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Marcus Vinicius Oliveira analisa desafios da esquerda com base na via chilena

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, historiador toma como base livro de Alberto Aggio

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile, conforme analisa o doutor em história Marcus Vinicius Oliveira, em artigo que produziu para a 23ª edição da revista Política Democrática Online. “Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários”, afirma.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos com acesso gratuito em seu site. Em seu artigo, Oliveira analisa, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.

“Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder, “ escreve o doutor em história, para continuar: “Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático”.

De acordo com o autor do artigo, é preciso refletir em torno dos significados da experiência para a política contemporânea. “Não revisitamos a ‘experiência chilena’ para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI”, afirma.

Distante de qualquer perspectiva socialista, segundo Oliveira, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.

“Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence”, afirma o doutor em história. Para o presente, conforme acrescenta, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.

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Alberto Aggio: Um Gramsci para o século XXI

O livro de Marcus Vinicius Oliveira, versão revisada de sua tese de doutorado, tem uma qualidade notável que se observa de imediato. Ao se fixar na leitura do texto original dos Quaderni del Carcere, escritos por Antonio Gramsci nas prisões do fascismo, o autor esclarece de saída que eles se transformam em “obra” por meio das várias edições a que foi submetido desde o final da Segunda Grande Guerra. Levar isso em conta já é um grande mérito porque compreende claramente sua principal fonte de pesquisa e exploração reflexiva além de estabelecer um critério de interpretação historiográfica hoje considerado absolutamente necessário para o entendimento do pensamento de Gramsci.

Como se sabe, Gramsci nunca publicou um livro em vida e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, primeiramente publicados a partir de temas que se entrecruzavam nos Quaderni, para só depois, na década de 1970, ganharem uma “edição crítica” que buscou acompanhar a cronologia da escritura gramsciana. Hoje, os Quaderni, junto a outros textos e cartas de Gramsci, estão sendo organizados na denominada “edição nacional”, que já conta com alguns volumes publicados na Itália. Para Marcus Vinicius, os editores, os estudiosos e os comentadores de Gramsci formam o conjunto de “intelectuais mediadores” que deram vida à difusão do pensamento de Gramsci e são tratados com a distância e a importância historiográfica que têm cada um deles.

Por essa razão, a pesquisa que subsidia a tese e o livro não teria como deixar de levar em conta as atuais correntes interpretativas do pensamento de Gramsci, relevando tanto a leitura filológica do pensador sardo, que enfatiza a compreensão dos seus conceitos no ato da escritura, quanto o viés de “historicismo integral” que procurou analisar simultaneamente pensamento e vida como a interpretação mais profícua de Gramsci, fazendo jus ao líder político do comunismo italiano, primeiro, para em seguida aloca-lo no corpo dos pensadores democráticos do século XX.

Situando o debate nesses termos, Marcus Vinícius assume a perspectiva de um diálogo entre filologia e historicismo integral. Também não esconde sua permanente intenção de convocar Gramsci para a grande discussão dos dilemas políticos da nossa contemporaneidade, centrada nas temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois vetores essenciais para a compreensão e o enfrentamento dos conflitos e dos desafios de um mundo globalizado.

Feita essa opção, o autor não prescindiu, em momento algum, de enfatizar o caráter aberto do texto gramsciano, reconhecidamente uma das razões da grandeza do seu pensamento. Um outro aspecto importante é que não há no livro a perspectiva, como se fez no passado, de procurar extrair do pensamento de Gramsci orientações imediatas para a ação política ou então concepções de mundo integrais sobre a moral e a cultura, a sociedade e a história, o que invariavelmente produz operações reducionistas. É preciso enfatizar, assim, que o autor comunga a ideia da impossibilidade de se pensar em um gramscismo como sistema ou esquema que deveria ser seguido por seus supostos adeptos. O pensamento de Gramsci efetivamente não se presta a isso. Criteriosamente, ao contrário, pode-se notar que está presente em cada passagem do livro a advertência para o fato de que a grandeza do pensamento de Gramsci encontra-se muito distante de qualquer esquema ideológico predeterminado. O que possibilitou ao autor uma orientação metodológica no sentido de compreender e tratar o próprio caráter fragmentário e inacabado do texto gramsciano como um signo da abertura, em sentido produtivo.

Entretanto, é preciso chamar atenção para algumas tentações às quais o nosso autor procura não se deixar seduzir. No livro, não há sinais daquele Gramsci interpretado como homem exclusivamente vinculado à cultura, fora da política, ou como um personagem “aprisionado” na cultura heróica do movimento comunista. Mesmo porque, em relação a esta última imagem cristalizada de Gramsci, hoje já se sabe das dissensões entre Gramsci e a Internacional Comunista (IC), dentre elas a discrepância frente à proposição de luta por uma Constituinte contra o fascismo. A IC buscava fomentar a revolução proletária na Itália como processo simultâneo e sucessivo à derrubada do fascismo enquanto Gramsci projetava uma estratégia de luta democrática para derrotar o fascismo a partir da conquista de uma Constituinte que reunificasse a Nação. É relevante esse aspecto uma vez que explica o isolamento de Gramsci não apenas motivado por sua prisão pelo fascismo, mas por uma “condenação” da IC, desde 1929, em relação à sua proposta de uma Constituinte para a Itália.

Visto sob esse aspecto essencial, há um pressuposto que deve ser assumido de forma límpida: mesmo sendo Gramsci um intelectual-político vinculado ao comunismo histórico, seu pensamento deve ser tratado a partir de uma posição de autonomia em relação ao movimento comunista de sua época e especialmente daquele que se seguiu a ela. Por muito tempo se pensou numa relação estreita e reiterativa entre Gramsci e o comunismo, apesar de reconhecida sua especificidade no interior daquele movimento. Nesta perspectiva, Gramsci deveria ser lido como um pensamento caudatário do desenvolvimento do marxismo revolucionário mundial, reservando a ele um lugar especial em torno da reflexão a respeito da estratégia revolucionária nos países centrais do desenvolvimento capitalista. Relevado como “teórico da revolução” nos países avançados, isto é, como um teórico do “Estado ampliado” ou da “revolução processual”, esse Gramsci perderia os elementos de inquietação intelectual que marcam um texto escrito não somente numa situação-limite como também obcecado em buscar o entendimento de como enfrentar as novíssimas configurações do novo mundo que se descortinava no seu tempo.

É esta perspectiva analítica que dá viço ao livro de Marcus Vinicius, acompanhando o percurso realizado por alguns estudiosos de Gramsci que procuraram buscar efetivamente sua originalidade, especialmente quando enfatiza que nos Quaderni havia o reconhecimento de que o século XX havia presenciado uma emergência de massas jamais vista em qualquer época da história. Gramsci seria assim um pensador que havia assimilado produtivamente essa grande mudança, tornando-a presente, de forma permanente em toda sua reflexão. Nesse quadro, a revolução bolchevique havia sido, antes de tudo, uma revelação da até então desconhecida possibilidade de ação das massas, mas depois desse momento a questão da revolução se havia complicado em termos reais. Na linguagem gramsciana, as ações dos dominantes também sofreriam uma inflexão em relação às massas, revelando que os métodos exclusivamente repressivos não eram mais seguros, sendo necessário acolher, responder e controlar suas demandas e reivindicações. É desse reconhecimento que nasce em Gramsci o conceito de “revolução passiva” que, por sua vez, iria estimulá-lo a pensar na necessidade de um novo tipo de direção política e intelectual, que assumisse a política como elaboração positiva e de reconstrução consensual da ação e da estratégia dos setores subalternos.

O conceito de “revolução passiva” em Gramsci seria a abertura para uma nova concepção de política que se apresentasse de forma produtiva e com capacidade de intervenção nesse novo cenário. Propositalmente polêmico, o conceito de “revolução passiva” não era assumido por Gramsci como um programa político, mas se configurava como a referência analítica e o instrumento de conhecimento mais importante de toda sua obra. Por meio dele se poderia compreender não apenas o movimento da transição para a ordem burguesa, mas também sua universalização, ultrapassando a interpretação de que esses processos teriam, como dimensão empírica, apenas o paradigma clássico da revolução francesa. É, nesse sentido, que Gramsci irá anotar que o americanismo – pela hegemonia da fábrica – se apresentava como a modalidade de revolução passiva típica do capitalismo maduro, uma expressão de racionalidade integral com enorme capacidade de universalização. Na Europa, a política realizaria, de muitas maneiras, a intermediação entre as classes do mundo produtivo. Nos países retardatários – não apenas europeus –, avançava-se em direção ao moderno por meio de uma superestrutura que se colocava à frente dos movimentos da infraestrutura, compensando a defasagem que os caracterizava frente aos países de capitalismo maduro. Em todos esses cenários, contudo, haveria saltos e processos moleculares. Seriam modalidades especificas de revolução passiva que teriam vigência histórica, condicionariam e determinariam fortemente os processos de generalização do capitalismo e da ordem burguesa. Muitos desses processos históricos, fracassados ou não (como o fascismo), iriam marcar profundamente as sociedades contemporâneas que vivenciariam, mais à frente, a passagem do século XX para o século XXI.

Conforme nos explica Marcus Vinícius em seu belo livro, a integridade do categorial gramsciano somente pode ser bem compreendida por meio da mobilização das ferramentas de estudo da história do pensamento político. Trata-se de uma escolha feliz para acompanhar os movimentos criativos e de ruptura que se encontram nos Quaderni, dando sustentação para a historicização das inovações conceituais da hegemonia, da revolução passiva e da filosofia da praxis, seus conceitos basilares.

Um dos tratamentos inovadores deste livro e que compõe um dos referentes do seu título é o fato de Marcus Vinícius considerar o texto gramsciano como um conjunto de “fractais”, em “constante mutação” e gerador de uma “nova consciência histórica”. Para o autor, ancorado em Marx, mas sem reiterá-lo, Gramsci ultrapassa efetivamente o marxismo e o bolchevismo na medida em que seus conceitos são deduzidos do diagnóstico histórico a respeito da transformação morfológica que havia ocorrido entre o final do século XIX e inicio do século XX, principalmente na Europa e nos EUA, exigindo que história e política passassem a ser pensadas “fora do paradigma revolucionário”. Mediante essa operação Gramsci vai se tornar “o político e o intelectual da hegemonia, pensando a política, a democracia e o consenso como formas de transformação histórica”. Assim, depois de ter descoberto o sentido e a dinâmica das estruturas em que se assentou o século XX, o autor sugere que Gramsci tenha aberto a nós a possibilidade de pensarmos, de forma similar, o mesmo para o século XXI.

Assumidamente polêmico, o livro que o leitor tem em mãos é um convite à reflexão, aberta e profunda, a respeito de um pensamento que pertence rigorosamente ao nosso tempo.