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Marcus Pestana: 2022, cada coisa ao seu tempo

O grande político pernambucano Marco Maciel comentou certa vez com ironia: “O importante é não botar o depois antes do antes”. O ex-presidente e governador de Minas Tancredo Neves, do alto de sua experiência, argúcia e habilidade, cunhou a metáfora; “Só examine a espuma depois que as ondas pararem de bater”.

O tempo da política nem sempre coincide com a percepção e as necessidades da sociedade. A gestão da variável tempo é estratégica no jogo da política. A precipitação não é boa conselheira.

A leitura das pesquisas joga o foco muito mais nas intenções de voto do que no sentimento oculto na alma dos cidadãos comuns. Já assisti viradas eleitorais históricas.  A opinião pública é volátil, sujeita a chuvas e trovoadas. Não só as virtudes dos candidatos contam, mas também a sorte, o destino. “Tudo que é sólido desmancha no ar”. O acaso também tem o seu papel. É só lembrar o acidente aéreo que vitimou o talentoso governador de Pernambuco Eduardo Campos, em 2014, ou a absurda tentativa de assassinar Bolsonaro, em 2018. Eleição não é concurso de provas e títulos. A democracia acerta sempre no atacado e no longo prazo, e comete visíveis injustiças no varejo e no curto prazo. É um processo coletivo de aprendizagem permanente.

As decisões do STF que resultaram na reabilitação eleitoral de Lula, sem inocenta-lo, desencadearam a precipitação do debate sobre as eleições presidenciais de 2022.

A agenda da sociedade e o interesse real dos brasileiros, neste exato momento, poderiam ser resumidos em emprego na carteira, vacina no braço e comida no prato.

No entanto, o quadro político-partidário não pode ficar inerte diante de fatos novos que ocorrem. Todo cuidado é pouco para não gerar uma rejeição absoluta do eleitorado a partir da falsa percepção que os políticos só pensam em eleições e não se preocupam com a pandemia, o desemprego, a fome e a miséria.

O quadro parece clarear a cada dia. Bolsonaro será candidato à reeleição e agirá nestes próximos quatorze meses para aguçar a polarização e manter fiel a base social que o apoia. Lula será candidato a reeleição ou lançará novamente Haddad pelo PT e tentará com seu carisma e experiência reverter o desgaste derivado do mensalão, da Lava Jato e do desastroso legado de Dilma. Ciro Gomes dificilmente recuará e tentará construir pontes com o centro democrático visando compensar as perdas à esquerda, mas as convergências com o centro dificilmente cancelarão divergências substantivas que existem em termos programáticos.

A variável ainda não presente à mesa é: qual será a chapa que representará o centro democrático? O PSDB realizará prévias em outubro com seus quatro pré-candidatos: Arthur Virgílio, Eduardo Leite, João Dória e Tasso Jereissati. O DEM tem dois bons nomes, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O apresentador de TV, Luciano Huck, ainda não resolveu se entrará ou não na disputa. João Amoêdo e o NOVO estão flexibilizando seu fundamentalismo liberal e se abrindo para o diálogo. Todos estão conversando e procurando a melhor solução.

Fato é que a polarização dos extremos personificada pelo embate Lula versus Bolsonaro não é uma realidade definitiva e inabalável, como muitos cravam precipitadamente. Há um amplo espaço para a construção de uma 3ª. Via.

*Marcus Pestana, ex-deputado (PSDB-MG)

Fonte:

O Tempo

https://www.otempo.com.br/politica/marcus-pestana/subscription-required-7.5927739?aId=1.2479266


Marcus Pestana: Congresso Nacional e imunidade parlamentar

O parlamento é o centro de gravidade no funcionamento da democracia. Ali está presente a representação plural da sociedade para a construção permanente dos marcos constitucionais e legais que regram a vida da sociedade, do Estado e da economia e um contrapeso ao poder, que não é absoluto, do governo de plantão.

No Brasil, o abismo existente entre a sociedade e o Congresso não é novidade. De 1999 a 2002, tive acesso a pesquisas nacionais de opinião pública que testavam a confiança da população em 42 instituições. Os resultados foram quase os mesmos nos quatro anos. Nos primeiros lugares vinham os Correios e o Corpo de Bombeiro, nos últimos, o Congresso Nacional e os partidos políticos. A população tende a avaliar bem individualmente o deputado que atua na sua região e mal a instituição como um todo.

Há picos de rejeição em casos como a CPI dos anões do orçamento, mensalão, Lava Jato, rejeição da Emenda das Diretas, e momentos de aproximação como na eleição de Tancredo Neves, na Constituinte de 1986, nos impeachments de Collor e Dilma.

Esta relação entre Congresso e sociedade está sendo testada mais uma vez. A votação da manutenção ou não da prisão do deputado Daniel Oliveira (PSL/RJ) que agrediu de forma violenta e desqualificada membros do STF e fez apologia da ditadura, do AI-5 e do fechamento do Congresso e do Judiciário, se desdobrou na manutenção da prisão por 305 contra 154 e na discussão da emenda constitucional sobre imunidade e inviolabilidade do mandato parlamentar.

Entre os que 154 votos contra a manutenção da prisão existem dois grupos. Os que são a favor da impunidade sempre e os que entenderam que o Supremo exorbitou de suas prerrogativas e feriu a Constituição na caracterização da flagrância do crime cometido. Mas houve crime inequivocamente. Não se pode evocar o direito à liberdade de opinião e expressão individual contra o direito coletivo à democracia e à liberdade. A questão política se colocou dentro do atual clima de polarização radical, colocando em jogo a defesa da democracia contra o golpismo autoritário. Sugiro aos incautos lerem o livro COMO AS DEMOCRACIA MORREM e assistirem o filme clássico O OVO DA SERPENTE.

Do ponto de vista jurídico a questão é mais complexa. A imunidade parlamentar e a inviolabilidade do mandato foram inseridas na Constituição como proteção à liberdade de expressão, opinião e ação política dos representantes do povo, mas nunca em relação a crimes bem tipificados na legislação penal. Os parlamentares só podem ser presos em flagrante delito de crimes inafiançáveis. O Supremo decretou a prisão do deputado Daniel com base na Lei de Segurança Nacional, que merece ser revista. O STF não é formado por analfabetos jurídicos, ao contrário, é de se pressupor que ali estão alguns dos maiores constitucionalistas e juristas do país. E, por unanimidade, viu fundamentos jurídicos para a prisão em flagrante.

A complexidade é que se tratava de um crime no ambiente da internet, um vídeo nas redes sociais, que permanecia no ar no momento da prisão, portanto o crime estava sendo cometido naquele exato momento. É diferente de um assalto ou um homicídio, quando o criminoso é preso em flagrante. Fato é que o evento ressuscitou o tema do golpismo contra a democracia e suas instituições. A violência e irresponsabilidade do deputado mereciam uma resposta firme e forte das instituições democráticas.

Ato contínuo a Câmara dos Deputados colocou em discussão a PEC que propõe novo regramento do assunto, reduzindo os poderes dos magistrados, submetendo a aplicação de medidas cautelares e mesmo a avaliação de materiais aprendidos em operações policiais à prévia deliberação do plenário do STF, tipificando os crimes que permitirão prisão em flagrante (tortura, tráfico, crimes hediondos, racismo e ações armadas). A pressa na votação não se justifica em matéria tão complexa.

Mesmo sem conhecer o texto final da relatora e o resultado que poderá ter ocorrido na última quinta, fico preliminarmente com a visão do deputado Beto Pereira (PSDB/MS): “O critério de imunidade vigente hoje é suficiente para garantir o pleno exercício da atividade parlamentar. A alteração proposta peca ao transformar parlamentares em privilegiada casta, protegida pela impunidade. Como efeito colateral seremos contaminados pela indignação do povo”.       

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: O novo ciclo político aberto em 2021

Fechadas as urnas no Congresso Nacional, temos novos presidentes no Senado Federal e na Câmara dos Deputados. Eleitos Rodrigo Pacheco (DEM/MG) e Arthur Lira (PP/AL), eles serão agora atores centrais na organização da agenda de debates e deliberações para o enfrentamento da pandemia, a retomada da economia e o combate aos seus graves efeitos colaterais no plano social.

Houve uma mudança significativa no quadro político. O atual governo foi produto de uma eleição disruptiva ocorrida sobre o signo de uma “nova política”. A partir daí, tivemos, em 2019, a ruptura com o modelo de presidencialismo de coalizão, predominante desde o nascimento da Nova República em 1985. Houve uma aposta num verdadeiro presidencialismo de confrontação, quando o ambiente institucional sofreu grande deterioração.

Em 2020, com a pandemia e os naturais problemas de governabilidade, foi operada uma correção de rota, com o governo se aproximando do chamado “Centrão”, antes tão criticado como expressão máxima da “velha política”.

No Senado Federal não haverá grande descontinuidade e as eleições internas não foram tão traumáticas, embora haja diferenças de estilo entre os senadores Davi Alcolumbre e Rodrigo Pacheco. Na Câmara, a mudança na correlação de forças foi radical. O “Centrão” se fortaleceu e passa a ser o grande fiador do governo. O centro democrático sofreu um abalo profundo com as divisões ocorridas no DEM e no PSDB. E a esquerda abriu uma porta de diálogo com o centro, não sofreu perdas significativas, embora a divisão tenha sido grande no PSB, e continuará sua atuação minoritária de oposição, tendendo a radicalizar sua postura.

Afastado momentaneamente o fantasma de um processo de impeachment contra o presidente da República, o importante é superar as feridas naturais em um processo eleitoral interno radicalizado, e retomar o diálogo sobre a agenda que interessa ao país. No plano sanitário, o centro de gravidade está mais no plano administrativo. Não há que se inventar a roda. O bordão tem que ser vacinar, vacinar, vacinar, rapidamente a população.

Mas, na economia e no combate ao agravamento da pobreza, precisamos avançar e muito a agenda legislativa. O movimento UNIDOS PELO BRASIL, coordenado pelo Centro de Liderança Pública (CLP) e congregando 20 instituições de caráter nacional lançou uma interessante proposta baseada em três pilares: retomada do crescimento, combate às desigualdades e crescimento sustentável. 

A agenda reformista lista 25 Projetos de Lei e Propostas de Emenda Constitucional prioritários em tramitação no Congresso Nacional, a saber: reforma tributária, lei das contratações temporárias, lei da meritocracia, lei da improbidade administrativa, lei dos privilégios do magistrado, lei do desligamento do servidor, autonomia do Banco Central, extinção do FAT e reformulação do FGTS, lei das debêntures, marco do saneamento, lei do gás, lei da governança da ordenação pública econômica, marco do setor ferroviário, lei dos penduricalhos, PEC emergencial, lei da partilha no petróleo, lei da garantia física das usinas, lei do documento eletrônico, lei do desmatamento zero, lei do licenciamento ambiental, novo marco do setor elétrico, sistema nacional de educação, PEC da renda básica.

Portanto, existe uma bússola na mesa. Existem outras. Mãos à obra, o Brasil tem pressa.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: As repercussões globais dos acontecimentos nos EUA

A democracia americana é uma grande referência mundial. Daí a repercussão global dos acontecimentos do último 6 de janeiro. O que lá acontece, respinga para além de suas fronteiras.

Como citou, certa vez, o senador americano Daniel Patrick Moynihan, “Todo mundo tem direito às suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. Donald Trump, seus “engenheiros do caos” e suas verdades alternativas creem que é possível impor uma narrativa descolada da realidade a partir da repetição exaustiva da mentira e da manipulação dos algoritmos nas redes sociais, e assim, mudar as regras do jogo político e a face da sociedade.

A insistência exaustiva sobre fraudes nas eleições foi disseminada bem antes. Diante dos resultados, sucessivos recursos judiciais alimentaram o clima golpista desejado. Paralelo a isso, se deu a pressão sobre as eleições dos delegados ao Colégio Eleitoral. Já na reta final, Donald Trump pressionou o secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, a “encontrar votos” que lhe dessem a vitória. Não satisfeito, Trump infernizou a vida de seu vice e presidente do Senado, o republicano Mike Pence, para que não sancionasse a vitória de Biden.

Todas as manobras visavam um acontecimento inédito na história da democracia americana: barrar a posse do presidente eleito e criar o ambiente social necessário para as ruidosas manifestações que sitiaram o símbolo da democracia americana, o Capitólio. A gota d’água para estimular a agressão ao Congresso foi o discurso de Trump, incentivando a marcha que resultou nos dramáticos acontecimentos ocorridos, inclusive cinco mortes. Ainda sobrevive no ar uma névoa de dúvidas sobre o que poderá acontecer até a posse de Joe Biden.

Imediatamente, houve ampla reação internacional com pronunciamentos contundentes de líderes como Macron e Merkel, entre outros, preocupados com o estímulo a reações semelhantes de agressão à democracia no restante do mundo.

O posicionamento da sociedade civil, da imprensa, de partidos, de setores empresariais, nos EUA e mundo afora, foi unânime em condenar o atentado e defender a democracia. As redes sociais bloquearam as contas de Trump.

Para o Brasil ficam lições importantes. É preciso, até 2022, fortalecer a cultura democrática. O nacional-populismo autoritário não é obra de lideranças, loucas e/ou fascistas, isoladamente. É um fenômeno social de massas a partir da insatisfação de diversos segmentos sociais e não só do núcleo ideológico radical. Precisamos defender com firmeza a integridade de nosso sistema eleitoral e da urna eletrônica, que desde 1996, produziram um dos mais modernos processos de votação e apuração do mundo. Defender as instituições, a Constituição e as regras do jogo. Estancar a tentativa de politização das Forças Armadas e das polícias estaduais e a liberalização excessiva da venda de armas e munições. As milícias ideológicas armadas existentes nos EUA ainda poderão produzir tristes fatos até a posse de Biden. Não é um bom exemplo a seguir.

Democracia é liberdade, debate aberto, contenção no uso do poder, respeito aos adversários, debate, diálogo, formação de consensos, eleição e subordinação às regras e à alternância no poder.

Os acontecimentos de 6 de janeiro fortalecem a convicção que quase nunca o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.              

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Nada será como antes

A aventura humana é sempre mistério. Permanentemente nos perguntamos: de onde viemos? para onde vamos? qual é o sentido da existência? Muitos encontram respostas na fé, outros numa causa, alguns flutuam sem nada querer explicar ou entender. A esperança é o fio condutor e o motor da invenção do futuro. Eterno pé na estrada alimentando a fé inabalável de que nada será como antes, amanhã ou depois de manhã.

O ano já vai fechando suas cortinas. O próximo já aponta na esquina. Mas é preciso reconhecer: 2020 foi um ano meio estranho, meio esquisito, meio diferente demais, o ano que parece nunca ter começado. Muitos amigos se foram. Caio Nárcio, Carlinhos, Vivi, Alfredo Sirkis. Tantas pessoas que admirava: Aldir Blanc, Sérgio Ricardo, Lan, Carlos Lessa, Flávio Migliacci, Dom Pedro Casaldaglia. Alan Parker, Ennio Morricone. A pandemia já nos levou 190 mil brasileiros.

Os últimos dez meses foram como coreografia repetitiva em torno de um samba de uma nota só: a COVID-19. Os boletins de casos confirmados e óbitos viraram rotina. As taxas de ocupação de leitos hospitalares entraram no cotidiano da população. Nunca o álcool em gel e as máscaras foram tão populares. A guerra era contra um inimigo único e invisível – um vírus originário da cidade de Wuhan, capital da província de Hubei, na distante China. Não havia dois lados, erámos todos contra o vírus. Ainda assim, alguns líderes de baixa sensibilidade e empatia humana conseguiram politizar a cloroquina, a vacina, o distanciamento social, o uso de máscaras, a origem do vírus e adotar o negacionismo diante da realidade que saltava aos olhos.

Se é verdade que mais uma vez fomos confrontados com nossas fragilidades e com a provisoriedade e imprevisibilidade da vida, nos encontramos também com o melhor da natureza humana. O ser humano é o único na face da terra capaz de aprender com as crises que aparecem à sua frente. E daí inventar, reinventar, transformar, desafiar, inovar.

Além da devastadora herança deixada pela pandemia, fica um legado positivo. Reaprendemos que vivemos numa aldeia global e que precisamos não de xenofobia e sim de solidariedade e integração internacional. Valorizamos a ciência e sua ágil corrida para produzir uma vacina. Enxergamos de forma mais nítida o quanto é importante o compromisso com o desenvolvimento sustentável, porque a destruição do meio ambiente é um tiro pela culatra. Revalorizamos o sistema e os profissionais de saúde, que provaram indo ao limite de suas forças, como são centrais na vida de todos nós.

Acordamos para a importância de uma maior atenção aos idosos, elos mais vulneráveis à pandemia. Descobrimos que é possível estar mais próximo aos filhos graças ao home office. Amadurecemos a consciência de que não precisamos de líderes truculentos, intolerantes, agressivos. A vitória de Biden, um líder sereno, moderado, experiente e conciliador, talvez seja a melhor notícia do ano. A derrota de Trump, com sua agressividade, boçalidade e suas fakenews, abre um novo horizonte para o mundo.

Clarice um dia nos alertou: “Sei que cada dia é um dia roubado da morte”. Perdermos muitos dias de pessoas queridas. Mas 2021 bate à porta. Precisamos visceralmente de esperança. E Clarice mesmo nos ensinou: “O que verdadeiramente somos é o que o impossível cria em nós”.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Marcus Pestana: Liberalismo, protecionismo e o leite

O novo mandato presidencial, na verdade, se iniciou na última semana. Isto não impediu que os primeiros cinquenta dias fossem povoados por declarações estapafúrdias e exóticas de ministros e desencontros políticos monumentais.

Mas entre os diversos tropeços e ruídos, um precisa ser discutido. Trata-se da renovação das medidas antidumping de proteção à produção doméstica de leite.

O novo ministro da economia vem de uma matriz de pensamento liberal, corrente sem grande protagonismo na história brasileira.

O liberalismo surgiu no século XXVIII, como face teórica da nascente economia capitalista, tendo sua primeira sistematização relevante feita pelo grande economista escocês Adam Smith, em sua obra seminal A RIQUEZA DAS NAÇÕES. Na concepção dos liberais clássicos a liberdade deveria ser total para os indivíduos, que ao procurarem maximizar seus ganhos, inconscientemente produziriam a melhoria do bem estar coletivo. No livre mercado, o encontro entre oferta e demanda de mercadorias produziria, orquestrado pelo sistema de preços relativos, o equilíbrio geral. A mão invisível do mercado seria o melhor maestro e não o Estado.

Depois, com a evolução do capitalismo, descobrimos que as informações entre os agentes econômicos são assimétricas, a evolução leva a formação de oligopólios e monopólios que obstruem a concorrência perfeita e o livre mercado não produziu o equilíbrio geral, mas sim crises cíclicas.

A partir daí, voltemos ao leite. Em 2001, o Brasil editou medidas antidumping em relação às importações de leite da Europa, da Nova Zelândia e dos EUA, após exaustivos estudos que demonstraram a gama enorme de subsídios ao produtor praticada por esses países. Uma coisa é a defesa da economia de mercado – e eu a defendo – outra coisa é ingenuidade no comércio internacional. Em todo o mundo, segundo a EMBRAPA, os preços do leite são administrados. A Europa, a Nova Zelândia e os EUA dominam 75% do mercado mundial.

Após 2001, a renovação das medidas que defendiam o produtor brasileiro era automática. No final de 2018, o Governo Temer preferiu deixar a decisão para o novo governo eleito. A natural dificuldade de comunicação em início de governo entre os ministérios da economia e da agricultura resultou no cancelamento da legítima defesa da produção nacional. O raciocínio da equipe econômica foi simplista. Ao verificar que a importação de leite era pequena, concluíram ser desnecessária a renovação. Na verdade, a importação era pequena porque havia a defesa comercial.

Corretamente o Governo recuou, atendendo aos apelos do agronegócio. Aí, foi uma ladainha geral: o Ministro Paulo Guedes teria sido derrotado nas suas convicções liberais, o governo teria cedido ao protecionismo anticonsumidor. Bobagem pura.

Os efeitos econômicos e sociais seriam devastadores. São um milhão, cento e quinze mil famílias produtoras. Três quartos são tipicamente pecuária familiar, que respondem por 25% da produção. O Brasil produz quase 34 bilhões de litros por ano, o mundo 800 bilhões e Minas, nove bilhões. O déficit na balança comercial do leite é de 450 milhões de dólares.

No Brasil, a abertura externa e a integração às grandes cadeias produtivas são inevitáveis. Mas o mundo globalizado demanda aumento de produtividade e de competitividade, e não a rima pobre da ingenuidade.