Marcus Pestana

Marcus Pestana: Assim é, se lhe parece: a inconsistência dos partidos no Brasil

Amanhã teremos o 2º. turno das eleições municipais em 57 capitais e grandes cidades. Os resultados acentuarão as cores das interpretações e análises, mas diversas leituras já foram feitas a partir do que aconteceu no primeiro turno. Algumas delas tirando conclusões precipitadas sobre o “recado das urnas” e suas consequências em 2022.

Na última semana, procurei mostrar que é preciso ir “devagar com o andor” neste esforço de interpretação. Primeiro, porque as eleições municipais tem conteúdo eminentemente local e elementos ideológicos pesam marginalmente nas grandes cidades e principalmente na polarização de segundo turno, como é o caso dos confrontos entre Bruno Covas versus Boulos ou Eduardo Paes versus Crivela. A variação aritmética entre os resultados de 2016 e 2020 diz pouco ou quase nada sobre o futuro.

Por outra lado, chamei atenção para a diversidade presente entre regiões, municípios de diferentes portes e partidos razoavelmente programáticos e a maioria deles, pragmáticos.

Hoje temos 35 partidos registrados no TSE e 24 deles presentes no Congresso Nacional. Vejo análises que a partir da variação aritmética da votação e do número de prefeitos e vereadores eleitos por cada partido, começam a cravar: o “Centrão” saiu fortalecido, a esquerda caiu, Bolsonaro foi derrotado, MDB e PSDB perderam espaço. Nada mais enganoso.

Os partidos políticos brasileiros se dividem, grosso modo, em dois grupos: os que procuram ter alguma organicidade e identidade ideológica, e os que tem perspectiva pragmática, funcionando mais como cartórios para registro de candidaturas e como administradoras dos fundos eleitoral e partidário e sempre disponíveis a negociar apoio a governos díspares como os de Itamar Franco, FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro. Dos vinte e quatro partidos hoje presentes no Congresso têm perfil razoavelmente ideológico e projeto nacional PT, PSDB, DEM, PSOL, PcdoB, PDT, PSB, CIDADANIA, REDE, PV e NOVO. Os outros atuam conforme os ventos políticos conjunturais. Um caso a parte é o MDB, que é um partido importante, mas que oscila entre o pragmatismo e a consistência.

Há um problema central na maioria das análises: o fato de não se conhecer prefeitos de carne e osso e sua lógica. Os deputados, prefeitos e vereadores têm, em geral, baixíssima fidelidade às direções partidárias. Se a direção nacional do partido X apoiar Bolsonaro, Dória, Luciano Huck, Ciro Gomes ou Haddad não quer dizer que haverá alinhamento geral da estrutura partidária. Os prefeitos e vereadores no interior são espertos e pragmáticos, querem melhorias em seus municípios. Evitam partidos com identidade muito forte. Em Minas, nos 12 anos recentes em que houve a presença do PSDB no governo estadual e do PT no nível federal, era mais cômodo para as lideranças locais se refugiarem em legendas sem marca forte para buscar recursos nas duas esferas de poder. Imaginem os prefeitos da Bahia com o governo estadual em mãos petistas e Bolsonaro na Presidência. Na hora da eleição a história é outra.

Fica para outra oportunidade discutir o papel dos fundos, a repercussão dos “padrinhos” nas eleições locais, a cláusula de desempenho e o fim das coligações proporcionais e os sinais de esgotamento da polarização nos EUA e no Brasil.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Fatos e análises: devagar com o andor

Já conhecemos os resultados das eleições em 5.276 municípios. Restam 57 disputas que ficaram para serem decididas em segundo turno. Como acontece, de quatro em quatro anos, cientistas políticos, analistas da imprensa, articulistas e lideranças políticas começam imediatamente a tentar interpretar qual é o “recado das urnas”. Como se as eleições municipais fossem uma espécie de antessala ou prefácio das eleições gerais seguintes.

É evidente que os resultados realçam um determinado espírito reinante na opinião pública nacional. Mas “devagar com andor que o santo é de barro”. É preciso perceber o caráter contraditório dos números; decifrar a essência escondida atrás das aparências; entender que as eleições municipais têm predomínio de temas locais; atentar para as diferenças entre pequenas, médias e grandes cidades; observar que a matemática política é diferente da lógica aritmética; e, que a realidade histórica é dinâmica e mutante. Há na maioria das análises um verdadeiro “tour de force” para construir ilações a partir dos resultados eleitorais locais sobre quem são os vitoriosos e os derrotados no plano nacional. Mais uma vez, “prudência e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.

O primeiro equívoco central desta armadilha analítica é, além de traços gerais do sentimento da sociedade no momento, tentar enxergar tendências avançadas sobre o cenário para 2022. Como se as eleições municipais tivessem alta carga ideológica, o que só é verdade marginalmente nas grandes cidades, e que candidaturas presidenciais ou de governadores dependessem de uma sólida base municipalista previamente consolidada. Nada melhor para testar teses políticas que confronta-las com a realidade. Não é preciso ir longe: qual era a base municipal que tinham Collor, Bolsonaro, Witzel ou Zema? Como explicar que o PSDB tenha tido em 2016 seu melhor resultado em eleições municipais e seu pior resultado nacional em 2018? Não é preciso dizer mais. Como disse certa vez Ulysses Guimarães: “Vossa Excelência, o fato”.

Outro erro fundamental: não perceber que a realidade é dinâmica e muda e raciocinar com a simples aritmética e não com a análise política-histórica. Cansei de ver tabelas e análises que tiravam suas conclusões a partir da variação percentual entre 2016 e 2020. E aí prevalece a análise de elevador: tal sigla ou líder sobe, outros descem. Ledo engano. Será que é difícil enxergar que entre 2020 e 2016 existiram 2017 e 2018? Ou não houve uma escalada crescente com o impeachment de Dilma, recessão, desemprego, Lava Jato, JBS, intensa cobertura da mídia, que desmoralizou o quadro partidário que sustentou a Nova República e catapultou Bolsonaro de 7% para 22% nas pesquisas de opinião e resultou numa eleição disruptiva? A variação aritmética de desempenhos partidários não registra isso.

O Brasil tem quase 148 milhões de eleitores. Apenas três partidos tiveram mais de 10 milhões de votos (MDB, PSDB e PSD). Ou seja, em torno de 6,7% dos votos nacionais, o que é pouco e revela uma inequívoca pulverização. Apenas cinco partidos fizeram mais de 400 prefeitos e mais de quatro mil vereadores (MDB, PP, PSD, PSDB e DEM). Aí, juntas e misturadas, Serra da Saudade em Minas Gerais com seus 941 eleitores e São Paulo com mais de 8 milhões de eleitores. O presidente da República sequer tem partido. Portanto, todo o cuidado é pouco com análises precipitadas. Voltarei, por sua relevância, ao assunto na próxima semana.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: A reinvenção da democracia e o poder local

Amanhã elegeremos os novos prefeitos e vereadores dos municípios brasileiros. Muito papel e tinta têm sido gasto para discutir a crise da democracia representativa no mundo contemporâneo. No Brasil, além das características universais tivemos um processo específico e radical que foi a crise, entre 2014 e 2018, envolvendo simultaneamente recessão, desemprego, impeachment, Lava Jato e a desmoralização do sistema partidário tradicional. O resultado foi uma eleição em 2018 completamente disruptiva, com a eleição de outsiders para a Presidência da República e diversos governos estaduais nas asas da “nova política”.

Pouco a pouco, e as dificuldades dos governadores do Rio de Janeiro, Santa Catarina e Amazonas não nos deixam mentir, fica claro que a “nova política” já nasceu velha. A própria oscilação do governo federal entre o presidencialismo de confrontação e o de coalizão, ao procurar apoio parlamentar do chamado “Centrão”, embaralham os conceitos de novo e velho, ainda mais a partir do esvaziamento da pauta anticorrupção, com a saída de Moro, e da perspectiva econômica modernizante, com a fragilização clara e crescente do antigo Posto Ipiranga, o Ministro Paulo Guedes.

As eleições municipais nunca tiveram carga ideológica elevada. A população é pragmática e quer saber quem é o líder local que pode melhor potencializar as energias presentes na sociedade municipal e ser o melhor gerente para a garantia de serviços públicos de qualidade para todos. Tanto que a polarização entre bolsonarismo versus petismo é totalmente periférica nesta eleição segundo a projeção das pesquisas.

Cada vez mais as pessoas desconfiam de salvadores da Pátria, heróis onipotentes, demagogos irresponsáveis. A democracia é um processo permanente de experiências, decepções, êxitos e aprendizado. Depois da explosão catártica das eleições de 2018, creio que características essenciais como história pessoal, realizações, experiência, competência, capacidade de liderança, aptidão para o diálogo e a negociação, estão sendo revalorizadas. Não se vê a absolutização do novo pelo novo, nem a condenação do “velho” por ser velho, embora algum grau de renovação seja sempre importante.

Tenho convicção enorme que se há algum plano que pode revitalizar a democracia brasileira é o poder local. A grande proximidade entre líderes e gestores e o cotidiano da população é fundamental para a construção de novos modelos de governança pública. Neste nível de governo são possíveis experiências profundas e verdadeiras de participação, transparência e controle social, difíceis de se concretizarem nos planos estadual e federal. É importante fortalecer o orçamento dos municípios. Embora na votação dos royalties do petróleo e do minério tenha estudado profundamente e verificado que não obrigatoriamente as cidades mais ricas têm os melhores indicadores de educação e saúde. Às vezes pequenos municípios pobres têm resultados muito melhores graças à qualidade da gestão local.

Amanhã o destino das cidades brasileiras estará nas mãos da população. Um bom prefeito e bons vereadores são os que podem assegurar a verdadeira construção de uma rede boa e integral de atenção à saúde ou uma escola ativa, vibrante e de qualidade ou uma competente governança do espaço urbano e dos serviços municipais. Portanto, voto é escolha, mãos a obra.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Os ventos que sopram do norte

Quase tudo já foi dito sobre as eleições americanas. Escrevo ainda no calor da apuração depois da postagem de mensagens dos dois candidatos à presidência dos EUA no Twitter que dão a dimensão do impasse que assistiremos nos próximos dias. Donald Trump lançou em letras garrafais: “Parem a contagem!”. Em direção oposta o democrata Joe Biden afirmou: “Todos os votos devem ser contados”. Mas, as primeiras iniciativas de judicialização das eleições demonstram que o conflito político se arrastará por dias, semanas.

Nunca houve na história americana um presidente que confrontasse de tal forma as instituições, tradições e práticas democráticas. Trump não tem nenhuma contenção na instrumentalização do poder e não reconhece legitimidade em seus adversários e críticos. Foi apontado por estudo da Universidade de Cornell como o maior disseminador de desinformação sobre a COVID e tornou prática cotidiana a promoção de fakenews “chapa branca” contra adversários.

A vitória de Biden tem dimensão histórica e universal em dois sentidos. O primeiro é o fortalecimento da democracia nos EUA e no mundo, revertendo a onda que se convencionou chamar de “populismo autoritário”. A postura agressiva e antidemocrática de Trump ecoa e estimula a radicalização de setores de extrema-direita em escala global. A eleição de Biden vai permitir que ele se alinhe a estadistas como Angela Merkel e Emmanuel Macron na defesa dos fundamentos do sistema democrático, do valor da tolerância e do diálogo, e do compromisso com a liberdade em todas as suas facetas. O segundo sentido é, em substituição ao unilateralismo do “América first”, a retomada do multilateralismo e a valorização da integração global para o enfrentamento conjunto dos desafios sociais, econômicos, sanitários, ambientais, militares e de combate ao terrorismo. Acordos, como o de Paris em favor do desenvolvimento sustentável, serão revalorizados e organismos multilaterais receberão o prestígio que merecem.

Aqui no Brasil temos muito a aprender e mudar. Dissolver o clima de contaminação ideológica das teorias da conspiração reinantes. Não há plano macabro e secreto da China de implantar o comunismo em escala global através da vacina, do 5G, ou seja lá do que for. Não há uma armação diabólica e um fio condutor ligando a nova constituição do Chile, a vitória da esquerda na Bolívia, o moribundo governo Maduro e o fracasso peronista na Argentina. É preciso urgentemente recuperar as melhores tradições diplomáticas brasileiras que sempre advogaram uma postura independente, profissionalizada, pragmática e sem alinhamentos automáticos. Não deveríamos ter saído da ideologização introduzida pelo petismo de um “terceiro-mundismo equivocado” para o extremo oposto de um alinhamento político e ideológico absoluto e sem resultados com Donald Trump.

Por último, o processo eleitoral jogou luzes sobre aspectos em que o Brasil está muito melhor que os EUA. Isto é uma verdadeira vacina contra o nosso suposto “complexo de vira-lata” ou de “pária internacional”. Temos um sistema público de saúde (SUS) mais bem resolvido que o americano, apesar de nosso investimento público por habitante ao ano ser nove vezes menor do que nos EUA (US$ 500 dólares aqui e US$ 4.500 lá). E, sem dúvida, o nosso sistema de eleição do presidente da República e de apuração é muito superior.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB- MG)


Marcus Pestana: O nevoeiro e o vácuo de liderança

Tancredo Neves assinalou certa vez, com a experiência de quem viveu muitos momentos tensos e decisivos: “A esperança é o único patrimônio dos deserdados, e é a ela que recorrem as nações, ao ressurgirem dos desastres históricos”. O mundo inteiro ainda assiste apreensivo e perplexo o furacão que devastou 2020, a partir da explosão pandêmica da COVID-19. Para despertar esperança, estadistas e líderes políticos precisam de firmeza, clareza, capacidade de previsão e compartilhamento convincente sobre os rumos a serem seguidos. Mas a sociedade não se alimenta só de retórica e promessas, quer ações e resultados.

Confesso que está difícil, no Brasil de nossos dias, ser um “realista esperançoso” como queria Ariano Suassuna. A cruzada contra a “vacina chinesa”, o fato de o próprio governo desestimular a população a se imunizar e a permanente exaltação de “medicamentos milagrosos” contra a COVID-19 não formam propriamente um quadro otimista. Tantos desafios e a energia sendo desperdiçada em polêmicas inúteis. Como diria Nelson Rodrigues é óbvio ululante que só serão oferecidas à população vacinas registradas na ANVISA, portanto seguras e eficazes. Assim como é uma sonora idiotice achar que há um plano diabólico do Partido Comunista Chinês por trás de sua vacina.

Se o horizonte no front da saúde pública é turvado pelo nevoeiro, na economia o cenário também é confuso e preocupante. O ufanismo governamental pode até tentar pintar de cor de rosa a realidade, mas o Brasil fechará o ano com uma dívida pública equivalente a 100% do PIB, um déficit primário de cerca de 860 bilhões, títulos do Tesouro Nacional sendo negociados com prazos cada vez mais curtos e juros cada vez mais altos, dólar batendo recordes de valorização e o mercado financeiro e de capitais nervoso e desconfiado.

Não é para menos. Amanhã entraremos em novembro e faltarão apenas oito semanas de trabalho parlamentar. A LDO ainda não foi votada. A Comissão Mista de Orçamento sequer foi instalada. O Orçamento Geral da União, que é a bússola necessária para sinalizar como lidaremos com a enorme restrição fiscal em 2021 e afastar especulações sobre experimentos heterodoxos e extravagantes, poderá não ser votado. As propostas de emendas constitucionais do pacto federativo, emergencial e dos fundos públicos e suas variantes, que poderiam flexibilizar a execução orçamentária, descansam empoeiradas nas gavetas. A dois meses do final do ano, os 64 milhões de brasileiros beneficiados pelo auxílio emergencial durante a pandemia não têm ideia do que ocorrerá em janeiro. E os 17 setores desonerados? Qual a previsão para o início do próximo ano? Nenhuma.

As reformas tributária e administrativa empacaram diante da falta de apetite reformador do governo. As privatizações naufragaram no vácuo de liderança e de apoio parlamentar. Medidas desburocratizantes e a abertura externa caminham a passo de tartaruga. O Congresso, que tanto tem a deliberar ainda em 2020, está bloqueado em suas votações por obstrução parlamentar, instrumento clássico das oposições. Mas aqui não, é a própria base do Governo liderada pelo “Centrão” que obstruí os trabalhos.

Para Ariano Suassuna, o otimista é um tolo e o pessimista um chato. Mas está difícil ser “um realista esperançoso” diante dos fatos que marcam o final de ano de um Brasil mergulhado na pandemia.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Mais foco e menos confusão

O grande apresentador da TV brasileira, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, em seu estilo único e inconfundível anarco-pré-tropicalista, cunhou duas frases lapidares que nos servem neste grave momento de angústia e dúvidas: “Quem não se comunica, se trumbica” e “Eu não vim para explicar, mas para confundir”. Afinal, já são mais de 155 mil vidas brasileiras roubadas pela COVID-19 e a guerra ainda não acabou. No entanto, quando olhamos para o horizonte não vemos comunicação e rumo claros.

Não só a sociedade, mas também o governo e as lideranças políticas e sociais produzem desinformação. E como orientava Chacrinha, isto é fatal.
Confesso que mesmo com toda a minha experiência de 38 anos, como político e gestor público, fico estupefato com a leitura dos jornais. Por vezes sinto que estou vivenciando um misto de teatro do absurdo, filme de terror e seriado dos três patetas. É inacreditável que diante de uma crise sanitária, econômica e social gravíssima, tenhamos tal descolamento da realidade.

Contraí a COVID. Foram quatorze dias de convivência com o vírus, terminados ontem. Este vírus é traiçoeiro. Não há um padrão. Cada pessoa manifesta os sintomas e sofre as consequências de um jeito único. Baixei na UTI. Lá fiquei três dias e li o livro do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, “Um paciente chamado Brasil” (Objetiva). E enxerguei ali a dificuldade de alguém de bem, com as melhores intenções, apoiador de Bolsonaro desde o primeiro turno, querendo apenas acertar na política de combate à pandemia, para impor o mínimo de compromisso com as evidências, a ciência, a realidade, a experiência internacional e as limitações operacionais. Como às vezes a má política e a miopia ideológica podem ser nocivas ao interesse real das pessoas e do país?

Muitas pessoas não entenderam que o isolamento social e as medidas preventivas não eram para derrotar o vírus. A vitória só virá com a vacinação em massa. O período de lockdown tinha dois objetivos: estudar o vírus e preparar a retaguarda hospitalar e o sistema de saúde. Tivemos relativo êxito. Mas o despenho do Brasil e dos EUA, pra citar dois ambientes de negacionismo, são proporcionalmente muito piores do que no restante do mundo. Não há argumentação política ou ideológica possível que justifique que o Brasil tenha 2,7% da população mundial e 14% das mortes por COVID. Alguma coisa deu errado. Qual não foi a minha surpresa ao ler o noticiário da semana e ver a inútil, nociva e desqualificada discussão sobre a vacinação contra a COVID-19. Vamos pedir passaporte à vacina?

O vírus que está matando o Brasil é a falta de tolerância e diálogo. Termino com o gesto maior de dois ex-presidentes do Uruguai, que deveria servir de inspiração para o Brasil, o conservador colorado Julio Maria Sanguinetti e o líder de esquerda, José Mujica, que renunciaram ao Senado conjuntamente. Cito o trecho do discurso de Mujica:

“No meu jardim, há décadas, não cultivo o ódio. Aprendi uma dura lição que a vida me impôs. O ódio acaba deixando as pessoas estúpidas. Passei por tudo nessa vida, fiquei seis meses atado por um arame, com as mãos nas costas. Fiquei dois anos sem ser levado para tomar banho e tive que me banhar com um copo. Já passei por tudo, mas não tenho ódio de ninguém”.

Que o Brasil seja mais Mujica e menos ódio!

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Trump, Biden e o Brasil

Os americanos irão às urnas no próximo dia 3 de novembro. Será a 59ª. eleição presidencial da maior democracia das Américas. Os impactos irão muito além das fronteiras dos EUA.

O ambiente que cerca as eleições é dramático. São quase 8 milhões de infectados pela Covid-19 e mais de 216 mil mortes, diante de um Trump negacionista, que desafiou permanentemente a ciência, deseducou e desmobilizou a população em relação à prevenção e ao distanciamento social e confrontou prefeitos e governadores.

São mais de 16 milhões de desempregados e uma perspectiva de queda do PIB americano que deve superar 4%. Além disso, a questão racial explodiu nas ruas com uma radicalidade que há muito não se via, desde a morte de George Floyd.
Com seu estilo populista-autoritário, diante de tão grave situação econômica, sanitária, social e racial, Trump não refrescou, não buscou unir o país, ao contrário, jogou lenha na fogueira do dissenso, da discórdia e da polarização.

Desde a sua independência em 1783 e da Constituição americana de 1789, os EUA, ao lado da Inglaterra e França, são os grandes esteios da democracia moderna. Um abalo na dinâmica e nas instituições democráticas americanas em pleno século XXI seria um péssimo exemplo e estímulo para outros líderes populistas autoritários confrontarem os valores permanentes da liberdade e da democracia.

Nunca se gastou tanta tinta e papel para discutir a crise da democracia representativa contemporânea. Donald Trump foi disruptivo em relação ao que Steven Levistsky e Daniel Ziblatt em seu "Como as Democracias Morrem" (Zahar) chamam de princípios não escritos: o reconhecimento público da legitimidade do opositor e a autocontenção no uso do poder. Para TRUMP a desqualificação deselegante e agressiva dos oponentes e a falta de limites no uso do poder são traços permanentes.

E agora, diante de uma possível derrota, em precedente inédito e perigoso, preventivamente inocula uma interrogação sobre a legitimidade do resultado e as fraudes na futura eleição, insinuando que poderá questionar os resultados apostando em grave impasse. As instituições americanas serão testadas. Creio que este será o maior impacto no Brasil da eleição americana, até pelos laços próximos erguidos entre Trump e Bolsonaro: o fortalecimento ou o enfraquecimento da ideia de democracia.

No plano dos direitos humanos e das políticas ambientais também uma vitória de Biden impactará fortemente as relações Brasil/EUA. Biden, como vice-presidente de Obama, entregou à época farta documentação ao Brasil sobre o período do regime ditatorial e a prática da tortura e provavelmente valorizará o tema dos direitos humanos. No plano ambiental, o Brasil terá que mostrar serviço no compromisso com a sustentabilidade para poder exigir o apoio internacional a que faz jus.

Nas negociações econômicas, será necessário retomar o velho e bom pragmatismo brasileiro. Incluindo aí a licitação do 5G nas telecomunicações e a negociação das barreiras comerciais que obstruem o comércio externo bilateral.

Apesar da amizade dos presidentes Trump e Bolsonaro, o comércio entre os dois países deve ser 25% menor em 2020 em relação ao ano anterior. Ou seja, “amigos, amigos, negócios à parte”.

A eleição de Biden parece provável, mas não é certa. Se ocorrer, o governo brasileiro vai ter que realinhar sua postura.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: O dilema das redes e o futuro de todos nós

Ninguém ousa negar a centralidade das plataformas digitais e das redes sociais na vida contemporânea. Mas, cada vez mais se ascende a polêmica sobre a crescente capacidade de manipulação das gigantes da comunicação digital. Os efeitos positivos das redes sociais são inegáveis. Mas a polêmica que ganha corpo é: a que custo? Quais são os efeitos colaterais? As disfunções estariam superando os benefícios?

Já recomendei aqui dois filmes da NETFLIX, o documentário “Privacidade hackeada” sobre a manipulação de dados do Facebook na eleição de Trump em 2016, e o drama polonês “Rede do Ódio”, sobre consequências dramáticas da manipulação política das plataformas. Agora em setembro foi lançado o documentário de Jeff Orlowsky, “O dilema das redes”, que vem despertando enorme polêmica. Para alguns, exagerado e sensacionalista. Para outros, um grave alerta sobre o futuro que estamos construindo.

O “Dilema das redes” não se atém à perspectiva política. Vai além, denuncia dos aspectos psicossociais da influência nas mudanças dos padrões de comportamento, principalmente nas novas gerações. A partir de depoimentos de ex-executivos do Facebook, Google, Twitter e da teatralização de uma família impactada pela exacerbação do uso da internet, há uma exposição nua e crua das vísceras das redes sociais. Fora os exageros, é assustador. Todos os pais deveriam assistir para interagir melhor com seus filhos sobre o tema.

O documentário revela como a lógica das redes é nos capturar, nos tornar compulsivamente dependentes, viciados mesmo, a partir de uma associação entre psicologia humana e tecnologia da informação. Rolagem automática e sem fim, notificações, curtidas, falsas recompensas, likes, são mecanismos desenvolvidos para nos tornar “prisioneiros das redes”, com graves repercussões na saúde mental e no bem estar de todos nós. “Apenas dois tipos de indústria chamam clientes de usuários: a de drogas ilegais e a de tecnologia da informação” é uma frase forte do filme. Penso nas mesas de bares e restaurantes com todos ligados em seus smartphones e ninguém conversando.

Outra afirmação contundente é: “Se você não paga por algo, saiba que você é o produto”. As grandes redes faturam bilhões de dólares em publicidade e fazem isso pelos dados que têm. O produto certo para a pessoa certa. Senti isso pessoalmente. Foi só fazer três compras por e-comerce numa mesma importadora de vinhos, para meu timeline do Facebook ficar coalhado de ofertas de outras importadoras. Tudo indica que “fui vendido”. Isto aconteceu com produtos relacionados ao Flamengo, a imóveis e até artistas.

Mas há consequências mais graves: o aumento da depressão e dos suicídios infantis e juvenis, a explosão de fakenews que se propagam seis vezes mais que a verdade “que é chata”, o tempo gasto que impede a relação humana direta com a família e amigos ou o deleite com a boa arte, o bullyng virtual opressivo, a alimentação do discurso do ódio e de teorias da conspiração, o estímulo à radicalização da polarização política, a deformação do processo de formação da autoestima e o nascimento de uma cultura rasa, superficial e agressiva.

Precisamos urgentemente conversar sobre isso. Ou teremos um mundo cada vez mais perigoso e desinteressante.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Orçamento, tributos e renda mínima

A Lei Orçamentária é peça central na democracia. Busca ordenar a aplicação dos recursos coletados pelo governo junto à sociedade na forma de tributos, e explicitar de forma transparente o perfil do gasto governamental.

Para quem não se alinha a perspectivas demagógicas há a consciência de que o orçamento não é um saco sem fundo. Há a famosa, e às vezes frustrante para muitos governantes, restrição orçamentária. A sociedade admite certo nível de carga tributária sancionada politicamente e sabemos que ela no Brasil já é alta. E se as receitas são finitas, as despesas não podem ser ilimitadas.

Isto impõe inevitavelmente um conflito distributivo embutido no orçamento. Ao se destinar muito a salários e previdência, sobra menos para as políticas de educação. Se gasto muito com incentivos e subsídios fiscais, os recursos disponíveis para a saúde e a segurança serão menores. E assim por diante. Governar é fazer escolhas. E não adianta apelar para palavras mágicas como “vontade política”. Déficits e endividamento irresponsáveis são irmãos gêmeos da inflação, da fuga de investimentos e de juros altos.

A situação fiscal já era gravíssima no quadro herdado do Governo Dilma. Em função disso, como âncora de credibilidade, o Congresso Nacional aprovou o teto de gastos, no Governo Temer. Com a eclosão da pandemia, situação absolutamente extraordinária, foi necessário ampliar os gastos à custa da elevação da dívida pública. Agora, a realidade bate à porta. Precisamos ampliar gastos com o SUS e mantermos abertos os mais de dez mil leitos de UTI criados para enfrentar o coronavírus. Necessitamos equacionar as questões da renda mínima e da desoneração da folha. E o dinheiro é curto, o equilíbrio fiscal essencial e é grave a situação do déficit e da dívida.

O ex-presidente Fernando Henrique sempre afirma que o mais importante é o governante oferecer um rumo ao país. E isto está faltando. Não há um plano global e concatenado para atacar toda esta complexa situação. Ao contrário as propostas surgem e somem de forma desordenada e errática. Em um momento fala-se na volta da CPMF, imposto de baixa qualidade, regressivo e cumulativo, rejeitado pela população e pelo Congresso Nacional. Recentemente, o governo anunciou o financiamento do “Renda Cidadão” com recursos do FUNDEB, o que é um absurdo porque só a educação pode dar resposta definitiva à pobreza e a miséria, e com a postergação do pagamento dos precatórios, que muitos interpretaram como uma “pedalada fiscal” contra o teto de gasto.

De onde viriam então os recursos? Dá trabalho, mas não há escolha. É fundamental uma reforma tributária que não só simplifique nosso sistema, mas também corrija graves distorções com as faixas mais ricas da população pagando proporcionalmente muito menos impostos que a classe média e os mais pobres. Além de um corte progressivo e firme de incentivos e subsídios fiscais de eficácia questionável. É essencial uma reforma administrativa com efeitos imediatos que combata privilégios e desperdícios, dando mais eficiência ao governo. E uma parte do ajuste inevitavelmente teria que vir do crescimento econômico, totalmente possível, se houver uma estratégia global e articulada, clara e crível.

Como disse o filósofo romano Sêneca: “Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: O futuro da economia brasileira

O projeto “O Brasil pós-pandemia”, levado a cabo pelo PSDB e pelo ITV, tem procurado dialogar com grandes economistas como Armínio Fraga, Pérsio Arida e Edmar Bacha.

Armínio Fraga tem demonstrado que retomada do crescimento e combate às desigualdades são faces da mesma moeda. Acredita que se houver clareza e coragem é possível empreender um ajuste que coloque a economia nos trilhos do desenvolvimento e da equidade social.

Mas é imprescindível um vigoroso ímpeto reformista que consiga produzir uma economia em torno de 8 a 9% do PIB para criar o espaço fiscal necessário e viabilizar investimentos na qualificação do sistema educacional, nas políticas de inovação, no fortalecimento do SUS e no estabelecimento de programas de renda mínima. Além disso, cerca de 3% do PIB deste esforço deveria ser direcionado para a recuperação do superávit primário, condição necessária para evitar a deterioração do endividamento público.

Segundo Armínio Fraga, o ajuste viria das reformas que diminuam o comprometimento do gasto público com o funcionalismo e a previdência, que chegam a 80% das receitas e do corte substancial de gastos tributários que já consomem mais de 300 bilhões de reais por ano.

Na mesma linha, Pérsio Arida crê que a reforma do Estado é essencial. Mas assinala que muito pode ser feito além das reformas estruturais como uma intensa abertura externa e a aceleração do programa de privatizações.

Para ele, também a melhoria do ambiente de negócios a partir do fortalecimento da segurança jurídica e de um clima político mais confiável, são absolutamente essenciais. Reafirma que o aumento da produtividade é imprescindível. Acredita que melhorar a imagem do Brasil no exterior, abalada por questões ambientais e alinhamentos equivocados, é também peça chave. Assim como enxugar nossa Constituição, prolixa e detalhista, que amarra decisões importantes.

Já Edmar Bacha nos provocou: porque o Brasil, que foi o país que mais cresceu do pós-guerra até 1980, não realizou seu potencial? Deixou claro que o crescimento econômico depende de um círculo virtuoso entre poupança, preço dos bens de capital (máquinas e equipamentos), aumento do estoque de bens de capital, gerando crescimento e incrementando a poupança. A poupança pública foi estrangulada pela crise fiscal, derivada do aumento exponencial dos gastos correntes e a poupança privada, pelo aumento contínuo da carga tributária e do Custo Brasil. Ainda assim, acredita que o colapso do crescimento se deu mais pela queda acentuada da produtividade e do aumento dos preços dos bens de capital.

Comparou a renda per capita brasileira que em 1950 era 120% maior que a da Coréia do Sul e em 2018 era 25% da coreana. Associou diretamente as trajetórias divergentes dos dois países ao grau de abertura externa. O comercio externo (importações+exportações) representa 125% do PIB na Coréia e apenas 25% no Brasil, o que afeta a competitividade e a produtividade da economia. O caminho apontado por Edmar Bacha: abertura externa, mas não só isso. Superar nossas deficiências na educação, na infraestrutura, no sistema tributário, nos gastos com funcionalismo e previdência, no clima de incerteza política e na sustentabilidade da dívida, são ações complementares centrais.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: As lições da pandemia

Chegamos a mais de 135 mil vidas brasileiras perdidas para a COVID-19. Lá se vão seis meses de pandemia. Todas as guerras e as grandes crises promoveram além de vítimas, mudanças, inovações e novas oportunidades. Além da tristeza, ficam as lições.

O primeiro aprendizado é que, apesar de nossa federação não garantir o grau de autonomia como nos EUA aos entes subnacionais, e os municípios não serem, diferente do Brasil, componentes da estrutura da organização federativa na maioria dos países, e o Supremo Tribunal Federal ter decidido unanimemente em abril que além do governo federal, governos estaduais e municipais tinham competência para determinar regras de gestão da pandemia em seu território, a coordenação federal é imprescindível.

O governo federal fez uma interpretação torta da decisão do STF e renunciou à liderança nacional. Transferiu para governadores e prefeitos toda a responsabilidade de gerir a situação de crise. E mais, numa postura negacionista, sinalizou contra a estratégia de isolamento social, entrou em conflito com estados e municípios, politizou a questão da cloroquina, abriu mão de centralizar a compra de equipamentos e medicamentos – atitude que evitaria várias situações de desabastecimento e corrupção- e deixou de orientar corretamente a população. Outro legado importante é a percepção da centralidade da comunicação social nas políticas públicas. Enquanto tínhamos as entrevistas diárias do então ministro Luiz Henrique Mandetta se estabeleceu uma relação de confiança, empatia e de tranquilidade social, na medida do possível.

Havia um rumo. Depois que o governo central parou de se comunicar com o país ou passou a emitir sinais equivocados, a população se sentiu órfã e insegura em relação a medicamentos, isolamento social, vacinas, prevenção, testes, etc. Aprendizado importante será a valorização do SUS, da atenção primária e das ações de prevenção em saúde. Nós, gestores do SUS, sempre tentamos mostrar que, apesar de todas as dificuldades financeiras e de gestão, o sistema tinha uma boa arquitetura e segurava a barra. Os dados reafirmam as desigualdades brasileiras. A mortalidade foi maior entre pobres e negros.

A mortalidade foi maior nos hospitais públicos do que nos privados. Mas, no limite de suas forças, o SUS deu conta do recado. E ficou claro que nos próximos anos não haverá recursos abundantes adicionais para o SUS, nem aumento da renda das famílias que as permitam contratarem planos privados.

Por isso, ao invés de erguermos “Muralhas da China” temos que perseguir o diálogo entre o SUS e a saúde suplementar, numa parceria que produza ganhos múltiplos. Os ensinamentos da crise são vários, mas o espaço aqui é curto. Sem saudosismos de estratégias cepalinas de substituição de importações dos anos de 1950, temos que estar atentos à necessidade de seletivamente termos produção local de itens essenciais para não ficarmos tão dependentes em momentos assim de países como Índia e China.

Também é impressionante a desburocratização que ocorreu durante a crise. Decisões que demoravam anos foram decididas em semanas. Fica a lição: é possível um governo ágil. Gostaria de falar sobre a mudança nos processos de trabalho, home work, tele-saúde, tele-educação, inovações e e-comerce, solidariedade social, mas o espaço acabou.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Acima de tudo a liberdade e a democracia

O grande legado do Século XX, com o desfecho da “Era dos Extremos” como descreveu Eric Hobsbawm, foi, a meu juízo, a vitória das ideias de liberdade e democracia como valores universais e permanentes. Ainda que sobrevivam regimes autoritários mundo afora, o ideal democrático permanece sólido como o grande horizonte utópico neste início de Século XXI. Mostra disso são a impressionante mobilização popular na Belarus, as reações às ações desestabilizadoras de Trump no processo eleitoral em curso nos EUA e a resistência ao crescimento do populismo autoritário de extrema-direita em diversos países do planeta.

Há, evidentemente, ameaças e tensões que colocam em xeque a democracia contemporânea. Nunca se discutiu tanto a crise da democracia representativa. Há desafios a exigirem respostas urgentes. Mas não há outro caminho a não ser a democracia, invenção humana com suas virtudes e pecados, e que impõe um diálogo profundo e sincero entre conservadores, liberais, socialdemocratas, socialistas democráticos que convergem em torno da defesa da liberdade e rechaçam qualquer alternativa que rompa o Estado de Direito. Em um mundo e um país mergulhados em radical polarização entre os extremos, que alimentam suas bolhas sectárias, privilegiando a promoção do dissenso e não a política como ferramenta de construção de consensos progressivos através do debate democrático, temos nós, os democratas, a obrigação histórica de criarmos canais de diálogo para o fortalecimento da democracia e das instituições republicanas.

Acabei de ler o ensaio CHAMADO DA TRIBO, de Mário Vargas Llosa, onde o autor, com sua habitual qualidade de texto, narra sua trajetória de conversão do socialismo ao liberalismo, motivada pelas decepções com o socialismo real e o encontro com o liberalismo através de autores como Adam Smith, Ortega y Gasset, Hayek, Karl Popper, Raymond Aron e Isaiah Berlin.

Mas o que chamou atenção na leitura foi o vasto campo de diálogo possível entre conservadores, liberais e progressistas e a convergência que pode ser construída na constituição de um polo democrático para resistir aos apelos e às ameaças dos projetos extremistas, autoritários e radicais.

Temas como liberdade política, de imprensa, de organização e expressão; direitos individuais e valores morais – onde os conservadores são resistentes; papel do Estado no mundo contemporâneo, limites fiscais à expansão do “Welfare State”, ação mais regulatória do que empresarial, parcerias com o setor privado e o terceiro setor; liberdade econômica; equalização de oportunidades com foco prioritário no setor educacional e programas de renda mínima; descentralização e desconcentração do poder; combate à corrupção e compromisso com o reformismo; formam uma bela agenda onde naturalmente não haverá convergência plena, mas que tem que ser enfrentada para a construção de um programa de ação das forças democráticas.

Há poucos meses assistimos perplexos manifestações em favor de um novo AI-5 e do fechamento do Congresso Nacional, com a reinstalação de um regime autoritário. Felizmente, os desdobramentos da realidade e a reação dos setores democráticos desmontaram este cenário de confrontação.

Cabe a todos que acreditamos na democracia sacudir a poeira de certa inércia que nos abraçou desde 2018 e construir uma nova visão de futuro para o país.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)