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Marcelo Godoy: Moro ataca bolsonarismo ao criticar 'intervenção militar'

Em um País em que oficiais se fizeram intérpretes da Constituição, ex-magistrado tenta decifrar os militares e desagrada generais

Se Jair Bolsonaro decidiu que os militares podem dirigir quase tudo no governo - da construção de pontes à entrega de cartas, do combate à covid-19 às negociações com o Centrão –, os militares também terão de se acostumar com um novo fenômeno: nunca tantos civis interpretaram seus atos, gestos e silêncios. Mesmo o que é óbvio se torna polêmico. Quis o comandante do Exército, Edson Pujol, chamar a atenção do presidente ao lhe oferecer o cotovelo em vez da mão em um comprimento público? Qual a razão de o bolsonarismo pagar penduricalhos ao militares em meio à crise fiscal

Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras Foto: Marcos Corrêa/PR

A outra face desse fenômeno, com suas implicações institucionais, envolve a confusão entre Exército e Nação e o ressurgimento de um certo bacharelismo entre os militares. Ele tem como alvo o artigo 142 da Constituição Federal e os limites da ação de cada Poder. Muitos falam, mas poucos sabem do que se trata; e a velha confusão entre doxa e episteme, tão antiga quanto o Partenon, reaparece. Só o Comando até agora não falou. "Por dever de ofício", disse um general. Nas últimas semanas, o Exército se sentiu como um paciente em coma, ouvindo vozes ao redor. Em torno da cama, muitos passavam e se perguntavam se ele os poderia ouvir. O paciente se fingiria de morto, enquanto os doutores falavam...

Alguns vozes não passaram despercebidas. Uma delas foi a do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Ele escreveu um artigo na revista Crusoé com o título Honra e Fuzis. Se tantos militares se puseram a interpretar a Constituição, Moro se achou no direito de interpretar os militares. O ex-juiz começou confessando o desconforto com os grupos que usavam a Lava Jato para pregar um golpe de Estado em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff. Revela que, discretamente, pediu, por meio de um bilhete, a manifestantes que carregavam uma faixa com os dizeres "intervenção militar constitucional" que a recolhessem para evitar a confusão entre a luta contra a corrupção e a pregação liberticida. Os turiferários atenderam ao magistrado.

 O ex-ministro diz que tinha receio de que a Lava Jato fosse identificada com a pauta antidemocrática, que seu objetivo não era criminalizar a política, mas a "punição de políticos corruptos". O homem, que foi o mais popular ministro de Bolsonaro entre os militares, concluiu:  "Democracia é o temos como melhor forma de governo e a única medida a fazer é melhorá-la, não acabar com ela." Em vez de se juntar aos amalucados, como fez Bolsonaro em frente ao quartel do Exército, em Brasília, o ex-magistrado quis mostrar juízo e responsabilidade, qualidades de quem sabe que não se defende a democracia em manifestação que busca matá-la.

Moro quis mais: desejou exibir conhecimento da liturgia que acompanha as autoridades que não se deixam levar por uma ralé composta por oportunistas rancorosos e extremistas ressentidos, todos incompetentes para obter reconhecimento social por seus próprios méritos, o que caracteriza os setores radicais do bolsonarismo. O ex-juiz procura distância de um governo que, até 15 dias atrás, flertava com o caos de uma ruptura institucional nas palavras do presidente ou nas notas oficiais dos generais-ministros. "Intervenção militar constitucional era algo totalmente estranho à Lava Jato. Nenhum dos agentes de lei envolvidos tratou desse tema ou defendeu medida dessa espécie."

Pode-se questionar o magistrado: se nenhum dos agentes da lei flertavam com grupos autoritários, por que não os desautorizou publicamente em vez de usar bilhetinhos? Por fim, Moro escreveu: "Não há lugar, porém, para uma inusitada 'intervenção militar constitucional' para resolução de conflito entre Poderes". Ou mesmo invocar uma tutela do Exército sobre a República. E conclui: "Os militares precisam ser honrados. A história mostra que fizeram jus à confiança neles depositada nas batalhas mais difíceis. (...) Na presente crise política, sanitária e econômica, precisamos dos militares, mas não dos seus fuzis e sim de exemplos costumeiros de honra e disciplina."

Moro precisa explicar para que, afinal, precisa de militares, mas não de seus fuzis, se é justamente a posse das armas que os caracteriza. O ex-ministro – como notou um general – parece incensar o soldado cidadão e a visão positivista de Benjamin Constant, tantas vezes presente em rebeliões e intervenções na República, causando instabilidade política e indisciplina na tropa. "Ele quer o soldado cidadão para impedir uma intervenção do soldado cidadão", disse um general. Não se vislumbra o ideal do soldado profissional e apartidário bem como a defesa da neutralidade de seus atos. Talvez o ex-magistrado conheça tanto os dilemas das relações entre o Poder Civil e o Militar quanto o general-ministro Heleno é um bom intérprete da Constituição.

O militar não deve servir de instrumento às conspirações do Planalto e às da Planície. Saiu-se, no Brasil, de um desconhecimento das questões ligadas à defesa nacional e aos militares para uma "verborragia sem fundamento", imprudente. Enquanto isso, "os profetas do artigo 142 ganham holofotes e produzem mais confusão".  O silêncio das últimas semanas recorda, para uns, a drôle de guerre, o período de relativa calma que antecedeu a grande ofensiva alemã de 1940. Para outros, ela seria uma détente?  Constatação de que a guerra entre os atores seria catastrófica, daí a necessidade de reduzir tensões e buscar a convivência entre os Poderes, como em uma Guerra Fria?

O general e deputado federal Roberto Peternelli (PSL-SP), expoente da bancada militar no Congresso, está otimista. Acredita que a tempestade passou, os gafanhotos não vieram e agronegócio vai redimir o País. A queda do ministro Abraham Weintraub é uma das razões de seu otimismo. Acredita que agora seja possível desembaraçar as ações de um ministério estratégico, como a Educação. Peternelli sempre foi assim: acreditava que tudo se resolveria. Mas, de fato, livrar-se de um ministro que mal sabia dançar ou escrever, mas se expunha ao ridículo por vaidade, em vez de lealdade ao chefe, foi um feito para este governo.

Bolsonaro sentou-se na cadeira presidencial como se fosse um tenente. Fez o memento de patrulha, o documento em que devem constar as informações necessárias à missão. O valentão escreveu ali que só precisava de faca e cantil como "meios disponíveis" para governar sem coalizão. E foi o que recebeu. Sem mapa, bússola, relógio, comida ou fuzil saiu com seus homens. Esgotada, a tropa quer voltar à base e se reforçar com o Centrão. Se ele e os que o acompanhavam confundiram o governo com uma aventura na selva, as instituições e a sociedade mostraram ao presidente que não se governa com uma lâmina e um pouco de água. E o pior: não há nada que garanta que, ao fim de tudo isso, haverá mais compreensão entre militares e civis.

*Marcelo Godoy é repórter especial. Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).


Marcelo Godoy: Para generais, Weintraub é o ministro da ‘falta de educação’

Ataque a Deodoro da Fonseca no dia da República é mal visto por militares

No dia da República, o ministro da Educação do governo de Jair Bolsonaro, Abraham Weintraub, resolveu achincalhar o marechal Deodoro da Fonseca, chamando-o de traidor, e escolheu a data cívica para comparar o oficial ao petista Luiz Inácio Lula da Silva, condenado pela Lava Jato.

Dado o ódio que dedica ao ex-presidente, podemos imaginar o tamanho da ofensa que o ministro queria dirigir ao marechal que proclamou a República há 130 anos.

Weintraub se candidata assim ao cargo de Olavo de Carvalho da Esplanada, pelo agravo aos militares e às tradições do Exército brasileiro. A ofensa não recai só sobre o velho marechal. Os cadetes que entram nas Agulhas Negras logo se familiarizam com a imagem de Deodoro no dia 15 de Novembro de 1889.

Abraham Weintraub

@AbrahamWeint

Chegamos ao traidor: tinha a confiança do Imperador, participou do golpe e não teve coragem de falar pessoalmente com Dom Pedro II que ele e sua família seriam exilados. O Brasil foi entregue às famílias oligarcas que, além do poderio econômico, queriam a supremacia política.

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“Nunca vi nada igual”, disse sobre o ataque um general que passou pelo Comando Militar do Planalto e pelo Comando Militar do Sudeste. “Faltam educação e civismo ao ministro da Educação”, afirmou. “E respeito às Forças Armadas”, completou um coronel.

Dias antes, o general Edson Pujol, comandante do Exército, dera uma lição em texto publicado pelo 'Estado' sobre o papel do Exército na Proclamação da República. Disse Pujol sobre o republicanismo e os militares:

“Tal posicionamento refletia a adesão à causa republicana de parcela da oficialidade, em grande parte jovens influenciados pelas ideias positivistas de Augusto Comte, professadas pelo tenente-coronel Benjamin Constant e difundidas em sua cátedra na Escola Militar da Praia Vermelha. Com a criação do Clube Militar, em 1887, sob a liderança do marechal Deodoro e do próprio Benjamin Constant, fortaleceu-se a participação do Exército na mudança do regime.”

O dançarino Weintraub tem o direito de ser monarquista. Dentro e fora do governo. Mas, dentro dele, deve saber que é um ministro e não devia ofender a memória de Deodoro. Weintraub desrespeita não só o marechal. Também ataca os valores republicanos ao chamar a Proclamação de “infâmia”.

A República é o governo das leis, contra os privilégios, em busca do bem comum. O ministro se compraz com suas convicções. Esquece da escravidão, do Conselho de Estado, do Senado vitalício, do governo irresponsável... O problema é que os fatos criam aporias insuperáveis às visões desconectadas do real. Sobra-lhe um discurso vazio, sem a ossatura da realidade.

O agravo ao marechal esquece ainda que ele foi um herói da Guerra do Paraguai, de combates como Tuiuti, Humaitá, Curupaiti e outros. Ele transforma a honra do militar em artigo para memes lacradores nas redes sociais. Nada mais vulgar.

O ministro age dentro da lógica da milícia virtual que o bolsonarismo mantém na internet, que se diverte ao enxovalhar a honra e ameaçar a família dos que se lhe opõem. Que o digam a deputada federal Joice Hasselmann e o ex-ministro Gustavo Bebianno.

O bolsonarismo cria as próprias crises que põem em risco o governo, como salientou, recentemente, o general Paulo Chagas. Como resposta ao ministro, Deodoro poderia repetir o que disse em entrevista dois meses antes de dar cabo ao regime monárquico: “Se tivesse de ir ao céu, São Pedro servir-me-ia de vaqueano; se tivesse de ir ao inferno, pediria a qualquer político que me guiasse.”

O leitor viu aqui que o general Pujol explicou o sentido da participação do Exército na República. “Transcorridos 130 anos de experiência republicana, os integrantes do Exército de hoje encontram-se empenhados em um processo de transformação com vistas à obtenção de novas capacidades para o cumprimento de renovadas missões. Mas mantêm o compromisso legado pelas gerações passadas, calcando no culto à liberdade e à democracia e no amor à Pátria, o que confere ao Exército os mais altos índices de credibilidade junto à Nação brasileira.”

Weintraub, o ministro da falta de educação - nas palavras de outro general -, não se desculpará pela ofensa a Deodoro. Ele conta com o silêncio do capitão Jair Bolsonaro diante do agravo lançado ao marechal. São circunstâncias como essa que demonstram o quanto os valores militares e da República são importantes para o presidente e para seu governo.