Luiz Sérgio Henriques

Marco Aurélio Nogueira: Estamos sem ponte e sem projeto

Houve uma época, na virada dos anos 1970 para os anos 1980, que a política brasileira era pura animação e esperança. Havia crise econômica, a inflação era alta, o desemprego estava presente, a ditadura ainda mostrava seus dentes, mas se fazia política com entusiasmo e confiança. A anistia era recente, a “abertura lenta, gradual e segura” dos militares era contrastada por um processo objetivo de democratização e em boa medida era ultrapassada por ele. Era preciso lutar e os espaços de atuação ainda eram restritos. Mas cada corrente, cada grupo, cada indivíduo buscava fazer sua parte e contribuir para que se avançasse.

Partidos até então clandestinos voltavam a se projetar. Jornais alternativos davam vazão ao que se buscava construir como opção política, mais à esquerda ou menos. O Opinião havia perecido pelo caminho (1977), assim como Nós, mulheres e Mulherio (entre outros), Movimento deixaria de circular em 81, mas surgiam novos, como a Voz da Unidade. Revistas, editoras e iniciativas culturais se multiplicavam. O PMDB, com suas virtudes e seus limites, funcionava como abrigo e referência, e ajudava a fazer com que a expectativa que germinava na sociedade civil chegasse ao Congresso. Eram anos de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Mario Covas, Orestes Quércia, Alberto Goldman, Leonel Brizola e Fernando Henrique Cardoso, cada qual com seu estilo e sua tribo.

Naqueles anos, fixou-se uma estratégia de democratização, que se tornou vitoriosa em 1985, e ela possibilitou a constituição de um poderoso bloco de pessoas afinadas entre si, diferenças respeitadas. Políticos, ativistas, intelectuais, sindicalistas, militantes vários, que foram isolando os extremos, costurando alianças, diluindo vetos, erguendo pontes com dissidentes do regime e abrindo caminho para o carro da democracia, que progressivamente empolgava e anunciava novos tempos.

Penso nisso ao olhar para os dias atuais. Andamos para trás. Quanto desperdiçamos de talento e energia!
Hoje, os que estiveram unidos décadas atrás se desuniram. Muitos se tornaram inimigos entre si. Amizades foram desfeitas como se nada tivessem significado, biografias foram reescritas, focos se alteraram. Os campos políticos se desorganizaram e a dissonância cresceu sem limite. Houve quem se entregou cegamente ao Estado, quem cedeu ao mercado e quem se deixou levar por promessas messiânicas e lideranças carismáticas, largando pela estrada a aposta na força das instituições democráticas e na sociedade civil. A opção foi, majoritariamente, pelo acirramento da competição e da polarização, com o que gradativamente deixou de haver lugar para a cooperação.

O bloco que se consolidou na primeira metade dos anos 1980 foi-se inviabilizando aos poucos. Já no governo FHC ele apresentava fissuras e rachaduras, impulsionadas pela competição eleitoral, pela complexificação sociocultural trazida pela globalização e pela revolução tecnológica e, sobretudo, pela avidez com que se passou a disputar o poder. A luta contra a ditadura, que unia, foi substituída pela luta contra o neoliberalismo, que desunia. Perdeu-se o que havia de estratégia de democratização, substituída em parte pelo afã de um “novo desenvolvimento” e em parte pelo assistencialismo, tudo devidamente financiado a fundo perdido pelo Estado e sem conseguir suportes claros na sociedade civil. Em vez de estratégias, passou-se a ter táticas de conquista e conservação do poder político.

Ao longo dos anos 2000 essa inflexão se cristalizou.

Os políticos foram ficando sem referências, movendo-se tão somente pelo imediato. A intelectualidade democrática e progressista de antes — na qual se incluíam combativos liberais, socialistas e comunistas de diversas famílias, reformistas, nacionalistas, trabalhistas e esquerdistas – foi-se entregando ao culto da eficiência e da “produtividade”, trancando-se nos departamentos acadêmicos, nos negócios privados, nos nichos culturais. Continuou-se a produzir ciência e cultura, mas os produtos ficaram represados, deixaram de chegar aos destinatários. Esmaeceram os intelectuais públicos. O processo se completou com o empobrecimento do debate público democrático e a desqualificação das lideranças políticas, que foram se rebaixando e perdendo o eixo. O mundo da cultura e o mundo da política se afastaram.

Foi uma verdadeira obra de demolição. Empreendida não por ditadores, nem pelo “sistema”, mas pelos próprios protagonistas, que atiraram em si mesmos.

O resultado está aí para quem quiser ver. Tornamo-nos uma sociedade sem rumo, sem consciência de si, que não sabe o que esperar do dia de amanhã, enrolado em suas próprias contradições políticas, vagando de crise em crise. Na qual a indignação e a retórica maximalista ocupam o lugar reservado para a política.

Hoje, a esperança esfarelou. Um patrimônio político, ético, cultural, associativo e intelectual foi perdido, e será preciso em boa medida começar de novo, como escreveu Luiz Sérgio Henriques no belo artigo que publicou em O Estado de S. Paulo de 18/06/2017, cuja leitura me serviu de referência para escrever estas linhas.

Está lá, nesse texto vigoroso e certeiro, a constatação de que estamos todos “atônitos”, vendo “as agonias que se acumulam, as hipóteses de saída que surgem e se desfazem como bolhas de sabão, os políticos que de uma hora para outra abandonam a ação parlamentar e passam a integrar tramas judiciárias cujo fim não parece próximo”. No tumulto dos dias, a impressão que se firma é a de “um enredo mambembe em que os personagens procuram, em vão, uma direção e um sentido para o que fazem”. A sensação, observa, “é de que os fatos caminham por si sós, assumindo aos trancos e barrancos um protagonismo além da capacidade dos atores, cujos movimentos se esgotam na busca da sobrevivência pura e simples”.

É um artigo que faz pensar: “Sabemos que o que nos trouxe até aqui não é ponte que nos conduzirá ao futuro. O PMDB já não parece ter quadros ou ser portador de ideias-força para sustentar um governo de reformas. A classe política que o viu nascer e lhe insuflou alma não existe mais. O antagonismo entre PSDB e PT, que nas quatro últimas eleições presidenciais favoreceu amplamente este último, mas assinalou afinal o fracasso histórico do petismo, não poderá mais ser a principal linha de clivagem do sistema partidário, a não ser que nossa sociedade se aniquile nas malhas da repetição neurótica”.

Henriques conclui com um alerta: “Sabemos que o presente cenário de terra arrasada é o mais favorável para aventuras extremadas. Refazer os cacos e ordenar razoavelmente a arena pública requer o emprego da arte da competição e da cooperação, da qual nos temos dissociado. Arte a ser exercida sob o império da Carta de 1988, longe dos fundamentalismos de mercado ou das utopias autoritárias do esquerdismo”.

Outro dia, FHC falou que “é preciso dar uma trégua ao Brasil”. Ele está certo. Parar um pouco para pensar, guardar o ódio e o ressentimento acumulados, buscar um foco mais interessante do que esta briga entre partidos mortos-vivos. O país está efetivamente estressado. Na política, sobretudo. Mas a vida não para e os humanos conseguem sempre sair de situações difíceis. Basta que consigam definir quais os seus grandes problemas e tenham tempo e determinação para modelar soluções e construir saídas. Com um sentimento de urgência, mas sem correria.

É muito, é custoso, é difícil, mas é o que temos.

 

Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/estamos-sem-pontes-e-sem-projeto/

 


Luiz Sérgio Henriques: Começar de novo

Refazer os cacos requer o emprego da arte da competição e da cooperação

Eis o ponto a que chegamos: todos constatamos, atônitos, as agonias que se acumulam, as hipóteses de saída que surgem e se desfazem como bolhas de sabão, os políticos que de uma hora para outra abandonam a ação parlamentar e passam a integrar tramas judiciárias cujo fim não parece próximo. No tumulto dos dias, a impressão que se firma é a de um enredo mambembe em que os personagens procuram, em vão, uma direção e um sentido para o que fazem. Ou, então, como na imagem conhecida, a sensação é de que os fatos caminham por si sós, assumindo aos trancos e barrancos um protagonismo além da capacidade dos atores, cujos movimentos se esgotam na busca da sobrevivência pura e simples.

No centro de tudo, um sistema partidário que já não se mantém em pé. Desequilibrado desde o início, esse sistema combinava partidos extremamente convencionais e um só com características semelhantes àqueles ditos “de massas”. Entre os primeiros, o partido da resistência democrática – o MDB e, a partir de 1979, o PMDB – aos poucos, e progressivamente, veio a perder a bandeira da “esperança e mudança” sob a qual se tornara uma escola de política, na qual, entre outros fatos admiráveis, uma parcela da esquerda teve contato com os valores do liberalismo, observando sua eficácia na luta contra o regime autoritário e sua relevância permanente em qualquer contexto futuro. A Constituição de 1988, que ainda nos traça o único roteiro possível, terá sido o legado essencial daquela antiga expressão do centro democrático, cujo esfacelamento está muito longe de ser o menor de nossos males.

O partido da social-democracia, nascido de uma “questão moral” – que, aliás, nada tem que ver com o bordão do “moralismo udenista” e, ao contrário, pode constituir-se num elemento positivo para uma moderna força de centro-esquerda –, viveu um paradoxo singular. Condensação de grupos intelectuais significativos, tanto na política quanto na economia, terá refletido pouco ou nada sobre as exigências inerentes ao prestigioso nome de batismo. Acreditou que a autoridade do núcleo dirigente inicial, com Covas, Montoro e Fernando Henrique, somada ao nome social-democrata, dispensaria a obra de autoconstrução e atualização programática constante, oferecendo-se assim à sociedade como um partido nacional, capaz de dar respostas aos problemas de toda a Nação em conjunturas distintas, incluídas as que acaso exigissem reformas liberalizantes.

Esse partido se descuidou, sintomaticamente, de estabelecer conexões flexíveis, mas resistentes, com a sociedade ao redor. Não precisava ser um partido de massas no sentido tradicional do termo, com ideologia definida, enraizamento “de classe” e um sistema de organizações colaterais à maneira de correias de transmissão. Não obstante, a necessidade de vasos comunicantes com o mundo social e de elaboração de novos grupos dirigentes permanecia constante mesmo para os partidos de estrutura mais leve. E a pesada armadura ideológica de tantos partidos de massas poderia ter cedido lugar ao rigor programático e à ação minimamente orgânica segundo a tradição social-democrata.

Nada disso aconteceu: não se atendeu àquela necessidade de comunicação nem se forjaram programas. E, em plano correlato, pouquíssimo foi feito para a projeção externa do partido criado em 1988. Afora a relação com a “terceira via” da década de 1990, seja qual for o juízo que a essa via se dê, nossa social-democracia restou acanhada e provinciana. Os ventos eram globais, as correntes de pensamento ignoravam fronteiras, os problemas adquiriam dimensão mundial – e continuamos sem nada saber de agregações importantes no universo social-democrata, como a Internacional Socialista. Uma inapetência que mostraria todo o seu limite quando, ainda há pouco, enviesadamente se lançaram mundo afora sinais de golpe ou regime de exceção em nosso País, sem que as forças responsáveis pelo impeachment respondessem à altura.

Um esteio do sistema partidário – e, por extensão, da democracia – poderia perfeitamente ter sido o PT. Único partido de massas, ou quase isso, teve nas mãos a possibilidade de liderar a consolidação de uma moderna democracia de partidos, levantando em cada caso ideias relevantes para a solução de problemas espinhosos da vida política após 1988: o financiamento da atividade político-eleitoral, por exemplo, tema que, varrido para debaixo dos tapetes da República, retornaria como força natural destruidora. Ser o partido-guia em tal contexto significaria exercer uma ação hegemônica, palavra que, tomada como capacidade de direção, exclui comportar-se como elefante em loja de louças, cooptando aliados em funções subordinadas na pilhagem do Estado e inaugurando práticas inéditas, como as reveladas no mensalão e no petrolão.

Não está claro como reconstruir minimamente os partidos no curto período que nos separa das eleições de 2018. Sabemos que o que nos trouxe até aqui não é ponte que nos conduza ao futuro. O PMDB já não parece ter quadros ou ser portador de ideias-força para sustentar um governo de reformas. A classe política que o viu nascer e lhe insuflou alma não existe mais. O antagonismo entre PSDB e PT, que nas quatro últimas eleições presidenciais favoreceu amplamente este último, mas assinalou afinal o fracasso histórico do petismo, não poderá mais ser a principal linha de clivagem do sistema partidário, a não ser que nossa sociedade se aniquile nas malhas da repetição neurótica.

Sabemos, sobretudo, que o presente cenário de terra arrasada é o mais favorável para aventuras extremadas. Refazer os cacos e ordenar razoavelmente a arena pública requer o emprego da arte da competição e da cooperação, da qual nos temos dissociado. Arte a ser exercida sob o império da Carta de 1988, longe dos fundamentalismos de mercado ou das utopias autoritárias do esquerdismo.

* Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci. Site: www.gramsci.org

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,comecar-de-novo,70001846380

 


Vídeo: Seminário sobre Gramsci em Roma

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) participou, nos dias 18 a 20 de maio, do Seminário Hegemonia e Modernidade, em Roma, Itália. O evento, organizado pela Fundazione Gramsci, teve o objetivo de “realizar uma discussão envolvendo os estudiosos do pensamento de Gramsci em diversas partes do mundo”. A FAP foi representada por meio de dois de seus dirigentes, especialistas em Gramsci no Brasil, Alberto Aggio e Luiz Sérgio Henriques (que também é tradutor do filósofo). O convite da organização do evento, para que a Fundação Astrojildo Pereira integrasse o seminário, foi um forte reconhecimento das atividades de publicação e tradução do pensamento de Gramsci realizado pela FAP e de seus comentadores aqui no Brasil. Confira, abaixo, o vídeo com um resumo dos debates.



Luiz Sérgio Henriques: Democratas de esquerda – a hora e a vez?

 

A esquerda brasileira gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus

O quadro partidário em ruínas e o destino incerto de tantos personagens de primeiro plano tornam particularmente opaca a cena pública a pouco mais de um ano de eleições gerais. Não há muitos termos de comparação para nossas agruras e a referência inevitável para este nó aparentemente insolúvel entre questões judiciais e questões políticas continua a ser a Operação Mãos Limpas, italiana, na década final do século passado (na foto, Antonio di Pietro, o procurador da República encarregado do caso).

Diferentemente do caso brasileiro, em que partidos frouxamente organizados conduziram a transição e dominaram o poder central até 2002, a Primeira República Italiana, que nasceu no segundo pós-guerra, era uma República de partidos de massa, dois dos quais se tornaram reconhecidos até fora do país: a Democracia Cristã (DC) e o Partido Comunista (PCI). Ambos portavam visões de mundo comunitaristas, não necessariamente antagônicas, admiravelmente retratadas na arte culta ou popular. Para dar um exemplo divertido, foram tempos de Don Camillo e Peppone, o pároco e o prefeito comunista – criaturas de Giovannino Guareschi – que se comportavam expressivamente ora como adversários, ora como aliados.

Positivamente, aquela República fez nascer a Itália moderna; negativamente, reduziu-se muitas vezes, segundo os críticos, a uma “partidocracia”, em que cargos e nomeações, em toda a estrutura do Estado, se dividiam segundo regras bizantinas de filiação partidária. Sempre no poder, a DC e seus aliados de centro ou centro-esquerda; eternamente na oposição, o PCI – uma disposição que se tornaria disfuncional em razão, precisamente, do veto que os condicionamentos da guerra fria impunham à alternância.

A Mãos Limpas levou à implosão daquele sistema bloqueado: dois partidos tradicionalíssimos, a DC e o Partido Socialista, entre outros menores, foram tragados na grande crise. Forza Italia, a agremiação berlusconiana, e os separatistas da Liga Norte dariam voz à nova direita. O PCI continuaria o processo de reconstrução que o levaria muito além do comunismo de origem. E na margem a galáxia ultraesquerdista, a praticar “rachas” e cisões, seu esporte preferido.

Começada de forma casual, a Lava Jato terá topado, progressivamente, com um esboço de “sistema de poder” à italiana, estruturado não só a partir de nossa maior empresa pública, mas, pelo que se vê, espalhado por fundos de pensão, bancos e demais órgãos públicos. As regras de repartição saíram do âmbito artesanal: não se tratava mais de dar, ao sabor de pressões momentâneas, “diretorias que furam poços e acham petróleo” para este ou aquele personagem folclórico, mas de criar máquinas eleitorais poderosas e alianças parlamentares imbatíveis, roçando a unanimidade.

Não se pode dizer, de forma alguma, que o mecanismo fosse inteiramente inédito, salvo na proporção que passou a assumir. Mudanças quantitativas, como se diz, acarretam saltos de qualidade e no auge de sua vigência o mecanismo pareceu capaz de autorreprodução: mal se descobriam feitos e malfeitos que deram vida ao “mensalão”, surgiram indícios de algo mais grave a envolver empresas públicas e privadas numa escala que nos assusta ainda agora.

Alguém poderá lembrar que Sérgio Motta, um dos ministros mais fortes do primeiro governo FHC, certa vez vaticinou um domínio de 20 anos para consolidar as reformas liberais de então. A lembrança é cabível, mas não de todo pertinente: essa espécie de reforma é normalmente impopular, independentemente das justificativas que possa ter, e costuma minar as bases de sustentação de qualquer governo. E, ainda mais importante, os tucanos, como de resto seus aliados do antigo PFL ou do PMDB, eram partidos à moda antiga, fortes eleitoralmente, mas com pouca ou nenhuma vida orgânica ou elaboração autônoma. A adesão que obtinham, no mais das vezes, era de tipo passivo; salvo na implantação da nova moeda e em algumas outras situações, não entusiasmavam nem mobilizavam seus eleitores ao longo do tempo. Não lhes davam argumentos para a boa luta cotidiana, em meio às pessoas comuns.

Uma forte assimetria, ao contrário, caracterizou o sistema de poder petista. Longe de ser um partido comunista, especialmente se considerado o conjunto de fins (realizáveis ou irrealizáveis) que caracterizava esse tipo de partido, o PT sempre trouxe em si algo dos velhos PCs: a centralização, a disciplina e, ai de nós, o culto do chefe, não raro imantado dos dotes de messianismo e infalibilidade. Em contato com tradicionais “partidos de Estado”, que a ele se aliaram a partir do segundo mandato de Lula, o PT pôde exercer por alguns anos, quase sem contestação, seus pendores hegemonistas e seus vezos de cooptação. De fato, o “franciscano” toma lá dá cá atingiu o estado da arte, muito além dos desvios – intoleráveis! – de caixa 2 eleitoral e “sobras de campanha” que sempre atingiram os amorfos partidos brasileiros.

As democracias estão sob ataque por toda parte. Inútil buscar situações exemplares ou receitas definidas. Os partidos, em particular, veem-se assediados por “não políticos”, que estimulam a vaga populista contra a “casta” e disso se beneficiam – até porque, reconheçamos, há muito de “casta” no comportamento político convencional. Os italianos não estão fora do abalo sísmico que varre o mundo. Contudo, sem contar flutuações conjunturais, apontaram um caminho promissor ao tentarem associar num só “partido democrático” os reformistas egressos do comunismo e do catolicismo social.

A esquerda brasileira até agora não contou com tal sabedoria. Gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus. Reduz-se à defesa de seu chefe único e se fecha ao aggiornamento. Parece não ver que é necessário resgatar a si mesma – consciente de que “esquerda” é hoje um conceito desonrado – e contribuir para a missão comum de renovar a política, o Estado e, não por último, a sociedade brasileira.

*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.

 


Luiz Sérgio Henriques: Depois do choque

A era Trump abre a possibilidade de se entenderem variadas forças e personalidades

Passada a primeira onda de choque, permanece impossível discutir política em qualquer canto do mundo sem mencionar o resultado eleitoral norte-americano, impensável há apenas alguns meses. Inútil qualquer consolo, como o de que a candidata democrata terminou à frente no voto popular: as idiossincrasias do sistema estavam dadas desde o começo e era com elas que se devia contar para eleger a contendora que prometia dar seguimento ao legado de Barack Obama e garantir um pouco mais de previsibilidade às coisas do mundo.

A “resistível ascensão” de Donald Trump só pode ser explicada por uma multiplicidade dos fatores. Se nos limitarmos à ideia, não de todo errada, de que ele conseguiu canalizar a raiva dos perdedores da globalização, não ultrapassaremos a fronteira da explicação da política pela economia. O mal-estar na globalização, que ora atinge o centro do sistema, tem dimensões valorativas e existenciais, remete à insegurança diante de uma economia-mundo que aparentemente se movimenta por si só, sem controles adequados ou suficientes.

A fórmula, imaginada para estágios anteriores da mundialização, continua eficaz para indicar sinteticamente o dilema contemporâneo: a economia torna-se crescentemente interdependente e só pode ser entendida em seu conjunto. A política, ao contrário, resta basicamente confinada ao espaço nacional, alimentando com isso perigosas fantasias regressistas. Os esforços de construção de realidades supranacionais, acima das “velhas” nações, ou tomam um rumo torto e demagógico, como no caso da integração latino-americana deste início de século, ou se veem submetidos a tensões fortíssimas, como no caso da integração europeia.

Conhecemos com exatidão o poder explosivo de nacionalismos, fanatismos e rancores a ele associados. Basta cancelar o historicamente curto, mas simbolicamente denso, período de construção e expansão dos Estados de bem-estar social para ver a sucessão de confrontos a que tais nacionalismos deram origem, a ponto de se poder falar, até a derrota do nazi-fascismo, de uma só e ininterrupta guerra civil europeia.

Pois bem, o setor regressivo das elites recorre ao repertório “nacional” de sempre, como se enormes carnificinas pudessem ser “narradas” de forma antes heroica do que bárbara, antes épica do que trágica. Por sua vez, as elites economicamente liberais não conseguem dar alguma resposta crível aos problemas de homens e mulheres comuns. Não conseguem dar uma direção intelectual e moral à integração da parte europeia do mundo: aparecem como tecnocracias distantes da cidadania, insensíveis à penúria dos países periféricos de sua própria área, para não falar da ausência de iniciativas que apaguem a “linha de fogo” que ronda o continente, da África à Ásia.

A atitude de Angela Merkel diante dos refugiados de guerra foi uma breve lufada de ar fresco, logo interrompida pelas dificuldades internas e pelos arreganhos da extrema direita. Apesar disso, Merkel lembrou-nos que conservadores podem perfeitamente elaborar uma versão decente do bem comum. Aos desatentos convém dizer que a presidência Obama, do outro lado do Atlântico, representou o mesmo movimento positivo, reinterpretando a liderança americana como soft power e adequando-a, tanto quanto possível, às novas condições, que registram evidente declínio relativo da força econômica e política de seu país.

Interrompidos ou frustrados tais movimentos, restam de pé basicamente a força, a confrontação, a afirmação bruta do próprio interesse. A política democrática passa a conviver com obstáculos difíceis de superar: desaparece, ou fica gravemente ameaçada, a esfera da argumentação racional e dos interesses legítimos, substituída pela dos mitos irracionais e das ideias anacrônicas de nação, raça, etnia. Em última análise, é daí que vai extrair substância o conjunto diversificado de correntes que costumamos unificar, genericamente, com o termo “populismo”.

Parte considerável da esquerda flertou com aventuras desse tipo. Não é preciso de modo algum ir longe no tempo ou no espaço para identificar líderes e partidos que cultivaram efetivamente (como na Venezuela) ou sobretudo retoricamente (como no Brasil) ambições “antissistema”, como se a cotidiana recriação da vida pudesse prescindir das instituições democráticas formais. E não faltaram teóricos de toda parte – afinal, o mundo é um só, a circulação de ideias é fato corriqueiro da vida globalizada – que não só exaltaram o “populismo” latino-americano, como também o incluíram na limitada pauta de exportações da região, como mercadoria dotada do misterioso dom de reativar a luta de classes e abrir caminho para o socialismo ou certa ideia autoritária de socialismo.

Nessa forma de ver as coisas, os populismos de extrema direita conduziriam ao racismo, à xenofobia e à guerra – o que, diga-se de passagem, está basicamente certo, tanto quanto se pode prever. Os de esquerda, não se sabe bem a razão, conduziriam a resultados distintos – a uma “democracia de alta intensidade”, substantiva e não formal, desdenhosa dos valores “liberais”, que, no entanto, particularmente em nossa região e em nosso país já deviam ser patrimônio adquirido depois das experiências ditatoriais.

A emergência da era Trump, com seus desastres anunciados – os muros materiais e espirituais de contenção, o recuo em temas vitais, como energia e clima, a sintonia com líderes “providenciais” –, abre a possibilidade de entendimento entre forças e personalidades da mais variada inspiração, inclusive uma esquerda majoritariamente renovada. Em outros tempos cultivou-se a ideia do diálogo e do respeito, que nos permitiu atravessar o “deserto do real”, preservando os valores das modernas democracias. Os bárbaros parecem estar de novo às portas, o que reatualiza estratégias semelhantes às que nos levaram a vencê-los antes.


Fonte: estadao.com.br


Luiz Sérgio Henriques: Democracia e populismo

Uma esquerda racional poderia contribuir para um ‘cosmopolitismo de novo tipo’

*Luiz Sérgio Henriques

Se for verdade, como de fato é, que a sociedade e a política brasileira devem ser entendidas como parte constitutiva do “Ocidente”, com estruturas sofisticadas e, por isso, irredutíveis a assaltos ao poder e a revoluções redentoras, daí se segue que por aqui simplesmente não podem deixar de existir um extenso ativismo social e formações partidárias de esquerda ou centro-esquerda como protagonistas da cena pública. Uma premissa desse tipo se apoia factualmente na história do capitalismo democrático, na qual – quer no New Deal norte-americano, quer no compromisso social-democrata europeu – foram atores decisivos social-democratas e comunistas, estes últimos, em particular, na França e na Itália do segundo pós-guerra.

Lembrar essa premissa é importante num momento de recuo eleitoral e, mais significativamente, de desmantelamento ideal do principal partido de nossa esquerda, após quase década e meia de experiência no poder central e em inúmeros Estados e municípios relevantes. Uma experiência que, ao se concluir por ora de modo negativo, convida à discussão, tanto quanto possível serena, das relações entre esquerda e democracia, bem como das possibilidades de sua ação reformadora numa das sociedades mais injustas e desiguais desse Ocidente que reivindicamos como nosso.

Bem verdade que o surgimento e a expansão do PT se deram num momento de fortes dificuldades do reformismo social-democrata e da “sociedade de classe média” legada pelo New Deal, para não falar da esclerose do socialismo real em sua fase final. Já no final dos anos 1970, as políticas que davam forma ao Estado de bem-estar pareceram encontrar limites fiscais intransponíveis. A resposta conservadora, materializada nas plataformas ditas neoliberais, trazia de volta o espírito da bourgeoisie conquérante, apoiada ainda por cima num conjunto variado de revoluções tecnológicas que mudavam processos de trabalho, desorganizavam classes de referência da esquerda, abalavam sindicatos e partidos de massa – estes últimos enraizados no acanhado espaço nacional, sem acompanhar a unificação capitalista do mundo.

Olhar para a América Latina, especialmente a partir da ascensão de Hugo Chávez na Venezuela e, pouco depois, de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, passou a ser uma atitude bastante comum entre forças políticas e intelectuais da esquerda do “Primeiro Mundo” em busca de fontes rejuvenescedoras. Na parte sul do planeta, afinal, líderes e partidos de esquerda ganhavam eleições, prometiam refundar seus países, incluir as maiorias à margem do processo civilizatório depois de 500 anos de História dependente e colonial.

Exaustos, os reformismos dos países centrais não conseguiam mais frear ou condicionar o “sistema do capital”, muito menos romper os automatismos de seu “sociometabolismo”. Na América Latina, ao contrário, afirmavam-se governos populares e nacionais numa escala praticamente continental, seja na forma moderada do lulismo, seja na mais agressiva e, diga-se com ênfase, crescentemente autoritária do chavismo.

O colapso venezuelano, cuja saída pacífica ainda não está à vista, e a múltipla crise brasileira, cujo desfecho em curso o petismo, agora fortemente redimensionado, interpreta como golpe e usurpação, desfizeram a miragem. Entre os teóricos da “alterglobalização” há quem sugira que, entre nós, não se teria seguido à risca o percurso revolucionário fundamentado em Constituintes exclusivas e em poder hegemônico, esquecendo-se de que onde se foi mais fundo na “criatividade” constitucional o resultado foi a reproposição de formas castrenses de “socialismo”, como na Venezuela do coronel Chávez. Do mesmo modo, onde se aplicou generalizadamente a perspectiva supostamente hegemônica, sem considerar a marca pluralista das sociedades “ocidentais”, os efeitos não foram muito melhores, encaminhando o sistema político rumo ao beco sem saída do partido-Estado, do chefe revolucionário e do respectivo culto à personalidade.

Por certo, estivemos, e estamos, diante de um repertório anacrônico, incapaz de sustentar a argumentação apropriada a uma “esquerda positiva” – para evocar San Tiago Dantas, personagem de uma época tempestuosa que desembocaria em efetiva ditadura militar, não neste simulado “estado de exceção”, rótulo que, na falta de vocação autocrítica, a esquerda petista teima em afixar a uma realidade plenamente democrática, regida por avançada Constituição e marcada por calendário eleitoral rigoroso, à prova de plebiscitos intempestivos e demais expedientes de agitação e propaganda de negativa memória.

A velha Europa e os Estados Unidos, com sistemas políticos duramente testados por agitações e turbulências devidas à emergência de atores regressistas e xenófobos, para não falar de seus congêneres da extrema esquerda, nada têm a ganhar com a importação de temas e métodos do populismo latino-americano, que uma vez mais expõe suas históricas limitações à vista de todos, no Brasil e por toda parte. A genérica retórica antiestablishment, o ataque indiscriminado às “elites” e a divisão das sociedades entre “nós” e “eles”, entre amigos e inimigos do povo, não servem – nunca serviram – à causa do progresso e da civilização.

Renovar os reformismos e abrir os sistemas políticos à participação dos que “perdem” com a globalização, fortalecendo os mecanismos indispensáveis da democracia representativa, é um bom programa para uma esquerda racional na Europa ou nas Américas. Longe de estreitezas paroquiais, ela poderia contribuir para a criação de um “cosmopolitismo de novo tipo”, a fim de regular democraticamente as forças econômicas e governar o impacto social das mudanças tecnológicas, que ora parecem caminhar com as próprias pernas, acima do entendimento e das necessidades das pessoas comuns. E a desorientação que daí decorre nunca pressagia nada de bom.

* TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,democracia-e-populismo,10000082405


Luiz Sérgio Henriques*: Uma outra esquerda é possível

Entre nós, o principal partido de esquerda parece não ter percebido, mesmo no plano retórico, as características estruturais da sociedade brasileira, que traz em si, 'morfologicamente', a pluralidade de classes e grupos sociais e suas respectivas representações políticas.

Não se tem muita noção, por ora, do que restará do sistema partidário após o fulminante conjunto de ações que se originaram em Curitiba há pouco mais de dois anos e lançaram luz inédita sobre o financiamento da atividade política, tema crucial para as relações entre governantes e governados e para a própria qualidade da democracia. Constatamos, assustados, que tal sistema andava funcionando em bases praticamente autorreferenciais. Entre outras coisas, pouco se conhecia sobre financiadores, lobbies, interesses legítimos ou escusos que contribuíam para dar forma à representação.

Como ninguém é ingênuo, sabia-se que os controles estavam falhando. Impossível ignorar o caráter espetacular das campanhas ou os abusos de marketing, com seus magos capazes de explorar cinicamente medos irracionais e suscitar expectativas ainda menos razoáveis. Agora, no entanto, a exposição dos males tem sido impiedosa e parece não poupar nenhuma força ou personalidade relevante. O celebrado artigo do juiz Sergio Moro sobre a Operação Mãos Limpas, convém lembrar, foi publicado em 2004, no começo da era petista, quando a percepção de haver algo podre no reino da Dinamarca ainda não havia sido imensamente ampliada com os fatos que levaram à Ação Penal 470 e às investigações atuais sobre a ocupação da Petrobrás e outras empresas públicas, com fins de reprodução de mandatos e manutenção de máquinas partidárias – para não falar das situações de enriquecimento pessoal que daí derivam por gravidade.

O impacto de investigações dessa natureza não pode ser subestimado. Na Itália, de um modo ou de outro, foi simplesmente a pique a sensação de imobilidade que rodeava um “sistema de poder” congelado durante décadas. Em tal contexto “eterno”, seria quase absurdo prever o fim da Democracia Cristã, um partido que não era simplesmente “de direita”, para usar o jargão de que hoje se abusa, mas também canalizava para a vida pública os tradicionais valores solidaristas do mundo católico; e também difícil acreditar que o centenário Partido Socialista, de um “animal político” voraz como Bettino Craxi, morto no exílio, iria ser tragado no turbilhão.

Interessa-nos pouco aqui saber se o PT e o ex-aliado subalterno, o PMDB, com toda a marca que já deixaram na vida brasileira, o primeiro por mostrar ser plenamente plausível a “via pacífica” ao governo, o segundo por encarnar a resistência democrática ao autoritarismo, vão seguir o caminho do redimensionamento ou o da dissolução no rastro das investigações. Nesta altura, pouca gente pode prever quem serão os mortos e os sobreviventes, bem como o tamanho da tarefa de reconstrução do sistema partidário antes que se dissemine o vírus letal da antipolítica ou se agrave a sensação de que “ninguém nos representa” e “o voto não conta, todos são iguais”.

Exercícios inúteis de futurologia à parte, mais concreto já deveria estar sendo o trabalho autocrítico por parte da esquerda, dentro ou fora dos partidos. Diferentemente da situação italiana, e talvez para surpresa de muitos hoje seduzidos por um anticomunismo primário, o que nos faz falta são grupos políticos capazes de se reorientar à maneira do antigo PCI, que antes mesmo das Mãos Limpas, e não por motivos judiciais, mas culturais e políticos, havia tomado o caminho do reformismo, requalificando-se como “partido democrático” e acolhendo outras vertentes reformistas, inclusive de inspiração católica, para começar uma história diversa.

Entre nós, o principal partido de esquerda parece não ter percebido, mesmo no plano retórico, as características estruturais da sociedade brasileira, que traz em si, “morfologicamente”, a pluralidade de classes e grupos sociais e suas respectivas representações políticas. Para dar-se conta desse dado teria sido necessário preparar-se culturalmente para uma visão institucional sofisticada, cujo horizonte não se deixasse contaminar por um diagnóstico catastrófico da crise – grave – do nosso tempo e, por isso, não reiterasse contraposições caducas, como, para dar um exemplo que vale por todos, aquela que renitentemente opõe avanços “substantivos” e mecanismos “formais” do voto, dos partidos, das instituições.

Numa palavra, mais uma vez o aparato conceitual de tantos políticos e intelectuais “altermundistas”, brasileiros ou não, opôs democracia social e democracia política, como se a segunda fosse um obstáculo à primeira – e obstáculo a ser removido por mecanismos plebiscitários, apelos à mitologia de “assembleias constituintes originárias” e a concepções de “contra-hegemonia” alheias ao Estado Democrático de Direito, horizonte ineliminável de nossa época.

A nosso ver, por se inserir de modo acrítico em tal rede conceitual e virar as costas para a complexidade do País é que o petismo no poder se moveu tão desastradamente no plano institucional e no social. Se defino o Parlamento como assembleia de “picaretas”, disponho-me, ato contínuo, a cooptá-los, dispensando os processos de persuasão e aliança e tornando-me assim agente de degradação ainda mais acentuada. E se me autodefino, autoritariamente, como a irrupção dos pobres na vida social e na história do Estado, divido grosseiramente a sociedade em casa grande e senzala, pobres e ricos, amigos e inimigos – simulacro de luta de classes que, no entanto, mal arranha a desigualdade, afasta a esquerda de qualquer possibilidade dirigente e termina por preparar seu estatuto minoritário por muitas décadas.

Nas instituições e na sociedade, o resultado só podia ser desastroso. Ter feito esse tipo de aposta terá sido o pior dos males causados pelo petismo à esquerda e, sobretudo, ao País. Seja qual for o destino do partido e de seu máximo – e solitário – chefe, resta começar de novo: uma outra esquerda há de ser possível. E dela, certamente, o Brasil não pode abrir mão.


*TRADUTOR E ENSAÍSTA, UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG


*Luiz Sérgio Henriques: As duas esquerdas

Há cerca de dez anos, o mexicano Jorge Castañeda, ator e analista da política latino­americana deste nosso tempo conturbado, propôs um esquema simples, mas relativamente eficaz, para entender as esquerdas no poder, especialmente a partir da ascensão de Hugo Chávez na Venezuela por meio do voto. As esquerdas, dizia Castañeda, tinham no subcontinente uma natureza dupla, segundo admitissem, ou não, as novas condições derivadas do fim do comunismo real e da obsolescência dos padrões da guerra fria.

Brasil, Uruguai ou Chile, por exemplo, teriam enveredado por um caminho próximo das social­democracias europeias, adotando políticas pluriclassistas e respeitando os requerimentos do regime representativo. Coerentemente, em relação à economia, a questão se resumiria a regular de outro modo os mercados, para além da experiência liberal dos anos 90, mas sem violar seus princípios básicos nem descuidar dos equilíbrios macroeconômicos. Um moderado reformismo social estaria em curso nesses países, atacando primeiramente a pobreza extrema e, de forma indireta, a desigualdade.

A Venezuela e os demais países ditos bolivarianos eram exemplos de esquerda radical, inspirada muitas vezes no ambiente hiperideológico dos anos 70 vertido para o novo contexto de interdependência e de redes globais. Com ou sem razão, tratava­se, aqui, de refundar a nação e implantar democracias de alta intensidade: formas diretas de participação e líderes carismáticos eleitoralmente “invencíveis” iriam mais uma vez se associar para lançar as bases do “socialismo do século 21”. Tal intento se pretendia diverso do socialismo do século 20, ainda que desde o primeiro momento não fosse muito difícil de ver em operação as categorias do velho repertório, com a adição inquietante de “coisas nossas”, como o caudilhismo e o militarismo, desta vez em roupagem progressista.

Os processos ora em curso na Venezuela e em nosso país, estruturalmente tão diferentes entre si, complicam a dicotomia de Castañeda. A Venezuela, sob Chávez e, agora, Nicolás Maduro, não deixou em momento algum de ser totalmente dependente da renda do petróleo – o excremento do diabo, na expressão famosa. E o Brasil, ainda que assediado pelo fantasma da reprimarização da economia, inclusive nos anos triunfantes do lulismo, continuou a ter uma economia diversificada e a ser uma sociedade complexa, em que amplos setores de classe média, pelo menos em tese, são refratários aos apelos anacrônicos do populismo.

Realidades contrapostas, portanto, mas, como sabemos, razões e motivos “ideológicos” não decorrem automaticamente de “bases materiais”. Eles se cruzam e contaminam, determinam a percepção dos problemas de um modo ou de outro, podendo inclusive agravá­ los ou dramatizá­los substancialmente. Houve quem, à esquerda, despreocupando­se com a exigência de análises diferenciadas, propagasse a ideia de um bloco latino­americano maciçamente contra “o capital” e o neoliberalismo. Governos nacional­populares na região seriam a nova vanguarda anticapitalista e anti­imperialista, retirando o protagonismo da moderada esquerda europeia de feição social­democrata. E, à direita, a desolação intelectual não poderia ser maior, com tentativas de ressurreição do vetusto armamentário anticomunista.

Nada a fazer no plano argumentativo se as coisas fossem deixadas assim. O espaço da política se reduziria a bem pouca coisa se, diante destas crises estruturalmente desiguais, mas temporalmente “gêmeas” – o total desastre venezuelano e a aguda crise institucional brasileira –, não tentássemos acionar os mecanismos de uma autorreflexão dura e impiedosa. Inútil dizer de Maduro, como disse Pepe Mujica, ex­presidente uruguaio, que es loco como una cabra. Um mero insulto pessoal, um tanto folclórico, que não vai à raiz do problema nem revela, infelizmente, um dirigente capaz de contribuir para a superação pacífica do desastre à vista de todos naquele país.

Da nossa parte, impossível aceitar sem renovado sinal de alarme a derivação “bolivariana” de manifestações petistas que denunciam o suposto “golpe parlamentar” e reiteram obsessivamente a contraposição frontal entre amigos e inimigos (a “direita”), como se a democracia política não exigisse, para sua vigência, um amplo terreno comum entre os contendores, no qual se viabiliza o próprio discurso público e a situação de recíproco assédio, de luta e proximidade, que marca a atuação de forças políticas amadurecidas, ainda que representem interesses e visões conflitantes.

Não há partido na democracia “burguesa” que possa entender a reforma do Estado como controle ideológico dos diferentes órgãos daquilo que alguns chamam sistema de integridade – a Polícia, o Ministério Público, o Judiciário. E muito menos possa propor um ataque frontal à “mídia monopolista”, sem antes esclarecer cabalmente que qualquer ideia de regulação constitucional dos meios deve refugar, sem ambiguidade, a tal “hegemonia comunicacional” de feitio chavista – que, de resto, tem pouco de hegemonia e muito de dominação simples e bruta, funcional ao monopólio da fala pelo caudilho em exercício.

Quase 30 anos depois da Carta de 1988, a esquerda brasileira ainda não tirou de sua história os recursos para construir uma forte socialdemocracia, cujo compromisso essencial seja, além dos objetivos de reforma, a defesa da legalidade democrática e suas instituições, que dão vida e densidade a tais objetivos. Não consegue estabelecer parâmetros altos para a ação de um reformismo latino­americano mais unitário, generoso e integrador. A vertente democrática fraca termina por abrir o flanco para a vertente autoritária e personalista. Condena­se, assim, a recomeçar em condições piores – e sempre depois de tempestades que, como na Venezuela, caudilhos meticulosamente semeiam e, agora, colhem.

*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG


Fonte: estadao.com.br


A crise do governo Dilma e a possibilidade do impeachment em debate

Vivemos uma crise, como é óbvio. Mas já existem condições políticas para um impeachment? Há alguma comparação com a situação do país em 1992, ano da queda de Collor? Quais as semelhanças e diferenças? A História se repete? O vice Michel Temer seria um novo Itamar Franco?

A partir do recém-lançado livro do sociólogo e professor da USP Brasilio Sallum Jr. ("O Impeachment de Fernando Collor - Sociologia de Uma Crise"), #ProgramaDiferente, da TVFAP.net, debate a crise política e a possibilidade do impeachment ou da renúncia da presidente Dilma Roussef.

Discutem o tema, além do autor do livro, Brasilio Sallum, também Alberto Aggio, historiador, professor da Unesp Franca e presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP); e Luiz Sérgio Henriques, ensaísta, tradutor, editor do site Gramsci e o Brasil e da página Esquerda Democrática.

Quais as possíveis saídas para a crise e para o "pós-PT"? Quais os prós e contras de um processo de impeachment? Como vencer a recessão econômica, a descrença da população e a falta de representatividade política? Qual o papel da oposição? O protagonismo do Judiciário é benéfico para a democracia? Assista.