Maria Cristina Fernandes

Maria Cristina Fernandes: Contra o isolamento, o vírus da desconfiança

Bolsonaro reage provocando discórdia entre as instituições

Durou menos de 24 horas a aposta de ministros civis e militares de que o insurgente capitão fora domado. Depois do brando pronunciamento da noite de terça-feira, o presidente da República mostrou que sua maior missão é ocupar a tribuna da provocação. Em tuíte, compartilhou depoimento (falso) de um feirante que exalta Bolsonaro e culpa os governadores pelo pouco movimento. No fim, comentou: “Depois da destruição, não interessa mostrar culpados”.

Como bedéis de um adolescente indisciplinado, os ministros do Palácio do Planalto apagaram o tuíte, fizeram o rapaz pedir desculpas e deram instruções para que a segurança impedisse a claque bolsonarista, sob o comando diuturno do presidente da República, de vaiar os jornalistas que cobrem sua saída do Palácio do Alvorada.

Comportado em rede nacional e debochado na rede social, o presidente cumpre a bipolaridade com a qual inaugurou seu mandato. Faz passar por doença o que é método. Se os ministros militares insistem na tutela, é menos pela aposta na disciplina do capitão e mais pela ausência de alternativas a uma situação que se agravou pelo isolamento institucional do presidente e pelo avanço do coronavírus.

O Comando Militar da Amazônia confirmou casos da covid-19 no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus, reduto da elite do Exército e referência mundial de treinamento. Some-se à preocupação com a preservação da capacidade operacional das Forças Armadas, o avanço inaudito da covid-19 no Distrito Federal, que combina a maior incidência de casos da Federação com uma frágil rede de hospitais públicos. É no entorno do presidente passeador que ameaça se concretizar mais rapidamente a tragédia italiana prevista pelo ministro da Saúde: caminhões do Exército transportando pilhas de vítimas do coronavírus.

O imperativo de manter a ordem pública sob o comando de um desordeiro cobrou um preço alto das instituições. A ordem do dia do Ministério da Defesa, em 31 de março, retroagiu, em pelo menos três décadas, a publicidade da visão das Forças Armadas sobre o golpe de 1964.

Depois de passar em branco durante os governos do PSDB e do PT, a ordem do dia voltou a registrar a efeméride no primeiro ano do governo Bolsonaro. A necessidade de fazer o contraponto com um governo militarizado produziu um texto ponderado, beirando a auto-crítica: “Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano - a capacidade de aprender”.

Bem distinto daquele que, este ano, abriu e fechou pela declaração de que 1964 é um “marco para a democracia”. Na pressa, rejeitou a igualdade como utopia: “Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que regem as nações livres”.

O pacto pela preservação de Bolsonaro esgarçou ao limite as relações institucionais. O tuíte do vice-presidente, enaltecendo o golpe militar, é apenas sua evidência mais exposta. Destinava-se a sua própria corporação, mas acabou servindo, aos que o acalentam como opção, de tira-teima para a declaração de Bolsonaro: “Mourão é mais tosco do que eu”.

Em nenhuma instância, o consciente exercício da bipolaridade presidencial se refletiu de maneira mais desgastante do que na redação da proposta de emenda constitucional do orçamento da crise. Exigência do ministro da Economia, Paulo Guedes, que alega receio de infringir normas fiscais ao atender à demanda pela liberação de recursos, a PEC chegou a ser esvaziada por liminar, nessa direção, do ministro Alexandre de Moraes.

Não satisfeito com a liminar, Guedes condicionou a liberação do auxílio de R$ 600 reais aos informais à aprovação da PEC que, àquela altura, já contava com quatro minutas. Na primeira delas, o comitê gestor da crise seria presidido pelo ministro da Saúde, Henrique Mandetta, que comandaria uma equipe de ministros, nenhum deles militares. O presidente da República, que passeava em Ceilândia, foi ignorado.

Veio do Supremo o aviso de que não cabia ao Congresso interferir na maneira como o Executivo se organizaria para tomar decisões. No mesmo fim de semana, o ministro Gilmar Mendes foi chamado ao Planalto para encontrar Bolsonaro. No dia seguinte, os redatores da PEC colocaram o presidente na cabeça do comitê e lhe atribuíram sua composição.

Parlamentares reagiram. E se Bolsonaro montasse um escrete de ouro, com Weintraub, Damares e Araújo? Nova redação definiu as Pastas que integrariam o comitê, nenhuma delas comandadas pelos generais do Palácio. Até mesmo o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, comandante do atual comitê de crise, foi deixado de fora.

“Não queremos generais nisso”, justificou um dos envolvidos na costura política. “Eles já foram avisados de que isso é um golpe?”, perguntou um general, alertando para a possibilidade de que, aprovada a PEC, nada impediria que Bolsonaro demitisse todos os ministros cujas Pastas lá estavam listadas e nomeasse militares para seu lugar.

Na quarta-feira, dia para o qual sua votação foi pautada, o texto amanheceu com Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, devidamente incluídos. Ao Congresso, que terá oito assentos no Comitê, sem direito a voto, caberá vetar decisões que “afrontem o interesse público”, redação que também desagradou militares resistentes à prerrogativa do Legislativo.

No fim, o Congresso havia feito mais concessões do que pretendia, mas esperava ter evitado que a gestão da crise se resumisse a um dueto entre governo e Supremo. Para encorpar a PEC, os parlamentares acabaram puxando para o texto as mudanças pretendidas pelo Banco Central para dar mais liquidez ao mercado.

No meio desse vaivém, Bolsonaro sancionou a ajuda de R$ 600 aos informais. Com a PEC, cairá um dos obstáculos para que o dinheiro chegue na ponta do desespero. Se Bolsonaro pretendia inocular nas instituições que o isolam o vírus da desconfiança mútua, foi bem sucedido. Não passaria de um festival de discórdia se o ingresso não fosse cobrado em vidas.


Maria Cristina Fernandes: Discurso dá guinada contra isolamento

Presidente dá guinada de 180 graus e abandona o discurso da “histeria e pânico” que marcou o pronunciamento anterior

Numa reação ao isolamento que lhe foi imposto desde o pronunciamento da semana passada, o presidente Jair Bolsonaro girou em 180 graus sua abordagem sobre a pandemia em pronunciamento em rede nacional.

No pior dia desde o início do enfrentamento do coronavírus no Brasil, quando foram registrados 42 mortos e 1.138 novos casos, o presidente abandonou o discurso da “histeria e pânico” que marcou o pronunciamento anterior. Disse que os efeitos das medidas não podem ser piores do que a doença que visam combater. “Minha preocupação sempre foi a de salvar vidas, tanto aquelas ameaçadas pela pandemia quanto pelo desemprego”.

O presidente voltou a comparar sua abordagem àquela feita pelo diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Bolsonaro citou um trecho do discurso do dirigente da OMS em que ele lembra sua origem pobre para se dizer preocupado com aqueles que precisam trabalhar para ganhar a vida.

Omitiu, no entanto, que este trecho foi precedido pela ponderação de Ghebreyesus de que os governos, ao adotarem medidas para restringir a circulação, devem garantir apoio às pessoas que perderam renda e aos mais velhos e vulneráveis.

Bolsonaro reproduziu um trecho do discurso do dirigente da OMS - “toda vida importa” - para se contrapor à sua própria declaração:

“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento.” Insistiu na comparação a despeito de o diretor-geral da OMS ter esclarecido que não corroborara com o fim do confinamento, mas apenas apelara à sensibilidade dos governantes.

Bolsonaro citou medidas como a liberação de R$ 600 para trabalhadores informais, ainda pendente de sanção presidencial, linhas de crédito para empresas, além do adiamento no reajuste dos medicamentos e do pagamento das dívidas de Estados e municípios.

Na mão contrária à adotada há apenas uma semana, quando confrontara governadores e prefeitos pelo isolamento, o presidente conclamou a união de todas as autoridades para salvar vidas e elogiou a atuação dos profissionais de saúde e de atividades essenciais.

O discurso marca uma inflexão na postura. Os panelaços durante o pronunciamento nas grandes cidades, porém, sugerem que Bolsonaro demorou muito para voltar atrás e terá dificuldade em reconquistar a confiança da população.


Maria Cristina Fernandes: A carta da renúncia

A costura de uma renúncia, como saída, passa pela anistia aos filhos

A tese do afastamento do presidente viralizou nas instituições. O combate à pandemia já havia unido o país, do plenário virtual do Congresso Nacional ao toque de recolher das favelas. Com o pronunciamento em rede nacional, o presidente conseguiu convencer os recalcitrantes de que hoje é um empecilho para a batalha pela saúde da nação. Se contorná-lo já não basta, ainda não se sabe como será possível tirá-lo do caminho e, mais ainda, que rumo dar ao poder em tempos de pandemia. A seguir a cartilha do presidiário Eduardo Cunha, seu afastamento apenas se dará quando se encontrar esta solução. E esta não se resume a Hamilton Mourão.

Ao desafiar a unanimidade nacional, no uniforme de vítima de poderes que não lhe deixam agir para salvar a economia, Bolsonaro já sabia que não teria o endosso das Forças Armadas para uma aventura que extrapole a Constituição. Era o que precisaria fazer para flexibilizar as regras de confinamento adotadas nos Estados. Duas horas antes do pronunciamento presidencial, o Exército colocou em suas redes sociais o vídeo do comandante Edson Leal Pujol mostrando que a farda hoje está a serviço da mobilização nacional contra o coronavírus.

Pujol falou como comandante de uma corporação que tem a massa de seus recrutas originários das comunidades mais pobres do país, hoje o foco de disseminação mais preocupante para as autoridades sanitárias. Disse que agirá sob a coordenação do Ministério da Defesa. Em nenhum momento pronunciou o presidente. Moveu-se pela percepção de que uma tropa aquartelada hoje é mais segura que uma tropa solta. Na mão inversa do trem desgovernado do discurso presidencial daquela noite.

Quando já estava claro que descartara o papel de guarda pretoriana, Pujol reforçou a importância do combate ao coronavírus: “Talvez seja a missão mais importante de nossa geração”. Vinte e quatro horas depois, o vídeo ultrapassava 500 mil visualizações, mais do que o dobro do efetivo do Exército.

O distanciamento contaminou os ministros militares com assento no Palácio do Planalto. “Não quero ter minha digital nisso”, comentou um deles ao perceber o rumo provocativo que o pronunciamento da noite de quarta-feira teria. Deixou o Palácio antes da gravação, conduzida sob o comando dos filhos e da milícia digital do bolsonarismo.

A insistência do presidente na tese esticou a corda com os governadores e com o Congresso, que amanheceu na quarta-feira colocando pilha na saída do ministro Luiz Henrique Mandetta. A pressão atingiu o pico do dia com o rompimento do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), com o presidente. Aliado de primeira hora de Bolsonaro, presença mais frequente, entre seus pares, nas solenidades do Palácio do Planalto, Caiado foi um dos principais padrinhos de Mandetta, um deputado do Mato Grosso do Sul que não disputou em outubro de 2018 porque temia não se reeleger.

O ministro negaria a demissão num entrevista em que citou Caiado, mas não Bolsonaro. O Congresso mantinha a aposta na saída de Mandetta como mais um tapume no isolamento do presidente quando João Doria, na reunião de governadores com o presidente, partiu para o confronto. O discurso de palanque do governador de São Paulo não é unanimidade entre os envolvidos em busca de uma solução de consenso, especialmente os da farda, mas sua ação deliberada para levar os governadores a recusar interlocução com o presidente, caiu como uma luva para a estratégia de levar Bolsonaro ao limite do isolamento.

Para viabilizar o enfrentamento dos governadores, o Congresso busca meios de manter o acesso dos Estados a recursos com os quais possam manter suas políticas de combate à doença, hoje confrontadas pelo Planalto. O pronunciamento acabou por frear a proposta de emenda constitucional com a qual se pretendia criar um orçamento paralelo para viabilizar as ações de Bolsonaro no combate à pandemia e calar a tecla com a qual o presidente se diz impedido de agir pelo Congresso. Cogitou-se até incluir nesta PEC instrumentos com os quais Bolsonaro poderia ter mais poderes sobre o confinamento e o confisco de insumos hospitalares, como meio de evitar o Estado de Sítio.

Ainda que Bolsonaro hoje não tenha nem 10% dos votos em plenário, um processo de impeachment ainda é de difícil de viabilidade. Motivos não faltariam. Os parlamentares dizem que Bolsonaro, assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, já não governa. Se uma caiu sob alegação de que teria infringido a Lei de Responsabilidade Fiscal, o outro teria infrações em série contra uma “lei de responsabilidade social”. Permanece sem solução, porém, o déficit de legitimidade de um impeachment em plenário virtual.

Vem daí a solução que ganha corpo, até nos meios militares, de uma saída do presidente por renúncia. O problema é convencê-lo. A troco de que entregaria um mandato conquistado nas urnas? O bem mais valioso que o presidente tem hoje é a liberdade dos filhos. Esta é a moeda em jogo. Renúncia em troca de anistia à toda tabuada: 01, 02 e 03. Foi assim que Boris Yeltsin, na Rússia, foi convencido a sair, alegam os defensores da solução.

Não faltam pedras no caminho. A primeira é que não há anistia para uma condenação inexistente. A segunda é que ao fazê-lo, a legião de condenados da Lava-Jato entraria na fila da isonomia, sob a alcunha de um “Pacto de Moncloa” tupiniquim. A terceira é que o Judiciário, agastado com o bordão que viabilizou o impeachment de Dilma (“Com Supremo com tudo”), resistiria a embarcar. E finalmente, a quarta:

Quem teria hoje autoridade para convencer o presidente? Cogita-se, à sua revelia, dos generais envolvidos na intervenção do Rio, PhDs em milícia.

A única razão para se continuar nesta pedreira é que, por ora, não há outra saída. Na hipótese de se viabilizar, o capitão pode estar a caminho de encerrar sua carreira política como começou. Condenado por ter atentado contra o decoro, a disciplina e a ética da carreira militar, Bolsonaro foi absolvido em segunda instância. Em “O cadete e o capitão” (Todavia, 2019), Luiz Maklouff, esboça a tese de que a absolvição foi a saída encontrada para o capitão deixar a corporação.

Em seguida, o Bolsonaro disputaria seu primeiro mandato como vereador no Rio. Trinta e quatro anos depois, a borracha está de volta para esfumaçar o passado. Desta vez, com o intuito de tirá-lo da política.


Maria Cristina Fernandes: Bolsonarismo testa positivo

Presidente fica isolado na República e tolhido dentro do próprio governo

“Quero agradecer em nome da saúde do Brasil”. Foi com essas oito palavras que Luiz Henrique Mandetta transformou a puxada de tapete do presidente da República numa escada. Na guerra de sobrevivência política em que se transformou o combate à pandemia, o ministro da Saúde convocou o “partido sanitarista”, comunidade de profissionais da saúde que, 50 anos atrás, se uniu para montar o SUS e hoje o mantém acima das rixas partidárias. Apesar dos agrados sucessivos ao presidente, o ministro o colocou na condição de quem presta serviços a este partido.

Em contrapartida, o ministro prestou-se ao papel de médico avalista de uma encenação destinada a mostrar que o presidente não está isolado. Com máscaras sob a coreografia de tira-e-bota-deixa-ficar e sentados a centímetros de distâncias uns dos outros, parecia um trupe de sobreviventes depois de anunciada a segunda baixa, do ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia), um dia depois de noticiado contágio de Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).

O presidente convocou a encenação dois dias depois de Mandetta reunir-se com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, numa tentativa de mostrar que não é a criança irresponsável que desce a rampa para brincar com manifestantes enquanto os adultos adotam medidas para evitar que o país sucumba à pandemia.

O capitão montou o palco horas antes do panelaço contra seu mandato. Estava disposto a ofuscar Mandetta e se mostrar no comando desta nau doente e desgovernada. Só que não. Bolsonaro abriu a entrevista justificando-se pelos cumprimentos aos manifestantes do domingo dizendo que, em todo o Brasil, não excederam 1 milhão de pessoas - “equivalente a 20% da população que usa o transporte coletivo em São Paulo diariamente”. Esqueceu de explicar que se ainda há muitos se expondo ao risco de entrar no metrô é porque não têm alternativa. Disse saber dos riscos que corria mas havia optado por descer a rampa porque, pela “índole militar”, ele “nunca abandonaria o povo brasileiro”.

Disposto a provar que não convocou manifestações a seu favor, na contramão dos fatos, fez a propaganda de outra, o panelaço a seu favor. Uma tentativa de se apropriar de uma expressão que, até aqui, serviu para demonstrar rechaço político, a começar pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, de onde partiu em sua marcha para Brasília. Errático, entre as estocadas na imprensa e a busca de uma autoridade perdida, Bolsonaro mostrou-se incapaz de desmontar a imagem de presidente que fez pouco caso da saúde dos brasileiros com a ideia de que o coronavírus não passa de fantasia ou guerra de panelas.

Coube a Mandetta cruzar os braços e olhar para o outro lado quando o almirante Antonio Barra Torres, diretor da Agência de Vigilância Sanitária, que falou imediatamente depois do ministro da Economia, Paulo Guedes, começou a enumerar as portarias que havia assinado. Em seguida, vieram os ministros da Justiça (Sergio Moro), da Defesa (Fernando Azevedo), da Infraestrutura (Tarcísio Freitas), do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho) e da Casa Civil (Braga Netto) para só então o titular da Saúde ter vez.

Mandetta, em compensação, falou mais do que todos os seus anteriores juntos. Sentiu-se tão seguro na abertura que derrapou na respostas aos jornalistas. Avançou destemido, porém, contra o escanteio para o qual o presidente tentou jogá-lo porque parece convencido de que tomou o lugar de Guedes como âncora deste governo. O ministro da Economia agiu como um condenado a rasgar todos os dogmas do estado mínimo pelos quais sempre rezou ao anunciar o socorro aos ‘uberizados’.

O ministro da Saúde entrou na guerra com as armas da propaganda: o SUS está em todas as cidades, quilombos e aldeias indígenas do país e “estará ao lado dos 215 milhões de brasileiros”. Foi destemido na comparação com outros países que, na sua contabilidade, começaram a perder pacientes com 80 casos, enquanto o Brasil registrou o primeiro óbito quando já contava 290 doentes, e propagou, como quem é capaz de encher um balde para apagar um incêndio, o lançamento de serviços de telemedicina para a orientação de pacientes à distância.

Não é o gerente do comitê de crise, hoje nas mãos do ministro da Casa Civil, mas agiu como tal ao recomendar cautela nas decisões dos Estados de fechar estradas, que poderiam vir a prejudicar a logística no trânsito de alimentos e medicamentos. E, finalmente, tratou como parte do campo de batalha o stress, a notícia enviesada, as opiniões de especialistas e até a ansiedade daqueles que não percebem que o momento é de calma. Só faltou dizer que faz parte lidar com um presidente como Bolsonaro, mas limitou-se a dizer que ele é o grande timoneiro. A saudação, àquela altura, quando o presidente havia se ocupado a falar mais da imprensa do que do futuro do Brasil, mostrava que o menino levado continuava no quintal enquanto os adultos se ocupavam com as decisões.

Mandetta retribuiu a menção feita por Fernando Azevedo e Silva. O discurso do ministro da Defesa - “Isso é uma guerra contra um inimigo invisível, feroz e dedicado” - coincidiu mais com o tom do titular da Saúde do que com aquele usado pelo comandante-em-chefe.

Aparentemente deslumbrado com seu próprio desempenho, o ministro da Saúde derrapou ao descredenciar a recomendação da Organização Mundial de Saúde de que todos sejam testados.

Mencionou o que imaginava ser a população da Coreia do Sul - “Uma coisa é vacinar 4 milhões de pessoas” - país que tem 51 milhões de habitantes, para dizer que não dava para fazer o mesmo num país de 215 milhões. Também se atrapalhou ao justificar o atrapalhado uso de máscaras.

O panelaço que se seguiu mostrou que o esforço de Bolsonaro não convenceu. Aquele convocado pelo próprio presidente não teve volume de desagravo. O placar das redes sociais dava 7 x 1, mas no balanço do dia parecia mais apropriado falar em 529 infectados e quatro mortes. Isolado na República, ontem Bolsonaro se mostrou tolhido em seu próprio governo. O vírus ainda não o derrubou, mas já feriu de morte o bolsonarismo.


Maria Cristina Fernandes: A guarda pretoriana do comediante

Se estava difícil de entender, o coronel Aginaldo desenhou com o estímulo à insubordinação policial

Como estivesse difícil entender, o coronel Aginaldo de Oliveira resolveu desenhar. Ao celebrar a coragem dos policiais militares na assembleia que deliberou pelo fim do motim policial no Ceará, o coronel, que é diretor da Força Nacional de Segurança, mostrou que o presidente Jair Bolsonaro hoje dispõe de meios para arregimentar uma guarda pretoriana. Não é um feito solitário. Tem a decisiva ajuda do ministro da Justiça, Sergio Moro, cuja autoridade se mostrou incapaz de repreender amotinados.

A guerra de facções do crime organizado no Ceará, Estado que se tornou corredor de exportação do narcotráfico andino, foi a primeira crise enfrentada pelo presidente da República. Na semana da sua posse, Bolsonaro optou pelo envio da Força Nacional de Segurança para o Estado que havia acabado de reeleger um governador do PT.

Um ano depois, nova crise eclodiria sob a forma de motim policial. Como a força especial composta por policiais militares já não desse conta de reprimir seus próprios colegas, o presidente foi pressionado a decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), conduzida por militares do Exército. Entre uma e outra crise, deterioraram-se as bases da hierarquia e da disciplina das tropas locais e a capacidade de operação da força nacional. O governador é o mesmo, Camilo Santana, reeleito pelo PT. Quem mudou foi o presidente, ocupado, desde a posse, em incutir, nas bases policiais, o vírus da insubordinação que marcou sua carreira militar.

É uma barafunda bolsonarista por excelência. Desde sua criação, em 2000, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, chapéu, no MJ, para a Força Nacional de Segurança, foi ocupada por policiais e especialistas. No governo Michel Temer, assumiu o primeiro general, Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro do governo Bolsonaro e um dos poucos militares da reserva a expor publicamente sua crítica à insubordinação policial.

Com a posse de Bolsonaro, o cargo seria ocupado por um segundo general. Secretário de segurança do governo Tasso Jereissati nos anos 1990, o general Guilherme Theophilo viria a ser o candidato tucano ao governo do Estado em 2018. Seu programa de segurança foi elaborado pelo coronel Aginaldo Ribeiro. Derrotado pela reeleição de Camilo Santana, Theophilo assumiria a secretaria nacional de segurança e, em retribuição aos serviços prestados na campanha, colocaria o coronel para dirigir a força nacional.

O casamento, amplamente coberto pelas redes sociais, com a deputada Carla Zambelli, entusiasta de primeira hora dos protestos de 15 de março, já havia tirado Aginaldo Ribeiro da obscuridade. Mas foi o discurso na assembleia dos amotinados cearenses que o tornou um ícone da era bolsonarista.

Nota do ministério de Sergio Moro limitou-se a informar que o coronel fez um discurso interno para os policiais. Foi outro “discurso interno”, de 30 de março de 1964, no salão do Automóvel Clube do Brasil no Rio de Janeiro que precipitou o golpe contra João Goulart. Ao contrário do coronel, Jango se dirigiu aos sargentos presentes com um apelo pelos valores militares da hierarquia e da disciplina, mas sua presença na posse da Associação dos Sargentos foi capaz de dobrar o último general que resistia ao golpe, Castelo Branco.

O coronel não é presidente da República mas é por ele mantido no cargo a despeito de estimular a sublevação de policiais num Estado em que o governador resiste à anistia de PMs com apoio do general Freire Gomes, comandante militar do Nordeste.

Chefe de uma força de segurança formada por homens recrutados na elite das polícias militares de todo país, Aginaldo não deixou dúvidas de que é capaz de colocá-la a soldo de interesses da conjuntura. Os policiais militares obedecem a tantos poderes que não surpreende se deixarem de se curvar a algum deles. Em “Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos” (Boitempo, 2019), Luiz Eduardo Soares, secretário de segurança nacional no governo Luiz Inácio Lula da Silva, lista as cadeias de comando cruzadas.

A Constituição trata as PMs como forças auxiliares e reserva do Exército, que também aprova o nome indicado pelo governador para seu comando. Ou seja, se o presidente da República é o comandante-em-chefe das Forças Armadas, o governador não o é de suas polícias. Sua orientação está a cargo das secretarias estaduais de segurança, mas o controle é repartido entre o governador e o Exército ou, em última instância, seu comandante, Bolsonaro.

A consternação dos meios militares com a insubordinação consentida dos policiais é lastreada nessa baderna legal. Ao fraquejar na imposição de sua autoridade, o ministro Sergio Moro já perdeu o prestígio de que desfrutava no generalato. Não é entrando no presídio da Papuda, hoje sob GLO, num tanque de guerra, que o ministro o recuperará.

Nenhuma autoridade preocupa mais os generais hoje, no entanto, do que o presidente da República. A inquietação foi ampliada com a convocação para a manifestação do dia 15. O último artigo de Fernando Henrique Cardoso em “O Estado de S.Paulo” sugere que o ex-presidente foi porta-voz dessa preocupação: “Não é para ‘dar um golpe’ que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão... O risco para a democracia e para as próprias Forças Armadas é que se borre a fronteira entre os quartéis e a polícia”.

Essa fronteira estará tanto mais em risco quanto maior for a dificuldade de a economia brasileira reagir. O comediante da porta do Alvorada não representa o desdém do presidente apenas pela pauta do crescimento. Se não for capaz de fazer o país crescer, como sugere o PIB de 2019, o presidente pode se valer da imprudência de sua guarda pretoriana para fazer graça com a Constituição.

Daí porque o ministro Paulo Guedes, que já havia perdido apoio no Congresso, no empresariado e nas finanças, está sem lastro no generalato palaciano. Seu preferido é o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, coringa de técnico com formação militar e trânsito legislativo. É uma tentativa de garantir que o governo Bolsonaro possa acabar como começou, pelo voto. Ou não.


Maria Cristina Fernandes: Os confetes da crise

Irresponsabilidade presidencial no compartilhamento de vídeo de afronta ao Congresso vai findar em acordo com os parlamentares

O apoio a motins policiais e a manifestações de afronta ao Congresso tem todos os ingredientes para radicalizar o presente e comprometer o futuro deste governo. Uma adensada reação política à escalada autoritária dificultaria a recomposição com a qual se busca redirecionar as bases deste governo a partir das eleições municipais e, assim, esvaziar as alternativas ao centro. Não há, contudo, indicações de que este virá a ser o desfecho da crise.

As primeiras reações ao vídeo compartilhado pelo presidente de convocação a manifestações contra o Congresso indicavam que Jair Bolsonaro havia cavado sua própria cova. Se as digitais bolsonaristas nos motins policiais deixaram Ciro Gomes na condição de Rei Momo da reação, a convocação bolsonarista adensou-a ao centro com o tuíte do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre os riscos em curso (“crise institucional de gravíssimas consequências”) e o repúdio do decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello (“se confirmado, indica um presidente que não está a altura do altíssimo cargo que exerce”).

A amena reação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (“as autoridades da República devem dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”), porém, indicou o acordo a caminho para derrubar o veto. O governo listaria seus projetos mais importantes e os parlamentares interessados em serem co-patrocinadores dessas obras lhes destinariam recursos de suas emendas. Não seria o primeiro acordo do gênero. O risco, desta vez, é que uma iniciativa dessas pressupõe confiança mútua, mercadoria em falta num governo em que ministros e presidente da República inauguram obras sem a presença de parlamentares que as viabilizaram.

Ainda que a manifestação do dia 15 não leve multidões às ruas, como aquelas que, no Carnaval, fizeram coro contra o presidente da República, o momento é propício ao acordo. Se, de um lado, há indícios de que o presidente ultrapassou os limites da responsabilidade de seu cargo, de outro os parlamentares sabem da impopularidade representada pelos R$ 31 bilhões em emendas parlamentares. O jogo ainda está muito longe daquele que emparedou a ex-presidente Dilma Rousseff.

O Congresso teria uma oportunidade, com as reformas administrativa e tributária, de fazer a lição de casa, mas são os governadores que têm demonstrado mais ousadia. Depois de 20 deles darem a cara a bater na carta inédita em que alertam contra ameaças à democracia, três governadores de partidos diferentes (PSB, PT e PSDB) - Paulo Câmara (PE), Camilo Santana (CE), Eduardo Leite (RS) - e uma vice governadora - Eliane Aquino (SE) - assinaram juntos artigo em ‘O Globo’, no domingo de Carnaval, em que se dizem favoráveis a mudanças no paradigma do serviço público, inspiradas em Cingapura e mais pautadas pela excelência no atendimento à população do que no corporativismo.

O Congresso tende a manter em banho-maria representações contra um senador da República (Flávio Bolsonaro) de longevas relações com milícias ou contra um deputado (Eduardo Bolsonaro) que acusa um senador, baleado por PMs, de ter sido unicamente vitimado pela falta de inteligência.

Os filhos são as balas de prata do esgarçamento institucional. Até lá, tem muita munição a ser gasta. Um alvo é o ministro da Economia. O desvario de Paulo Guedes contra os parasitas e as domésticas é visto como sintoma de equívocos incontornáveis. Ao apostar tudo na queda de juros e no arrocho fiscal vai levar o país a mais um ano de crescimento medíocre. Some-se o impacto do coronavírus na balança comercial e a saída recorde de dólares, o óleo de Guedes chega ao ponto de fritura.

Interessa muito mais ao Congresso substituir Guedes do que o inquilino do Planalto. De um lado, o presidente recuou ao dizer que mensagens de WhatsApp para “algumas dezenas de amigos” têm “cunho pessoal” e mandou sua turma tirar o pé do dia 15. Do outro, o Congresso aperfeiçoou seus meios para tirar proveito de mais esta crise. Vale-se da grande expertise adquirida no tema nos últimos anos e que chega, com a ‘nova política’, ao seu ápice.

Se o bolsonarismo tem método, o Congresso também tem o seu. No dialeto parlamentar, o samba da mangueira (“não tem futuro sem partilha”) se traduz assim: o presidente da República terá futuro se e quando repartir o bom e velho butim.

Messias de arma na mão
Das 27 unidades da Federação, quatro têm militares do Exército no comando da Secretaria de Segurança Pública. Dois são coronéis e os generais Camilo Campos, em São Paulo, e Mario Araújo, em Minas, todos da reserva. Reproduzem o arranjo na Secretaria de Segurança Pública do Ministério da Justiça, mais uma vez ocupada por um general (Guilherme Theophilo) e do Rio de Janeiro sob intervenção militar.

Candidato derrotado a deputado federal pelo PSL, o general Araújo foi um dos artífices do acordo que propôs um aumento de 41% aos policiais militares de Minas. O acordo é um dos fios desencapados da tensão que mantém o Ceará há uma semana sob motim. Policiais de todo o Brasil hoje reivindicam isonomia com os mineiros.

Ao patrocinar o aumento dos PMs, que colocou um ponto de interrogação na já delicada solvência do governo de Minas, o general mineiro seguiu a escola da tramitação do projeto de reestruturação da carreira militar. Para ser aprovado com apoio da bancada da bala, com um custo fiscal de R$ 9 bilhões, o projeto deu carona a todas as demandas de PMs. A negociação contaminou a nação.

Não é à toa que o general Araújo aparece ao lado do vice-presidente Hamilton Mourão, do deputado federal Roberto Peternelli (PSL-SP), e do ministro do GSI, Augusto Heleno, num dos panfletos convocatórios da manifestação do dia 15: “Os generais aguardam as ordens do povo”. Peternelli não autorizou o uso de sua foto mas não se ausentará da manifestação que abrigará sua base eleitoral.

Generais não admitem que as Forças Armadas sejam contaminadas por um governo que encheu o Palácio do Planalto de militares quatro estrelas, ainda que ativa e reserva montem juntos quase todas as manhãs na Cavalaria do Exército em Brasília. Sua disciplina não admite motins que afrontam a Constituição, mas foi sob sua coabitação, em escalões militares e civis, que se espraiou a ordem policial de que sempre cabe um gasto a mais quando se tem uma arma na mão.


Maria Cristina Fernandes: Quem te irrita te domina

Método Bolsonaro desvia debate e desorienta a nação

Quem te irrita te domina. Um general da reserva foi buscar em sua memória de caserna a frase com a qual tenta explicar o método Jair Bolsonaro. Se esgotada em si mesma, a necessária indignação com a abominável ofensa à jornalista Patrícia Campos Mello cumprirá o objetivo perseguido por seu autor. Para cada brasileira indignada, há outra que não entende - ou não quer entender - de que furo Bolsonaro falou e prefere se encantar com o (raro) elogio de Roberto Carlos a um presidente da República.

A misoginia não é um detalhe tão pequeno pra esquecer, mas tornou-se um abrigo para o presidente da República. Seu campo de batalha é outro. No momento em que soltou o despautério, era indagado sobre a relação de sua família com as milícias e sobre a manifestação de 20 governadores a respeito do cabo de guerra do ICMS sobre combustíveis e de seu desempenho como obstáculo à democracia. Mas podia um outro tema, entre tantos que afligem o quarto andar do Palácio do Planalto, como o revelado pelo general Heleno Ribeiro.

A desbocada indiscrição do ministro do Gabinete de Segurança Institucional revela o grau de tensão envolvido na equação da governabilidade bolsonarista. O Congresso adquiriu, neste governo, poderes nunca dantes alcançados, pelo valor e pela prerrogativa de execução de emendas orçamentárias, e pela gestão dos fundos eleitoral e partidário. É um governo paralelo. Tem parlamentar assinando ordem de serviço, ou seja, invadindo prerrogativas de prefeitos, governadores e dos próprios ministros.

Já faz tempo que a saída dos ministérios para fazer investimentos é negociar com parlamentares para que as prioridades de suas pastas estejam contempladas nas emendas orçamentárias. O orçamento impositivo, a crise fiscal e o desenho do governo fez com que aquilo que era um arranjo em consonância com o funcionamento de um parlamento, se tornasse um tenso imperativo.

O loteamento ainda corre solto nos Estados e mantém janelas de oportunidades na Esplanada traduzidas pelas infindáveis disputas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação ou pelas agências reguladoras. A própria oposição reconhece, no entanto, que a corrupção foi reduzida no primeiro escalão.

Os caciques partidários já não têm a mesma liberdade de instalar pedágios nas autarquias do governo. Em contrapartida, têm pátrios poderes sobre as verbas da política. Se os ministros têm um ministro da Economia de quem podem se queixar e os prefeitos, um caixa favorecido pelo fôlego do setor de serviços, contribuintes municipais, o mesmo não se dá com os governadores.

Em outros tempos, uma carta assinada por 20 deles teria reverberado de uma maneira muito mais eloquente no Congresso do que esta o fez. Em grande parte porque tão inaudita quanto a manifestação, é a autonomia adquirida pelos parlamentares em relação aos chefes dos executivos estaduais.

Em regiões como o Nordeste, com gestões majoritariamente de esquerda, a aliança pontual entre Bolsonaro e parlamentares têm o objetivo de desalojá-las a partir de seu enfraquecimento nas eleições municipais.

São os governadores - e não os parlamentares ou o presidente - que têm de lidar com o subproduto da asfixia fiscal dos Estados, como a ameaça de greve policial deflagrada no Ceará e que ontem resultou nos tiros contra o ex-governador do Ceará, Cid Gomes.

Some-se a isso a estratégia do presidente de se vitimar no episódio da morte do ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, jogando a responsabilidade numa polícia militar sem controle e tem-se aí a tempestade perfeita para os governadores, um dos temas encobertos pela cortina de fumaça bolsonarista da semana.

Outro, sem solução fácil, é aquele que hoje mobiliza, principalmente, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a mudança constitucional que lhe permitiria disputar a recondução ao cargo. A pretensão do senador é alimentada pelos arroubos bolsonaristas. A cada sandice presidencial, o discurso de que o Congresso pode servir de anteparo ganha terreno.

Parlamentares que não querem perder seus feudos no Estado, dos Correios à Eletrobras, também fazem das pretensões de Alcolumbre um guarda-chuva para sua guerrilha parlamentar. A causa ainda tem como trunfo o parecer de um ex-advogado, hoje ministro do Supremo, encomendado pelo ex-senador Garibaldi Alves e favorável à tese da recondução.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, igualmente interessado no tema, tem sido mais discreto. Além de os adversários da tese na Casa serem mais barulhentos, o deputado parece confiar que, se a porteira for aberta para o Senado, não terá como se manter fechada para a Câmara.

A pretexto de conter um desabalado presidente da República, o movimento liderado por Alcolumbre arrisca transformar o Congresso num legislativo como aquele que um dia foi comandado pelos Picciani, no Rio. O que começa com a recuperação de privilégios, como aquele que estendeu o plano de saúde para filhos de servidores de até 33 anos, não custa a desandar para um feudo de desmandos e corrupção. É um vetor contrário àquele pretendido pela reforma administrativa. Não surpreende que a proposta, anunciada para hoje, tenha sido adiada.

A despeito da cidadela de austeros generais, o presidente enfrenta essas batalhas com peões egressos da velha ordem em funções-chave. É o caso, por exemplo, do ex-subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da gestão Michel Temer, Gustavo do Vale Rocha, que hoje ocupa função semelhante no governo do Distrito Federal mas mantém o pé no Palácio do Planalto como integrante do Conselho de Ética da Presidência.

Foi ele o relator da decisão que inocentou Fabio Wajngarten, dono de empresas beneficiadas por sua gestão como chefe da comunicação do presidente. Eis um soldado do qual Bolsonaro não pretende prescindir para manter em operação as milícias digitais com as quais irrita, desorienta e radicaliza. É dessa guerra que o capitão emerge, em seu palácio militarizado, como a força pacificadora de uma nação bestificada.


Maria Cristina Fernandes: Um PhD em milícia na antessala de Bolsonaro

General assume a Casa Civil num momento em que a família Bolsonaro dá início a uma estratégia de vitimização por seu envolvimento com milícias

Foi a ida do ex-secretário da Previdência do Ministério da Economia, Rogério Marinho, para o Ministério do Desenvolvimento Regional que possibilitou ao presidente Jair Bolsonaro convidar o segundo general da hierarquia do Exército, o chefe do Estado-Maior Walter Souza Braga Netto, a ocupar a Casa Civil.

Colaborador de melhor trânsito no Congresso, de toda a Esplanada, Marinho tem interlocução com o ministro Paulo Guedes e habilidade para o jogo presidencial no Congresso e nas eleições municipais. Sem um partido para chamar de seu, o presidente vai tentar construir uma base municipal por dentro das legendas. Com uma pasta chave que comanda do Minha Casa Minha Vida às obras contra secas, Marinho atuará, de fato, como o ministro que vai tentar tocar a máquina governamental em sintonia com as demandas parlamentares. Está muito mais para a Casa Civil do que Braga Netto.

Parece ser outra a função a ser desempenhada pelo general. Junto com o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, Braga Netto formará o triunvirato de generais cariocas que trabalharam juntos no Rio e tocam de ouvido. Braga Netto foi chefe da Autoridade Pública Olímpica quando Ramos era chefe da 1ª divisão do Exército e subordinado ao então comandante militar do Leste, Azevedo e Silva.

O triunvirato é prestigiado num momento em que os militares, apesar de terem ganho a desejada reestruturação da carreira e de terem os seus projetos entre os mais salvaguardados dos investimentos federais, não esconderem mais o incômodo com os protocolos deste governo. Ao inaugurar o instituto que leva seu nome, em Brasília, o ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas franqueou a palavra a um potencial adversário da reeleição do presidente, o apresentador Luciano Huck.

Se ainda não está claro como a articulação política pode vir a passar ao largo de um Palácio do Planalto comandado por dois generais da ativa, parecem mais evidentes os predicados de Braga Neto num dos temas que mais inquieta o presidente da República. O conhecimento adquirido pelo general no modo de operação do crime organizado concorre com o do ministro da Justiça e potencial adversário do presidente em 2022, Sérgio Moro.

A intimidade adquirida com o modo de operação da milícia fluminense durante os 12 meses em que foi interventor federal no Rio durante o governo Temer tornou Braga Netto um verdadeiro arquivo vivo do tema. Chega ao Palácio do Planalto num momento em que o presidente da República paga uma fatura elevada pela longa e profícua relação com as milícias.

Depois das homenagens prestadas em vida ao ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, a família silenciou sobre sua morte, no domingo, pela polícia baiana. Ao romper o silêncio ontem, o senador Flávio Bolsonaro escreveu no Twitter, em forma de denúncia, que o ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, teria sua cremação acelerada para que as evidências de seu assassinato fossem apagadas.

O senador sugere, dessa forma, que seria o maior interessado em que Adriano ainda estivesse vivo, desvinculando-se da ‘queima de arquivo’ levantada pelo advogado do ex-capitão. O senador deu início à sua estratégia de vitimização no mesmo dia em que foi protocolado no Conselho de Ética do Senado um pedido de quebra de decoro do seu mandato. O sucesso desse pedido esbarra na ocorrência dos fatos alegados em período anterior ao seu mandato e, principalmente, nas ambições do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) em obter o aval do Palácio do Planalto para mudar as regras constitucionais e se reeleger à Presidência da Casa na mesma legislatura.

É no Rio que está o maior cerco sobre o filho do presidente. A lupa sobre os inquéritos que correm no Estado está a cargo do procurador-geral da República, Augusto Aras, que monitora o trabalho do Ministério Público e da polícia civil do Rio. O procurador também manteve o pedido feito por sua antecessora, Raquel Dodge, para que a competência da investigação da morte da vereadora Marielle Franco passasse da polícia do Rio para a Polícia Federal.

Como a vinculação de Adriano da Nóbrega com a morte da vereadora já foi descartada pela polícia civil do Rio e pela própria Polícia Federal, restou ao deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) concluir que foi o fato de a investigação se avizinhar da família do presidente que despertou o interesse na federalização. A decisão está a cargo do Superior Tribunal de Justiça.

Se a tese da federalização ganhou força com a incompetência, ou má-fé, demonstrada por uma operação policial incapaz de resgatar com vida um foragido cercado, a transferência de competência para a Polícia Federal esbarra no desinteresse demonstrado pela instituição quando da elaboração da lista vip de foragidos cuja captura deveria ser prioritária.

Freixo se antecipou à estratégia de vitimização dos Bolsonaro iniciada com a operação policial a cargo de uma polícia comandada por um governador do PT (Rui Costa). Não cobra que Bolsonaro responda sobre a morte de Adriano, mas sobre sua vida. As investigações em curso indicam que, além de recheada de homenagens e de empregos a parentes, o ex-capitão manteve contas bancárias por onde passavam as ‘rachadinhas’ do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.

É na Casa Civil de um governo cujo presidente é acossado por milicianos insepultos que aportará o austero Braga Netto. O general enfrentou forte resistência familiar para aceitar o cargo dada a memória de ameaças sofridas à época da intervenção militar do Rio.

A carreira do general não autoriza a interpretação de que seu conhecimento sobre o submundo do Rio se preste à cooptação ou que se submeta cegamente à missão de proteger o comandante em chefe em apuros. A única aposta que dá para fazer é que a nova leva de militares da Esplanada sentirá saudade dos tempos em que sua maior dor de cabeça era cortar os laços do governo com Olavo de Carvalho.


Maria Cristina Fernandes: Um laboratório de Brasil

Penúria fiscal vira semente do pragmatismo político

Presidente do terceiro maior sindicato do país, o dos professores do Rio Grande do Sul, Helenir Schürer, não mudou suas convicções contrárias ao pacote de reformas aprovado pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), em tempo recorde, durante convocação extraordinária da Assembleia Legislativa. O pacote, no entanto, forçou o sindicato a negociar com o MDB uma emenda para mitigar perdas no plano de carreiras da categoria, modificado substancialmente pela primeira vez desde sua adoção durante a ditadura militar - “A estratégia foi a de reduzir danos. Fizemos o que foi possível ante um governo que tem 40 das 55 cadeiras da Assembleia”.

O desfecho é prenhe de sinais sobre as mudanças em curso no país. O PT chegou ao Palácio do Piratini quatro anos antes de tomar posse do Planalto e também foi de lá desalojado antes de o impeachment varrê-lo da capital federal. A bancarrota fiscal dos pampas teve início nos anos 1990 e atravessou governos do MDB, PT e PSDB sem que nenhum deles tenha sido capaz de estancar a sangria.

O buraco com o qual o atual governador assumiu o Estado só perde para o do Rio de sucessivas pilhagens. A penúria foi a semente do pragmatismo. Há cinco anos os servidores têm recebido salário parcelado até o último dia do mês seguinte. Depois de um 2019 de longas greves, o governador emplacou um pacote que extingue gratificações e promoções por tempo de serviço, prevê perda de cargo por avaliação periódica de desempenho e antecipa medida que está na PEC Emergencial no Congresso Nacional e permite ao servidor pedir redução de jornada - e de salário - de até 25%.

Líder do governo anterior, derrotado por Leite, o deputado Gabriel Souza (MDB) percebeu a brecha e negociou uma emenda com Helenir que amenizou a proposta e permitiu algum aumento salarial este ano. A esquerda se dividiu na votação. O PDT votou a favor, mas o PT (partido ao qual a presidente do sindicato é filiada) votou contra, bem como o PSOL.

O governador ainda conseguiu tirar da Constituição estadual o dispositivo que obriga a realização de plebiscito para a privatização de estatais sem que uma única bomba de gás lacrimogênio fosse lançada sobre a Praça Marechal Deodoro, que divide a Assembleia e a sede do governo.

A façanha, no entanto, não autoriza a suposição de que a política hoje se move por uma nova mentalidade em curso entre brasileiros dispostos a aceitar todos os sacrifícios para sair do buraco. Uma semana depois, o prefeito de Porto Alegre, o também tucano Nelson Marchezan Jr, perdeu de forma acachapante a votação de um arrojado projeto de mobilidade urbana na Câmara dos Vereadores.

A proposta amplia a participação dos mais ricos no subsídio ao transporte público. Substitui o vale por uma taxa a ser paga por todos os trabalhadores e não apenas por aqueles que dele se beneficiam.

Além disso, institui uma taxa sobre viagens por aplicativo, estabelece um pedágio urbano para carros de fora da cidade, e promove uma retirada gradual dos cobradores dos ônibus que circulam de madrugada, além de não repor os aposentados. Com isso, a municipalidade poderia conceder tarifa zero para trabalhadores com carteira assinada, tarifa social de menos de R$ 2 para os demais e de simbólico R$ 1 para estudantes.

A primeira fatia que foi a voto, a dos cobradores de ônibus, foi rejeitada por 23 votos a nove sob o pretexto de que causaria desemprego. O prefeito, que vive às turras com seu próprio vice, já havia sido derrotado em sua tentativa de aprovar um IPTU progressivo e, desta vez, não conseguiu apoio nem mesmo na sua base parlamentar. Colaborou para sua derrota não apenas o clima mais radicalizado na política municipal por conta das eleições de outubro como também a falta de diálogo de Marchezan com os vereadores.

O feito do Piratini terá repercussão não apenas dentro do partido do governador mas para a esquerda e para o governo Jair Bolsonaro. O arrojo e a capacidade de negociação de Leite já fazem sombra sobre seu colega paulista, João Doria, quadro incapaz de arrebanhar os votos até mesmo dos seus correligionários paulistas nas votações internas da legenda, como aquela que tentou impor punições às estripulias do deputado Aécio Neves.

A aprovação do pacote tampouco lustra a imagem petista, que jogou no colo do MDB a interlocução com o maior sindicato de sua base política e ainda votou contra a emenda negociada por sua presidente.

E, finalmente, a façanha farroupilha não traz conforto ao presidente Jair Bolsonaro por mostrar a viabilidade, na região que mais aprova seu governo, de gestões liberal-conservadoras que não endossam a porção aloprada do bolsonarismo. Leite declarou voto no presidente da República no segundo turno, mas diverge de temas caros ao bolsonarismo como a redução da maioridade penal e deseducação sexual nas escolas.

O governador gaúcho enfrenta o funcionalismo de maneira mais desabrida que Bolsonaro. O presidente da República fez minguar a menção à reforma administrativa na mensagem presidencial enviada ao Congresso esta semana. E o faz, em grande parte, pela bolha das redes sociais fora da qual parece se sentir inseguro. Aferição da Bites constata que, nos últimos 12 meses, o Google registrou 8,2 milhões de buscas para a expressão ‘concurso público’, principalmente nos Estados do Norte e Nordeste. A página Concursos Brasil, com notícias de aberturas de vagas no país, tem uma audiência mensal de 6,3 milhões de visitas.

Eduardo Leite tem apenas 34 anos, vem de um Estado limítrofe do país e ainda tem uma estrada longa e esburacada pela frente. Já foi capaz, no entanto, de mostrar que há vida na política e não apenas nos auditórios de TV e das redes sociais. É da política que terá que se valer se quiser resolver a maior pendência do seu pacote legislativo, a elevação da alíquota previdenciária para os brigadianos, nome que os gaúchos dão para os integrantes de sua polícia militar. Depois do que foi capaz de aprovar, se recuar ante a farda terá que se ver com a acusação de que fala grosso com os professores e fino com os policiais militares.


Maria Cristina Fernandes: Pressão sobre o MEC contamina federação

Escolha do substituto de Weintraub definirá, em grande parte, se, no segundo ano de governo, Bolsonaro optará por fazer entregas ou se continuará a fazer muito barulho por nada

O desastre do Enem deu clamor nacional ao epicentro da crise que abrirá o ano legislativo. Se o país está na contagem regressiva para a saída do ministro Abraham Weintraub, é o comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que mais inquieta os parlamentares.

É lá que está o cofre do MEC. Tirando a folha de salários da Pasta, o resto passa pelo FNDE, do ônibus escolar à compra de laptops. O orçamento deste ano é de R$ 30 bilhões, o que o equipara ao do Bolsa Família. Seu comando é mais volátil do que o do MEC. Teve três titulares ao longo do primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. O primeiro foi um professor da FGV, indicado por militares. Às vésperas da aprovação da reforma da Previdência, o condomínio DEM/PP emplacou um ex-presidente da Funasa, o “ministério que fura poço”, da gestão Michel Temer, e próximo tanto do secretário de Transportes Metropolitanos do governo de São Paulo, Alexandre Baldy (PP) quanto do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM).

Maia, Guedes e governadores contra Weintraub
Na última semana do ano, Weintraub mexeu de novo. Colocou no comando uma das diretoras do fundo, concursada do MEC. A troca azedou o Natal de muita gente no Congresso. O FNDE sempre foi domínio do DEM. O balcão foi derrubado na gestão petista mas acabou remontado nos achaques que marcaram a trepidante segunda gestão de Dilma Rousseff.

O gabinete do presidente do FNDE é um dos mais procurados pelas caravanas de prefeitos em Brasília e pelos parlamentares que os ciceroneiam. Juntos, destravam tanto verbas de municípios bloqueados por erros nas prestações de contas quanto de outros que mantêm redes viciadas de fornecedores de merenda ou uniforme escolares. Weintraub espicaçou ambos ao entregar, durante o recesso, ônibus escolares viabilizados por emendas parlamentares de anos atrás sem avisar aos seus autores.

À pinimba política, some-se a inépcia administrativa de uma Pasta que não consegue gastar. No ano passado, o MEC acumulou o maior volume de restos a pagar desde 2013. A contenção em nada angariou simpatia por sua permanência no Ministério da Economia. Na véspera da divulgação do vídeo nazista do ex-ministro da Cultura, Weintraub anunciou um reajuste de 13% nos vencimentos de professores da rede pública. Enfureceu governadores e prefeitos, pela pressão sobre a maior fatia de sua folha de pagamentos, e confrontou preceitos de duas propostas do governo federal - uma, já em tramitação (PEC Emergencial), que prevê uma redução de R$ 6 bilhões nos gastos do funcionalismo público, e a reforma administrativa.

A decisão do ministro incendiará o debate sobre o Fundeb no reinício dos trabalhos legislativos. O fundo, que financia os gastos com educação, expira em dezembro de 2020. O Tesouro Nacional tem 10% de participação no bolo. Há parlamentares que querem renová-lo com um aumento de até 40%.

O Ministério da Economia propõe 15% mas será obrigado a aumentar esse percentual para que prefeitos e governadores, que se reúnem em fevereiro para debater o tema, possam abrigar o aumento salarial decretado por Weintraub. O titular do MEC não tem domínio da língua portuguesa mas demonstrou ser capaz de afundar um dos axiomas do bolsonarismo, o de que se trata de um governo liberal na economia e retrógrado nos costumes.

Na mira do Congresso, do Ministério da Economia, de prefeitos e de governadores, o ministro acresceu, à sua ficha corrida, a barbeiragem do Enem - a maior da história do exame, na avaliação de Priscila Cruz, do Todos pela Educação, não apenas pelo número de alunos envolvidos como por ter atingido o coração do sistema de avaliação do ensino público. Ao contrário de problemas anteriores, de vazamento e roubo de provas, o deste ano não se verificou na aplicação da prova, mas na confiabilidade dos resultados. O erro não se limitou ao processamento do gabarito. Passou batido pelo sistema de checagem da instância responsável, o Inep, e só ganhou o mundo pela denúncia dos alunos prejudicados em redes sociais.

Com Damares Alves (Direitos Humanos), Ernesto Araújo (Itamaraty) e os titulares da Cultura até Regina Duarte, Weintraub integra a quadra de animadores de auditório olavistas da Esplanada que movimenta a gigantesca rede virtual de apoio ao presidente da República nas redes sociais. A despeito do conjunto da obra, #FicaWeintraub disputa a liderança no Twitter.

Se tirar apenas o ministro, o presidente desgostará seu exército virtual. Vem daí a ideia de que o titular do MEC integraria o time a ser trocado depois do carnaval. Sua saída não resolve o imbróglio de sua substituição, indissociável da solução para o FNDE. A ideia de manter um escolhido dos aloprados virtuais para o MEC e um indicado do Centrão para o fundo não contempla as ansiedades da federação ou da Economia.

Se der ouvidos a Paulo Guedes, por outro lado, o presidente corre o risco de ver a Educação tomada pelas ideias expostas pelo ministro em Davos, quando se propôs a resolver o problema da desigualdade no Brasil distribuindo vouchers para as famílias com crianças em idade pré-escolar. Como não há um sistema nacional de avaliação na pré-escola, a proposta arrisca-se a disseminar uma prestação de serviços que não poderá ser aferida e ainda deixa de contemplar a oferta de vagas onde o mercado está ausente.

O calendário eleitoral pressiona a escolha. Creche é pule de dez no debate municipal. As 3 mil creches paradas por falta de repasses federais, segundo o TCU, já teriam suprimido em R$ 3 bilhões da renda de famílias pobres. Uma coisa é Bolsonaro não entrar na disputa eleitoral de outubro para não ser obrigado a carregar o ônus de derrotado. Outra é deixar um flanco aberto para sair dela como vilão de um debate que deixará explícita a precariedade da infraestrutura municipal para populações mais vulneráveis.

A escolha do substituto de Weintraub definirá, em grande parte, se, no segundo ano de seu governo, o presidente da República optará por entregar ou se continuará a fazer muito barulho por nada.


Maria Cristina Fernandes: Instinto de sobrevivência

Suscitado pelos instintos mais primitivos, o extremismo bolsonarista só poderá ser moderado pela chance de sobrevivência na política

Em agosto, depois das críticas do ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, aos dados preliminares de que as queimadas na Amazônia haviam aumentado, o presidente da República demitiu o cientista, culpou organizações não- governamentais pelo fogo na mata e acusou governadores de conivência com o incêndio das florestas.

Três meses depois, Jair Bolsonaro, ao ser questionado pelos dados do mesmo Inpe que indicam desmatamento apontou o dedo para a gestão da ex-ministra Marina Silva no Meio Ambiente, quando se registrou um dado um terço superior ao desmatamento atual, disse que se trata de uma questão “cultural” e sugeriu que identificação da titularidade das propriedades nas florestas facilitará a responsabilização de seus autores. Ainda não está claro como, além de beneficiar grileiros, a medida pode vir a proteger o meio ambiente, mas o gesto traz menos danos à imagem do Brasil no exterior do que a demissão do presidente do Inpe.

O dinheiro e a política baixaram a bola e o tom do discurso e da ação governamental. Não é um Bolsonaro paz e amor que parece estar em curso, mas uma segmentação do seu comportamento para plateias e fins específicos e uma calibragem maquiada das políticas de governo - e não apenas ambientais - guiada pelo instinto de sobrevivência.

Entre uma e outra reação do presidente, o Brasil foi passado para trás na fila de ingresso no clube dos ricos (OCDE), o leilão do pré-sal frustrou a atração de investidores, o dólar chegou a R$ 4,20 e a fuga cambial bateu o recorde registrado 20 anos atrás. Nem todas essas más notícias têm relação direta com o discurso miliciano do presidente (não apenas) na área ambiental. Tem empresa preferindo pagar dívida em dólar para tomar dinheiro num Brasil de juro mais baixo e investidor revertendo posições em Real tomadas na expectativa de que o leilão o apreciaria. Nenhuma dessas más notícias, porém, poderá ser revertida se a corda do extremismo for ainda mais esticada.

A ordem de moderação chegou até o ministro do Meio Ambiente. Depois de demitir Galvão do Inpe, Ricardo Salles fez uma rodada de viagens pela Europa, onde, em encontros com ministros alemães e ingleses, o comitê empresarial da OCDE, e jornalistas, custou a emplacar suas preleções. Ao longo desse tempo também cresceram seus conflitos com a ministra da Agricultura, Teresa Cristina. Pela primeira vez, o embate entre as duas pastas teve sinais trocados, entre a vista grossa do Meio Ambiente para a motosserra e a preocupação da Agricultura com os contratos de seus exportadores em mercados vigilantes na questão ambiental.

Foi nesta conjuntura que Salles tomou a decisão de se deslocar até São José dos Campos para o anúncio das más notícias sobre o desmatamento. Se as medidas a serem tomadas pelo governo não refletirem mudanças reais na política ambiental, terá gasto gasolina à toa, mas, na simbologia do poder, Salles deu a cara a bater e prestigiou o instituto que havia colocado em xeque.

Os sinais de inflexão não vêm apenas da retórica ambiental. O mesmo presidente que chegou a declarar alinhamento automático com os Estados Unidos, enumerou, para o aval de seus pares, as prioridades elencadas pelo Brasil como resumo de sua gestão à frente dos Brics e das metas futuras: fortalecimento da arquitetura econômico-financeira internacional, reforma do sistema multilateral, resolução de crises por meios diplomáticos e fortalecimento da cooperação entre os integrantes do bloco.

O surto de moderação presidencial se estendeu ao sumiço do vereador Carlos Bolsonaro das redes sociais e à decisão de remeter ao laranjal da Pasta do Turismo, e não ao pomar de aberrações ideológicas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, as atribuições do ex-ministério da Cultura abrigadas, até então, sob o guarda chuva de Osmar Terra (Cidadania).

Bolsonaro também tem se revelado cauteloso em relação ao fôlego curto dos primeiros sinais de reativação da economia. Sinal disso foi o freio em relação à reforma administrativa, proposta que confronta um segmento cujo poder de fogo ainda está por ser testado. Fora os professores, categoria que foi para a rua de braços dados com aqueles da iniciativa privada, os funcionários públicos ainda não demonstraram, neste governo, disposição de ir para o confronto.

Além disso, o risco do continente em chamas reduz o ímpeto reformista. A classe média chilena empurrada para a rua foi empobrecida por custos crescentes de educação e saúde e benefícios previdenciários arrochados, num ambiente em que, a despeito do crescimento da economia, é de desigualdade cristalizada. Os efeitos, ainda incertos, de um dólar valorizado no Brasil acrescem, à doença chilena, uma pitada de moderação.

É claro que a presidência-bipolar não autoriza que se tracem tendências, mas a moderação, além de imperativos imediatos relacionados às expectativas da economia, e afetada por aqueles de mais longo prazo vinculados ao maior rival de Bolsonaro na política. Reconfigurado para registrar o retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o GPS presidencial tenta distanciar Bolsonaro da extremidade direita para evitar que o rival ocupe espaços.

Tanto Lula quanto Bolsonaro buscarão ocupar este grande deserto de homens e ideias que hoje está no centro da política. Tentarão fazê-lo sem deixar a descoberto os pólos dos quais hoje são titulares. A rota de Lula começará a ser conhecida no congresso petista que se inicia amanhã em São Paulo. A do presidente da República, por errática, segmentada e, em grande parte, submersa, escapa a uma tradução ligeira.

Por mais moderado que o discurso presidencial possa parecer, o extremismo pode ser terceirizado para a estratégia digital de seu governo e, principalmente, do seu novo partido. Resta ainda o ímpeto bolsonarista suscitado pelos instintos mais primitivos. Só o da sobrevivência na política será capaz de moderá-lo.


Maria Cristina Fernandes: Um país ocupado por bestas e fuzis

Moratória da venda de armas dos EUA iria à raiz da violência

Dois meses antes da morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, que hoje completa um ano, a Polícia Federal divulgou um relatório que indicava a venda de armas em lojas e feiras nos Estados Unidos como a principal fonte de fuzis e metralhadoras contrabandeados para o Brasil.

O monopólio de importação de armas dos Estados Unidos é das Forças Armadas e das polícias. A entrada clandestina dá-se por portos e aeroportos e, principalmente, pela fronteira com o Paraguai. O relatório identificou que a maior brecha para o ingresso direto da mercadoria americana no Brasil se dá pela importação de kits com itens avulsos para a montagem de armas.

Na casa de um parceiro do ex-policial militar Ronnie Lessa, um dos presos por suspeita de participação na morte da vereadora carioca e de seu motorista, foram encontrados kits como esses para a montagem de 117 fuzis. Como informa o relatório, seu preço de venda, em território nacional, pode alcançar dez vezes o valor pago nos Estados Unidos, o que pode explicar, em parte, como um ex-policial com soldo de R$ 7 mil mora num condomínio de classe média alta na Barra da Tijuca.

Depois da divulgação desse relatório, a Polícia Federal começou a pressionar o governo federal para que obtivesse, do governo americano, medidas de restrição à venda de armas, especialmente para o Paraguai, como mostrou Marcos de Moura e Souza (Valor, 20/3/2018). As tratativas esbarraram na indústria bélica americana ainda mais fortalecida na gestão Donald Trump.

A visita do presidente Jair Bolsonaro é a primeira de um chefe de Estado brasileiro aos Estados Unidos desde a divulgação do relatório da PF. No encontro com jornalistas na manhã de ontem, o presidente limitou-se a informar a existência de dois acordos a serem assinados, um para o uso comercial da base de Alcântara e outro, de bitributação. Na área de segurança pública, o Itamaraty limita-se a informar que o Brasil tem interesse em compartilhar informações e treinamento em lavagem de dinheiro, terrorismo e narcotráfico, no âmbito do foro de segurança criado no ano passado na gestão Michel Temer.

O intercâmbio jurídico/policial do Brasil com os Estados Unidos avança muito mais celeremente no combate à lavagem de dinheiro do narcotráfico e da corrupção. O distintivo da Swat no uniforme da escolta dos presidiários da Lava-Jato é auto-explicativo. A operação é, em grande, parte, fruto dessa colaboração. Foi na carona dela que o Ministério Público tentou criar uma fundação para gerir o dinheiro recuperado com a corrupção.

Em dobradinha com seus antigos companheiros da Lava-Jato, o ministro da Justiça saiu em defesa da fundação. Como inexiste uma previsão legal para seu funcionamento, porém, Sergio Moro resolveu contorná-la com uma medida provisória destinada a criar uma superagência para gerir os recursos advindos do crime organizado.

Dessa forma, a Lava-Jato perpetuaria uma fonte de recursos, a salvo das desvinculações orçamentárias pretendidas pelo Ministério da Economia. Da mesma forma que as legendas com representação no Congresso Nacional, a parceria entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol também teria seu "fundo partidário".

Ao contrário do que se observa no combate à lavagem de dinheiro da corrupção e na repressão ao narcotráfico, com o qual o Brasil tem intensa colaboração, apesar de ser apenas um entreposto secundário para os Estados Unidos, o governo americano não oferece contrapartida quando se trata de limitar suas exportações de armas para a Tríplice Fronteira.

Não se poderia esperar outra coisa de uma visita cuja agenda foi moldada, em grande parte, pelo assessor de segurança nacional de Trump. John Bolton, que também é integrante atuante da Associação Nacional do Rifle, mais poderoso lobby de armas dos Estados Unidos, foi recebido num café da manhã preparado pelo próprio Bolsonaro quando ele ainda era vizinho de Ronnie Lessa. A presença de um suposto matador de aluguel e contrabandista de armas na vizinhança sem muros do condomínio passou despercebida não apenas da segurança do presidente da República como naquela do poderoso assessor de Trump.

Se as gigantescas resistências da indústria de armas americana sempre podem ser alegadas para as dificuldades de se arrancar uma moratória nas exportações americanas para a região, o mesmo não se pode dizer da liberalização da posse de armas no país. Depois de editar decreto que facilitou a posse de armas nos primeiros dias de seu governo, o presidente agora se dedica a um projeto de lei para ampliar o porte.

Ao justificá-lo, falou de seu costume de só conseguir dormir com uma arma na cabeceira mesmo depois que se mudou para a casa mais vigiada do Brasil. É mais ou menos a mesma lógica que guiou o comportamento de seu filho na posse. A despeito das dezenas de milhares de policiais e militares mobilizados para a defesa do pai, Carlos Bolsonaro postou-se armado às suas costas no trajeto que o levou ao Palácio do Planalto.

É leviana a vinculação da família do presidente ao atentado contra a vereadora, mas a ideia de que o Estado não é capaz de prover segurança e os cidadãos precisam fazer justiça com as próprias mãos está na raiz histórica de jagunços e milicianos.

É precipitado também afirmar que as mortes em Suzano decorreram do decreto de Bolsonaro. O massacre de Realengo, no Rio, em 2011, quando um ex-aluno entrou numa escola e matou 12 estudantes, deu-se na vigência do estatuto original do desarmamento. É, no mínimo, irracional, no entanto, que, ante uma tragédia do gênero, o presidente fale em um projeto de lei para facilitar o porte de armas, o vice-presidente atribua o crime ao vício dos jovens em videogames e o senador do PSL, Major Olímpio (SP), diga que o crime poderia ter sido evitado se os professores e serventes pudessem portar armas.

A maior parte das mortes nas escolas deu-se por armas de calibre 38, mas foi a presença de um inusitado arco e flecha em Suzano que deu forma à tragédia que se abateu sobre o Brasil. Ao instrumento, o dicionário também dá o nome de 'besta'.