Maduro

Clóvis Rossi: E se Guaidó fracassar no sábado?

A receita Mourão é correta; falta cozinhá-la

O general Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil, tem toda a razão ao dizer, sobre a Venezuela, que “a única solução é o regime do Maduro entender que acabou, promover novas eleições, se eleja quem tem que ser e partir daí terá de ter haver plano Marshall na Venezuela".

De acordo, general. Pena que eu não tenha conseguido contato contigo para perguntar se a tentativa de fazer entrar ajuda humanitária na Venezuela neste sábado (23) vai de fato contribuir para chegar à solução proposta.

Tomara que sim, mas temo que não. Examinemos as possibilidades mais lógicas a respeito do 23F:

1 - A ajuda não entra, pela truculenta resistência da ditadura. Analisa, desde já, o Miami Herald, geralmente bem informado sobre Venezuela, até pela vizinhança geográfica: “Tantos apoiadores como críticos da decisão de reconhecer Guaidó [Juan Guaidó, como presidente interino] estão preocupados em perder o ímpeto para eleições se o sábado chega e passa sem uma mudança no status quo".

Essa suposição sobre a perda de ímpeto é recorrente na mídia internacional, para o caso de fracassar a iniciativa de Guaidó.

A oposição terá conseguido apenas expor a um público bastante amplo e à mídia internacional, ao vivo e em cores, a brutalidade da ditadura.

Minha dúvida é saber se as caravanas convocadas por Guaidó se conterão ao chegar às fronteiras ou se se atirarão contra as tropas que as estão bloqueando. Abre-se a perspectiva de um banho de sangue cujas consequências não dá nem para imaginar.

2 - A ditadura, além da truculência tradicional, recorre a um trambique, outra de suas especialidades: deixa a ajuda entrar, mas, à medida que os caminhões vão se afastando das fronteiras e, por extensão, da vista do público e da mídia externa, se apropriam dos carregamentos.

Faz, em seguida, ela própria, a distribuição de alimentos e medicamentos, para o que até já dispõe de um mecanismo (militarizado), os CLAPs (Comitês Locais de Abastecimento e Preços). É o meio para exercer controle social sobre a população.

É capaz até de ganhar pontos porque a penúria dos venezuelanos é tão tremenda que qualquer alívio é bem recebido, venha de quem vier.

3 - Os militares permitem a entrada da ajuda. Seria o “game over” para Maduro, porque significaria ter perdido o respaldo do único setor com que conta para manter-se no poder.

Ainda assim, seria preciso ver se Maduro “entende que acabou", como gostaria o general Mourão, ou se será preciso uma negociação (com quem?) para estabelecer as regras para a transição até as eleições.

Qualquer que seja o desfecho deste sábado, gostaria que o general Mourão explicasse o que vai propor, na segunda-feira (25), quando se reunir na Colômbia o Grupo de Lima, o conglomerado dos principais países das Américas que tenta tirar a Venezuela do buraco.

Se eu fosse o general, proporia, para começar, tirar protagonismo dos Estados Unidos, hoje o país que mais atiça as chamas e, por extensão, o que mais estimula Maduro a reagir com fogo. Talvez a liderança de países e/ou instituições menos hidrófobas (Canadá, União Europeia, por exemplo) crie melhores condições para criar o percurso (correto) do general Mourão.

Intervenções americanas anteriores criaram, no mais das vezes, ditaduras cruéis —e ditaduras é tudo o que Venezuela dispensa depois da tragédia a que foi conduzida.


Ricardo Noblat: Ajuda de mentirinha à Venezuela

Ameaçada a entrega de alimentos

A não ser que mude o que estava planejado até ontem, não passará de mentirinha a ajuda do governo brasileiro aos venezuelanos famintos e vítimas da ditadura instalada naquele país.

Havia 200 toneladas de alimentos a serem despachadas para um lugar na fronteira entre os dois países. E lá, apenas um caminhão para transportá-la.

A decisão do governo brasileiro era de esperar que venezuelanos fossem buscá-la. Se não forem ficará por isso mesmo. O governo de Nicolás Maduro fechou a fronteira do país com o Brasil.

Será difícil que algum caminhão consiga passar de um lado para o outro. De resto, o governo brasileiro não quer se meter numa encrenca que só renderia dividendos políticos ao governo de Donald Trump.

PT de ouvidos moucos

Algemado a Lula em Curitiba
Vez por outra, algum petista de alto coturno cobra do partido que admita os erros que cometeu, liberte-se de sua dependência doentia e infantil de Lula, e que se reinvente.

Foi o que fez ontem, por exemplo, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), reeleito no ano passado com quase 80% dos votos.

“Lula sofre uma grande injustiça, deu uma grande contribuição ao país, mas precisam vir novas pessoas, novos quadros”, defendeu Santana, aliado também de Ciro Gomes (PDT-CE).

A corrente majoritária dentro do PT não quer mudanças, a não ser cosméticas. Lula já indicou que se depender dele, a deputada Gleisy Hoffman continuará no comando do partido. É de sua confiança.

Mesmo líderes do PT favoráveis a um passo à frente do partido temem que ele se fragmente durante esse processo. A aparente unidade só se mantém por causa da força de Lula.

Dará em nada a sugestão de Santana. O PT jaz algemado ao seu mentor em um cárcere de Curitiba. Faz o papel de uma pálida e triste figura. Apostará no fracasso do governo Bolsonaro. E é só.


Merval Pereira: Sem intervenção

Resistência truculenta da ditadura de Maduro pode provocar confronto de dimensões imprevisíveis

O governo brasileiro, até o momento, tem dado prioridade às informações sobre as repercussões no dia a dia de nossa fronteira com a Venezuela, e não às questões militares, que são apenas laterais, pois a decisão é não participar de eventuais tentativas de golpe contra a ditadura de Nicolás Maduro, a despeito de o governo bolivariano acreditar que a “ajuda humanitária” coordenada pelos Estados Unidos não passa de um pretexto para uma invasão.

Não para as autoridades brasileiras. A preocupação, ao contrário, é em relação ao deslocamento de membros da Guarda Nacional Bolivariana para a fronteira brasileira, pois são soldados que não conhecem a região, ao contrário dos venezuelanos que lá estão, já bastante entrosados com os brasileiros. Tanto que, apesar da gravidade da situação, oficialmente o governo brasileiro não considera uma hostilidade o fechamento da fronteira pela Venezuela

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, fala em nome do governo quando diz que a Venezuela pode fazer o que quiser dentro de seu território para tentar impedir que a ajuda humanitária chegue a seus cidadãos, o que seria um erro político, mas não uma agressão ao Brasil. Para ele, pensar em intervenção dos Estados Unidos na Venezuela não faz sentido, sendo “prematuras” as preocupações, pois uma ação dessas “não faria sentido”.

Para Mourão, “os Estados Unidos estão mais na retórica do que na ação. A Venezuela tem que ser resolvida pelos venezuelanos”. O governo brasileiro admite que a ajuda humanitária tanto na fronteira do Brasil quanto da Colômbia, e na Guiana, sob a coordenação da União Europeia, é mais simbólica, pois a quantidade necessária de alimentos para equilibrar a situação é muito maior, diante do quadro trágico do momento.

A situação do lado brasileiro tem alguns pontos de atenção, como, por exemplo, o desabastecimento, pois muitos venezuelanos estão fazendo estoques de mantimentos em compras do lado brasileiro. Há também o perigo de falta de energia, pois aquela região é dependente da Venezuela e, em caso de racionamento, temos combustível para o funcionamento de uma termoelétrica por cerca de dez a 15 dias.

Ontem mesmo, nas diversas reuniões que foram feitas, o governador de Roraima, Antonio Denarium, conseguiu a aceleração dos estudos, inclusive de impactos ambientais, para a obra do linhão que trará energia de Tucuruí para a região, que deixaria de ser dependente de fornecimento do exterior. Todos os órgãos de informação do governo estão dedicados a detectar o que acontecerá hoje, quando estão marcadas pelo governo interino de Guaidó manifestações na fronteira para forçar o recebimento dos mantimentos. O Brasil, porém, continuará na posição de levar a ajuda humanitária até a fronteira e exigir que os venezuelanos venham pegar os mantimentos.

Não se sabe qual será a reação da Guarda Nacional Bolivariana, nem a da população local, que sofre com a crise e se revolta com a proximidade do que lhes faz falta vital, sem conseguir usufruir. Ontem, os conflitos já provocaram duas mortes na fronteira, e Maduro estimulou as forças militares a se manterem na repressão a todo custo. A resistência truculenta e sanguinária da ditadura de Maduro pode provocar um confronto de dimensões imprevisíveis. Se, no entanto, as demonstrações marcadas para hoje em todo o país em favor do governo provisório fracassarem, é previsível que a ditadura de Maduro, mesmo à custa de uma repressão brutal, ganhe nova força. Na segunda-feira, haverá a reunião do grupo de Lima em Bogotá, e o vice-presidente Hamilton Mourão representará o Brasil, que também terá a presença do vice dos Estados Unidos, e manterá a posição de não intervenção.

Como já contei em outra coluna, o então ministro da Defesa da Venezuela, general Vladimir Padrino López, teve em Caracas uma reunião com seu correspondente brasileiro à época no governo Temer, general Joaquim Silva e Luna, na qual pediu que o Brasil não participasse de uma eventual força multinacional de “ação humanitária”, pois ela seria só início de uma intervenção, estimulada pelos Estados Unidos.

Embora participe da ação coordenada pelos Estados Unidos e União Europeia, tudo indica que o Brasil não endossará uma ação militar para derrubar o governo de Maduro, e a estratégia continua sendo pressioná-lo através de declarações e apoio ao interino Guaidó.

O fato de que no governo Bolsonaro há diversos generais que chefiaram a força de paz da ONU no Haiti e no Congo, considerados combatentes treinados em situações desse tipo, leva à interpretação de que apoiariam uma ação nesses moldes na Venezuela, mas por enquanto não há clima para isso.


Daniel Aarão Reis:Maus ventos na América Latina

Venezuela atolou-se no impasse. Alternativa democrática seria eleições com controle internacional

O coronel Hugo Chávez apareceu na história venezuelana como um furacão. Na esteira de uma insurreição popular ocorrida em Caracas, o Caracazo, em 1989, que protestava contra uma república elitista e desigual, tentou, três anos depois, um golpe de Estado com propostas e políticas de direita. Fracassou e foi preso. Indultado, reapareceu metamorfoseado em chefe nacionalista... de esquerda. Carismático, empolgou as multidões com críticas à corrupção, às desigualdades sociais, à violência, à dependência do país ao petróleo e aos Estados Unidos. Eleito presidente da República pela via democrática, em 1999, anunciou-se como intérprete de um socialismo do século XXI — renovado e original.

Acreditou quem quis.

O militar, a rigor, foi mais um exemplo da cultura política nacional-estatista, típica da América Latina. Sua popularidade nutriu-se de políticas sociais redistributivas, controladas e reguladas pelo Estado, e da melhoria de serviços públicos básicos. Na primeira década do novo século, a Venezuela era a pérola mais brilhante no colar de governos e lideranças nacional-estatistas que existiam na região. Dos mais radicais (Bolívia e Equador) aos mais moderados (Argentina e Brasil), todos reconheciam em Chávez um líder. Uma aliança sólida com a ditadura cubana conferiu-lhe um verniz socialista.

As forças conservadoras desorientadas, desacreditadas, abstiveram-se de participar da eleição de uma Assembleia Constituinte que pôde elaborar uma Carta à feição da autoproclamada revolução bolivariana. Partidária do nacionalismo. Um Estado forte, intervencionista e regulador. Um chefe carismático.

De cima para baixo viriam as benesses às classes populares, cujos movimentos deveriam ser disciplinados e controlados pelo Estado. Havia ali contradições singulares. Um governo nacionalista que não rompia os laços com os Estados Unidos. Embora contra o capitalismo, não alterava as estruturas capitalistas do país. Celebrava o poder popular, contudo, os movimentos sociais não dispunham de autonomia alguma. A corrupção e a violência, males endêmicos, continuavam a prosperar.

Aquela revolução era um espetáculo? Assim a denunciou Rafael Uzcátegui, mas as palavras não ecoaram. Teodoro Petkoff, falecido ano passado, veterano de bons combates, criticaria uma esquerda messiânica e autoritária, em oposição a uma outra, republicana, reformista e democrática. Tampouco foi ouvido. Vozes no deserto.

A morte do comandante, em 2013, já pegou o país no declínio das rendas petrolíferas. O substituto, Nicolás Maduro, uma caricatura, não foi capaz de lidar com a crise que desabou sobre o país.

Como usual, o colapso da economia foi atribuído ao governo. O resultado não se fez esperar: as oposições venceram as eleições, em 2015, para a Assembleia Nacional. Os chavistas contra-atacaram convocando uma nova Constituinte e reelegendo Maduro, em escrutínio questionado, para um novo mandato.

A manobra não vingou, e o novo líder das oposições, Juan Guaidó, aliando-se à pior direita latino-americana, proclamou-se presidente e novo salvador da pátria. Com dois presidentes opostos e hostis, o país atolou-se no impasse. A alternativa democrática seria a realização de novas eleições gerais com controle internacional, mas a ideia não ganha fôlego. Articulou-se uma aliança internacional, capitaneada por Donald Trump, e apoiada pela maioria de estados latino-americanos e europeus a favor de Guaidó. Hoje, 23 de fevereiro, esgota-se o prazo dado a Maduro para aceitar a entrada de produtos e medicamentos enviados pelos EUA ao país. A mal chamada intervenção humanitária, que pode vir armada até os dentes, e que levou a Líbia e outros países ao caos, desponta como hipótese.

“Sopra um vento mau sobre a Europa”, disse Nathalie Loiseau, ministra francesa das Relações Europeias, referindo-se a governos de direita no continente. Sopra também um vento mau na América Latina, e o desfecho da crise venezuelana poderá transformá-lo numa tempestade de destruição e morte.

*Daniel Aarão Reis é professor de história da UFF


Míriam Leitão: A difícil crise da Venezuela

Brasil em hipótese alguma vai cruzar a fronteira da Venezuela, mas esse fechamento imposto por Maduro elevou muito a tensão entre os dois países

A visão do Brasil é que a tensão está na divisa entre Colômbia e Venezuela. E a decisão tomada é de, em hipótese alguma, o Brasil cruzar a fronteira, segundo disse um integrante do governo. O anúncio da Venezuela de fechar a fronteira com o Brasil coloca o país numa situação rara na história das relações com os vizinhos. De um lado, o presidente Nicolás Maduro, cercado de militares, anunciou o fechamento da fronteira, de outro, o porta-voz da Presidência brasileira, Otávio Rêgo Barros, confirmou que os alimentos e remédios serão enviados o mais próximo da Venezuela, à espera de que caminhoneiros venham buscar. Mesmo que eles consigam atravessar, certamente enfrentarão violência do lado de lá. O nosso ponto fraco, como se sabe, é a dependência de Roraima da energia da hidrelétrica de Guri.

Das várias coisas estranhas desta crise, uma é o reconhecimento de Juan Guaidó como presidente da Venezuela, que de fato ele não é.

— O ato de reconhecimento pressupõe controle do território, controle do poder real. Esse é o primeiro requisito do reconhecimento. E Guaidó não tem isso. O que se esperava nessa ação de vários países era criar uma situação que favorecesse a queda de Maduro, mas isso foi há quase um mês, ele permanece controlando o país, e tudo o que se espera é uma cisão nas Forças Armadas — diz o embaixador Rubens Ricupero.

Em 2018, houve um impedimento por decisão judicial de entrada de venezuelanos, mas o bloqueio logo foi suspenso. Fechamento com tropas da divisa do Brasil não ocorre há muito tempo.

— Fui chefe da divisão de fronteiras, e nos últimos 50 anos não me lembro de um fechamento como esse. O temor de Maduro é de que haja uma invasão militar do país, não pelo lado brasileiro, mas pelo lado da Colômbia, que tem uma fronteira muito mais povoada e muito mais porosa. A presença do vice-presidente americano na Colômbia neste fim de semana aumenta essa tensão — afirmou Ricupero.

Maduro convocou as milícias bolivarianas e os coletivos, grupos armados, sem disciplina militar, e instalados em áreas de alta criminalidade, a ficarem de prontidão. A suspeita é de que eles estejam se preparando para atacar e saquear os caminhões caso eles entrem em solo venezuelano. Já que Guaidó tem voluntários, mas não o poder da força.

A Venezuela sangra há tanto tempo que desafia qualquer previsão sobre a evolução dos acontecimentos. O governo provocou o encolhimento do PIB em 50% em cinco anos — a última vez que o país cresceu foi em 2013 — e a explosão de uma hiperinflação de um milhão e 700 mil por cento. Em qualquer país, esse governo já teria caído. É intolerável o sofrimento continuado que o chavismo tem imposto aos venezuelanos, como resultado dos seus erros na economia e seu sistemático ataque às instituições democráticas.

A dificuldade é saber qual é a melhor forma de influenciar positivamente a evolução política do país. No meio desse esforço internacional, no qual o Brasil se envolveu, há uma disputa entre Estados Unidos e Rússia, com a China acompanhando a uma certa distância. A Venezuela por sua vez tem Forças Armadas muito bem equipadas.

As relações comerciais entre Brasil e Venezuela já encolheram muito desde o fim do governo petista, que estimulava o comércio e as relações econômicas, concedendo empréstimos através do BNDES. Apesar disso o Brasil ainda depende da energia de Guri para manter o suprimento em Roraima. Em 2017, a Eletronorte gastou R$ 134 milhões comprando energia para atender dois terços da demanda do estado.

A Venezuela não é um governo de esquerda, como supõe uma parte da esquerda brasileira. É uma ditadura, que persegue qualquer líder que surja na oposição, que promoveu um ataque sistemático à imprensa independente, que saqueou os recursos do país para se manter no poder e comprar o apoio dos militares. Com a crise econômica, o governo chavista empobreceu os pobres que havia prometido empoderar no começo desses 20 anos em que está no poder.

No governo de direita no Brasil há outro perigo. Se deixado apenas com o Itamaraty de Ernesto Araújo, de ideologia delirante, podem ser tomadas decisões que ponham o Brasil em risco. Faz bem o governo de mandar o vice-presidente, Hamilton Mourão, junto com o chanceler para Bogotá. Todo o cuidado é pouco neste momento de tensão extrema.


Eliane Cantanhêde: Maduro e os militares

Maduro só não caiu porque tem sustentação das Forças Armadas, altamente corruptas

É altamente constrangedor, mas a verdade é que o último elo de sustentação do agonizante regime de Nicolás Maduro são as Forças Armadas da Venezuela e elas são, antes mesmo de Hugo Chávez, incluídas entre as mais corruptas das Américas.

Essa avaliação percorre os gabinetes militares do governo Jair Bolsonaro, que busca portas e atalhos para manter-se informado não apenas sobre a situação e os movimentos do próprio Maduro, como também sobre a disposição e as divisões dentro das Forças Armadas, que têm mais de mil generais. Um espanto!

Maduro é tratado no Brasil, no governo e fora dele (exceto em parte do PT), como patético, mas, ainda assim, perigoso. As Forças Armadas são fundamentais para apagar esse último adjetivo, mas insistem em apoiá-lo.

Um dia depois do grande momento de Bolsonaro, com o lançamento da “nova Previdência”, a quinta-feira foi tomada pela surpresa e pela discussão sobre a decisão de Maduro de fechar as fronteiras entre os dois países para impedir a entrada de caminhões com alimentos e medicamentos.

De certa forma, é uma declaração de guerra, ao menos de guerra branca. Curiosamente, o vice Hamilton Mourão vai participar da reunião do Grupo de Lima, em Bogotá, e Bolsonaro se reuniu com os ministros Augusto Heleno (GSI) e Santos Cruz (Secretaria de Governo), além de Onyx Lorenzoni (Casa Civil), sem convocar o chanceler Ernesto Araújo, só contatado por telefone. Depois, o porta-voz Rêgo Barros evitou um tom beligerante ou qualquer vestígio de ameaça, só avisando que a “Operação Acolhida” está mantida.

A situação é delicada por vários motivos, principalmente porque há um cerco de 50 países à Venezuela, isolada, desabastecida, em desgraça, mas ninguém sabe, ou diz, qual a saída de fora para dentro. Em articulação, ou até arregimentados pelos EUA, o Brasil e a Colômbia atraíram para si não apenas os holofotes, mas a responsabilidade pela solução do problema, e sem a via diplomática, implodida por Maduro. Sem a via diplomática, o que resta?

No mais, a gravíssima crise na Venezuela envia claros sinais para o Brasil, até porque, lá, o regime Chávez surgiu de um acordo entre a cúpula das Forças Armadas e parcelas da esquerda, sendo o próprio Chávez o instrumento e uma síntese dessa aliança. No Brasil, a “nova era” é resultado da indignação das Forças Armadas, muito particularmente do Exército, e de parcelas da direita, sendo Bolsonaro o instrumento e uma síntese dessa aliança.

Lá e cá, o estopim foi a exaustão, dos militares, de setores políticos e da própria população, diante da desordem, da corrupção, dos abusos das elites. Logo, os objetivos foram os melhores possíveis, mas, entre a teoria e a prática, entre a intenção e a execução, há um inferno cheio de variados demônios.

Como todo autoritário, convicto de que é dono da verdade, da pureza, das melhores intenções e da solução, Chávez foi cometendo um erro atrás do outro, até chegar ao mais dramático deles: não preparou um sucessor e, ao morrer, jogou o seu país no colo de Maduro, despreparado e irresponsável.

O mais chocante é que, assim como deram suporte à aventura Chávez, os militares garantiram a ascensão de Maduro. Logo, como lamentam generais brasileiros, os dois fatores confluíram: a velha corrupção arraigada nos comandos venezuelanos e a nova e doce sensação de poder, com a política entrando e inundando os quartéis.

Os militares brasileiros não têm absolutamente nada a ver com os venezuelanos. Profissionais, muito bem treinados, respeitados no mundo todo e sempre líderes das pesquisas, eles estão no centro das discussões sobre as saídas para o país vizinho, mas com uma certeza: o uso da força não é uma dessas saídas.


El País: Governo Bolsonaro mantém plano de ajuda para Venezuela apesar da fronteira fechada

Operação para entregar alimentos e remédios permanece prevista para sábado. Vice-presidente Mourão e chanceler Ernesto Araújo vão a Bogotá debater crise

Desta vez o líder chavista Nicolás Maduro cumpriu seu aviso de fechar a fronteira e antes do prazo que ele mesmo havia dado. As autoridades venezuelanas fecharam por volta das 15h de quarta-feira (16h em Brasília) o principal posto de fronteira com o Brasil, o de Pacaraima, no Estado de Roraima, para impedir a entrada de um comboio de ajuda humanitária organizado por Juan Guaidó — reconhecido por vários países como presidente interino da Venezuela — e vários Governos liderados pelos Estados Unidos. O fechamento aconteceu seis horas antes do horário anunciado por Maduro e dois dias antes da data designada por Guaidó para a entrada dos insumos. “Já fecharam”, anunciou o governador de Roraima, Antonio Denarium, à imprensa local.

O Brasil mantém seus planos apesar da decisão de Maduro, como ressaltou o porta-voz do Governo em sua aparição diária. Depois de ordenar o fechamento da fronteira de 2.100 quilômetros com o Brasil e dizer que cogita fazer o mesmo na muito mais transitada fronteira com a Colômbia, o líder venezuelano disse: “Quero uma fronteira dinâmica, aberta, mas sem provocações, sem agressões, porque sou obrigado, como chefe de Estado, como chefe de Governo e como comandante-chefe das Forças Armadas, a garantira a paz e a tranquilidade”.

Com perfil baixo, o Governo brasileiro se juntou ao operativo internacional para introduzir medicamentos e alimentos na Venezuela no sábado, dia 23. Roraima é um dos estados mais pobres do Brasil e o desembarque de 95.000 venezuelanos criou enormes tensões com a população local, apesar de ser um número mínimo em comparação com os três milhões que deixaram sua pátria. E, além disso, a eletricidade do Estado de Roraima vem da Venezuela, uma questão importante na dinâmica bilateral.

Embora Maduro tenha ameaçado em várias ocasiões fechar a fronteira desde que começaram as tensões com o Brasil por conta do êxodo dos venezuelanos, somente em poucas ocasiões o trânsito na fronteira foi interrompido, explicou na quarta-feira pelo telefone um morador de Pacaraima.

Jair Bolsonaro pisou no freio em relação ao país vizinho. Seu Executivo foi um dos primeiros a reconhecer Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, como presidente interino da Venezuela, mas esperou até segunda-feira para confirmar sua participação no envio de ajuda humanitária e até agora tem sido extremamente sucinto nos detalhes. Não se sabe quando e quanta ajuda fornecerá. Entre os poucos detalhes dados pelo Ministério das Relações Exteriores figura que os suprimentos serão carregados em caminhões venezuelanos e que cruzarão o posto de fronteira dirigidos também por venezuelanos, de acordo com o comunicado divulgado na noite de segunda-feira.

A atitude do Gabinete do ultradireitista contrasta com a alardeada mobilização dos EUA de Trump, que enviaram toneladas de ajuda humanitária a Cúcuta (Colômbia), o cenário principal da queda de braço entre Guaidó e Maduro. A ajuda humanitária tem uma dupla finalidade: aliviar a escassez, mas também tentar que os militares que guardam as fronteiras deem as costas ao regime deixando entrar os carregamentos.

Tampouco existe algo previsto em Pacaraima que seja semelhante ao show com várias estrelas desta sexta-feira, organizado por Richard Branson — ao qual Maduro pretende responder com outro show com músicos afins — no principal posto de fronteira entre Venezuela e Colômbia.

Para além da retórica do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o Brasil está administrando com cautela essa ofensiva política para derrubar Maduro. Junto com o chanceler, foi designado para participar na próxima reunião do Grupo de Lima, que agrupa praticamente toda a região, o vice-presidente, Hamilton Mourão. O general aposentado, que conhece bem o estamento militar venezuelano, pois foi adido militar na Embaixada do Brasil em Caracas, participará da reunião na segunda-feira com os representantes de praticamente todos os países da América Latina, com exceção do México, para discutir os próximos passos destinados a que Maduro deixe o poder.


El País: Maduro fecha fronteira da Venezuela com Brasil para barrar ajuda humanitária

Presidente da Venezuela estuda tomar medida similar em relação à Colômbia, por onde está previsto começar a entrar a ajuda humanitária

O presidente da VenezuelaNicolás Maduro, ordenou o fechamento da fronteira de seu país com o norte do Brasil, em meio à escalada da tensão pela iniciativa dos países que não o reconhecem mais como presidente, entre eles os EUA e próprio Brasil, impedindo-os de entregar medicamentos e alimentos aos venezuelanos numa operação planejada para começar no sábado, 23 de fevereiro. Inicialmente, o presidente venezuelano havia afirmado que a medida entraria em vigor às 20h da Venezuela (19h no horário de Brasília), mas acabou fechando a entrada seis horas antes do previsto, segundo o governador de Roraima, Antonio Denarium (PSL). O Governo Bolsonaro ainda não se pronunciou.

A tentativa de enviar ajuda humanitária aumenta a disputa entre Juan Guaidó, presidente interino e reconhecido por mais de uma centena de países, e Maduro, que já havia elevado o alerta militar nas fronteiras e agora decreta o fechamento completo do limite de 2.200 quilômetros que separam a Venezuela e o norte brasileiro. O mandatário "avalia", além disso, tomar uma medida semelhante em relação à Colômbia. "A partir de hoje fechamos a fronteira com o Brasil, [e tomamos] todas as medidas de segurança e até segunda ordem", afirmou."Quero que seja uma fronteira dinâmica e aberta, mas sem provocações, sem agressão, porque sou obrigado como chefe de Estado, chefe de Governo e comandante em chefe da FANB a garantir paz e tranquilidade", afirmou.

A situação de Roraima

A medida foi anunciada um dia depois que a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodriguez, anunciou o fechamento da fronteira aérea e marítima com as Antilhas Holandesas e afirmou que Caracas colocou "sob revisão" as relações com esses países. Colômbia, Brasil e Curaçao acumularam toneladas de ajuda humanitária enviadas para a Venezuela, que está passando por uma profunda crise econômica com escassez de alimentos e remédios que levou pelo menos três milhões de venezuelanos a emigrarem, segundo dados da ONU. Maduro se opõe à entrada da ajuda humanitária, que ele descreveu como "uma armadilha", com o argumento de que é uma estratégia dos Estados Unidos e aliados para violar a soberania da Venezuela.

O principal ponto de entrada da ajuda, no plano da oposição, é pela Colômbia. Guaidó viajou nesta quinta-feira em direção à fronteira de seu país com a divisa colombiana para comandar o operação de ajuda, marcada para o sábado. O presidente interino se juntará a uma caravana de ônibus com centenas de pessoas e até um show na cidade de Cúcuta, a principal da fronteira, está marcado em apoio à resistência a Maduro. 

Na fronteira com o Brasil, mais precisamente no Estado de Roraima, também haverá movimentação. O Governo brasileiro também vai disponibilizar medicamentos e alimentos com recursos próprios para a população da Venezuela. Segundo o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, a ajuda será disponibilizada nas cidades de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, e em Boa Vista, ambas em Roraima, o Estado que mais recebe venezuelanos no país. Entre 2017 e 2018, o Brasil recebeu 111.000 venezuelanos. De acordo com o Governo federal, entram por hora no país 33 venezuelanos, em média. Aproximadamente, 800 por dia.


Luiz Sérgio Henriques: Os fatos da Venezuela

Absurdo drama humano, motivo de vergonha para seus promotores e quem lhes dá apoio

Certamente próxima do fim, mas sem que se possa excluir como desfecho uma intervenção externa ou uma guerra civil catastróficas, a tragédia venezuelana em curso põe de ponta-cabeça o mundo tal como o temos experimentado. É verdade que parte da esquerda global - seria mais apropriado falar de extrema esquerda - permanece irredutível na defesa do que seria uma “revolução nacional e democrática”, com todos os seus erros e até crimes, contra a ameaça iminente do “imperialismo”, acorrentando-se com cegueira deliberada ao destino da ditadura bolivariana. Não menos verdade é que, dada a gravidade dos acontecimentos, atores como Donald Trump e os que a ele se associam de forma subordinada podem apresentar-se, pelo menos taticamente, como defensores de uma agenda humanitária que raramente, até agora, deram mostras de considerar com seriedade.

Trump, afinal, é o político que constrói muros, mesmo quando na fronteira se amontoam refugiados de países centro-americanos literalmente devastados pela “guerra às drogas”. E o nativismo que apregoa é versão particularmente grosseira daquele “esplêndido isolamento”, uma das vertentes, ainda que não a única, do modo norte-americano de estar no mundo. O nacionalismo que pratica e, ao mesmo tempo, ajuda a difundir entre sócios menores hostiliza instituições multilaterais que, com todas as suas limitações, participam do “governo global” minimamente necessário numa fase histórica em que o mundo objetivamente se unifica, ao menos em termos econômicos, e a interdependência se afirma como possível fator de paz e entendimento.

Naturalmente, há razões geopolíticas de muito peso no movimento para além da própria fronteira, em direção ao sul do continente. Há motivos econômicos óbvios e há novos aliados ideológicos a serem mobilizados em ordem unida: a conjunção de astros aqui parece muito favorável, pouco depois do encerramento do ciclo dos governos ditos nacional-populares. Mas a justificativa imediata e, em seus termos estritos, rigorosamente defensável decorre de algo com que governos de direita e extrema direita dificilmente contam, a saber, uma emergência humanitária sem precedentes, acarretada, no caso, pelo colapso do frágil e ruidoso experimento de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Trata-se, em suma, de uma questão de direitos humanos ferozmente violados por uma ditadura que se apresentava, e se apresenta, como de “esquerda”, ainda que tenhamos de ampliar consideravelmente este último conceito para nele incluir expressões acabadas de caudilhismo, militar ou não, típicas da história do autoritarismo latino-americano. Para mencionar uma fonte acima de dúvida, ao tomar posse como alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, em setembro de 2018, a socialista chilena Michelle Bachelet teve palavras muito duras: em meados do ano passado, o êxodo venezuelano tinha dimensões assombrosas, atingindo até então cerca de 7% da população do país. Um êxodo causado pelo colapso econômico, pela falta de comida e de remédios, pela perseguição política pura e simples. Suas origens foram basicamente endógenas e não advieram de sanções ou pressões do poderoso vizinho do norte. Um absurdo drama humano, motivo de profunda vergonha para seus promotores diretos e para aqueles que ao longo de duas décadas lhes deram algum tipo de apoio.

Nenhuma possibilidade, por isso, de evocar o presidente Salvador Allende a propósito de aventureiros. Allende foi homem de Estado, que escolheu morrer com a democracia de seu país. A diáspora chilena seguiu-se à sua derrubada, diferentemente do drama venezuelano de agora. Por certo, Allende não está acima de exame crítico e menos ainda se presta à mitificação infantilizadora. O projeto com que passou dignamente à História - a construção do socialismo em regime de liberdades - era certamente inviável num tempo em que a potência dominante não permitiria outra Cuba no continente, embora houvesse distância imensa entre o ethos republicano do chileno e o caudilhismo “nacional-popular” característico de Cuba.

Tanto se tratava de personagem de outra envergadura que um destacado líder do comunismo histórico - talvez o último - tomou-o como inspiração para escrever sofridamente a propósito do 11 de setembro de 1973. Enrico Berlinguer, refletindo sobre os “fatos chilenos”, mostra então plena consciência do papel desempenhado tanto pelo PCI quanto pela Democracia Cristã no segundo pós-guerra. Os dois partidos rivais, que, no entanto, se entendiam e se condicionavam mutuamente, tinham sido praticamente os únicos recursos com que o país contara para se reconstruir depois dos 20 anos de fascismo e da catástrofe nacional por ele produzida. Por isso, qualquer avanço na conjuntura difícil dos anos 1970 só se poderia dar no quadro de amplo compromisso que resguardasse, em primeiro lugar, os institutos democráticos “clássicos”.

Impossível aqui avaliar as peripécias que frustraram generosos propósitos como os de Allende e Berlinguer. De resto, assim será sempre a história dos homens, fadada a não conhecer nenhum fim determinado - nem mesmo o “socialismo” como etapa última e superior -, mas por certo suscetível de equilíbrios mais justos e valores compartilhados, à medida que se afirmem os processos de democratização próprios da modernidade. A esquerda política, necessária “apesar de todas as quedas”, como no verso de Bandeira, está chamada a refletir impiedosamente sobre os “fatos venezuelanos”, sem minimizar as pesadas responsabilidades que recaem sobre parte de si mesma. Da extensão e da qualidade de tal reflexão dependerá a possibilidade de se recolocar coerentemente como fator de justiça e liberdade. Se não o fizer, continuará a deixar o caminho livre para autocratas capazes de manipular emergências humanitárias e redefinir direitos humanos, esvaziando-os de seu extraordinário universalismo.

*TRADUTOR E ENSAÍSTA, LUIZ SÉRGIO HENRIQUES É UM DOS ORGANIZADORES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL

SITE: WWW.GRAMSCI.ORG


Demétrio Magnoli: Esferas de influência

A nova/velha lógica das grandes potências paira sobre a Ucrânia e a Venezuela

Trump não tem problemas com regimes autoritários. Ele admira o russo Putin, o turco Erdogan e o saudita Bin Salman. Uma exceção notória é Nicolás Maduro, um personagem que o faz falar sobre direitos humanos. Ninguém, porém, deve se iludir: do ponto de vista do presidente americano, a Venezuela é sobre esferas de influência.

O conceito de esferas de influência aproxima Trump de Putin. O líder russo devota um desprezo absoluto pela noção de soberania popular. Na Ucrânia, quando o povo se levantou contra o regime pró-russo de Viktor Yanukovych, em 2014, o Kremlin interpretou a revolução como ingerência estrangeira num país aliado: uma conspiração ocidental antirrussa. Trump nunca discordou da avaliação, tanto que se recusou a condenar a anexação da Crimeia e a guerra separatista patrocinada por Putin no leste ucraniano.

Sob as lentes de Trump, Maduro deve cair não porque seu regime viole sistematicamente os direitos humanos ou porque tenha conduzido a Venezuela a uma catástrofe humanitária sem precedentes. A substituição do regime, aos olhos da Casa Branca, é um imperativo ditado pela meta de restauração da hegemonia dos EUA na sua esfera tradicional de influência.

A política externa trumpiana organiza-se ao redor desse conceito antigo, que está sendo reativado por Washington e Moscou. No teatro do Oriente Médio, os EUA traçam uma linha no chão, dividindo áreas de influência com a Rússia. A aliança americana com Israel e a Arábia Saudita destina-se a contrabalançar a aliança russa com o Irã e a Síria. A anunciada retirada das forças americanas da Síria tem a finalidade de concluir a partilha geopolítica, que inclui a aceitação de uma "faixa de segurança" para a Turquia mesmo às custas do abandono dos curdos à sua própria sorte.

A nova/velha lógica geopolítica das grandes potências paira sobre a Ucrânia e a Venezuela. Inicialmente, Putin estabeleceu o objetivo de impedir a estabilização do governo pró-europeu ucraniano, utilizando para isso o instrumento da rebelião separatista no leste do país. Certo de que os EUA de Trump não se engajarão na proteção da Ucrânia, Putin revela-se determinado a dar um passo adiante. Desde o bloqueio dos portos do mar de Azov, em novembro, Moscou parece jogar suas fichas na hipótese do colapso do governo ucraniano.

A crise venezuelana tem potencial para acelerar o projeto de Putin de restauração da influência russa sobre a Ucrânia. Essa é a chave para interpretar os movimentos russos na batalha pela Venezuela.

A Venezuela não é a Síria. O regime de Bashar Assad tinha uma sólida base social, fincada nos alauitas e nos cristãos, que temiam a tomada do poder pelos sunitas. Já Maduro não dispõe da lealdade incondicional de nenhum setor da população. Além disso, Assad contava com a paliçada protetora do Irã, uma potência regional relevante, enquanto o chavismo tardio já não dispõe dos apoios do Brasil e da Argentina. Putin sabe que o regime de Maduro não sobreviverá, mas aposta no prolongamento do impasse, a fim de extrair o máximo possível de concessões dos EUA.

O apoio dos bancos russos a Maduro confere algum fôlego ao regime cercado pelas sanções americanas. O alento diplomático do Kremlin mantém, por enquanto, a fidelidade do alto comando militar venezuelano a um regime em ruínas. Trump comprometeu-se irreversivelmente com a derrubada do regime chavista. Washington já não pode voltar atrás sem se desmoralizar por completo —e, ao mesmo tempo, quer evitar o profundo desgaste de uma intervenção militar. Dessa disjuntiva, emanam as oportunidades de Putin. No limite, a Rússia conseguiria o prêmio máximo: a queda do governo ucraniano, em troca da cabeça de Maduro.

Um intercâmbio desse tipo não faria sentido para Obama, que não se movia no tabuleiro das esferas de influência. Mas ajusta-se à visão de mundo de Trump.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


El País: Pressionado por ultimato europeu, Maduro se nega a abandonar o poder

O líder chavista rejeita, em entrevista na TV, a possibilidade de convocar eleições presidenciais

O líder chavista Nicolás Maduro rejeitou neste domingo em uma entrevista ao programa Salvados, de La Sexta, a possibilidade de abandonar o poder ou convocar eleições presidenciais. "Eu não aceito ultimatos de ninguém, a política internacional não pode ser baseada em ultimatos, por que a União Europeia deveria dar ordens a um país?", questionou Maduro, referindo-se ao prazo de oito dias — que terminou à meia-noite europeia — que foi dado por vários países europeus, incluindo Espanha, França, Reino Unido e Alemanha, para convocar eleições presidenciais. Na segunda-feira, espera-se que esses parceiros europeus reconheçam claramente o autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, após o prazo de oito dias dado ao líder chavista.

Ao final da entrevista, o apresentador do programa, Jordi Évole, ligou para Guaidó na frente de Maduro, mas seu telefone estava desligado e a caixa de correio estava cheia. O líder chavista deixou uma mensagem: "Pense bem no que você está fazendo, que você é um jovem, que você tem muitos anos de luta, que você não machuque mais o país, que você abandonou a estratégia do golpe, pare de simular uma presidência para a qual ninguém o escolheu, e se ele quer contribuir com algo, ele que se sente a uma mesa de conversação, cara a cara, diretamente, e nós falamos sobre os problemas do país, as soluções, que a política não é um jogo para meninos, exige muita responsabilidade, muito bom senso, por isso estou pedindo que você não seja usado por governos estrangeiros ou pelos velhos caciques da direita ”.

Durante a entrevista, Maduro acusou repetidamente Guaidó. "Há apenas um presidente da Venezuela", disse ele. E acrescentou: "Esta pessoa não é autorizada por nenhum artigo [legal], é uma piada autoproclamada em uma praça, não tem base constitucional, legal, protocolar, formal...". "Eles buscam dividir e uma intervenção que impõe um governo fantoche, eles tentam gerar a impressão de um governo paralelo que existe na mídia internacional, mas não existe na realidade", acrescentou.

Maduro argumentou que o processo de mobilização da oposição e a autoproclamação de Guaidó é parte de um golpe de Estado. "É uma campanha muito perigosa, como a que fizeram na Líbia", alertou, e defendeu a decisão de armar as milícias populares. "São as pessoas organizadas com armas em bairros, fábricas, universidades, dois milhões, há 50.000 unidades com um sargento cada, as pessoas já estão se armando", explicou.

Quando questionado sobre o risco de um conflito armado, Maduro disse: "Não depende de nós". Ele acrescentou: "Tudo depende do nível de loucura e agressividade do império do norte e seus aliados, eles querem voltar para o século 20, para saquear nossos recursos naturais, não pode ser." Quanto à possibilidade de um diálogo com a oposição, assegurou que fez "mil propostas privadas e públicas" tanto à oposição quanto ao governo dos Estados Unidos, ao qual pediu "respeito" e atribuiu ao racismo a falta de de comunicação: "A supremacia branca que governa a Casa Branca absolutamente despreza nosso povo."


Luiz Werneck Vianna: O Brasil acima de tudo

A presença afirmativa do País não deve e não pode se comprometer por políticas de ocasião

Tempos sombrios os que vivemos, as portas do inferno se abrem diante do nosso olhar descuidado para os perigos a que estamos expostos com uma guerra civil rondando nossa vizinha Venezuela. A dualidade de poder, como registram os clássicos da teoria política, dificilmente suporta situações de equilíbrio e tende a desatar conflitos em que um dos polos envolvidos procura eliminar o seu rival, ou por uma solução de guerra civil, ou induzindo a erosão completa das suas bases de sustentação, favorecendo, no melhor dos casos, a intervenção da política em favor dos setores sociais que se demonstrarem hegemônicos.

O caso venezuelano, em que um grupo opositor ao governo consagrou nas ruas um presidente da República, negando legitimidade ao que está no exercício do poder, conhece a particularidade de que o poder rejeitado de Nicolás Maduro por movimentos sociais e vários partidos políticos em grandes manifestações conta com o apoio de instituições estatais, fundamentalmente do aparato militar, até então coeso na defesa do atual governo. Das duas, uma: ou a oposição – hoje amparada por governos poderosos da região, como, entre outros, o americano, o brasileiro, o argentino, e até de países poderosos europeus, num revival dos tempos coloniais – tem sucesso em abalar de tal forma o governo Maduro que o leve à renúncia; ou, alternativamente, apela ao recurso de uma intervenção armada dos seus aliados internacionais, entre os quais o Brasil, a fim de resolver suas questões internas.

Na hipótese de o governo brasileiro optar pela via tresloucada da intervenção militar, diante de uma cerrada defesa militar da Venezuela do seu governo e seu território, vai para a lata do lixo uma tradição centenária da nossa política externa, inaugurada pelo barão do Rio Branco – não por acaso, nome de avenidas urbanas nas principais capitais do País –, de conduzir as relações internacionais em paz, por meio de soluções negociadas, empenhada historicamente, nas palavras de Rubens Ricupero em seu monumental A Diplomacia na Construção do Brasil, em ver nosso país “reconhecido como força construtiva de moderação e equilíbrio a serviço da criação de um sistema internacional mais democrático e igualitário, mais equilibrado e pacífico” (Versal, 2017, página 31).

Tradições nacionais enraizadas como as da nossa política externa não se deixam cancelar por atos de vontade, elas conformam a nossa segunda pele, embora estejam em risco sob a condução do atual chanceler, que pretende conduzi-la com o espírito de cruzada do que entende, por questões metafísicas, ser uma luta do bem contra o mal. Não se pode afastar a possibilidade de que nuestra America, este extremo Ocidente, nas palavras do cientista político francês Alain Rouquié, seja arrastada, à falta da presença de paz e de uma política de negociação nos conflitos da região que o Brasil sempre representou, seja deslocada para o Oriente político por políticas desastradas que nos conduzam à guerra.

Nesse caso infeliz, a ressurgência da guerra fria dos anos 1950, já em curso, encontraria seu novo ponto quente na América Latina, como se faz indicar na forte contraposição entre Estados Unidos, Rússia e China e seus aliados sobre a questão da Venezuela.

A entrada em cena de países europeus, como Espanha, Alemanha, Reino Unido, França e Portugal, ao apresentarem um ultimato ao governo de Maduro para que convoque novas eleições presidenciais no prazo de oito dias, sob pena de reconhecerem o governo do seu opositor Juan Guaidó, dramatiza ainda mais o conflito venezuelano, que assim escala definitivamente da dimensão regional para a mundial. Ignorado esse ultimato, uma guerra civil com participação de forças externas pode escapar de cálculos de gabinete para se tornar possível.

Uma vez que ainda estamos no terreno das especulações, digamos que Nicolás Maduro queira emular – e tenha estofo pessoal para tanto – o destino trágico de Salvador Allende, e, se for o caso, defender seu governo de armas na mão, vindo a ser eliminado fisicamente. Sua remoção do governo, distante de uma operação de precisão cirúrgica, pode precipitar uma guerra civil com evidente potencial para se expandir ao longo das suas fronteiras nacionais, entre as quais a brasileira.

Essa possibilidade terrificante, que não é de laboratório, ainda pode ser afastada com o pronto retorno da política externa brasileira ao seu leito historicamente comprovado pela experiência acumulada dos seus estadistas. Se as palavras ainda valem, o fato de a advertência de que devemos ser fiéis às nossas tradições de não intervenção na política dos países vizinhos ter vindo do vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão, e não dos próceres da nossa política externa, acende um ponto de luz a ser estimulado.

Quando vista comparativamente no cenário do subcontinente, a formação do nosso Estado e da sua política é a mais robusta confirmação do gênio político dos próceres que estabeleceram seus fundamentos. O caudilhismo, tão presente na política dos nossos vizinhos, não encontrou aqui lugar propício e, sobretudo, realizamos a obra-prima da unidade territorial, ao contrário da balcanização dos países hispano-americanos. Soubemos ainda preservar as instituições políticas comprometidas com os ideais civilizatórios declarados pela nossa primeira Constituição, sob inspiração do estadista José Bonifácio.

Com essas credenciais fomos reconhecidos como capazes de mediação nos conflitos regionais, com ênfase nas negociações políticas em favor de soluções pacíficas. A presença afirmativa do Brasil, garante de equilíbrio no subcontinente, não deve e não pode se comprometer por políticas de ocasião que transfiram sua soberania a potências externas a nós, sejam quais forem, em suas disputas geopolíticas e econômicas. Para ficar com palavras da moda, o Brasil acima de tudo.