumentos de monitoramento —ainda que deliberadamente debilitados pela dupla Bolsonaro-Salles. Obstáculo tão ou mais importante é a concepção de soberania nacional que enquadra o pensamento dos militares no governo em relação ao meio ambiente.

Há pouco, o Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo vice, Hamilton Mourão, ao lado de uma agenda de temas relevantes —combate aos ilícitos ambientais e estímulo à inovação e à bioeconomia—, debateu um documento revelador. O texto fala da gula das grandes potências e organizações internacionais pelo estoque de recursos hídricos do país e o suposto conluio entre entidades ambientalistas e governos europeus. No mesmo tom, durante a reunião se propôs o controle das ações das ONGs presentes na região, em nome do interesse nacional.

A fantasia de que toda pressão externa visa o acesso a nossos recursos estratégicos e que organizações não governamentais —ou mesmo populações indígenas— estão prontas a servir à ganância estrangeira cria uma linha de defesa contra inimigos imaginários e tolhe a capacidade de mobilização necessária para uma ação eficaz.

Há no Brasil forças valiosas —na opinião pública, na sociedade organizada, no empresariado e nos governos subnacionais— capazes de dar lastro a iniciativas comprometidas com a sustentabilidade, o que transformaria cobranças em apoio externo concreto. Mas, sem aposentar ideias arcaicas, fortalecer os meios de monitoramento e controle, incorporar a experiência das comunidades locais e das organizações ambientalistas enraizadas há décadas na região, e ainda sem recursos internacionais, as vistosas operações militares e os pronunciamentos do vice-presidente serão apenas jogo de cena, em prejuízo do país.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: A sombra do populismo

Ganhando ou perdendo eleições, o populismo está aí para ficar

Se confirmada, a derrota de Donald Trump fará bem à democracia nos Estados Unidos e no mundo. Atestará que a corrosão das instituições representativas não é a única sina dos países que se entregaram a líderes populistas. Tendo ascendido pelo voto livre, podem ser por ele dispensados antes de consumar os seus projetos autoritários.

Mas o provável resultado das eleições americanas não garante a transferência suave do governo para os democratas. E ainda que ocorra no final das contas, enfraquecerá, mas não erradicará, lideranças que, naquele país ou em qualquer outro, e não apenas nos dias que correm, se afirmam representantes do "povo verdadeiro" —o volk, no jargão nazista— em contraposição a elites cosmopolitas, surdas aos anseios das pessoas comuns. Em seu nome, os populistas agem para solapar as regras que limitam o poder dos governantes e garantem os direitos de todos, inclusive das minorias.

A Itália oferece um exemplo da força e resiliência do fenômeno. Desde que o sistema de partidos do segundo pós-Guerra, ancorado na Democracia Cristã, veio abaixo nos anos 1990, políticos populistas, ora no governo, ora na oposição, tornaram-se participantes destacados da vida política do país. Casos de Silvio Berlusconi, Giuseppe Conte, Matteo Salvini, Beppe Grillo, à frente de diferentes partidos —Força Itália, Liga Norte, Liga, Movimento 5 Estrelas— com significativa projeção eleitoral.

"O populismo é uma sombra permanente da moderna democracia representativa" diz o historiador alemão Jan Werner Müller, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Alimenta-se do que o filósofo italiano Norberto Bobbio chamou de promessas não cumpridas da democracia. Populistas exploram expectativas frustradas e variados temores, reais ou imaginários: do desemprego, da destituição, dos imigrantes, dos negros, dos pobres, dos esquerdistas ateus. E se beneficiam da exposição às feias engrenagens da política por parte de um público mais informado.

O fato é que, já há algumas décadas, a desconfiança dos cidadãos em face de partidos, parlamentos e governos só faz crescer em todo o mundo democrático. No Brasil, a propósito, é assustadoramente elevada. Cidadãos insatisfeitos e desconfiados são mais sensíveis a políticos, tanto faz se de direita ou de esquerda, para os quais a vitória eleitoral é só o que conta, não passando de um estorvo os mecanismos de controle do poder típicos do sistema representativo.

Ganhando ou perdendo eleições, o populismo está aí para ficar. Mas fará toda a diferença para a democracia sempre que for batido nas urnas.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: O clima nas eleições - Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios

Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios

Misto de atraso, interesses mesquinhos e má-fé, os esforços do governo Bolsonaro para desmontar a política ambiental não tiveram só as previsíveis consequências desastrosas: aumento das queimadas, do desmatamento e das atividades ilegais em áreas protegidas. Produziram o efeito bumerangue de gerar inédita reação da sociedade.

Os três maiores bancos brasileiros se uniram em torno de um plano sustentável para a Amazônia. Com o mesmo fim, cem personalidades criaram a Concertação para a Amazônia, enquanto 230 organizações formaram a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, um foro de diálogo entre grandes empresas e organizações ambientalistas.

Rapidamente, a discussão vem se ampliando para incluir outros temas relacionados à recuperação dos estragos econômicos e sociais trazidos pela Covid-19. Agora, 24 organizações da sociedade civil, algumas empenhadas na formação de novas lideranças políticas, acabam de lançar a Agenda Urbana do Clima, destinada a inspirar candidatos a prefeitos e vereadores. Ela oferece uma visão abrangente da questão: governança das metrópoles; saneamento e gestão da água; saúde e redução da poluição; segurança alimentar; trato de resíduos sólidos; geração de empregos em sistemas de economia solidária; transporte público e mobilidade; áreas verdes, energias renováveis e eficiência energética.

Impossível medir a sensibilidade ao tema dos milhares de candidatos que disputam prefeituras ou câmaras municipais no país. Não é, nem de longe, questão central nas campanhas da maioria dos aspirantes ao comando das maiores cidades. Mas o tema começa a aparecer nas propostas que todos têm de apresentar ao registrarem suas candidaturas.

Em São Paulo, os cinco prefeitáveis mais fortes inscreveram a sustentabilidade em seus programas de governo. Apenas como menção protocolar no caso de Celso Russomanno, como um ponto entre outros para Marcio França e sem muito destaque na agenda centrada em inclusão social da chapa Guilherme Boulos-Luiza Erundina. Uma concepção avançada e madura da sustentabilidade como dimensão das principais políticas municipais está presente apenas nas propostas de Jilmar Tatto e de Bruno Covas, aliás em termos muito semelhantes e bem próximos da Agenda Urbana do Clima.

Propostas de campanha costumam se situar em alguma nuvem entre pura propaganda, vaga declaração de intenções e compromisso a se efetivar em um futuro incerto. Ainda assim, dizem algo sobre o que está no horizonte de cada candidato e o que a sociedade organizada dele pode --e deve-- cobrar caso se eleja.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: O honrado dr. Tibiriçá, o coronel Ustra e a justiça de transição

O Judiciário reconheceu sua responsabilidade pelo sequestro, tortura e morte de opositores da ditadura

No final de 1973, passei uma semana no DOI-Codi do 2° Exército, em São Paulo. Nesse período, fui interrogada pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem os subalternos chamavam de Doutor Tibiriçá. Nos porões da repressão, nenhum agente usava o nome verdadeiro —vários adotavam o mesmo pseudônimo. O major "doutor" era uma pessoa vulgar, meio fanfarrona, que demonstrava prazer em infundir medo e gostava de alardear conhecimentos que não tinha. Não sofri maus-tratos físicos, mas, entre os poucos prisioneiros que vi, havia pelo menos um com marcas visíveis de tortura.

Os especialistas chamam de justiça de transição diferentes procedimentos adotados em países que se democratizaram ou saíram de conflitos armados internos para lidar com violações de direitos humanos cometidos no passado recente. Incluem Comissões da Verdade ou outras formas de tornar público o sofrimento das vítimas; instrumentos judiciais para o reconhecimento dos crimes praticados, responsabilização ou punição de seus autores; reparações simbólicas e monetárias; expurgo de funcionários; anistia aos perpetradores.

A justiça de transição caminha lentamente, com recuos e avanços, sobre a linha fina que separa o compromisso com os direitos humanos do sempre movediço cálculo político alimentado pelo receio da reação de quadros e adeptos do regime anterior.

Ela não é exclusiva de um país. Nos últimos 30 anos, a América Latina foi um laboratório de experiências hoje bem documentadas por muitos estudos. Entre eles, o livro organizado por E. Skaar, J.Garcia-Godos e C. Collins —"Transitional Justice in Latin America" (justiça de transição na América Latina)—, que trata das medidas adotadas em nove países da área, entre eles o Brasil. Ali se vê que, ao contrário do ocorrido na vizinhança, neste país raros foram os recursos à Justiça.

Ustra, que chefiou o DOI-Codi entre 1970 e 1974, foi objeto de duas das escassas ações judiciais impetradas. Acabou condenado em ambas, numa delas ainda sem sentença final. A Justiça reconheceu sua responsabilidade pelo sequestro, tortura e morte de opositores da ditadura. Em depoimento à Comissão da Verdade, afirmou sem corar que, na pele do Dr. Tibiriçá, "cumpria ordens de seus superiores no Exército".

Falecido em 2015, Ustra é considerado herói pelo ex-capitão alçado à Presidência e pelo general seu vice, para quem se tratava de uma "pessoa honrada". Os louvores falam por si dos valores morais de ambos —antagônicos aos que deveriam inspirar Forças Armadas cuja missão é proteger o país e sua Constituição democrática.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Cidades perdidas

Bolsonaro deslocou lastro eleitoral do PT para pequenas localidades do Norte e Nordeste

O bolsonarismo é, sobretudo, “um fenômeno urbano”, sustenta o cientista político Jairo Nicolau no livro “O Brasil dobrou à direita”, lançado nesta semana.

Nele, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro procura não explicar a vitória do ex-capitão, mas fazer um retrato de corpo inteiro dos que o elegeram, iluminando cada uma de suas características: renda, gênero, cidade e região de moradia, educação, religião, simpatias e antipatias políticas.

Primoroso, o estudo tem o mérito de pulverizar qualquer explicação simplista para a catástrofe política de 2018. Os antipetistas declarados votaram, como se esperava, no candidato de extrema direita. Mas representaram apenas 1/3 do eleitorado. Metade dos votantes, sem posições fortes em relação ao partido de Lula, dividiram-se por igual entre Bolsonaro e Haddad. Este perdeu em todas as faixas de idade, mesmo entre os mais jovens —outrora uma base importante do PT. Se é fato que 70% dos evangélicos sufragaram Bolsonaro, também é fato que ele predominou entre católicos e seguidores de outras religiões.

O mais revelador foi sem dúvida o seu êxito em quase todas as grandes cidades, superando a proporção de votos obtidos pelos antipetistas nas disputas presidenciais anteriores. A vitória de Bolsonaro, um resultado contingente e possivelmente evitável —como são todos os triunfos eleitorais—, transformou de muitas maneiras o panorama político brasileiro.

Talvez a mudança mais importante para o que virá pela frente tenha sido o deslocamento do lastro social do PT para as pequenas cidades do Nordeste e do Norte, onde vivem os eleitores de menor escolaridade e com pouco acesso aos meios contemporâneos de comunicação. Embora tenha vencido em seis capitais, perdeu na maioria das cidades grandes, uma posição no mínimo incômoda para um partido reformador.

É muito cedo para tirar conclusões sobre a extensão e a profundidade do vínculo que une os eleitores àquele que conduziram ao Palácio do Planalto. Muito cedo igualmente para falar em “bolsonarismo” como fenômeno político real e duradouro, ou em Bolsonaro como líder popular.

Mas o desafio para as forças comprometidas com a reforma social e a vida civilizada não é pequeno.

Reaver as raízes perdidas nas grandes cidades vai demandar mais do que um discurso sobre os feitos do passado. Talvez exija dar respostas inovadoras para o caos urbano, a insegurança, a violência cotidiana, as desigualdades de trato no dia a dia, o acesso desigual a recursos digitais, a imensa sensação de injustiça e revolta contra a corrupção que degrada a atividade política.

*Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Hermínia Tavares: Na pandemia, obrigados a ser fortes

Experiências de solidariedade deveriam inspirar políticas públicas

Perdendo a enésima oportunidade de ficar calado, Bolsonaro chegou não faz muito a desdenhar dos que ficam em casa para se proteger da pandemia. "É para os fracos", decretou, quando já passavam de 135 mil os mortos pela Covid-19. Na realidade, os "fortes", expostos diariamente ao novo coronavírus, são muitos —e muito diversos em estilo e condições de vida.

A grande maioria é formada por aqueles para os quais o isolamento não é opção, por lhes faltarem renda, moradia adequada, acesso a saneamento e água potável. São os milhões de pobres, predominantemente negros, que vivem nas periferias ou nos centros degradados de nossas cidades.

É difícil saber ao certo como vêm passando e de que modo têm reagido à pandemia. O pouco que se conhece de sua dor e de sua força deve-se à Rede de Pesquisa Solidária, que reúne mais de uma centena de estudiosos de diferentes formações e filiações acadêmicas, engajados em levantar dados que ajudem a melhorar a ação dos governos durante e depois da pandemia.

Um grupo de membros dessa rede, coordenado pela socióloga Graziela Castello, vem coletando periodicamente informações junto a lideranças comunitárias de várias capitais brasileiras sobre os principais problemas enfrentados pelas populações mais vulneráveis.

O que angustia antes de tudo os ativistas das comunidades são as famílias que passam fome, uma ameaça sempre presente. Segue-se a perda do emprego ou do trabalho e da renda. Depois, a dificuldade de acesso a serviços públicos como educação, justiça e atendimento funerário; finalmente, a expansão do contágio e a dificuldade de conseguir a adesão das pessoas às medidas de proteção.

Os mesmos temas aparecem nos relatos de três ativistas participantes do evento "A pandemia nas favelas", organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso e disponível no YouTube. Eles contam como líderes e entidades comunitárias se mobilizaram para suprir carências de toda ordem. Distribuíram cestas básicas, material de higiene, máscaras; organizaram atividades para gerar renda e fizeram podcasts para difundir informações úteis sobre a pandemia; auxiliaram os agentes comunitários de saúde e saíram em busca de espaços para o isolamento dos doentes e proteção dos mais velhos.

Dor, luto e incerteza —mas também solidariedade, força e inovação— aparecem nos depoimentos dos participantes do encontro, assim como naqueles coletados pela Rede Solidária. São experiências que poderiam inspirar parcerias inovadoras e políticas públicas mais adequadas a um país onde o isolamento não é para quem quer, porém para quem pode.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Maria Hermínia Tavares: Tragédia de erros

Subserviente a Trump, o Brasil não dá contribuição positiva à crise da Venezuela

Antes que o patético discurso do presidente na ONU lhe roubasse a cena, o chanceler Ernesto Araújo serviu de escada para que, na sexta (18), o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, em visita a Roraima, despejasse pesados ataques contra o governo ditatorial da Venezuela. Em Washington, todos sabem que suas palavras tinham como verdadeiros destinatários os eleitores do sul da Flórida, onde se concentram comunidades de exilados cubanos e venezuelanos, cujos votos serão importantes para Donald Trump.

No capítulo "Venezuela libre", do livro de memórias dos seus tempos de Casa Branca —"The Room Where It Happened" (A sala onde tudo acontecia)—, John Bolton, ex-assessor de segurança nacional de Trump, acusa seu antigo chefe de ter uma política em relação a nosso vizinho "descontroladamente errática", ditada por sua agenda pessoal e obsessão pela reeleição.

Assim, o que o ministro das Relações Exteriores considera "parceria profícua e profunda" entre Brasil e Estados Unidos é pura vassalagem. Ela destrói a relação adulta que o país havia construído com a potência do Norte, em que cabiam autonomia na defesa dos interesses nacionais quando divergentes e cooperação em muitas áreas de interesse comum.

A Venezuela vive hoje sob uma ditadura que persegue, tortura e mata opositores, que destruiu a economia e produziu enorme catástrofe social, levando quase 18% da população a buscar refúgio nos países vizinhos. Com o populismo autoritário, a Venezuela é o foco de uma crise que transbordou suas fronteiras.

Da sua complexidade falam com competência Monica Hirst, Carlos Lujan, Carlos Romero e Juan Gabriel Tokatlian, autores do estudo "A Internacionalização da Crise da Venezuela", recém-publicado pela Fundação Friederich-Ebert, da Alemanha.

Ali se vê como a polarização interna, as desacertadas políticas dos EUA, a participação da China e da Rússia em apoio ao governo de Maduro, bem como o "vazio político regional", enfraqueceram qualquer solução pacífica e negociada.

O Brasil não é o único responsável pela falta de mecanismos regionais de negociação. Mas o fato de ter abandonado o pouco que havia e de ter colocado nebulosa ideologia acima da busca por uma agenda comum, por limitada que fosse, certamente contribuiu para a desarticulação presente.

Subserviente a Trump e de costas para a América do Sul, o Brasil tornou-se incapaz de dar uma contribuição positiva. A grandiloquência vazia dos discursos do governo sobre a parceria com os Estados Unidos seria cômica não estivesse contribuindo para uma tragédia.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap