Maduro

El País: Maduro é reeleito com uma forte abstenção e em meio a denúncias de fraude

Candidato líder da oposição não reconhece processo eleitoral e pede novas eleições

Por Alonso Moreiro, do El País

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro,foi reeleito para mais 6 anos de mandato com uma abstenção de 54% em meio a uma eleição boicotada pela maioria das forças da oposição e com denúncias de fraudes. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), a participação dos eleitores chegou a 46%, embora fontes do organismo citadas pela Reuters assegurem que no fechamento das seções eleitorais, às 18h, esse número era de 32,3%. Nas últimas eleições presidenciais, celebradas em 2013, 80% dos eleitores compareceram aos colégios eleitorais. Ao longo do dia, a maioria das ruas da Venezuela registravam muito pouco trânsito e os colégios eleitorais estavam quase vazios.

O único adversário real de Maduro era Henri Falcón, que obteve 1,8 milhões de votos. O líder opositor declarou minutos antes do anúncio do resultado que não reconhecia o processo eleitoral deste domingo e exigiu a convocação de novas eleições. O candidato da oposição afirmou ter recebido 900 denúncias de irregularidades na jornada eleitoral. Com um tom enfático, ele criticou o "descaro" e o "vantagismo" do chavismo no pleito.

Ao fundamentar suas denúncias, Henri Falcón fez questão de ressaltar a presença dos chamados "pontos vermelhos", núcleos de ativismo e proselitismo político, proibidos por lei, que as organizações chavistas instalaram a 200 metros dos locais de votação, e inclusive dentro deles, sob total consentimento do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Os pontos vermelhos são considerados por muitos dirigentes oficialistas, como Diosdado Cabello, um direito adquirido.

Costumam ir a esses espaços os eleitores do presidente Maduro para registar seu voto com o chamado "carnê da pátria", com o qual estariam assegurando as ajudas e os programas sociais em troca de votos. O carnê é um documento com que o chavismo tenta conquistar o apoio das classes populares. Circulam no país mais de 16 milhões. Eles permitem o acesso a bônus e serviços e, ainda que oficialmente não sirva para receber atenção preferencial no recebimento das caixas periódicas de alimentos, é um instrumento utilizado para medir a fidelidade ao regime.

Maduro
O presidente havia emitido um aviso aos venezuelanos. "Votos ou balas", enfatizou pela manhã depois de ir ao seu colégio eleitoral no oeste de Caracas. Depois da divulgação dos resultados, ele deixou o palácio de Miraflores e falou a milhares de apoiadores. Ele falou de "vitória popular permanente", destacou a margem com a qual venceu Falcón - 67,7% contra 21,2% - e pediu diálogo.

Maduro enfatizou o caráter "histórico" do dia. No entanto, dezenas de locais de votação, mesmo nos bairros populares, pareciam vazios, quando é comum ver as calçadas de Caracas com longas filas de venezuelanos esperando para votar. Foi o que aconteceu em Petare, que tem alta porcentagem de militantes e apoiadores de Chávez e é um dos mais populosos da cidade. "Eles me disseram para fazer o cartão da pátria [um sistema que o governo usa para ter um segundo registro de participação] depois que eu votei, vim. Eu votei voluntariamente em Maduro. Eu acredito nele porque espero que ele resolva a situação no país. Tudo o que aconteceu é por causa da guerra econômica", disse um dos poucos eleitores no colégio, aderindo à retórica usada pelo oficialismo para justificar a hiperinflação que, segundo o Fundo Monetário Internacional, pode levar a aumento de preços de 1.800.000% em dois anos.

Esse é o argumento usado pelo aparato do Estado. "Quem foi o grande derrotado hoje? A abstenção. Dissemos que a votação de hoje entraria para a história como um voto antiimperialista", disse Delcy Rodríguez, presidente da Assembléia Nacional Constituinte (ANC). Horas antes, Neisa Calderón, uma aposentada de 65 anos, exigiu uma mudança profunda e queixou-se dos procedimentos de controle da população instalados pelas autoridades: "Não sei por que devo me registrar para o cartão da pátria, mas faço porque acredito que assim posso validar meu voto. Votei porque quero que a situação na Venezuela mude. Caso contrário, não sei como fazer isso ".

Eleição
O processo eleitoral deveria terminar oficialmente às 18h (19h de Brasília), mas algumas escolas ficaram abertas uma hora e meia após esse horário em várias partes do país. Maduro votou pouco antes das 6h ao colégio Miguel Antonio Caro, em Caracas. "Fui o primeiro votante da pátria (...) sempre em primeiro nas batalhas pela nossa soberania, pelo direito à paz", declarou o líder chavista.

Alguns países como Argentina e Chile afirmaram que não irão reconhecer as eleições presidenciais venezuelanas, além da União Europeia. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, classificou as eleições presidenciais na Venezuela como "fraudulentas" e disse que elas "não mudam nada" no cenário do país. "Observando hoje (o que acontece na) #Venezuela. As fraudulentas eleições não mudam nada. É preciso que o povo venezuelano dirija este país... Uma nação com tanto o que oferecer ao mundo", escreveu Pompeo no Twitter.


Demétrio Magnoli: Duas filas em Iribarren

No domingo, duas filas formaram-se em lados opostos de uma rua de Iribarren, na periferia de Barquisimeto (Venezuela). Numa delas, as pessoas votavam em eleições municipais boicotadas pelos maiores partidos oposicionistas. Na outra, registravam-se para receber o Carnet de la Patria, cartão de benefícios sociais oferecidos pelo governo. Um dia depois, o presidente Nicolás Maduro anunciou que os partidos boicotadores perderiam o direito de concorrer em eleições futuras, a começar pelas presidenciais de 2018. Não se ouviu uma palavra de protesto de Lula, Dilma Rousseff, Guilherme Boulos ou algum dos ícones intelectuais da esquerda brasileira.

A troca direta da ajuda oficial pelo voto é uma antiga estratégia do regime chavista. Porém, desde dezembro de 2015, quando a oposição obteve vitória avassaladora nas eleições legislativas, o governo sabe que nunca mais triunfará em eleições livres. Nos pleitos estaduais, Maduro apelou à intimidação e à fraude generalizadas. Mas o recurso tem limites, definidos pelo colapso da economia. O PIB contrairá 12% em 2017, mais que em países sob guerra civil como a República Democrática do Congo. A inflação anualizada ultrapassa 800% e, em 2018, deve romper a barreira de 2.000%. Proibindo a ação política da oposição, o chavismo prepara-se para reprimir uma temida revolta popular. O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz no longínquo 1980, reproduz o discurso de Maduro, justificando a ditadura pelo álibi previsível: as “agressões do império norte-americano”.

“Eles desaparecerão do mapa político”, proclamou Maduro, referindo-se aos partidos de oposição. Para todos os efeitos práticos, o chavismo converte-se em regime de partido único. É Cuba 2.0 — só que sem Fulgencio Batista, revolução ou Guerra Fria. Na Nicarágua, em julho, diante do Foro de São Paulo, uma articulação de partidos da esquerda latino-americana, a presidente petista Gleisi Hoffmann garantiu “apoio ao presidente Maduro”. Logo depois, o PSOL emitiu nota de “solidariedade à revolução bolivariana” na qual, sinistramente, avisa que “não há meio-termo”. A esquerda latino-americana acostumou-se a celebrar ditaduras em nome da utopia. Na Venezuela, aprende a descartar a utopia, ficando apenas com a ditadura.

Cuba foi a última experiência da utopia comunista: a abolição da propriedade privada, pelo controle estatal dos meios de produção. A Venezuela chavista, uma Cuba sem utopia, não almeja abolir a propriedade privada, mas conservá-la como privilégio restrito aos empresários que circundam o poder — a “boliburguesia” (burguesia bolivariana) — e às empresas estrangeiras conectadas ao regime, como a Odebrecht, financiadora de campanhas de Hugo Chávez e Maduro. A solidariedade ao chavismo não representa uma recuperação tardia da utopia econômica e social comunista, mas um sinal de adesão ideológica ao sistema de partido único. Os líderes do PT e do PSOL, e os intelectuais de esquerda que os acompanham, estão dizendo que aboliriam a democracia, se pudessem.

Maduro conserva o poder graças à aliança tecida entre o chavismo e a cúpula das Forças Armadas. O regime fracassou absolutamente no domínio da economia, mas obteve um sucesso decisivo na incorporação dos militares ao mais lucrativo dos negócios estatais: a importação e distribuição de alimentos. As operações de arbitragem entre as taxas de câmbio controlado e subterrâneo proporcionam lucros fabulosos, que asseguram a lealdade militar. O regime “cívico-militar”, caracterização precisa utilizada por Maduro, assenta-se sobre o desastre econômico e o desvio legalizado de recursos públicos. Autoritarismo e corrupção formam as faces complementares do chavismo crepuscular. A “revolução bolivariana” dos nossos intelectuais de esquerda assemelha-se cada vez mais às ditaduras militares clássicas da América Latina.

A moderna social-democracia europeia nasceu no rescaldo da Revolução Russa. A implantação do regime de partido único na Rússia Soviética ensinou os social-democratas a repudiar o poder monolítico. Os comunistas europeus resistiram a aprender a lição. Em 1974, bem depois da morte de Stalin (1953) e das invasões soviéticas da Hungria (1956) e da Tchecoslováquia (1968), o filósofo ex-comunista polonês Leszek Kolakowski recordou, enfastiado, ao historiador marxista britânico Edward P. Thompson que “esse esqueleto nunca voltará a sorrir”. Por essa época, Enrico Berlinguer, líder do Partido Comunista Italiano, concluía sua ruptura com Moscou, anunciava o “eurocomunismo” e comprometia-se com o princípio da pluralidade política. A tragédia na Venezuela prova que nem mesmo a falência de Cuba abriu uma fresta na caverna histórica da esquerda latino-americana.

As duas filas simétricas de Iribarren descrevem o horizonte distópico no qual se movem o PT e o PSOL. A primeira, metáfora do partido único, registra uma persistente aversão às liberdades públicas. A segunda, metáfora da economia política do chavismo, denuncia um projeto de controle estatal sobre os indivíduos. O esqueleto não sorri, mas funciona como marcador ideológico e moral: Maduro é um cortejo.

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Demétrio Magnoli é sociólogo

https://oglobo.globo.com/opiniao/duas-filas-em-iribarren-22187501


Denis Lerrer Rosenfield: A democracia totalitária bolivariana 

Nada do que está hoje acontecendo na Venezuela deveria surpreender. Presenciamos o desenvolvimento lógico-político de instauração do socialismo naquele país, tendo começado com Chávez e encontrado o seu desfecho na abolição da democracia e no assassinato de mais de uma centena de pessoas nas ruas em poucas semanas.

Espanta, contudo, o cinismo de alguns políticos que teimam em dissociar a “democracia” de Chávez da “ditadura” de Maduro, como se fosse possível separar as premissas da conclusão. Neste sentido, o elogio do indefectível Lula a Chávez — quando considerou que aquele país tinha “excesso de democracia” e não falta, acompanhado de apoio financeiro do contribuinte brasileiro através do BNDES — mostrou coerência com sua sustentação do ditador Maduro. O apoio atual do PT a este, com manifestações de sua presidente no Foro de São Paulo, segue uma mesma lógica, cuja única virtude consiste em expor a faceta totalitária do partido.

Qual democracia está em questão: a democracia representativa, com todas suas limitações e contrapesos, ou a democracia totalitária, com sua ilimitação e projeto de destruição do próprio sistema representativo?

A democracia totalitária é um conceito elaborado por um célebre cientista político, J. L. Talmon, em sua obra “Origens da democracia totalitária”. Recorrendo aos filósofos do século XVIII, porém atento ao fenômeno totalitário comunista do século XX, destaca ele o surgimento de uma ideia democrática, fundada na soberania do povo, entendida como guia de uma atividade política que desconhece limites. Em nome da vontade popular, tudo seria possível, inclusive o desrespeito à lei e à Constituição ou, mesmo, a abolição das duas.

Em nosso país, por exemplo, quando políticos de esquerda procuram cancelar os seus crimes, dizendo que as eleições absolvem os que violaram as leis, estão dizendo com isto que processos eleitorais são os únicos capazes de julgar os políticos, por mais criminosos que sejam. Não seriam os tribunais os juízes, mas as eleições, na medida em que seriam expressões da vontade popular. É o mesmo argumento que está sendo utilizando por Lula e os seus apoiadores, forçando de qualquer jeito a sua candidatura, para, uma vez eleito, escapar de qualquer condenação em curso. É a faceta totalitária.

Em sua vertente totalitária, a democracia é reduzida a eleições, como se essas fossem os únicos processos decisórios válidos. Constituição, separação de poderes e respeito às leis são desconsiderados como se não fizessem parte, senão subsidiariamente e aparentemente, do conceito mesmo de democracia. O que fez Chávez?

Conquistou o poder por intermédio de eleições e nele permaneceu através de referendos que o legitimavam. A esquerda latino-americana e a brasileira, em particular, ressaltaram continuamente este aspecto com o intuito de mostrar a reconciliação do socialismo com a democracia. A imagem socialista-totalitária seria coisa do passado.

Uma vez no poder, Chávez começou a enfraquecer, senão a abolir, as instituições representativas. Primeiro, o Judiciário foi manipulado, com a substituição de juízes por ideólogos e militantes que obedeciam às orientações do Líder Máximo. Ministros foram presos por não seguirem a nova linha de conduta. O Supremo, porém, continuou funcionando em sua nova roupagem totalitária, tendo como função referendar as orientações governamentais. A esquerda clamava, então, que as leis estavam sendo respeitadas por decisão da mais Alta Corte do país. A pantomina era total.

Segundo, o Poder Legislativo foi completamente investido pelos “socialistas”, passando a ser um mero referendador das ordens de Chávez. Transferiu a ele, inclusive, o poder de legislar, investindo-o de “leis delegadas”, de tal maneira que, por atos administrativos, poderia editar e promulgar leis.

Assim sendo, concentrou em sua pessoa o poder de julgar, legislar e governar, abolindo, de fato, a separação de poderes. Fingiu respeitar a democracia, pervertendo-a completamente. Na verdade, aproveitou-se de instrumentos democráticos, como eleições, para subverter a democracia. Eis a novidade do “socialismo do século XXI”.

Para bem assegurar o seu poder, tomou conta das Forças Armadas através do seu aparelhamento por oficiais submissos ao novo regime. A ideologia apoderou-se dos militares, obrigados a jurar “socialismo ou morte”. A bem da verdade, o socialismo está levando à morte de jovens nas ruas de Maduro. Não satisfeito, utilizou a expertise totalitária de Fidel Castro e de seu irmão Raúl, importando especialistas cubanos para, com seus serviços de inteligência, fortalecer os laços “socialistas” das Forças Armadas.

Como se não fosse ainda suficiente, pois o controle deveria ser total, lançou mão da criação das milícias bolivarianas, corpo paraestatal, diretamente armado e controlado por ele, tendo como função aterrorizar a população. Seguiu o exemplo das SA de Hitler, disseminando o medo e a violência entre os cidadãos. Ora, são essas mesmas milícias que estão agora, sob a direção de Maduro, assassinando os manifestantes e os opositores venezuelanos.

O que faz Maduro? Segue os ensinamentos de seu mentor. Ele é apenas um novo elo da mesma lógica totalitária. A diferenciação reside em que a violência tornou-se explícita. A farsa de uma Assembleia Constituinte suprime o Poder Legislativo ainda vigente, que tinha se revigorado por eleições ainda permitidas. A população está na miséria, os supermercados estão desabastecidos, o PIB cai vertiginosamente, a inflação está nas alturas, e o novo governante agora o que mais teme é um processo eleitoral, um referendo. Uma vez tendo sido a democracia subvertida, até o véu cai, com eleições não sendo mais necessárias para a conservação do poder.

A democracia representativa está morta. Maduro prestou homenagens a Fidel em sua tumba. Foi coerente com o assassinato que perpetua de manifestantes. Em seus féretros jaz o socialismo.

* Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 


O Globo: Esquerda perde o rumo e tenta reescrever a História 

Bloco nada aprende, mas também nada esquece. Não admite ter trazido de volta a inflação, contra os pobres, e se mantém ao lado da ditadura de Maduro

Sem rumo, partidos como o PT, o PSOL, o PCdoB, o PDT e outras organizações autodenominadas de esquerda, como a Central Única de Trabalhadores, têm dado exemplos diários de perda de capacidade de formular propostas realistas, construtivas, para o país. Esvaiu-se a vivacidade com que somavam ideias ao debate nacional, mesmo quando inspirados em modelos fracassados no século passado, como se viu na extinta União Soviética. É lamentável, porque a vitalidade da democracia depende da participação construtiva de todos.

Antes fecundo, o PT se mostra desértico em proposições para o país. Subsiste em estado de negação da própria crise, de fundamentos éticos. Limita-se à tentativa de reescrever o passado, com evidentes falsificações da História.

O PSOL, o PCdoB, o PDT e parcela da Rede aderiram à autodesconstrução. Está visível na Câmara e no Senado a virtual conversão desses partidos em satélites petistas, alinhados nos dogmas e na destruição da identidade.

Esses agrupamentos denominam-se de esquerda. É compreensível no atual e gelatinoso universo parlamentar, mesmo quando desfilam com ideias apropriadas do liberalismo, como é o caso das políticas de renda mínima.

Grave, porém, é a perene negativa à História. Na tentativa diária de reescrevê-la, renegam o direito à verdade, conceito que invocaram no campo jurídico para construir uma narrativa do passado sob a ditadura.

Abjuraram o exercício da política com o maniqueísmo. Cooptaram os movimentos sociais. Omitem os erros nas políticas de saúde e educação — o sistema educacional está devastado, sobretudo nas universidades, por uma pedagogia que alinhou a didática e a formação à negação do debate, admitindo-se apenas as ideias originadas na autodenominada esquerda.

Desequilibraram as contas públicas e reacenderam o estopim da inflação punitiva dos mais pobres. Nos governos de Lula e Dilma premiaram empresas financiadoras de campanhas — as “campeãs nacionais” —, com subsídios do Tesouro em volume dez vezes maior que o destinado aos programas sociais. Essas relações incestuosas emularam a corrupção sistêmica. No Congresso, PT, PSOL, PCdoB, o PDT e parte da Rede uniram-se na interdição do debate, debitando a culpa pela quebra do país na conta do PMDB, antigo sócio no poder e que governa há apenas 14 meses.

Dissimulam, também, na sedução totalitária. Exaltam Getulio Vargas e abstraem a ditadura do Estado Novo. Apoiaram o autoritarismo de Hugo Chávez na Venezuela até com negócios extremamente prejudiciais ao Brasil, como no projeto da refinaria de Pernambuco. E, agora, solidarizam-se com a ditadura de Nicolás Maduro abduzindo a centena de mortos neste ano e os incontáveis presos políticos. Sem aprender com os erros, tentam mudar a História.

 


Pedro S. Malan: Limites do autoengano?

A inimaginável tragédia que expressa o colapso econômico e o caos político da Venezuela de hoje pode constituir um ponto fora da curva, mas o fato é que não faltam experimentos populistas – de “esquerda” e de “direita” – na História da América Latina.

A carta que Perón, como presidente da Argentina, escreveu ao presidente do Chile, general Ibáñez (1953), é um dos exemplos mais admiráveis da postura que se encontra na raiz da crise venezuelana: “Dê ao povo, especialmente aos trabalhadores, tudo o que possa. Quando lhe parecer que lhes dá demasiado, dê-lhes ainda mais. Verá o efeito. Todos tratarão de assustá-lo com o fantasma de economia. É tudo mentira. Não há nada mais elástico que esta economia que todos temem tanto, porque não a conhecem”.

A data da carta é importante. O início dos anos 50, em parte por causa da guerra na Coreia, foi marcado por extraordinário aumento dos preços de exportação de países produtores de commodities, como Argentina, Brasil, Colômbia, Chile e Peru. A melhoria dos termos de troca e do volume da exportação permitiu um crescimento da renda em muito superior ao do produto doméstico, dando fôlego a certos experimentos como os sugeridos por Perón em sua carta, na suposição de que “nada é mais elástico que a economia”.

Os autores da expressão “efeito voracidade” (Tornell e Lane, 1999) no artigo que leva esse título já haviam tentado criar um modelo para explicar por que alguns países não apenas cresciam pouco, mas com frequência respondiam de maneira perversa a choques externos favoráveis – como elevações de termos de troca –, aumentando mais que proporcionalmente a “redistribuição fiscal dissipatória e investindo em projetos ineficientes”.

Vimos esse filme recentemente entre nós. Vimos também que a popularidade alcançada com esse tipo de política pode ser transitória, mas sua duração pode ser suficiente para acalentar sonhos de um “projeto” de permanência no poder no longo prazo. Como escreveu Perón na mesma carta: “É incrível até onde se pode ir neste caminho até capitalizar politicamente a massa popular. Uma vez em possessão dela, você não terá problema e o governo é uma coisa simples”.

Uma suposição endossada por muitos na América Latina nas décadas que se seguiram à carta de Perón. Inclusive no Brasil nesta segunda década do século 21, em que o governo acreditou (e levou muitos a endossar a ideia) que a aceleração do crescimento poderia ser assegurada por uma política dita “keynesiana” de caráter duradouro. Isto é, tanto pró-cíclica quanto anticíclica, já que nessa visão “gasto público é sempre investimento” em alguma coisa e teria sempre efeito multiplicador em termos de geração de renda adicional. Ainda há quem acredite nisso, apesar de todas as evidências em contrário. Quem duvida aguarde os discursos de alguns dos candidatos às eleições de 2018.

“A austeridade não é uma fatalidade” foi o mote da campanha vitoriosa de François Hollande à presidência da França, em 2012. Em artigo nesta página (13/5/2012) escrevi que a frase de efeito de Hollande expressava de forma sintética o sentimento, à época, de milhões de europeus e tinha dado renovado alento a um falso dilema; mais uma genérica dicotomia entre os “defensores da austeridade” e seus antípodas, “os defensores do crescimento”, como se essa fosse a fundamental, óbvia – e fácil – escolha europeia. E brasileira, diriam muitos.

Afinal, por que alguém preferiria sofrer as agruras da “austeridade” quando poderia, livremente, escolher maior crescimento, renda e emprego votando em quem se proponha a trazê-los de volta – pela força de sua vontade e autoproclamada capacidade para tal empreitada? No processo de tentar fazer valer a pura “força da vontade política” em condições muito adversas, governos podem tornar a situação ainda mais insustentável, como bem o sabemos.

E nas inevitáveis respostas a essas situações governos podem beirar os limites de suas capacidades (de tributar, de bem gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir), ficando tentados a seguir cursos indesejáveis de ação. Enquanto os políticos hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessárias, para pôr a economia no rumo apropriado para o crescimento de longo prazo, os problemas se agravam e se tornam mais difíceis de resolver, levando ao aumento dos encargos da dívida pública, mais direitos (ou expectativas de direitos) frustrados ou inacessíveis. E a um crescente número de desfavorecidos.

A questão central é se políticas de aceleração do crescimento e de geração de emprego com inclusão social e redistribuição de renda estão sempre destinadas ao fracasso. A resposta é, claramente, não. Mas isso exigiria uma atenção muito, mas muito maior a certos riscos, que os populistas aparentemente não estão muito dispostos ou preparados para aceitar – especialmente na área fiscal (nível, composição e eficiência tanto dos gastos públicos quanto da tributação), dívida pública e quanto à absolutamente necessária elevação da produtividade em seus respectivos países.

O debate sobre austeridade versus crescimento, quando generalizado, é um falso debate. Assim concluí meu artigo de maio de 2012: “Por certo, há limites para a austeridade, que podem ser de natureza econômica ou político-sociais, e que sempre dependem do contexto específico de cada país. Mas também é verdade que há limites para o crescimento, que são ou deveriam ser conhecidos. Governos não decidem, por meio de atos de vontade política, quais serão as taxas de crescimento futuro de uma economia”.

Em resumo, há limites para austeridade, há limites para o crescimento e há limites para o voluntarismo. Nenhum deles é uma fatalidade. Ainda bem. O que pode ser fatal é a recusa a reconhecer realidades (e irrealidades) fiscais, os principais fatores de risco para uma moeda – e para o crescimento –, na suposição de que “nada é mais elástico que a economia”

 

* Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

 

 


O Globo: Esquerda brasileira se divide sobre crise na Venezuela

O agravamento da crise política e social da Venezuela provocou fissuras na esquerda brasileira. Políticos ligados aos governos do PT, que defendem o presidente Nicolás Maduro, agora discutem se o regime vai ou não contaminar campanhas petistas de 2018. Se, por um lado, a ex-presidente Dilma Rousseff e a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), defendem abertamente o regime bolivariano, por outro, o ex-ministro da Justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, critica a falta de atualização programática do PT, que terá, segundo ele, sua imagem atrelada à da Venezuela de Maduro.

Enquanto isso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva agora tenta não vincular seu partido ao regime bolivariano.

Em entrevista à BBC News, Dilma disse ontem, sexta-feira (11), que o Ocidente tem uma visão “irresponsável” sobre a crise política e social da Venezuela e que a imprensa internacional trata o país de forma “absurda”.

— Não vou culpar apenas o Maduro. Existe um conflito. É que nem o que fizeram com o Saddam Hussein. O criminoso era o Saddam Hussein. Mataram-no da forma mais bestial possível. Quando fizeram isso, destamparam a caixa de pandora e saíram todos os monstros possíveis. A ponto de armas iraquianas financiarem os terroristas do Mali. De onde saiu o EI? O Estado Islâmico saiu do fato de os EUA acharem que tinha ali uma posição democrática. E não tinha — afirmou Dilma.

Nos últimos quatro meses, a crise venezuelana deixou pelo menos 125 pessoas mortas e quatro mil feridas, além de cinco mil presos de forma arbitrária. Com muita controvérsia, uma assembleia constituinte destituiu a procuradora-geral. A prisão de prefeitos opositores continua a aumentar a quantidade de presos políticos no país. Com uma das maiores inflações do mundo — cerca de 700% ao ano — e com 81% da famílias em situação de pobreza, os venezuelanos estão fugindo. Estima-se que mais de 12 mil tenham chegado ao Brasil desde 2014.

Tarso Genro avalia que Maduro “não tinha estratégia econômica adequada” para retirar a Venezuela da dependência da renda do petróleo. Assim, para o ex-ministro, o governo não usou uma saída política para manter um mínimo de consenso e “enfrentar as desestabilizações que viriam”. Tarso diz que a associação entre o partido e o presidente venezuelano já está dada:

— A imagem do PT já está associada à do presidente Maduro, mas isso não decorre das posições que o PT assumiu no contexto atual. Vem de que o PT não conseguiu fazer um “aggiornamento” (uma atualização) programático e ideológico, para enfrentar os novos cenários pós-Lula — afirmou.

PT e PSOL se posicionaram oficialmente em apoio à eleição de uma Assembleia Constituinte, considerando que o mecanismo “reforçava a democracia” no país vizinho. Essa tendência, porém, foi contestada por alguns integrantes das duas legendas que consideraram um erro defender Maduro.

MENOS EXPOSIÇÃO

No PT, as declarações de Gleisi Hoffmann, que defendeu a convocação da Assembleia Constituinte, preocuparam Lula. Não por uma discordância com Maduro, mas porque Lula tem poucas informações confiáveis do que acontece na Venezuela, argumentou um petista próximo ao ex-presidente. Gleisi e Lula debateram o tema esta semana para evitar maior exposição do partido.

— Maduro está se isolando demais, não tem aceito os acenos para o diálogo. Então, a crítica do Lula é que não é o momento de se expor por causa da Venezuela — contou esse petista. Outros partidos de esquerda, como PSB, não se posicionaram oficialmente porque consideram que o governo Maduro não age democraticamente.

— Não é aceitável eleger uma Assembleia Constituinte para fechar o Congresso que é oposicionista — disse o ex-deputado Beto Albuquerque, um dos porta-vozes da legenda.

 


Tibério Canuto: Filhotes de Maduro

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Universidade Federal de Minas Gerais são duas instituições com relevantes serviços prestados ao país, à ciência e à democracia. Por sua natureza, esses dois centros do saber e da cultura sempre se opuseram ao pensamento único, à intolerância e a qualquer manifestação totalitária.

Lembro-me muito bem dos meus tempos de juventude, quando realizávamos manifestações estudantis em Belo Horizonte e nos abrigávamos nas instalações da UFMG para nos proteger da repressão policial. De suas fileiras saíram muitos líderes estudantis e muitos intelectuais e cientistas que engrandeceram a cultura nacional.

Quando a sociedade civil começou a se rearticular nos anos 70, a SBPC foi uma de suas vozes, ao lado da OAB, ABI e CNBB. Seus congressos anuais foram momentos de resistência democrática e de efervescência política.

Suas histórias, portanto, são a negação do ódio. Por livre e espontânea vontade jamais a UFMG e a SBPC serviriam de palco para intolerantes que foram até a reunião anual da SBPC para hostilizar e impedir o senador Cristovam Buarque de divulgar o seu livro. Pasmem, em um encontro da ciência, “coletivos” do PT impedem a divulgação da cultura. Se pudessem, queimariam seu livro nas fogueiras da inquisição.

Agrediram o senador, é fato. Mas agrediram e desrespeitaram as duas instituições, sua história e sua cultura pluralista. Não pensem que se trata tão somente de uma ação tresloucada de alguns petistas espiroquetas.

O xingatório ao senador Cristóvam tem relação direta com o “mesaço” das senadoras Gleisi, Fátima Bezerra e Vanessa Grazziotin, que na mão grande tentaram tomar de assalto a condução dos trabalhos no Senado, durante a votação da reforma trabalhista.

Obedece à ordem dada por José Dirceu ainda de dentro da cadeia de uma “guinada à esquerda” do PT. Está em absoluta sintonia com a mensagem de solidariedade ao “companheiro Maduro” da presidente do PT, em recente encontro da esquerda bolivariana.

Propositadamente, o PT está açulando seus aprendizes de Maduro para criar uma escalada da violência, talvez por acreditar que, com a confirmação da condenação de Lula em segunda instância, a via institucional estará esgotada e que terão de apelar a outros meios. Esse é o sentido da afirmação de que eleição sem Lula é fraude. Ora, se é fraude, eles não participarão dela e percorrerão outras vias.

O PT não tem o menor compromisso com a democracia como um bem, um valor universal. Vivem na lógica binária robespierriana, que dividia o mundo em “bons e maus cidadãos”. Os bons são eles, claro, os maus todos os que não rezam por sua cartilha e merecem a guilhotina.

Se pudessem, os filhotes de Maduro fariam do Brasil uma Venezuela. Só não fazem porque não têm força e são obrigados a conviver com esse estorvo, a “democracia burguesa”, para enfraquecê-la por dentro. Não conseguirão porque felizmente o Brasil não é a Venezuela de Maduro. Nem por isso devemos subestimar seus filhotes.

Quanto ao senador Cristovam, sua biografia fala por si só. A ele toda a nossa solidariedade.

* Tibério Canuto é jornalista e comentarista político

 


Roberto Freire: Venezuela golpeada

Todos aqueles verdadeiramente compromissados com a defesa da democracia, da pluralidade e da liberdade vêm acompanhando com muita preocupação o desenrolar da gravíssima crise política e social pela qual passa a Venezuela. Infelizmente, o governo comandado por Nicolás Maduro, sucessor de Hugo Chávez, há muito ultrapassou todos os limites institucionais que ainda o distinguiam de um regime de exceção. O que existe hoje na Venezuela é uma ditadura instalada e escancarada que suprime direitos civis, mantém presos políticos e impede a separação e a independência entre os Poderes.

A escalada da tensão subiu muito nos últimos dias, especialmente desde que o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) decidiu simplesmente assumir as funções da Assembleia Nacional – cuja maioria é composta por parlamentares oposicionistas –, além de anular todas as decisões do Legislativo e retirar a imunidade dos deputados da oposição. Após tamanha arbitrariedade, diante da gigantesca repercussão negativa e da forte pressão da opinião pública internacional, o governo de Maduro recuou, e o TSJ suspendeu as decisões e restabeleceu as competências do Parlamento.

Entretanto, até mesmo essa atitude revela o caráter autoritário do regime venezuelano e a absoluta interferência do presidente da República no Judiciário, que está subordinado aos interesses do governo. Foi o próprio Maduro, afinal, quem convocou o chamado Conselho de Defesa, composto por representantes das diversas esferas de Poder, para que a medida fosse revogada. O presidente da Assembleia, Julio Borges, se negou a comparecer ao encontro e afirmou, corretamente, que o presidente venezuelano “é o responsável pela quebra da ordem constitucional” e que “não pode pretender, agora, ser um mediador”. Não restam dúvidas de que houve um autogolpe de Estado na Venezuela, perpetrado por um presidente que extrapolou suas prerrogativas constitucionais para instalar um regime ditatorial no país.

Em legítima resposta às sucessivas violações à Constituição, que infelizmente se tornou letra morta sob o regime chavista, as principais forças de oposição convocaram grandes manifestações no país. As imagens que rodam o mundo mostram Caracas e várias outras cidades venezuelanas tomadas por uma multidão pedindo a liberdade imediata dos presos políticos, a convocação de eleições gerais e, consequentemente, a saída de Maduro. É importante lembrar que, no fim do ano passado, o país já havia registrado aquelas que, muito provavelmente, foram as maiores mobilizações da história recente da Venezuela, talvez tendo até superado, proporcionalmente, os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff no Brasil.

Na última segunda-feira (3), o Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou por aclamação uma resolução em que aplica a Carta Democrática do bloco contra a Venezuela. Segundo o texto do documento, a decisão do TSJ de assumir as atribuições do Parlamento “é incompatível com a prática democrática” e configura “uma violação da ordem constitucional”. Uma das vozes mais críticas ao atual regime venezuelano, o secretário-geral da entidade, o socialista uruguaio Luis Almagro, já havia qualificado recentemente o governo de Maduro como uma “tirania”. Em mensagem publicada no Twitter em agosto de 2016 e direcionada ao opositor venezuelano Leopoldo López, um dos muitos presos políticos naquele país, Almagro afirmara que não há na Venezuela “nenhuma liberdade fundamental e nenhum direito civil ou político”. É importante destacar que se trata de um respeitado advogado, político e diplomata uruguaio, integrante da chamada Frente Ampla. Almagro foi ministro das Relações Exteriores do governo de José Mujica.

Em linhas gerais, trata-se de uma posição semelhante àquela adotada pelo Itamaraty, sob comando do chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que vem dando continuidade ao bom trabalho realizado pelo ex-ministro José Serra. Sob o governo do presidente Michel Temer, a política externa brasileira foi reconduzida ao patamar em que sempre esteve e do qual se afastou durante os 13 anos de governos lulopetistas. Com uma postura firme, altiva e crítica em relação ao autoritarismo chavista, o Brasil hoje não é mais subserviente em relação aos abusos cometidos por Nicolás Maduro. Tanto é assim que, em reunião no último sábado (1º) com a presença dos chanceleres de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, o Mercosul ativou a cláusula democrática contra a Venezuela em função da “falta de separação de poderes” e por ter identificado uma “ruptura da ordem democrática”.

Não há saída para a crise enfrentada por aquele país que não passe, de imediato, pela libertação de todos os presos políticos e abertura de um diálogo amplo e irrestrito entre o governo de Maduro, a sociedade civil e as oposições, além do cumprimento de um cronograma eleitoral. Manifestamos nossa solidariedade ao povo venezuelano, que tem coragem e determinação, apesar de todo o sofrimento, e certamente será bem sucedido ao final dessa árdua caminhada em direção à liberdade.

(Diário do Poder – 07/04/2017)

Roberto Freire é presidente licenciado do Partido Popular Socialista (PPS)


Roberto Fendt: A Venezuela e a ‘Tríplice Aliança’

Quando o assunto da presidência rotativa do Mercosul parecia já fora de pauta e com solução encaminhada, em entrevista nesta semana o presidente Rafael Correa, do Equador, saiu-se com esta: “Você pode gostar ou não do governo da Venezuela, mas a presidência rotativa cabe à Venezuela, se é por ordem alfabética”, afirmou. E completou: “É preciso cumprir as regras do jogo”. Sem a virulência do chanceler venezuelano, as palavras de Correa indiretamente endossam a posição do chanceler venezuelano. Segundo o chanceler, Argentina, Brasil e Paraguai formaram uma “tríplice aliança” com o objetivo de “tomar de assalto” a presidência do Mercosul. Essa suposta entidade sinistra teria por objetivo “reeditar uma espécie de Operação Condor contra a Venezuela, hostilizando e criminalizando seu modelo de desenvolvimento e democracia”. Curiosa retórica.

Na Venezuela de hoje não sobrevivem nem o desenvolvimento nem a democracia. O país terminou 2015 com uma queda do PIB de 10%, com inflação de 275%, reservas internacionais em queda e com escassez generalizada de alimentos e outros bens de consumo. Estimativas otimistas projetam uma queda adicional do PIB de 8% e inflação de 720% em 2016. É desnecessário elaborar sobre os ataques às liberdades individuais dos venezuelanos, tal a extensão desses atentados e seu amplo conhecimento em todo o continente. Não pairam dúvidas entre as pessoas de boa-fé de que o presidente Nicolás Maduro não tem condições para assegurar a governança do Mercosul.

Há várias razões para essa conclusão. Do ponto de vista estritamente institucional, é promissor que Brasil, Argentina e Paraguai façam prevalecer o bom senso sobre o alfabeto na questão da presidência rotativa do Mercosul. De fato, como afirmou Correa, é preciso cumprir as regras do jogo. Cabe perguntar que regras são essas. A mais básica delas é a de que a governança do bloco comercial cabe rotativamente a seus membros plenos – os países signatários que compatibilizaram dentro dos prazos acordados nos protocolos de adesão a sua legislação comercial ao ordenamento comum. A Venezuela teve quatro anos para fazê-lo e o prazo vence no ano em curso.

Em momento algum demonstrou interesse em levar adiante esse projeto. Nada indica que poderá fazê-lo nos próximos quatro meses. A rigor, questiona-se se a Venezuela deveria ou não fazer parte do bloco comercial porque sua entrada foi efetuada contra a oposição do Paraguai, país fundador do Mercosul. Sua adesão como Estado-parte resultou de uma manobra espúria, obtida com a suspensão do Paraguai em 2012, país que se opunha a seu ingresso.

As desavenças, é claro, não estão restritas a uma questão alfabética de a quem cabe a presidência semestral rotativa do Mercosul. Trata-se de questões muito mais relevantes que abrangem desde o tamanho do Estado nas economias à escolha do regime comercial e a inserção no mundo globalizado, com todas as suas consequências para o desenvolvimento econômico. Nos últimos 15 anos a opção foi em favor de um Mercosul bolivariano, introspectivo, protecionista e com o protagonismo da política em detrimento dos aspectos de integração econômica.

Está agora começando a questionar- se esse modelo, saudoso que é dos tempos áureos da substituição de importações da década de 1950. Os governos do Brasil, Argentina e Paraguai enviaram, com a rejeição da presidência pro tempore venezuelana do Mercosul, uma clara mensagem de que o vento está começando a soprar em outra direção, a da inserção competitiva dos países do Mercosul na economia global.

Para que esses três países formem uma “tríplice aliança”, será necessário que a sustentem no tripé rejeição da autarquia econômica, do protecionismo como instrumento de desenvolvimento e integração competitiva na economia mundial. Quando isso conseguirmos, teremos feito, juntos, uma tríplice aliança do bem, para proveito dos cidadãos de nossos países. (O Estado de S. Paulo – 14/08/2016)


Fonte: pps.org.br