Marcus André Melo

Marcus André Melo: Por que o STF está na berlinda?

O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques

 “Por que eu vou ser o único presidente da Argentina a não ter a sua própria Corte?”

Foi assim que Carlos Menem (1930-2021) justificou sua iniciativa de criar uma maioria na Suprema Corte argentina. O caso ilustra um paradoxo já identificado na literatura: um Judiciário independente é difícil de emergir nos contextos em que se faz mais necessário; e fácil de se consolidar onde ele não importa.

Nas democracias maduras, como a Inglaterra, a Suprema Corte não importa muito. Tanto que uma só foi criada no país em 2009. Há um equilíbrio institucional robusto que dispensa não só sua existência mas também a adoção de uma constituição escrita.

Em regimes autoritários, as cortes importam pouco porque neles elas são facilmente manipuláveis. O efeito é não linear: elas importam muito nos casos intermediários. É nos casos de mudança de regime ou alternância de poder entre forças políticas díspares que o Judiciário adquire centralidade política. Nas democracias estabelecidas isso só ocorre em situações muito raras (EUA sob Trump). Estou tratando aqui de centralidade política; não protagonismo em questões morais e comportamentais.

No caso do STF, sua centralidade política alcançou contornos sem paralelo em democracias. Seu hiperprotagonismo é magnificado por três fatores: seu papel como corte criminal em contexto em que ocorreu um dos maiores casos de corrupção já registrados e que atinge uma massa inédita de agentes políticos, inclusive três presidentes da República; a contenção que exerce em relação a um Executivo autoritário e populista, cujo discurso é abertamente antidemocrático; e pela elevada heterogeneidade política —que é produto da alternância— e modus operandi individualizado.

Este último se expressa no ativismo processual e produz intensa cacofonia. O individualismo é insidioso: os casos controversos em que a corte atuou de ofício, sem ser provocado (caso da Revista Crusoé), o leitmotif que deflagrou o processo foi o envolvimento de um membro do próprio Supremo nas denúncias.

E o que é muito mais grave: motivações individuais ligadas à Receita Federal e a Lava Jato parecem explicar a alteração de voto e a reviravolta ocorrida no julgamento de Lula.

Inicialmente restrito à esquerda, a ofensiva à Corte concentra-se recentemente no bolsonarismo. Como mostrou Gretchen Helmke, em análise de 472 casos na América Latina, há expressiva correlação negativa entre ataques às Supremas Cortes (impedimento de juízes, CPIs, intervenções etc) e a avaliação que desfrutam junto à opinião pública.

O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques. E seu maior desafio.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)


Marcus André Melo: Da governabilidade à democracia

O debate institucional brasileiro sofreu inflexões nas últimas três décadas

As análises sobre o arranjo institucional brasileiro sofreram várias inflexões nas últimas décadas. Embora tenha dinâmica própria, elas acompanharam o debate público mais amplo e refletiram a conjuntura.

A primeira década da democracia foi marcada por uma frustração coletiva avassaladora. O país viu a hiperinflação, planos macroeconômicos fracassados, e um impeachment presidencial.

O diagnóstico era de que o país institucional era ingovernável devido à combinação de presidencialismo, multipartidarismo, federalismo robusto, e partidos fracos. A debilidade do sistema partidário seria produto da adoção da representação proporcional com lista aberta e pela ação desorganizadora dos interesses regionais/locais.

O dilema seria, portanto, que presidentes sem sustentação parlamentar eram incapazes de aprovar a agenda do Executivo. A era FHC, no entanto, pôs em xeque o diagnóstico, e a agenda de pesquisas mudou. Os poderes do presidente —como as medidas provisórias, iniciativa exclusiva ou controle da agenda congressual— foram vistos como facilitadores da aprovação de agendas. O Congresso não se revelou obstáculo à agenda do executivo.

Mas as pesquisas passaram a mostrar que o gerenciamento das coalizões é variável chave: a governabilidade depende do compartilhamento do poder com os membros das coalizões, cada vez mais necessária dada a fragmentação partidária crescente. E que o equilíbrio que permite que esta solução não degenere em abuso de poder e corrupção é instável. Elas mostraram também que o judiciário e instituições de controle lato sensu —que se beneficiaram de robusta delegação de poderes e gradativo e inédito fortalecimento organizacional— são cruciais.

O equilíbrio institucional se desfez, dando margem a duas interpretações rivais: 1) a crise teve (tem) raízes institucionais —o presidencialismo multipartidário gera incentivos perversos, corrupção e ingovernabilidade; e 2) a crise resultou das escolhas dos atores políticos em meio a uma tempestade perfeita (exposição avassaladora de corrupção com crise econômica) e ao fortalecimento das instituições de controle lato sensu, alterando a dinâmica do jogo.

O debate que se seguiu sofreu nova inflexão: o desenho institucional deixa de ter centralidade, o foco é a democracia. É o presidente —com suas preferências e escolhas— que é o centro do debate, e não a presidência como instituição.

Se o debate nos anos 1990 centrava-se no Executivo, agora ele se desloca para o Judiciário como fonte de governabilidade, embora o foco muitas vezes é nos juízes e suas escolhas, e não na instituição, que passa por teste de estresse inédito.

*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


Marcus André Melo: Manipulação eleitoral nos EUA e no Brasil

Há justificada perplexidade em relação à governança eleitoral na maior democracia do mundo.

A criação de barreiras à participação de determinados segmentos do eleitorado é inédita nas democracias. As formas que essa exclusão potencial assumem são variadas: exigências peculiares quanto ao voto pelo correio, problemas de acessibilidade às cabines de votação ou quanto à sua localização, além de exigências quanto à identificação do eleitor.

A situação é tão crítica que os estados com um histórico de práticas excludentes têm que submeter as alterações de procedimentos ao Departamento de Justiça. No passado, tais práticas consistiam de exigências como quitação de taxas individuais ou testes severos de alfabetização, o que acabava excluindo a população negra e/ou pobre.

Entre nós a exclusão dos setores pobres é muito mais complexa. A Lei Saraiva (1881) proibiu o voto dos analfabetos; a legislação posterior referendou-a, mas a implementação era pífia. As coisas só mudam na prática com a adoção, em 1955, da cédula oficial em substituição as fornecidas pelos próprios partidos, e que permitia a violação sutil do sigilo do voto.

A nova cédula exigia que o eleitor escrevesse o nome/número dos candidatos para os vários cargos, o que acarretou uma enorme expansão dos votos inválidos. A cédula distribuída pelos partidos já continha esta informação, o que permitia que os analfabetos votassem. Prevalecia assim um equilíbrio perverso que permitia a sobrevivência política de elites rurais com controle histórico sobre um eleitorado cativo.

Os bastidores da reforma de 1955 estão disponíveis na forma de registro diário e detalhado das negociações ocorridas entre 11 e 26 de agosto daquele ano, transcritas pelo paladino da reforma, Afonso Arinos, em suas memórias. Tratava-se de uma das medidas da UDN contra o abuso de poder do getulismo, e contou com apoio ativo da Igreja Católica e do TSE, e pressão dos militares. O ator chave, o PSD (majoritário no Congresso), só retirou seu veto após a garantia de que a cédula oficial também pudesse ser distribuída pelos partidos na eleição de 1955.

Esse estado de coisas foi simbolicamente alterado com a extensão do voto aos analfabetos pela emenda constitucional 25, de 1985; a mudança radical ocorreu em 2000, com a adoção da urna eletrônica. A percentagem de votos em branco e nulos que era uma das maiores do mundo —a média para o período 1980-2000 chegou a inimagináveis 37%, enquanto na Costa Rica, Uruguai, Chile, Argentina girava em torno de 5%— caiu brutalmente.

Desde 2000 o Brasil é modelo de governança com altas taxas de comparecimento às urnas e baixas taxas de votos nulos.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


Marcus André Melo: A pandemia beneficiou os atuais prefeitos e vereadores?

Ao contrário de 2018, a eleição atual não produzirá surpresas

Há nas nossas eleições municipais uma característica singular —que não é exclusividade do nosso país— já investigada a fundo por pesquisadores, conhecida como “desvantagem do incumbente”.

O efeito é contraintuitivo pois o ocupante de um cargo pode utilizar os recursos diversos que dispõe —desde assessores à própria máquina pública— na disputa eleitoral. Isto explicaria as “taxas soviéticas” de reeleição para muitos cargos eletivos: em 2018, na Câmara dos Deputados nos EUA, a taxa de reeleição alcançou 96,7% (e ainda mais alta no nível local).

São múltiplos os fatores que explicariam as desvantagens para os incumbentes: nas democracias novas os que alcançaram o cargo sob o antigo regime gradativamente perdem poder; há muitas necessidades insatisfeitas; os partidos fracos são pouco informativos, convertendo a performance individual dos políticos na principal pista para o voto etc.

Nas eleições municipais deste ano, 3.082 prefeitos tentam a reeleição (55,3% do total), e só podem fazê-lo uma vez. Em 2016, 2.708 tentaram e pouco menos da metade —1.270, ou 46,8%— tiveram sucesso. Para os vereadores o quadro é mais vantajoso: 2/3 lograram reeleger-se.

Neste ano o quadro pode mudar: podemos esperar excepcional vantagem pró ocupantes do cargo. Sim, este é mais um dos efeitos da pandemia.

São várias as razões: o efeito “união de todos contra a emergência” beneficia quem já está no poder; os atuais incumbentes desfrutam de enorme exposição na mídia; lockdowns são obstáculos para os desafiantes; a campanha será mais curta.

Há também fatores negativos: situações de calamidade funcionam como lente de aumento sobre os ocupantes do poder executivo (não vereadores).

A maior vigilância se traduz em maior punição ao mau desempenho e mais premiação ao bom: os resultados dependerão do contexto.

O resultado líquido dessas forças contraditórias será que provavelmente os incumbentes terão mais vantagens que desvantagens, revertendo a tendência contrária.

Há no entanto uma variável nova na atual eleição cujo efeito é difícil de estabelecer: a proibição das coligações proporcionais. Ele já pode ser observado na redução de partidos na disputa eleitoral. O número médio de partidos passou de 14 para 7, como mostrou Guilherme Russo (FGV).

Por outro lado, o número de candidatos aumentou em 10% na média, e muito mais que isso nos municípios grandes, porque agora os partidos têm que alcançar o quociente eleitoral sozinhos, sem coligar-se.

A mudança já produziu também expressiva migração dos pequenos para os grandes partidos. Ao contrário de 2018, trata-se de reacomodação profunda, mas sem rupturas.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


Marcus André Melo: Na eleição norte-americana, o ganhador leva tudo

EUA: polarização nacional, eleições locais

A campanha presidencial nos EUA virou um jogo de apostas altíssimas agora que Trump poderá ter maioria estável na Suprema Corte, em um pleito que provavelmente será judicializado. Mas, se o pleito é nacional, de importância inédita, a disputa é fragmentada, estadualizada.

Isso se deve à importância no colégio eleitoral dos "swing states" —estados com muitos delegados e onde há equilíbrio de forças. Espécie de relíquia institucional, tem sobrevivido a 700 emendas constitucionais apresentadas para sua eliminação, que tiveram apoio massivo, como discuti neste espaço.

Países que copiaram os EUA nas suas constituições eliminaram o colégio já no século 19, e outros no século 20, como a Argentina (1995) e o Chile (1920).

A instituição é exemplo de regra majoritária ("winner takes all") aplicada a eleições presidenciais, mas o raciocínio vale para as legislativas.

As chances de vitória no colégio e derrota no voto popular têm origem dupla: a) o ganhador no estado escolhe todos os delegados da jurisdição: uma vitória por uma margem de 1% produz um ganho de 100%; b) o número de delegados em cada estado é a soma do número de deputados federais e senadores, o que favorece os de menor população.

Entre nós, na República Velha, valia a mesma lógica, mas para as eleições legislativas: o mais votado em cada distrito levava a totalidade das vagas em disputa (que variava de 1 a 4). Utilizamos também no Segundo Reinado distritos de um representante, como nos EUA hoje. O impacto da regra fica claro no resultado final. No limite, um partido que obtiver um terço dos votos nacionalmente, mas não for o mais votado em nenhum distrito, não obterá nenhuma cadeira.

A regra majoritária cria uma estrutura de incentivos pela qual, durante as eleições, a campanha ocorre apenas nos poucos distritos onde há equilíbrio na disputa (também chamados de "marginal districts"). Caso contrário, é como se não houvesse eleição (caso dos "safe districts"). Aos simpatizantes de partidos minoritários resta não votar ou votar no candidato que rejeite menos.

Em contraste, sob a representação proporcional, os partidos minoritários têm incentivos para disputar o voto porque conseguem obter cadeiras mesmo não sendo os mais votados. Quanto maior a magnitude do distrito eleitoral, maiores as chances de representação (desconsiderando efeitos de cláusulas de barreira e a existência de segundo turno). Por isso o comparecimento às urnas também aumenta.

Assim as regras importam e têm enorme resiliência. O localismo na eleição americana tem raízes institucionais e se insere paradoxalmente em um ambiente "desespacializado" e polarizado das redes.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).