Marco Aurélio Nogueira

Marco Aurélio Nogueira: Sobre homens e monstros

O personagem que governa o País encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, confusão.

Ninguém pode dizer que está surpreso. Em 2018 elegeu-se um presidente com um prontuário bem fornido. Como indisciplinado, arruaceiro, com dificuldades para cumprir ordens ou bater continência. Foi expulso do Exército por insubordinação. Enquanto na ativa, quis jogar bombas em quartéis e se preocupou em agitar a tropa. Contra o que? Contra tudo, em nome de ideias vagas e de simpatia explícita pela violência, pela tortura e pela ditadura.

Elegeu-se assim uma pessoa que ao longo da vida se mostrou despreparado para as batalhas mais simples. Um personagem tosco, sem qualquer refinamento intelectual, que durante 30 anos montou um bunker com os filhos e alguns fanáticos para tomar de assalto o Estado brasileiro. O quartel-general foi a Câmara dos Deputados, de onde a malha se expandiu, envolvendo políticos tradicionais, milicianos e uma chusma de desqualificados. Nenhum técnico, nenhum intelectual, mas muitos oportunistas, à espreita para descolar uma boquinha quando a hora chegasse.

2018 foi um ponto fora da curva. Há quem prefira analisá-lo como decorrência do impeachment de Dilma Rousseff, visto como um “golpe” que teria aberto a estrada para a extrema-direita. Não é uma visão majoritária, especialmente porque não leva na devida conta a decomposição política que vinha em marcha desde antes e a responsabilidade do PT na ausência de governo, que encorpou a ponto de provocar verdadeira metástase no sistema político, misturando-a com doses cavalares de corrupção e instrumentalização da máquina pública.

Naquele ano, o desencanto do eleitorado com o PT e a esquerda somou-se à incompetência dos políticos democráticos, que se deixaram consumir pela vaidade e pela arrogância, não foram capazes de articular um programa de ação e acabaram por entregar a Presidência de mão beijada para o personagem que estava ali, pronto para agitar, na hora certa, uma hora agônica, que simbolizava o fim de uma época política.

O que assistimos hoje é só um desdobramento desse quadro. O personagem continua solto, com o mal crescendo dentro dele. Piorou muito depois que chegou ao poder. Sentiu-se em condições de fazer tudo e mais um pouco. Contou com militares a seu lado, que aderiram a ele com a expectativa de conseguir controlá-lo. Organizou uma rede de robôs e influencers para espalhar suas mensagens, suas mentiras, seu veneno. Beneficiou-se da covardia de tantos políticos, da falta de clareza dos partidos, da reprodução na opinião pública de uma ideia de que a “política tradicional” era inútil, um desperdício para o País. Foi-se mantendo, ora esperneando, ora agitando os fanáticos, ora minando as instituições. De governo mesmo, não se teve notícia.

O personagem se isolou no seu novo bunker, o Palácio do Planalto. Foi perdendo a guerra que se prontificou a lutar. Manteve a pose de que estava vencendo com a ponta da caneta, demitindo e nomeando. Fazendo lives diárias com os seguidores amontoados na porta do Palácio. Agredindo e ofendendo os que ousavam discrepar ou fazer fluir a informação, como os jornalistas.

O monstro passou a dominar por completo o personagem. Encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, desencontro, horror, confusão. Adubou esse habitat e fez dele a rampa de lançamento para seguir atacando a população, os políticos, o STF.

Manteve a ressonância entre os fanáticos, como era de se esperar. Eles são como o rebanho que se deixa arrastar para lá e cá. Batem bumbos, fazem carreatas, agridem e ameaçam.

O personagem foi sendo levado pelos aplausos fáceis, tirando vantagem da lentidão das instituições, que não reagem com rapidez, jogando um partido contra outro, governadores contra prefeitos, povo contra povo.

Agora que o caldo está entornando, algumas perguntas ficam soltas no ar.

Como foi possível que um País como o nosso tenha chegado a esse ponto?

Onde estão as figuras “responsáveis” que integram o governo, que nada falam, nada fazem, a tudo assistem como se se tratasse de uma comédia bufa ou de um drama de horror? Continuarão escondidos atrás da “prudência”, da “minimização de danos”, enquanto o fogo se alastra na Esplanada e invade recônditos inesperados?

Onde estão os democratas ativos e responsáveis, permanecerão adormecidos, confusos, olhando para urnas, fazendo cálculos mesquinhos, bem nessa hora em que boa parte do destino nacional pode estar sendo definida? Onde estão os grandes da República, os chefes das instituições, os defensores das melhores tradições?

E os eleitores que sufragaram o personagem em 2018, continuarão a vê-lo como uma solução, como o “mal menor”, agora que o monstro tomou conta daquele corpo e daquela mente de modo irremediável?


Marco Aurélio Nogueira: O vírus, a era global e a oportunidade que se abre

Se conseguirmos suportar o impacto da doença e não formos muito atrapalhados por governantes inescrupulosos, o vírus será controlado. A pandemia, porém, deixará marcas profundas

Pandemias já houve muitas na história. Todas produziram abalos e levaram a grandes transformações. Mas nenhuma foi como está sendo a do novo coronavírus.

A gripe espanhola (1917-1918), “a mãe de todas as pandemias”, foi uma variante mutante do vírus Influenza. Os cálculos sugerem que de 30 a 40% da população mundial foram infectados, com cerca de 50 milhões de mortes. Só no Brasil morreram 35 mil pessoas. Os números são imprecisos, mas indicam bem a letalidade da doença.

Antes dela houve a epidemia da cólera (1817-1824), que matou milhares de pessoas em praticamente todos os continentes. Causada por uma bactéria intestinal, a doença continua produzindo estragos pelo mundo, especialmente onde faltam condições básicas de saneamento básico e higiene.

A “peste negra”, a peste bubônica, causada por uma bactéria presente em ratos pretos assolou o norte da Europa e atingiu a China, o Oriente Médio e a Rússia, entre 1347 e 1352. Calcula-se que provocou mais de 25 milhões de mortes, ou seja, cerca de 1/3 da população europeia à época.

Depois da gripe espanhola, o mundo foi periodicamente sacudido por doenças pandêmicas. Quanto mais o mundo se integrou e manteve acesas as turbinas do produtivismo, mais os problemas se tornaram comuns a todos. Em 1957 houve a Gripe Asiática (2 milhões de mortos), dez anos depois a Gripe de Hong Kong (H3N2), que matou 1 milhão de pessoas, em 2009 foi a Gripe Suina (H1N1), que chegou a 187 países e provocou cerca de 300 mil mortes. De 1980 em diante, mais de 20 milhões de pessoas morreram devido a complicações da AIDS, causada pelo vírus do HIV, transmitido sexualmente. Uma epidemia trágica, ainda sem cura ou vacina.

O que há de diferente na pandemia do novo coronavírus?

Primeiro de tudo, ela é a primeira pandemia de uma época categoricamente global. Coincide com a expansão dos mercados, a porosidade das fronteiras nacionais, o desenvolvimentismo produtivista e antiecológico, a alta mobilidade e a circulação intensa das pessoas. Tudo isso facilita enormemente a que o vírus se espalhe. A própria estrutura complexa da vida atual, com seus componentes de fragmentação e individualização, contribui para que tudo reverbere com intensidade e meio fora de controle. Há risco, insegurança, incertezas, que se integram à experiência da vida cotidiana e fazem, entre outras coisas, com que todas as decisões se tornem dilemáticas. Ao mesmo tempo, vamo-nos dando conta do que há de intolerável e inadmissível no modo como vivemos: a desigualdade, o racismo, a miséria, a falta de condições dignas de existência, o desperdício, à agressão ao meio ambiente.

A época também é de crise da política e da democracia representativa. Isso abre buracos complicados entre os cidadãos, os legisladores e os governantes, dificultando a que as decisões tomadas no vértice estatal repercutam positivamente na vida comunitária. Os cidadãos desconfiam de seus governos e tendem a problematizar tudo o que parte deles. Recusam-se a obedecer, em nome de suas verdades e da convicção de que os governantes nada mais são do que “politiqueiros”. Sem uma dose mínima de “obediência”, uma pandemia como a do COVID torna-se quase impossível de ser debelada.

Como lembrou Byung-Chul Han, filósofo coreano que vive em Berlim, uma das vantagens dos asiáticos é que eles aceitam com facilidade a autoridade do Estado e suas ordens. Estariam mais predispostos a aceitar um Estado autoritário, que procede por tecnologia da informação e controles digitais. É um recurso de sobrevivência, mas também pode ser a porta de entrada de formas ditatoriais e não democráticas de organização da comunidade política, com controles permanentes sobre tudo e todos.

Em segundo lugar, a pandemia atual convive com redes e trocas frenéticas de informação. Isso, por um lado, é excelente, pois facilita a comunicação e a cooperação entre médicos, pesquisadores e cientistas. Ter dados disponíveis e acessíveis é uma poderosa ferramenta de conhecimento e gestão. A malha digital e a inteligência artificial são preciosas seja para monitorar ameaças, seja para debelá-las.

Por outro lado, porém, essa nova estrutura de informação e comunicação promove a produção incessante e a disseminação de notícias falsas, boatos e mentiras, que geram confusão e dificultam a gestão do problema. É o que a OMS chamou de “massivo infodêmico”, algo como um vírus que espalha desinformação e ideologias regressivas, anticientíficas e irracionais. No caso concreto do COVID-19, ativistas desse tipo – humanos e robôs, sistemas programados para disparar mensagens – estão na dianteira do “negacionismo” obscurantista (recusando-se a reconhecer a pandemia, o aquecimento global e até a curvatura da Terra) e da pregação de saídas nacionalistas hostis ao entendimento entre os Estados.

O COVID-19 irrompeu num momento de exuberância científica, de conhecimento ampliado, de reconhecimento do valor da ciência e de suas aplicações na área médica e sanitária.

Se os humanos conseguirem suportar o impacto inicial da doença (o confinamento) e não forem prejudicados por governantes inescrupulosos, que manipulam politicamente o problema e duvidam de sua gravidade, é de esperar que o vírus seja controlado. A vida, porém, não será mais a mesma. A pandemia deixará marcas profundas na experiência humana individual e coletiva, afetando a economia, o modo como se trabalha, os relacionamentos, a política.

O sistema produtivo conhecerá crise profunda, agravando ainda mais o mundo do trabalho, muita coisa nova surgirá, os desafios serão grandiosos. Será difícil que o neoliberalismo se reponha e uma nova versão do Estado social baterá às portas. Em meio a dor e medo, poderá se abrir uma oportunidade para que se comece a por em xeque o desenvolvimentismo produtivista, com sua cegueira ecológica, climática, ambiental, sua voracidade predatória. Poderá ser um bom momento para que se recupere a ideia, tão mal aproveitada antes, de “sustentabilidade”.

O problema é que falta uma alavanca que faça a roda reformadora girar: política democrática, programas de ação, agentes organizados que unifiquem os cidadãos e pautem os governos. Há um “vazio” existencial e político que impede a materialização de propostas democráticas consistentes. Caso não se reverta essa situação, a pandemia causará um efeito negativo adicional: levará à acomodação dos interesses dominantes e à reprodução (modificada em maior ou menor grau) do desenvolvimentismo prevalecente, com sua voracidade destruidora.

Poderá até ser pior. Em vez de reformas para frente, a pandemia poderá impulsionar o ressurgimento do “nacionalismo”, das pulsões “patrióticas”, em detrimento dos esforços de articulação internacional, a imposição do unilateralismo no lugar do multilateralismo. O que levará de roldão a democracia e parte importante do que há de humanismo, fraternidade e liberdade na experiência moderna.

*É professor titular de Teoria Política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: João Batista de Andrade explora vingança em novo livro

Trama se passa na periferia e demonstra que uma literatura engajada só se completa se tiver valor artístico

A relação entre cinema e literatura integra a história da cultura moderna. Já foi cantada e decantada, seja na consideração das contribuições recíprocas entre as duas grandes artes, seja naquilo que cineastas incorporam, em suas trajetórias, da ficção literária.

Há, também, a direção oposta, a do cineasta que transfere sua experiência fílmica para a literatura. A pulsão de filmar e a pulsão de escrever se entrelaçam, fazendo com que palavras se transformem em imagens e cenários pungentes, que envolvem, mobilizam e emocionam.

João Batista de Andrade tem uma biografia artística concentrada no cinema. É um dos importantes cineastas brasileiros, autor de filmes que marcaram época, como Doramundo (1977), o premiadíssimo O Homem que Virou Suco (1981), A Próxima Vítima (1983), O País dos Tenentes (1987), O Cego que Gritava Luz (1996). Seus filmes contam histórias de violência, centradas na experiência das classes trabalhadoras. Valem-se bastante do documentário e do telejornalismo, apurados no trabalho que desenvolveu na Hora da Notícia da TV Cultura e no Globo Repórter. Em Vlado: 30 Anos Depois (2005), Batista mostrou todo seu talento documentarista. A busca de intervenção e a crítica política compuseram-se com a preocupação de fazer cinema para construir valores na sociedade e disseminar uma visão crítica da realidade brasileira.

JBA é um intelectual público, engajado, atento ao seu tempo. Tem atuação marcante na área de política cultural. Foi secretário estadual de Cultura de São Paulo na gestão Geraldo Alckmin. Entre 2012 e 2016 presidiu a Fundação Memorial da América Latina. Em 2014 recebeu o Troféu Juca Pato como Intelectual do Ano, prêmio da União Brasileira de Escritores.

Mineiro de Ituiutaba (1939), Batista também é escritor. Perfeccionista com as palavras, delas se vale para contar histórias e abrir janelas para a realidade, com suas tensões e contradições. Acaba de lançar seu sexto romance, O manuscrito do jovem Gabriel, um relato sobre os delírios e os estalos de lucidez de personagens que falam da vida como ela é, sem suavidade e sem perspectivas, confusos, com dramas que se esparramam em um clima de solidão, crime e violência. O escritor faz deles seus interlocutores, para assim extravasar suas próprias inquietações. Prolonga na literatura o “programa estético” que amadureceu nas décadas de dedicação ao cinema.

Há uma forte pegada psicológica no Manuscrito do Jovem Gabriel. Os personagens são revirados por dentro. Atormentados, falam de frustrações, maquinações soturnas, existência sofrida, em um ambiente no qual a vida explode, despedaçada, cortada pela sordidez, pela agressividade, pela falta de perspectivas. Gabriel idolatra um “justiceiro” da periferia de São Paulo – o falecido Cabo Davino, já presente em Um Olé em Deus (1997), romance anterior de JBA –, assassino de seu pai. Preso a uma cadeira de rodas, Gabriel respira tragédia e ressentimento. Quer vingança, mas não quer sujar as mãos. Encontra no solitário César um agente para extravasar seu ódio do mundo, seu desejo de violência e exercício do poder, manipula-o, inebriando-o com relatos que o arrastam para um tipo particular de loucura. Ao narrar a história de sua amizade com Gabriel, César reflete sobre a vida. Delira, elucubra. Mastiga o passado, que ressurge como fantasma, ora na figura do “justiceiro”, ora na apresentação dos sonhos não realizados. O relacionamento entre os dois, mediado pela sombra de Davino, fornece o fio da narrativa, dando ao escritor os elementos para traçar uma rica imagem da periferia brasileira e fazer sua crítica.

Batista esclarece que o romance nasceu como uma “imposição” de sua subjetividade, “como se a vida pedisse a mim que falasse por ela própria”, com seus personagens “às voltas com suas individualidades, sua intimidade, num momento em que os laços sociais tanto incomodam e parecem perdidos”, para os quais “não existe mais o diálogo” e a política fracassou.

O escritor não alivia. Sua escrita é visceral, desnuda um cotidiano contaminado, sem nenhum polo positivo ou saída. Os personagens lidam com um mundo “que se nega e se torna inimigo de si próprio”, um buraco fundo, incompreensível e assustador, no qual prevalece “o prazer de agredir, de ofender, de contradizer, de confundir”. Vivem, como Gabriel, em busca de um “pai poderoso, capaz de proteger”. Não há “mocinhos” no enredo, somente pessoas desorientadas e vítimas. O leitor se depara com um quadro amargo da sociedade (pós-moderna) em que estamos, cada qual com seus interesses, seus planos, fantasias e ilusões, mas todos igualmente oprimidos por dinâmicas que não controlam, por redes impositivas, informações, tecnologia onipresente e quase nenhuma ideia sobre o futuro.

João Batista de Andrade é um intelectual posicionado, que transita entre a produção artística e a militância política. Mas sua criação literária está distante de um “realismo” funcional, panfletário, maniqueísta. O Manuscrito do Jovem Gabriel é uma demonstração vigorosa de que uma literatura engajada só se completa se tiver valor artístico em si mesma.

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: O bolsonarismo, o presidente e o vírus

O importante é defender as instituições, apoiar o sistema de saúde, respaldar Doria, Caiado...

Dias de pandemia pedem solidariedade, clareza, entendimento. Alimentar o confronto, a disputa, a politização é contribuir para a disseminação do mal. Exigem-se ações coordenadas, sintonia, orientação. Nenhum cidadão pode deixar de contribuir. Teremos de reaprender a viver e quanto antes desarmarmos os espíritos, melhor.

Jair Bolsonaro permanece alheio aos sinais do tempo. É assustador. Seu último discurso à Nação (24/3) foi uma provocação recheada de platitudes, mentiras e agressões. Nenhuma grandeza, nenhuma generosidade, a mesma falação colérica de sempre. Em vez de passar confiança, provocou insegurança. Continuou a radicalizar, a debochar, a fazer pouco-caso, a atacar. Brigou com as diretrizes sanitárias da própria administração e aumentou o ruído com os governadores estaduais, em detrimento da unidade federativa tão necessária. A reação foi forte, mas não houve recuo.

Sua intervenção não se deve só ao baixo nível e a uma instável condição emocional. Há cálculo nela. O olhar repousa em 2022 e no esforço para recuperar o capital político que, a esta altura, está em franca evaporação. É um cálculo rasteiro, repleto de espasmos de ódio, mesquinharia e paranoia, narrativa e ideologia. Torpedeia o bom senso, esbofeteia a realidade.

Criar confusão é um caminho clássico das manobras contra a democracia. Todo autoritário gosta de respirar o ar da beligerância. Não é diferente com Bolsonaro. O foco é confundir a população, desorganizar os sistemas, passar por vítima, para que se fomente a expectativa de que apareça a figura sinistra do “salvador”.

O presidente parece acuado e se deixa guiar pelas áreas mais extremadas de seu núcleo principal, o “gabinete do ódio”. Os ministros, salvo uma ou outra exceção isolada, batem-lhe continência. Fecham-se num mutismo incompreensível, covarde. Nos bastidores, muito ruído e informações cruzadas, indício de que o clima ficou pesado.

Há quem o aplauda e reverbere suas ideias. São pessoas encolerizadas, que trafegam pela estrada do irracionalismo. O desleixo e a irresponsabilidade de Bolsonaro são vistos como prova da disposição de não ceder à pressão dos políticos, da imprensa e dos interesses internacionais. Suas falas destrambelhadas e reacionárias são desculpadas em nome da ideia de que “antes dele era pior”. Pelas redes, o “gabinete do ódio” manda: batam nos governadores e prefeitos, que estão a causar recessão e desemprego. Os bumbos soam.

Os eleitores circunstanciais de Bolsonaro, aqueles que nele votaram para derrotar o PT, já devem ter percebido o engodo em que caíram. Mas os bolsonaristas de “raiz” permanecem ativos. Gostam do estilo grosseiro de Bolsonaro, o “mito”. São fanáticos, agressivos, ressentidos, preconceituosos, têm profunda aversão à política e à democracia representativa.

O questionamento da política democrática é uma pérola dos manipuladores do sentimento popular. Está no miolo da extrema direita atual, encontrando sua câmara de eco na figura daqueles “engenheiros do caos” tão bem analisados por Giuliano Da Empoli. Sob a bandeira do iliberalismo e do autoritarismo reúnem-se populistas, nacionalistas, ultraconservadores, neonazistas, uma fila imensa de gente com ódio no coração. Todos falam em combater os políticos, lutar contra a esquerda, fechar a nação, defender a “pátria” e as pessoas comuns.

O bolsonarismo emergiu sem base organizada, liderado por um deputado tosco e inexpressivo. É uma agitação com baixa densidade associativa. Sua reprodução se dá nas redes. Luta para erguer a Aliança pelo Brasil, uma incógnita. Está limitado pela ausência de propostas para o País, pela baixa qualidade de seus quadros, por sua escassa civilidade, pelo uso intensivo da mentira. O bolsonarista-raiz é intolerante, tem instinto persecutório e vê traidores por toda parte, sinal de uma fragilidade psíquica que se traduz em arrogância. Está também desprovido de pensadores com capacidade de elaboração intelectual. Vive do combate a inimigos imaginários. São traços que dificultam a construção partidária e levam ao canibalismo dentro da própria organização.

A pandemia é um repto à humanidade e aos diferentes países. Desafia os democratas, que precisam se articular para agir sobre a vida. Quem chegou ao governo deve mostrar que sabe enfrentar um quadro de calamidade pública. Até agora, o bolsonarismo tem sido um fiasco. Seu líder máximo explora uma crise epidêmica mortífera, indiferente à desgraça da população. Os recorrentes panelaços dos últimos dias indicam que a base bolsonarista se estreitou e muitos cidadãos estão escandalizados com a conduta insensata e insensível de Bolsonaro.

Veremos se essa tendência se confirmará. O importante, agora, é defender as instituições democráticas, apoiar o sistema de saúde e respaldar governadores e prefeitos, de Doria a Caiado, que fazem um trabalho de coordenação que Bolsonaro, na ânsia de tiranete sem preparo, jamais será capaz de fazer.

*Professor titular de teoria política da UNESP


Marco Aurélio Nogueira: Exterminador do futuro

Em termos de capacidade de gestão, equilíbrio e solidariedade, de liderança, o presidente é um fiasco. Um caso grave, sem cura.

A máscara caiu. Não há uma Presidência da República no Brasil, mas um pesadelo. A cada dia fica mais evidente a tragédia que estava anunciada em 2018 e que não foi compreendida a tempo pela maioria do eleitorado. A partir de agora, teremos de matar um leão por dia. Não merecemos isso, nem o vírus que se dissemina, nem o presidente que não governa nem lidera o País nesse momento extremamente delicado.

É simplesmente patética a foto do presidente e de alguns ministros paramentados com máscaras descartáveis. Bolsonaro foi à manifestação, abraçou e beijou um monte de gente, acha que o distanciamento social e o confinamento não passam de histeria desnecessária. Depois, posou de higiênico e cuidadoso. Feitas as fotos, se atrapalhou para tirar a máscara. Ela caiu sozinha, por inteiro. Uma figura aparvalhada, sem saber o que fazer, sem atinar para a gravidade e a dimensão da pandemia. O olhar de todos à mesa de entrevista era de gente assustada.

Dá medo ver que há quem o aplauda e continue a tratá-lo como “mito”. Pessoas assim são uma correia de transmissão, espalham ódio e vírus. Quem são elas, como justificam suas atitudes perante os demais? A chave do fanatismo explica parte do fenômeno. Estamos diante de um tipo social – o indiferente com raiva do mundo — que não surgiu hoje, mas que, de repente, se espalhou e ganhou visibilidade. Gente que pede ditadura, Estado de exceção, AI-5, no exato momento em que mais se necessita de paz, diálogo, cooperação. Gente para quem a vida em sociedade é um fardo, conflito, atrito, violência, que não está nem aí para o bom senso e o espírito público. Um perigo.

A mentira, especialmente quando contumaz, é o pior modo de enfrentar o Covid-19 ou qualquer outro vírus. Desmobiliza e confunde. Trump mordeu a língua depois de passar semanas dizendo que o vírus nada mais era que uma “manobra chinesa”. Bolsonaro segue o mesmo caminho. Passará para a História como um exterminador do futuro.

Depois de banalizar o coronavírus e debochar das medidas sanitárias de seu próprio governo, Bolsonaro encaminhou pedido de calamidade pública. Medida dura e necessária. Mas são chocantes as oscilações presidenciais, que emitem sinais contraditórios para a população e ao fazer isso aumentam a exposição ao vírus. Os panelaços dos últimos dias estão a demonstrar que o bolsonarismo regrediu alguns pontos.

Em termos de capacidade de gestão, equilíbrio e solidariedade, de liderança, o presidente é um fiasco completo. Um caso grave, sem cura. Seu despreparo, seu caráter tosco e grosseiro, só faz atrapalhar. A cada dia, mais gente está se dando conta disso.

 


Marco Aurélio Nogueira: O vírus Bolsonaro

Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial?

É difícil não se horrorizar ao ver as fotos de Jair Bolsonaro participando de um ato contra o Congresso, abraçando pessoas e apertando as mãos de seguidores.

É pavoroso constatar que existem pessoas que tratam a atual situação de calamidade pública como se fosse uma “armação da mídia”, pessoas cegas em seu fanatismo, indiferentes a milhões de brasileiros. Posam de verde e amarelo e se dizem patriotas, mas são traidores da Pátria, se quisermos falar assim.

Um presidente que infringe regras e orientações estabelecidas por seu próprio governo é uma aberração. Ele debocha daquilo que deveria ser norma de conduta. Põe em risco a saúde da população e mostra não estar à altura da crise em que nos encontramos, que é epidemiológica e mundial, mas é também política, moral, econômica. O País está parado, à espera de alguém que o lidere e governe.

Em se tratando de Jair Bolsonaro, não dá para dizer que chegamos ao fundo do poço. Dele podemos esperar coisas sempre piores, mais graves, deletérias. Trata-se de um presidente que faz do poder um jogo de vida e morte, o contrário do que se esperaria de alguém eleito para governar um País enorme, complexo, diversificado. É um exibicionista, agarrado a ‘lives’ patéticas, nas quais demonstra toda a sua grosseria, seus maus modos, seu egocentrismo, sua irresponsabilidade. Tanto pode aparecer de máscara como se estivesse em quarentena, quanto pode cair nos braços da galera que o acompanha como se não houvesse amanhã.

Bolsonaro é uma versão do vírus do fanatismo populista e retrógrado, essa monstruosidade que se espalhou pelo mundo como uma pandemia. É uma ameaça à sociedade, à democracia, à dignidade humana.

Até quando o País suportará? Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial? O presidente hoje conspira abertamente contra seu próprio governo. Seus ministros e assessores parecem achar graça em suas peripécias, pensam que não atrapalharão demais, acham que ‘o cara é assim mesmo, é o jeito dele’. E a trupe de seguidores segue atrás, batendo bumbo e tirando fotos, contra tudo e contra todos.

Aqueles que compõem o governo atual e lhe dão sustentação ou são covardes irresponsáveis, que temem fazer alguma coisa, ou estão mancomunados com a mesma fúria de destruição que o presidente exibe, de modo cada vez mais escancarado.


Marco Aurélio Nogueira: O gabinete fardado

‘Militarização’ coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente

E eis que, sem maior alvoroço, os militares voltaram a ter importante peso político no Brasil. Passaram a dominar o Palácio do Planalto, onde fica o presidente, ele também um ex-militar. Vários generais e um almirante ocupam da Casa Civil à Vice-Presidência da República.

O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às baixarias dos ideólogos.

Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. Formar-se-ia um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são imaginários.

Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.

A Casa Civil está com o general Braga Netto, militar experiente. Órgão estratégico, dele depende a coordenação governamental e a organização de um ambiente favorável no Congresso. Militares são, como todos os cidadãos, seres políticos qualificados para pensar o Estado, a comunidade política. Fazem isso, porém, com uma sólida ideia de lealdade e uma forte carga corporativa, que os impulsiona a verem a si próprios como diferentes dos demais e com interesses que precisariam ser defendidos a ferro e fogo. São treinados para “desconfiar” dos políticos, não para fazer política.

Se não tiver jogo de cintura, um general na Casa Civil pode dificultar ainda mais as relações entre o Executivo e o Legislativo. Pode, também, aprofundar a inserção das Forças Armadas no governo, com o risco de que terminem por trocar o perfil técnico e a missão institucional de proteger o Estado pela gestão dos negócios governamentais e pelos conflitos políticos a eles inerentes. Militares num governo autoritário, como é o de Bolsonaro, não beneficiam a imagem de isenção democrática das Forças Armadas. É algo que as lança no olho do furacão, ainda que sejam apenas alguns oficiais a assumir o encargo.

Um governo com uma ala militar ativa pode transitar em campo minado. Como observou o sociólogo Rodrigo Prando, em caso de rompimento com os militares o governo poderia ver-se numa crise de desfecho imprevisível. Militares sabem ocupar territórios, mas não necessariamente estão preparados para dialogar, mover-se entre ideias plurais e pressões típicas do mundo político.

No Brasil as Forças Armadas são vistas como patrióticas, disciplinadas e “desinteressadas”. Mas carregam o fardo do golpismo e do autoritarismo. Acreditam que os militares existem para salvar o País. É provável que os oficiais mais jovens não compartilhem esse fardo. A caserna, porém, é mais ampla. Seja como for, já estão dadas as condições para que as Forças Armadas contenham os seus impulsos históricos e atuem democraticamente.

A presença militar tenderá a incentivar uma postura focada em resultados estruturais, alheios ao jogo eleitoral. É onde repousa o risco de atrito com a política. Também terá de se haver com as resistências do núcleo civil do governo. A “militarização” coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente, com seu familismo exacerbado. É difícil imaginar que Bolsonaro adote uma conduta mais digna e educada, mais criteriosa com as políticas estratégicas e os interesses nacionais. A questão não é de espaço e poder de pressão, mas de biografia, estilo e modo de pensar.

Deveria ser constrangedor, para a ética militar, que as grosserias, ofensas e aberrações do presidente estejam a ser cometidas nas barbas dos oficiais que integram o núcleo principal do governo. Militares costumam ser discretos, falam pouco, cuidam da linguagem. Não deveriam lavar as mãos diante dos descalabros que jogam a Presidência da República num poço sujo e sem fundo.

O gabinete fardado dará força à tecnocracia? Vai depender, também, da capacidade que tiverem os políticos de equilibrar a balança. O Congresso tem contrastado a falta de iniciativa do Executivo no que tange às reformas e à formulação de políticas públicas. Se calibrar bem a sua atuação e reunir as forças democráticas de oposição, o Congresso poderá ajudar a que se organize uma agenda nacional e se modifique a orientação de uma população que acredita que a saída está fora da política e longe do Parlamento.

 


Marco Aurélio Nogueira: A voz dissonante de Risério

Em polêmico novo livro, o antropólogo aponta os limites e contradições da luta identitária e denuncia as polarizações políticas dos nossos tempos

O novo livro do antropólogo baiano Antonio Risério, Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, veio para desafinar o coro dos contentes. A começar do título, calculado para chamar atenção e provocar. Sem papas na língua, com critério, erudição e domínio do tema, dispara contra a cultura política e teórica pós-moderna, privilegiando em especial os movimentos identitários que, nas últimas décadas, assumiram a dianteira na contestação política e cultural, produzindo, porém, mais ruído e dissonância que hegemonia.

Risério parte do suposto de que a guinada identitária ressignificou a contracultura derivada dos anos 1960 e contribuiu para abalar a ideia de esquerda. Para ele, com a difusão das postulações feministas e racialistas radicais, teria havido um empobrecimento geral da contestação e um apagamento das possibilidades da esquerda democrática. O identitarismo produziu fissuras e divisões justamente onde a unidade democrática mais se mostrava necessária. Fixou mentalidades gregárias fechadas em si, em vez de abertas a interações comunicativas.

Convencido da necessidade de alertar a opinião pública contra os desacertos identitários, Risério não faz concessões. Não se desvia da rota com digressões acadêmicas: seu livro é um ensaio “de intervenção intelectual e combate político frontal”. Comete excessos nessa operação, mas procura justificá-los o tempo todo: não há porque ter tolerância contra quem é intolerante e não admite divergência.

Risério quer denunciar as polarizações do nosso tempo, que estiolam o campo democrático. Sabe que sempre haverá gente divergindo de gente, um lado contra o outro. Seu problema é a polarização que se converte em intolerância e agressão, como ocorre hoje no Brasil, seja nos confrontos alimentados pelo bolsonarismo sectário, seja nas refregas identitárias. Misturando-se confusamente com as rusgas entre esquerda e direita, com a luta política cotidiana, a ênfase na identidade tornou-se combustível adicional para a exasperação verbal, a fragmentação política e o enfraquecimento da democracia.

Postulações identitárias rapidamente se tornam ideologias de mobilização e leitura do mundo, dando musculatura a pregações morais bastante discutíveis, que menosprezam a história fática e ficam a um passo de cair no fanatismo. Negros passam a hostilizar brancos como resposta a uma hostilidade que remontaria aos tempos da escravidão, feministas radicais condenam todos os homens como expressão de um machismo secular. Risério critica os “racialistas neonegros” por insistirem na negritude dos mulatos e não compreenderem que no sistema escravista brasileiro até escravos compravam escravos. Já as neofeministas radicais, que atacam um Ocidente “patriarcal” que não mais existe, fecham os olhos para a opressão sofrida pelas mulheres no mundo islâmico e nas culturas tradicionais africanas.

A batalha identitária nasceu da luta pelo reconhecimento do outro, pela afirmação da “outridade”. Sua vitória progressiva, porém, produziu o contrário, na visão de Risério. Os neo-identitários passaram a negar o outro, recusando legitimidade argumentativa aos que estão fora das agendas de identidade. O exagero irracional na defesa do “lugar de fala”, por exemplo, levaria a que somente negros pudessem falar de problemas dos negros e somente mulheres feministas pudessem abordar questões femininas.

Identitários radicais querem aceitação plena de seus dogmas. Exigem lealdade incondicional e estigmatizam quem foge de suas teses. Consideram-se donos absolutos da verdade, moralmente superiores ao resto dos humanos. Põem-se da perspectiva de um “oprimido” mais imaginário que real, a partir do qual constroem uma ideologia de autovitimização. Polarizam sempre em termos negativos: por mais que se refiram positivamente às causas e pessoas que defendem, a maior parte da energia que consomem volta-se para desmascarar e “desconstruir” adversários. Com isso, perdem-se muitas possibilidades de interação, diálogo e cooperação. O resultado é fácil de ser imaginado: em vez de avanços consistentes em direitos e políticas públicas, tem-se retração e desaceleração.

É tema central do livro. Risério está interessado em dessacralizar os que põem a identidade como questão principal e atuam como “juízes” do que é certo e errado, fechando-se em “tribos” particularistas, setoriais, que problematizam a unidade política e produzem um apartheid ao revés: para defender os diferenciados, criam mais diferença e segregação, bloqueando o diálogo e as interações. Seu objetivo é fazer com que a esquerda saia da complacência e “denuncie o fascismo em suas próprias fileiras”.

O livro abusa do conceito de “fascismo”. Ciente da reação, Risério esclarece: “emprego a expressão em seu sentido corriqueiro de tentativa de exercer controle ditatorial sobre a postura e o discurso dos outros”. É um risco assumido. Ao qualificar a esquerda identitária como “fascista”, Risério cria uma polarização adicional, que incrementa aquilo que deseja combater. Ele também não deixa espaço para que se pense o tema das identidades de modo democrático. Procede como se se tratasse de uma não-questão. Não esclarece suficientemente que sua crítica se dirige a um pedaço da esquerda que deseja alcançar o radicalismo identitário, não as preocupações com a identidade.

A crítica de Risério merece ser levada em conta, excessos retóricos à parte. Nos dias atuais, há mesmo que se recuperar perspectivas mais totalizantes, que incluam mais que excluam, que privilegiem o que é comum a todos ou à maioria. Nichos corporativistas, partidários, religiosos ou identitários travam a vida democrática, sobretudo quando se põem num círculo moral superior e se apresentam como expressão máxima da democracia.

Muitos torcerão o nariz para o livro. Mas Risério faz o que se espera de um bom ensaio político-cultural: força o leitor a pensar, a rever conceitos e explorar novas pistas.

*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: As indefinições do novo PSDB

Dória venceu a luta interna, mas não estão claras as ideias e nem definidos os parâmetros organizacionais do novo PSDB

Estará mesmo nascendo um novo PSDB?

Segundo frase do governador João Dória estampada na coluna da jornalista Rosângela Bittar no Estadão de 28/01/2020, o novo partido estaria apoiado em um grupo de políticos: “Bruno Araújo, Eduardo Leite, Bruno Covas, eu, o Reinaldo Azambuja, esse é o novo PSDB”.

Se de fato o partido se renovou, seria conveniente que alguém o apresentasse formalmente. Política não são somente nomes, por mais expressivos que possam ser eles. Partidos, em especial, precisam de nomes, quadros, organização, marca e ideias. Sem isso, não passam de agregados de pessoas ligas por interesses particulares e circunstâncias episódicas.

A luta interna que estiolou o PSDB foi vencida por Dória. Ponto claro, estabelecido, insofismável. Em decorrência, afastaram-se, discretamente ou com ruído, importantes lideranças tucanas do passado recente, parte delas composta por fundadores da legenda, em 1988, décadas atrás. Foi assim com FHC, Serra, Aloysio Nunes, Tasso Jereissati, José Aníbal. Antes de falecer, o ex-governador Alberto Goldman bateu de frente com Dória.

Explicações e justificativas não faltaram.

Para Dória, era preciso “oxigenar” o partido, afastar a turma mais velha, convencida do valor da social-democracia. Para tanto, cabeças teriam de ser cortadas e um novo grupo dirigente deveria ser imposto.

Os perdedores, que se retiraram do cotidiano partidário, alegaram que Dória joga pesado demais, com poucos princípios e muito personalismo, impedindo qualquer oposição interna de respirar.

Com a divisão, o PSDB ficou à deriva. Foi mal nas eleições de 2018: era a 3ª maior bancada em 2014, declinou para o 9º lugar, 25 deputados a menos. O bunker paulista caiu por inteiro nas mãos de Dória, que passou a atrair políticos de outros estados, formando boa maioria. Ao disputar a reeleição em 2018, o governador fez campanha praticamente abraçado a Bolsonaro, em nome do pragmatismo.

Não estão claras as ideias do novo PSDB, assim como não há indícios de que o projeto inclua alguma iniciativa diferente em termos organizacionais. O abandono da social-democracia se traduziu numa tentativa para enxertar na doutrina do partido alguns princípios mais consistentes de “neoliberalismo”, deslocando a legenda para a direita: mais mercado, menos Estado, retórica fiscal mais aguda, um tipo particular de populismo tecnocrático que flutua conforme a necessidade e uma busca obstinada de visibilidade midiática. Tudo evidentemente bem amarrado pelos barbantes de Dória.

Sobrou entretanto o nome, a marca: PSDB, indicação  clara de um compromisso social-democrático que já não mais existe. O que será feito dessa marca ninguém sabe. O que se sabe é que ela virou algo postiço, que incomoda e não contribui para modelar uma imagem. Pode ser que se espere para ver se o enxerto de Dória vingará e produza, com o tempo, folhagens de outra coloração. Pode ser que não se dê tempo ao tempo e se promova um retrofit radical, que mude a legenda de cima a baixo, com alterações doutrinárias, de linguagem e cultura.

Porque, no fundo, a alma social-democrática do PSDB já subiu aos céus. Ou desceu aos infernos. E sem uma nova alma nenhum partido terá como se renovar e sobreviver, de modo a fazer alguma diferença.


Marco Aurélio Nogueira: São Paulo, a metrópole e o futuro

Na azáfama cotidiana, paulistano sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento

As cidades dos dias atuais intrigam, causam perplexidade. Os humanos fizeram delas seu principal hábitat a partir da revolução moderna. A vida urbana generalizou-se, mas não a urbanidade. Faltam coisas demais para que as cidades possam ser tratadas como ambientes de plena civilidade, onde todos vivam com igual dignidade. Umas mais, outras menos, estão todas atravessadas por desafios e imperfeições, que avançaram à medida que avançou o capitalismo, se mundializou, ganhou maior ímpeto tecnológico, mas não conseguiu ser democraticamente regulado.

São Paulo, que em 2020 comemora 466 anos de existência, não é exceção. Instalada na periferia do mundo, coração de um país continental, dinâmica e superpovoada, com uma evolução que não conseguiu amalgamar adequadamente as populações que nela buscaram abrigo e que convive com problemas que parecem imunes à ação humana racional, a cidade é uma metrópole pujante, síntese expressiva dos problemas, promessas e virtudes da modernidade.

Metrópoles são espaços de ritmo acelerado, impessoalidade, isolamento e encontro. Sempre fascinaram os estudiosos, atraíram as massas e desafiaram os gestores. Foi nelas que a política moderna ganhou face e corpo. São lugares de muitos lugares, onde se combinam excessos e carecimentos, inclusões e exclusões, gente variada, múltiplos projetos existenciais.

O modo de vida industrial e pós-industrial turbinou as cidades. As maiores conheceram a conurbação, formando um gigantesco tecido de municípios unificados em termos socioeconômicos, ainda que preservando autonomias no plano jurídico e político. As cidades ficaram ainda mais vibrantes, heterogêneas, repletas de empresas e ofertas culturais, sobrecarregadas de automóveis e deslocamentos, só em parte atenuados com o avanço das tecnologias de comunicação. Nas grandes cidades o movimento e a circulação de pessoas, ideias, mercadorias são a regra.

As cidades encontram-se agora com a era digital. Precisam se adaptar a ela, aproveitá-la para melhorar a qualidade de vida e os parâmetros da gestão pública. A informatização geral, as novas tecnologias, o uso ampliado de energias alternativas, a reconfiguração do trabalho, o transporte movido a eletricidade, os “carros voadores”, a otimização do tempo, tudo isso já bateu às portas. Não são mais meras tendências.

A assimilação da era digital pode ser um importante fator de renovação das cidades, ajudando-as, no mínimo, a combater a praga da poluição ambiental, que ameaça a saúde e compromete o bem-estar. São Paulo convive intensamente com isso: a poluição encarece o dia a dia, o ar pesado e o barulho incessante dificultam o descanso, a cidade é a cada dia mais quente, o trânsito enlouquece e impacta o consumo, a produção, a cultura. Pouco se faz para equacionar essas questões. Há reclamações e promessas, mas a sensação é de que se está sempre no mesmo lugar, piorando.

A poluição ambiental é tóxica, visual e sonora. Torna feio o que poderia ser bonito. Segrega e distingue bairros, fazendo com que pouquíssimas regiões usufruam o que uma cidade deveria oferecer a todos. Na azáfama do cotidiano, a maioria dos paulistanos sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento: no ar que se respira, no tempo desperdiçado, na tensão inerente às interações, na brutalidade de tantos comportamentos, no silêncio escasso.

O ruído é uma marca de São Paulo, produto da efervescência urbana e do tumulto por ela provocado. Diferentemente do ruído político, que confunde e distrai, os ruídos urbanos demarcam um espaço, exprimem a “potência” de quem os produz. Não são inocentes. Repetindo-se sem intervalo e sem controle, convertem-se em barulho. Fazem parte de um mesmo pacote, misturam-se com o ar contaminado, a falta de regras, o frenesi urbano, a multiplicação dos negócios, a concorrência, a orgia de informações, o extravasamento. Como escreveu a socióloga Isla Antonello, nos grandes aglomerados urbanos dá-se uma “ocupação através do barulho”, vontade de deixar tudo dominado.

Vivendo numa estrutura social definida por códigos morais que valorizam mais a liberdade individual do que a solidariedade cívica e o espaço público, o cidadão paulistano aceita como fatalidade o que o incomoda: um “custo do progresso”. A problematização da urbanidade vem na esteira, impulsionada pela pressa, que impede que se veja e sinta a cidade como “coisa sua” e de todos.

Desse ponto de vista, há um quê de terra de ninguém em São Paulo. A certeza da impunidade convive com a falta de consciência cívica e a ineficácia governamental. A poluição ambiental potencializa a confusão urbana, dificulta o encontro de culturas, a reposição de energias, atirando o paulistano num looping em que sempre se volta ao tumulto de que se deveria escapar.

Não é algo que diminua a grandeza de São Paulo, sua riqueza como locus de experiências, experimentação e oportunidades. Mas é um item estratégico da agenda com que a cidade ingressará no futuro.

*Professor titular de Teoria Política da UNESP


Marco Aurélio Nogueira: O desafio de Huck à esquerda

Apresentador incomoda porque manifesta posições avançadas, faz propostas e busca viabilizar uma ideia de articulação democrática que explora caminhos não usuais

Lula pontificou: “Luciano Huck não representa a centro-esquerda. Representa a Central Globo de Televisão”.

Reverbera o que vários petistas e parte da esquerda falam. Ao mesmo tempo, dá o tom para que se continue com a campanha de desconstrução de Huck.

É do jogo. Lula faz o que dele muitos esperam. Quer limpar a área, não ser desafiado, fazer com que as coisas girem em torno dele. Sua frase sobre Huck pode até mesmo ser um chega-prá-lá no governador Flavio Dino (MA), que andou conversando com o apresentador dias atrás.

Chama mais atenção a conduta dos que seguem cegamente a catilinária lulista. Destruir Huck tornou-se a diversão preferida de tantos que se proclamam democratas. É um veto bem pouco democrático, que parte de supostos falsos, hipócritas, politicamente atrapalhados.

A associação Huck-Globo é uma bobagem oportunista, que intenciona carimbar o apresentador como direitista, um empresário servil aos interesses da “mídia conservadora” e do grande capital. Trabalhar numa empresa significaria, para essa turma, incorporar automaticamente a cultura, o modo de ser, o pensamento e os projetos do empregador.

Acrescente-se a isso a ideia de que Huck não tem experiência, como se antes dele, em 1994, 1998 e 2002, Lula a tivesse, por exemplo. Se o cara é jovem e não integra um partido tido como de esquerda ou centro-esquerda, não presta. Ora…

Fala-se ainda que Huck nada tem a propor, que é um ventríloquo, um pau-mandado, fato ostensivamente desmentido por suas recorrentes intervenções públicas.

Age-se segundo a máxima “não importa o que é dito, mas sim quem o diz”, postura no mínimo burra e preconceituosa. Bem típica de quem se recusa a olhar o todo e a analisar textos e contextos, pessoas que se sentem assim desobrigadas de avaliar o que criticam, tipo não li e não gostei.

Ninguém sabe se Luciano Huck será candidato a algum cargo. O que se sabe é que ele está se posicionando, e não de hoje. Tem manifestado posições avançadas e bem concatenadas. Ousa fazer propostas e tenta por de pé uma ideia de articulação democrática que explora caminhos não usuais. Talvez seja precisamente isso que incomoda os guardiões da pureza de esquerda.

Em vez de se ficar tachando seus movimentos e suas iniciativas como se fossem a expressão de um bolsonarismo light, “neoliberal”, todos ganhariam muito mais se passassem a decifrar o que ele fala e propõe, o circuito que percorre, os compromissos que está assumindo, os apoios que agrega.

Huck tem potência midiática e juventude. Pode ajudar a injetar sangue novo na política nacional, a bloquear a ascensão da extrema-direita e a desafiar uma esquerda que insiste em repisar terreno esburacado e não traz qualquer ideia de futuro nas mãos. Por que não levá-lo a sério? Deixá-lo circular em paz e ver o que tem a propor?

O veto, o preconceito, o medo e a discriminação são as piores armas com que se pode entrar numa batalha política.

 


Marco Aurélio Nogueira: Um ano de bizarrices, sectarismo e ideologia

Complexidade do Brasil e do mundo esteve além do entendimento médio do governo em 2019

Para dizer o mínimo: 2019 foi perturbador.

Chegamos a dezembro com sinais de que a economia começa a se recuperar. A taxa de crescimento bateu em 1% no ano, mas o desemprego e a renda continuaram a martelar os brasileiros. A produtividade permanece baixa, o crescimento não se mostra sustentado. Nos bastidores da estridência governamental, escorreu uma política econômica que se proclama liberal, mas age em nome de um governo que ameaça as liberdades básicas.

Nenhum país anda só com as pernas da economia. Depende de coisas que têm alto poder de determinação. É preciso olhar o todo, avaliar o que impacta o cotidiano da população, prestar atenção na política, naquilo que fazem as oposições e o governo, na repercussão de escândalos como o do senador Flávio Bolsonaro, nas atitudes intempestivas do presidente.

O balanço do ano não é animador. A política externa, ideologizada de modo caricatural, converteu o País em chacota mundial. Combinou sem critério o fundamentalismo religioso e o patriotismo rasteiro, trocando o pragmatismo característico do Itamaraty por pregações moralistas, subservientes, fechadas ao interesse nacional: uma visão que se aliena do mundo e do próprio País.

O meio ambiente foi tratado com desdém. As populações indígenas foram vistas como “entraves” à exploração do território e das florestas. Queimadas, desmatamento, óleo emporcalhando mares e praias, todo um cenário complicado a requerer uma atenção que não apareceu: em vez dela, sucederam-se insultos que isolaram o País.

A letalidade policial continuou a assustar. As mortes absurdas afetam principalmente os jovens, os mais pobres, os negros e mulatos, as periferias das grandes cidades. Uma parcela importantíssima da sociedade está sendo dizimada, encurralada, amedrontada.

A área da Cultura concentrou as principais aberrações, com encarregados a exibir seu reacionarismo e seu desprezo pelos produtos e produtores culturais. O aparelhamento é ostensivo: o que importa é a fidelidade ao chefe, não a competência. Artistas foram caçados como inimigos públicos. A Educação não ficou muito atrás, com a agravante de que o responsável por ela não só demonstrou completa falta de cultura e educação, como foi de uma inoperância a toda prova. Travou uma “guerra cultural” de baixíssimo nível contra escolas, professores, universidades, pesquisadores. Fez do MEC um deserto de ideias e iniciativas.

Das áreas que deveriam iluminar e fornecer diretrizes somente saíram fachos de obscurantismo e ideologia.

Um bizarro festival de besteiras assolou o País. Entre tapas, mentiras e fake news, instituiu-se a era da pós-verdade. A complexidade do Brasil e do mundo foi ignorada, esteve além do entendimento médio do governo. Autoridades públicas e agentes do Estado disputaram entre si para estabelecer quem fala a barbaridade maior, quem exibe a grosseria mais extremada ou demonstra a ignorância mais avessa à ciência e aos valores básicos da vida moderna. O presidente não demonstrou compostura ou respeito à liturgia do cargo que ocupa. Houve racismo explícito, preconceitos, difamações, ataques a direitos. A milícia digital foi abertamente incentivada. Consta que é coordenada por um “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. O sectarismo deu o tom.

Obscurantistas empedernidos, monarquistas sem nobreza, filósofos de araque capricham em discursos e postagens que usam a religiosidade xucra para imbecilizar a população. O compósito é chocante. A Terra é plana, o aquecimento global é uma balela, o rock é satânico, os territórios e a natureza devem ser apropriados sem dó. Aos que pensam de outro modo, o fogo do Inferno.

Os colaboradores de Bolsonaro – civis e militares – mostraram-se mais serviçais do que se poderia imaginar. O capitão submeteu os generais. 2019 terminou com o País em regressão civilizatória, com muitos ataques e denúncias, à esquerda e à direita, mas nenhum debate.

Reforçou-se uma estranha dialética: o presidente tem alta impopularidade, mas é seguido por uma trupe de apoiadores que bebem suas palavras como se destilassem o soro da verdade e acreditam que é preciso, mesmo, “evitar a volta da esquerda”. É o que permite a um governo fraco falar grosso e sonhar com o futuro.

O Executivo não produziu, mas houve quem fez por ele. A Câmara e o Senado organizaram uma pauta “reformadora” e compensaram a inação governamental. O Supremo Tribunal Federal limitou excessos. Até a alquebrada Lava Jato ficou em evidência. A impressão foi de que havia um governo ativo, mas a falta de articulação entre os Poderes foi completa.

Consolidou-se a ideia de que é preciso administrar a crise fiscal e dinamizar a economia. Mas, no jogo que está sendo jogado, as cartas escondem blefes, os jogadores não revelam seus truques e a plateia acompanha sem entender os desfechos prováveis. Nada se fala sobre bem-estar, distribuição de renda, igualdade social e respeito. Na falta de um projeto nacional que proponha a reorganização democrática do País, as propostas governamentais vão passando, sem alternativas.

Um gestual, uma narrativa, atos em série – coerção à imprensa, ataques às instituições, agressões a minorias – soltaram um bafo de autoritarismo. O oficialismo quis passar a sensação de que tudo está “normal”. É uma “normalidade” fajuta, que intimida a população e abre espaços para fanáticos e radicais de direita, impulsionados pela ignorância que vai sendo decantada para a população a partir das cúpulas do governo.

Os democratas não podem assistir passivamente à onda de boçalidade e autoritarismo que se impõe, meio como pastiche, meio como pantomima. Precisam organizar uma agenda que congregue os que fazem da democracia uma praia comum, a ser defendida e valorizada. Não há mais tempo para projetos personalistas e cálculos partidários egoístas. Basta de divergências inúteis, diversionistas.