luiz fux

Joaquim Falcão: Supremo Tribunal Federal: ordem na casa

O importante é retirar, agora que o susto passou, lições do caso André do Rap

Que cada juiz tenha preferência por uma teoria de interpretação constitucional, tudo bem. É normal. Faz parte. Marco Aurélio tem sua preferência. O presidente Fux, a dele. Cada um, a sua. Interpretar diferentemente é possível. Mas há limites. O Supremo não pode colocar a sociedade em risco e perigo.

O importante é retirar, agora que o susto passou, lições do caso André do Rap. Ficou claro para todos que o processo decisório do Supremo está doente. Necessita de cura. As decisões são caóticas. Não se sabe quem decide. Quando decide. Como decide. Se decide.

Se decisões liminares têm de respeitar jurisprudência, quais? Nunca ninguém é impedido ou suspeito para julgar qualquer caso. Com parentes envolvidos ou não. Os ministros não avaliam as consequências reais de suas decisões. Como diz o ministro Alexandre de Moraes, o Supremo está com um grave problema de eficiência. Daqui a pouco, a máquina vai “grimpar”. Diante da inação do Supremo e de sua administração interna.

A partir de 2013, por exemplo, os pedidos de habeas corpus têm subido violentamente. Motivos? Vários. Entre outros, porque advogados dos réus têm uma estratégia. Se o habeas corpus cai com um ministro mais rigoroso, o advogado renuncia ao pedido e entra com outro igual, como analisa o professor Ivar Hartmann. E vai entrando com habeas corpus substituíveis unilateralmente. Até acertar. Acertar o quê? O ministro probabilisticamente mais favorável à petição. Qualquer banco de dados com as decisões de cada ministro, como no Supremo em Números, permite prever probabilisticamente o mais favorável, e o menos, à causa.

Transforma-se a distribuição dos processos numa loteria de cartas marcadas. E o Supremo é a vítima. É o alvo do tiro. Aliás, dos tiros. Mas aceita. Silêncio. Ministros constrangidos. Terá havido erro na distribuição? Quem decide se um ministro está impedido ou não? Há dúvidas a esclarecer. Uma investigação e providências internas podem e devem ser tomadas.

O caso André do Rap mostra também o emaranhado processual em que o Supremo se autoaprisionou. Como lembrou o ministro Barroso, somente houve este caso porque o Supremo duvida de si mesmo. Vale ou não a prisão em segunda instância?

Mais ainda. O presidente Fux defende que o Supremo tenha uma eficácia argumentativa diante de todos, incluindo a opinião pública. Neste emaranhado de recursos, esta eficácia é impossível. Os argumentos não têm nome. Não têm cara. Têm números. A ação 333.59.892 é contra a ação 976540, que difere do agravo 11.90008. Misturam-se números com citações e reitera-se que o procedimento do relator está errado. Difícil. Discussões processuais que mesmo quem entende não compreende.

Um exemplo foi a tentativa de transformar o julgamento de André do Rap numa discussão processual sobre os superpoderes do presidente do Supremo. Como o colegiado revogaria a decisão de Marco Aurélio sem dar muito poder ao novo presidente, Luiz Fux

Enquanto os ministros não se sentarem juntos, fizerem as pazes entre si, deixarem de abusar das mídias, dos “offs”, resolver um caso não vai adiantar.

A maior eficiência e confiança de todos no Supremo não depende do Executivo, nem do Congresso, nem da opinião pública, nem de ninguém. Depende de si próprio. Está na hora de colocar ordem na casa.

*Membro da ABL e professor titular de Direito Constitucional da FGV Direito do Rio


Elio Gaspari: O crime do Expresso do Oriente

André do Rap foi solto por todos, começando pelos ministros do STF

O ministro Marco Aurélio Mello disse quase tudo:

“O juiz não renovou, o Ministério Público não cobrou, a polícia não representou para ele renovar. Eu não respondo pelo ato alheio, vamos ver quem foi que claudicou.”

Quase tudo, porque quem soltou André do Rap, chefão do Primeiro Comando da Capital, condenado a 27 anos de prisão, foi Marco Aurélio Mello.

Dizer que essência da lei que o ministro seguiu ampara a libertação de um bandido como o chefão do PCC é uma demasia. Assim como foi uma demasia sua decisão de 2000, quando soltou o banqueiro Salvatore Cacciola, que viria a se escafeder (como André do Rap), até ser preso em Monte Carlo e recambiado para Bangu. Nesses casos, como em outros, iluminou-se na controvérsia.

Como no crime do Expresso do Oriente, André do Rap foi solto por todos, começando pelos ministros do Supremo Tribunal Federal que derrubaram a tranca para os condenados em segunda instância. Foi solto também pelos parlamentares que votaram um dispositivo escalafobético que permite a libertação de qualquer pessoa presa preventivamente há mais de 90 dias sem manifestação do juízo pela prorrogação do prazo.

O ex-ministro Sergio Moro, com sua lógica angelical, diz que nada tem a ver com a girafa. De fato, ela não saiu do seu zoológico, mas o doutor botou a boca no mundo com um argumento de má qualidade: a exigência da renovação da preventiva a cada 90 dias sobrecarregaria os juízes. Quem entende do assunto estima que são, no máximo, cinco horas de trabalho por mês para um juiz de vara superpovoada. Foi o juiz Moro quem usou à saciedade o instrumento da preventiva como uma forma de pena antecipada. O ministro Gilmar Mendes cansou-se de denunciar essa astúcia.

Os doutores do andar de cima soltaram André do Rap, e corre-se o risco de sobrar para o andar de baixo. O Brasil tem centenas de milhares de pessoas pobres, em geral jovens pobres e negros, encarceradas sem condenação. Do jeito que a libertação de André do Rap entortou, surge a impressão de que para evitar a “sobrecarga” dos juízes, deve-se apertar o parafuso da preventiva.

Em sua batalha pela restauração do habeas corpus, o grande Raymundo Faoro, presidente de uma OAB que não existe mais, explicava aos generais que o instituto não discute o mérito da acusação que há contra uma pessoa, mas uma ilegalidade pontual na conduta do Estado. Os generais entenderam.

André do Rap não foi libertado porque é inocente, mas porque o STF decidiu que não se pode prender uma pessoa apenas com uma condenação em segunda instância. Ademais, a lei diz que os juízes devem se manifestar a cada 90 dias. Não é muito, sobretudo considerando que o cidadão está na cadeia há três meses. Refrescando a vida dos magistrados, arrisca-se deixar milhares de pessoas mofando nos cárceres.

O caso de André do Rap abriu a porta do armário das idiossincrasias cultivadas pelos 11 ministros do Supremo Tribunal. O juiz americano Oliver Wendell Holmes dizia que sua Suprema Corte se parecia com nove escorpiões numa garrafa. No Supremo Tribunal Federal há 11. O choque dos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio Mello é apenas um asterisco desse ambiente irradiador de malquerenças.


Vera Magalhães: Suprema bagunça

Tudo é lamentável no caso André do Rap, síntese dos nossos vícios recentes

É inútil tentar explicar à grande massa da opinião pública o intrincado novelo legislativo, interpretativo e jurídico que permite que, num intervalo de um dia, um ministro do Supremo Tribunal Federal mande soltar um dos mais perigosos traficantes do País, e outro mande prender. O que salta aos olhos, nesse caso, é a barafunda da mais alta Corte de Justiça do País, uma situação que vem sendo construída a muitas mãos, tijolo a tijolo, ao longo dos últimos anos.

O sabor das conveniências e os alinhamentos de ocasião, políticos e jurídicos têm levado a que o STF aja, sistematicamente, de maneira disforme, disfuncional e, sobretudo, política.

Então, houve um momento em que o vento soprava a favor do punitivismo, e por ele se guiaram antes históricos garantistas.

Veio a Lava Jato, que, por alguns anos gozou de prestígio similar na Corte, mantendo a tendência anti-impunidade e levando a que a operação tivesse confirmadas quase todas as suas principais (e até as mais polêmicas) decisões.

A maré virou, e não adianta negar, depois do impeachment de Dilma Rousseff. Foi só ali, depois de o axioma de Romero Jucá (aquele do acordão com o Supremo, com tudo) se tornar conhecido, que os hoje propalados reparos à Lava Jato vieram à baila e o assim chamado garantismo voltou à moda entre os togados.

A ponto de o tribunal se ver cindido em dois. O grupo antilavajatista colecionou vitórias na gestão Dias Toffoli e graças à composição da Segunda Turma, mas agora o comando trocou de mãos.

Só que os alinhamentos e o movimento do pêndulo não são tão simples. À frente da Corte está Luiz Fux, alguém que não goza de popularidade interna nem entre os antilavajatistas nem particularmente entre os apoiadores da operação.

Há ainda ministros que não jogam fechados em nenhum dos times, como Marco Aurélio Mello, pivô do lamentável episódio André do Rap, a enigmática Rosa Weber e Alexandre de Moraes, que tem sido mais independente em relação a esses grupos.

Além disso, a saída de Celso de Mello e a decisão de retornar ao plenário do STF as questões referentes a inquéritos e ações penais vão necessariamente reconfigurar estratégias e alianças.

Este é o pano de fundo político que permitiu a que se chegasse a um papelão nacional como esse da soltura de André do Rap.

Cheira a cinismo de advogados louvarem o caráter “técnico” da decisão de Marco Aurélio. Mesmo a análise fria do que mandou a lei anticrime, e que agora está consignado no Código de Processo Penal, recomenda deixar para o juiz singular decisão de revogação de prisão preventiva, quando não justificada pelo Ministério Público ou autoridade policial.

Ainda que fosse tecnicamente correta, a decisão não se sustenta diante da periculosidade do traficante e o risco – agora confirmado, com sua óbvia fuga – de sua soltura. E não adianta vir com firulas jurídicas: é, sim, papel do STF zelar pela ordem pública, e não se espera de um magistrado da Corte suprema que esteja de prontidão para, a qualquer cochilo de prazos do Ministério Público, conceder liminar com esse teor num sábado pré-feriado.

O jogo de gato e rato iniciado entre os ministros depois da decisão e de sua revogação por Fux, com direito a indignidades de troças quanto ao penteado do presidente da Corte, é sinal de que foi longe demais o esgarçamento da institucionalidade na cúpula do Judiciário.

É este o retrato do Poder com o qual a sociedade vem contando para, vejam só, colocar freios no presidente com pendores autocráticos. Enquanto uma ala da Corte está confraternizando com ele e opinando sobre indicações para o Supremo, a outra está se engalfinhando numa disputa infantil enquanto um criminoso perigoso foge nas suas barbas. Aterrador.


Eliane Cantanhêde: Marco Aurélio, qual é a sua?

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão

Em 27 de julho do ano 2000, escrevi artigo sobre a decisão monocrática do Supremo que mandou soltar o então banqueiro Salvatore Cacciola, apesar da obviedade da culpa e das evidências de que, assim que deixasse a prisão, ele fugiria do País. O ministro deu a liminar, Cacciola voou para a Itália, via Paraguai e Argentina, e só foi preso de novo seis anos depois, ao cometer um erro primário. Título do artigo: “Marco Aurélio, qual é a sua?”

Vinte anos e muitas decisões polêmicas depois, Marco Aurélio Mello assume a partir de hoje a solene condição de decano, no lugar do ministro Celso de Mello, já empurrando a Corte para o centro do debate nacional – ou melhor, da ira nacional. Qual o sentido de soltar André do Rap, o chefe do PCC que a polícia demorou anos e gastou fortunas para capturar?

Dono de helicóptero, lancha, mansões e carrões, o facínora tem duas condenações em segunda instância, somando 26 anos, mas entrou com recurso e estava ainda em prisão provisória desde setembro de 2019. Ao acatar o habeas corpus, Marco Aurélio justificou que sua prisão não fora renovada de 90 em 90 dias, como manda o novo Código Penal, aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro – contra a posição de Sérgio Moro.

Pode? Não pode. Bastava o relator pedir explicações e ganhar tempo até cumprir-se a burocracia. Mas esse não seria Marco Aurélio. Ele tem cultura jurídica, é respeitado tecnicamente, acorda cedo e mergulha em livros, leis e casos. O problema é a personalidade, o gosto de ser “do contra”. Se tal julgamento foi 10 a 1, o “1” é de Marco Aurélio, 74, no STF desde 1990, por indicação de seu primo Collor de Mello.

Ao libertar o líder do PCC, ele determinou: “Advirtam-no da necessidade de permanecer em residência indicada ao juízo, atendendo aos chamados judiciais”. Seria cômico, não fosse trágico. André do Rap deve ter dado boas gargalhadas antes de escafeder-se por esse mundão afora, assim como Cacciola ao fugir para sua Itália natal.

Na época, nem havia o artigo usado agora pelo ministro, mas o resultado foi o mesmo. O então presidente do STF, Carlos Velloso, revogou a liminar de Marco Aurélio e mandou prender Cacciola novamente, assim como o atual, Luiz Fux, fez no caso de André do Rap. Tarde demais nas duas vezes. Eles têm dinheiro, recursos e aliados para fugir da polícia, do MP e da Justiça, que são obrigados a consumir nossos impostos, durante anos, para prendê-los de novo.

Com a “letra fria da lei”, Marco Aurélio jogou o País contra o Supremo, aprofundou o racha na Corte, deixou Fux sem saída e gerou um empurra-empurra infernal. Um ministro condena Marco Aurélio, outro recrimina Fux, o Congresso joga no colo do MP, o MP devolve para o Congresso. Para nós, os leigos, é uma bagunça. Para os traficantes, uma janela de oportunidades.

Juízes e ministros do STF não são robôs, que juntam o caso X com o artigo Y e apertam um botão. São seres humanos que estudam e aplicam leis, conscientes de que cada caso é um caso e avaliando personagens, circunstâncias e a gravidade da situação, com bom senso. Afinal, qual o objetivo? Fazer justiça. Por isso o plenário tem 11 votos, 11 formas de compreender e votar, evitando empates.

O Congresso não deveria aprovar um artigo tão burocrático, Bolsonaro não deveria sancionar sem ouvir seu ministro da Justiça, Marco Aurélio deveria ter juízo. André do Rap, definido por Fux como de “altíssima periculosidade”, que “compromete a ordem e a segurança pública”, não estaria solto por uma canetada “técnica”, aterrorizando a sociedade e jogando dúvidas sobre a justiça brasileira.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Hélio Schwartsman: Bem-vindos ao clube

Marco Aurélio poderia ter optado por outro caminho com o chefe do PCC, mas, se o fizesse, não seria Marco Aurélio

O ministro Marco Aurélio Mello agiu bem ao determinar a soltura de um dos chefões do PCC? Se você, dileto leitor, pensa que ele extrapolou, seja bem-vindo ao clube do consequencialismo, corrente filosófica que, devido a uma campanha de propaganda negativa, não goza da melhor das reputações, ainda que funcione bem em grande parte das situações.

O problema com a posição de Marco Aurélio é que, pela letra da lei, ela é corretíssima. Sob a perspectiva da deontologia, a escola rival do consequencialismo, devemos obediência apenas à legalidade, independentemente das consequências. Immanuel Kant, o representante maior dessa corrente de pensamento, disse tudo quando escreveu “fiat iustitia, et pereat mundus” (faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça).

E, no ano passado, o Congresso adicionou ao artigo 316 do Código de Processo Penal um dispositivo que corretamente obriga as autoridades judiciais a renovar a cada 90 dias a fundamentação para manter uma prisão preventiva, sob pena de torná-la ilegal. Não fizeram isso no caso do líder pececista, e aí Marco Aurélio fez “iustitiam”.

Para contestar a kantiana decisão do magistrado, é preciso abandonar a legalidade estrita e sorver um pouquinho de consequencialismo: não é prudente utilizar uma interpretação mecanicista da lei para pôr em liberdade alguém que representa perigo físico para a sociedade e que, na primeira oportunidade que teve, tornou-se um foragido. Vale observar que preservar a segurança pública e evitar a possibilidade de fuga são, pela lei, razões que justificam a prisão preventiva.

É claro que Marco Aurélio poderia ter optado por um caminho menos conspícuo. Sem trair o espírito da lei, ele poderia ter exigido que o procurador e o juiz do caso se manifestassem ou ter levado a questão ao pleno do STF, para fixar os limites do novo dispositivo, mas aí Marco Aurélio não teria sido Marco Aurélio.


Ricardo Noblat: Supremo confirmará a decisão de Fux que suspendeu a de Mello

Traficante solto fugiu para o exterior

O autor da lambança foi o Congresso que, no ano passado, ao aprovar o pacote anticrime que o governo lhe remeteu, deu nova redação ao artigo 316 do Código de Processo Penal incluindo a exigência da revisão de prisão preventiva a cada 90 dias. Antes não havia prazo para isso.

O coautor da lambança foi o presidente Jair Bolsonaro. À época, a Procuradoria-Geral da República pediu à Casa Civil da Presidência o veto ao artigo em sua nova redação. Alertou para a impossibilidade da revisão em prazo tão curto. O então ministro da Justiça, Sérgio Moro, também pediu que Bolsonaro vetasse.

Mas o presidente sancionou o pacote tal como o recebeu do Congresso. No mesmo dia, nas redes sociais, justificou-se: “Na elaboração de leis quem dá a última palavra sempre é o Congresso. Não posso sempre dizer não ao Parlamento, pois estaria fechando as portas para qualquer entendimento”.

Conversa fiada. Não poucas vezes, Bolsonaro vetou no todo ou em parte projetos aprovados pelo Congresso. Tem esse direito. E não poucas vezes, o Congresso derrubou seus vetos. A última palavra, de fato, é do Congresso. Que em muitas ocasiões se conforma e mantém os vetos do presidente. É assim que as coisas funcionam.

Ao aceitar o habeas corpus para soltar André do Rap, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que o traficante, com duas condenações, estava preso, sem culpa formada, desde o fim de 2019. E que de lá para cá não houve a revisão de sua prisão preventiva como manda a lei.

Mello leu a lei ao pé da letra, como costuma fazer. Há uma corrente de juízes que acha que deve ser assim. Mas há outra que acha que cabe ao juiz interpretar a lei e aplicá-la levando em conta as circunstâncias, não só o que ela diz. Foi por isso que o ministro Luiz Fux, presidente do tribunal, suspendeu a decisão de Mello.

O plenário do Supremo, por larga maioria de votos, confirmará a decisão de Fux, revogando a de Mello. É a tendência. Mello não esquentará a cabeça porque perderá outra vez. Com frequência, vota na contramão dos demais ministros e não esconde o prazer que sente com isso. Mello se aposenta em julho do próximo ano.

Até lá, terá outras oportunidades de fazer o que mais gosta – marcar posição, causando polêmica e atraindo os holofotes para si. Dele, no passado remoto, um mordaz ex-ministro do Supremo já disse que é um jurista notável e com uma grande vantagem: confia cegamente na sensatez dos seus colegas de tribunal.

O “Efeito Bolsonaro” aumentou o número de casos da Covid-19

Onde ele foi mais votado, a pandemia foi pior

Bolsonaro jamais ameaçou beijar os seus devotos, como fez o presidente Donald Trump em comício, ontem à noite, na Flórida. “Eu me sinto tão poderoso”, disse Trump, sem máscara, depois de ter sido infectado pelo coronavírus. “Vou beijar todo mundo. Vou beijar os caras e as mulheres lindas. Dar um grande beijo”.

Mas, também sem máscara, Bolsonaro abraçou, carregou crianças, posou para fotos e provocou aglomerações, antes e também depois de ter sido infectado. E seu exemplo, e também a maneira como tratou o coronavírus que não passaria de uma gripezinha, ajudou a aumentar a pandemia no Brasil.

Foi o que concluiu um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro em parceria com o Instituto de Radioproteção e Dosimetria. O levantamento cruzou os dados de expansão da doença com o resultado da votação em primeiro turno nas eleições presidenciais de 2018 nos 5.570 municípios do país.

Conclusão: há uma correlação entre a preferência por Bolsonaro e a expansão da Covid-19. Para cada 10 pontos percentuais a mais de votos para Bolsonaro há um acréscimo de 11% no número de casos de vírus e de 12% no número de mortos, segundo a Folha de S. Paulo. O texto da pesquisa destaca:

– O estudo mostrou que a Covid-19 causa mais estragos nos municípios mais favoráveis ao presidente Bolsonaro. Podemos pensar que o discurso ambíguo do presidente [e a sua postura] induz seus partidários a adotarem com mais frequência comportamentos de risco e a sofrer as consequências.

Outro estudo da Universidade Federal do ABC, Fundação Getúlio Vargas e Universidade de São Paulo chegou à mesma conclusão. Nas ocasiões em que Bolsonaro minimizou a pandemia, o isolamento social diminuiu – e mais pessoas se contaminaram e morreram nos locais em que ele foi mais votado.


Merval Pereira: O STF e a opinião pública

O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luis Fux, tem tomado decisões tão polêmicas quanto irrefutáveis, conseguindo recolocar a imagem do STF junto à opinião pública em bons termos, sem exceder seus poderes institucionais. Amanhã, ele levará a plenário o Habeas Corpus concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap, que ele anulou levando em conta a periculosidade do preso.

Quando propôs retornar ao plenário as ações penais que estavam sendo julgadas pelas Turmas, feriu suscetibilidades, retirou poderes, mas teve a aprovação unânime do colegiado porque baseou a decisão em fatos – a redução das ações em tramitação -, não em política. Embora a conseqüência da mudança tenha sido retirar da Segunda Turma o poder político de impor a visão não necessariamente majoritária de ministros ditos “garantistas”, que seriam reforçados pela nomeação por Bolsonaro do desembargador Kassio Marques para a vaga aberta com a aposentadoria de Celso de Mello.

Na nova polêmica, Fux anulou um Habeas Corpus do ministro Marco Aurélio Mello que soltou o traficante André do Rap, um dos chefes da maior organização criminosa em atuação no país. Nada evidencia com mais rigor a grotesca situação jurídica em que nos metemos do que o pedido de outro traficante, Gilcimar de Abreu, o Poocker, para que o ministro do Marco Aurélio estendesse também a ele a decisão de soltar seu comparsa André do Rap, pois alega que sua prisão preventiva já estourou o prazo de 90 dias para uma confirmação pelo juiz que o condenou.

Pooker e André do Rap eram companheiros no tráfico internacional de drogas, enviando cocaína para a Europa através do Porto de Santos. Pooker está preso em Mirandópolis, André do Rap partiu, a bordo de um jato particular, para outros ares, possivelmente paraguaios. Nada mais previsível do que isso.

Ao usar o novo artigo 316 do Código de Processo Penal, o ministro Marco Aurélio foi tecnicamente correto, mas não levou em conta outros requisitos para a manutenção da prisão preventiva, como a periculosidade do preso e sua ameaça à segurança pública.

Levar em conta a textualidade da lei, sem atentar para outros fatores, é o que distancia “garantistas” como Marco Aurélio de “consequencialistas” como Fux. Há diversas interpretações de tribunais superiores, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e inclusive o STF, que consideram desnecessária a confirmação das razões para a prisão preventiva quando o réu, como o traficante André do Rap, já tiver sido condenado em primeira e em segunda instâncias.

Caso ainda estivesse em vigor a prisão em segunda instância, o traficante estaria na prisão cumprindo sua pena. No caso em discussão, tanto o Ministério Público Federal (MPF) quanto o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) já haviam justificado a necessidade de manutenção da prisão de André do Rap. O HC encaminhado ao ministro Marco Aurélio veio como recurso daquelas decisões.

O que o ministro Marco Aurélio chamou de “autofagia”, o fato de um ministro contrariar a decisão de outro ministro, pode ser visto como a defesa do compadrio, o que tem levado o Supremo Tribunal Federal a perder, diante da opinião pública, a aura de defensor da Constituição. Mais uma vez, porém, o ministro Fux deve ter confirmada sua posição, mesmo que tenha desagradado outros “garantistas” dentro da Corte.

Ele vai levar ao plenário o julgamento sobre o Habeas Corpus de Marco Aurélio e, mesmo que os debates sejam acalorados e até ataques retóricos sejam feitos, é improvável que a maioria do plenário sustente a soltura de um traficante perigoso que se encontra foragido depois de ser agraciado com uma interpretação literal da lei que prejudicou a sociedade.


Ricardo Noblat: Na raiz do conflito entre ministros, a chaga dos presos provisórios

O que diz a lei não vale para todos

Não convidem para dividir a mesma mesa os ministros Marco Aurélio Mello e Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal. Nem Fux e os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Jamais os ministros Gilmar e Marco Aurélio. Gilmar e Marco Aurélio, por querelas antigas que quase resultaram em troca de socos.

Fux detestou o acordo feito pelo presidente Jair Bolsonaro com Gilmar e Toffoli em torno da indicação do desembargador Kassio Nunes Marques para a vaga no Supremo aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Falta ao “nosso Kassio” envergadura para tal, ou mesmo currículo confiável.

O troco veio rápido. Para evitar que Kassio chegue ao tribunal com essa bola toda e blindar a Lava Jato contra seus futuros votos, Fux sugeriu devolver ao plenário o poder de julgar ações penais que era repartido entre a Primeira e a Segunda Turma, cada uma delas formada por cinco ministros. Sugestão dada, sugestão aceita.

No último fim de semana, explodiu o conflito entre Marco Aurélio e Fux por causa de uma decisão do primeiro revogada em tempo recorde pelo segundo. Marco Aurélio mandou soltar o traficante André do Rap, um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Fuz revogou a ordem do colega.

Quem tem razão? Marco Aurélio e Fux têm razão, a levarem-se em conta os argumentos esgrimidos para justificar uma e a outra coisa, e esse é o nó da questão. Marco Aurélio baseou-se em novo trecho do artigo 316 do Código de Processo Penal, incluído após a aprovação do pacote anticrime aprovado no Congresso em 2019.

O novo trecho diz que o juiz precisa reavaliar a prisão preventiva a cada 90 dias – antes não havia prazo. Como isso não foi feito no caso de André do Rap, e sua defesa bateu às portas do Supremo, Marco Aurélio libertou-o. Desconfia a polícia paulista que o traficante fugiu para o Paraguai e que será difícil recapturá-lo.

Fux entendeu que o traficante deveria continuar preso porque é de “comprovada e altíssima periculosidade, com dupla condenação em segundo grau por tráfico transnacional de drogas, investigado por participação de alto nível hierárquico em organização criminosa e com histórico de foragido por mais de 5 anos”.

Marco Aurélio partiu para cima de Fux: “Ele assumiu a postura de censor. Eu não sou superior a ele, mas também não sou inferior”, disse. “Atuo segundo o direito posto pelo Congresso Nacional e nada mais. Evidentemente não poderia olhar a capa do processo e aí adotar um critério estranho a um critério legal”.

Presidente do Supremo há menos de um mês, Fux não quis polemizar com Marco Aurélio. Mas disse a pessoas que com ele, ontem, conversaram que viu “perigo” na tese do seu colega que beneficiou o traficante, pois se ela vingasse, “inúmeros réus perigosos acabariam sendo soltos”. Sobrou para quem?

Para o Congresso. Em sua defesa, saiu Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Ele não descartou revisão na lei que amparou a decisão de Marco Aurélio, mas afirmou que a falha foi do Ministério Público que deveria ter renovado o pedido de prisão preventiva do traficante em um prazo de 90 dias, e não o fez.

O Brasil tem mais de 773 mil presos provisórios, informou em fevereiro deste ano o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Preso provisório é aquele cuja prisão foi decretada com o intuito de garantir que o acusado passe por um processo penal com amplo direito de defesa antes de ser sentenciado em definitivo.

São quase todos jovens, pobres, negros e mulatos. Somam algo como 40% do total de encarcerados em 2,6 mil cadeias de presídios e delegacias. A maioria está trancada há pelo menos quatro anos à espera da assinatura de um juiz que decida seu destino. Muitos, desde antes da sentença de primeira instância.

A Constituição assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. Na vida real, a história é outra. Ministério Público, juízes e parlamentares sabem disso. A discussão pega fogo quando acontece um caso como o do traficante famoso, mas depois o fogo baixa e tudo fica como está.


Merval Pereira: O vento muda

Como sempre em uma democracia não totalmente amadurecida como a nossa, mudanças súbitas no quadro institucional acontecem, alterando o processo em andamento e manobras que estavam em gestação. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, tirou das Turmas e levou para o plenário o julgamento de ações penais, retirando do ministro Gilmar Mendes o controle das ações da Lava-Jato na Segunda Turma.

Paralelamente, a substituição do ministro Celso de Mello pelo desembargador Kassio Marques subiu no telhado. O que parecia ter sido a sorte grande de sua vida acabou se transformando num pesadelo que pode até mesmo inviabilizá-lo para o posto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que almejava, antes de ter sido catapultado para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF) por interesses ainda não claramente identificados.

Assim como, num passe de mágica, apareceu do nada para compor o grupo de chamados “garantistas” no Supremo, cujo objetivo político imediato combina com o de Bolsonaro, de desmoralizar o ex-ministro Sérgio Moro, Kássio Marques pode estar em processo de autodestruição.

As inconsistências no currículo, onde registra título inexistente de pós-doutorado e duvidosas provas de mestrado e doutorado quase ao mesmo tempo, foram agravadas com a denúncia da revista digital Crusoé de que apresentou uma dissertação de mestrado na Universidade Autônoma de Lisboa com “trechos inteiros copiados de artigos publicados na internet por um advogado”.

A revista utilizou um aplicativo chamado Plagium para analisar as 127 páginas do trabalho com que o desembargador ganhou o título de mestre em Direito, e identificou passagens inteiras copiadas de textos do advogado Saul Tourinho Leal, piauiense como ele. Até mesmo um erro de grafia, trocando “Namíbia” por “Naníbia”, foi copiado.

A festa em que estava transformada a indicação de Bolsonaro, com reuniões sociais onde acusados e acusadores, juízes e advogados confraternizavam, está a ponto de desandar. Porém, o que, num país civilizado, seria obstáculo para a indicação de um ministro do STF, no Brasil pode não dar em nada.

Até pela manhã, o desembargador Kassio Marques aparecia no noticiário com duvidosos títulos em seu currículo, mas do jeito que as coisas são feitas por aqui, à base da amizade e do relacionamento pessoal, a confirmação de seu nome pelo Senado parecia não ser problema.

O desembargador aparece todos os dias em jantares, almoços ou bate papo na internet com os senadores que irão argui-lo. Essa ligação pessoal do indicado com quem vai julgá-lo é promíscua. Não me lembro de outro ministro do STF tenha ficado nessa socialização com todos ao ser indicado. As visitas formais de apresentação são naturais, mas nada além deveria acontecer se a sabatina do Senado fosse mesmo para valer.

No entanto, a denúncia da Crusoé eleva o sarrafo na avaliação do candidato pelo Senado, mesmo nesse ambiente. Como ministro, Kassio Marques iria para a Segunda Turma do STF, e seria o voto de desempate da turma, certamente para o lado que frequenta, a favor do grupo dito “garantista”, onde predominam Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Agora, pode nem estar na posição de ministro nos próximos dias, e a história pode ser outra. Com a decisão do presidente Luis Fux, apoiada por unanimidade pelo plenário, restarão às turmas os habeas-corpus, como o de Lula argüindo a parcialidade do então juiz Sérgio Moro no seu julgamento no caso do triplex do Guarujá, onde foi condenado nas três instâncias.

Mesmo assim, se a Segunda Turma considerá-lo parcial, o processo volta à estaca zero. Lula, porém, foi condenado em segunda instância em outro processo, o do sítio de Atibaia. Nesse caso, o juiz Moro aceitou a denúncia, mas quem condenou foi a juíza Gabriela Hardt. Vai ser muito difícil para os advogados de Lula conseguir a anulação desta segunda condenação para que ele se torne novamente elegível. Ainda mais agora, que o vento mudou novamente de lado no caso da Lava-Jato.


Ascânio Seleme: Fux tem razão

Ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux elencou cinco pontos que deverão guiar a sua gestão pelos próximos dois anos

Ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux elencou cinco pontos que deverão guiar a sua gestão pelos próximos dois anos. Separo um deles, que se o novo presidente conseguir implementar prestará um serviço inestimável à Justiça e ao país. Trata-se do que Fux chamou de “fortalecimento da vocação constitucional do STF”. Seu propósito é reduzir as dezenas de milhares de ações ingressadas a cada ano, reposicionando o tribunal “como uma Corte eminentemente constitucional”.

De acordo com dados citados pelo ministro no seu discurso de posse, 115 mil processos foram julgados pelo tribunal em 2017. No mesmo ano, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou 70 casos. É verdade que a nossa Constituição é muito maior que a americana, que tem apenas sete artigos e recebeu 27 emendas em 230 anos. A brasileira tem 250 artigos e 114 disposições transitórias, e em apenas 30 anos teve 100 emendas aprovadas. Mas só isso não explica a distância que separa os dois tribunais.

Fux tem razão, é preciso desentulhar a Corte. O problema é como se fazer isso. Primeiro, há obstáculos no caminho, alguns criados pelo próprio tribunal. Em novembro do ano passado, o STF derrubou por seis votos a cinco a prisão em segunda instância. Além de todas as questões políticas que aquela decisão encerra, como o favorecimento à impunidade, por exemplo, ela serviu como bandeira em favor do prosseguimento de qualquer ação até que ela alcance o Supremo. Se o criminoso fosse preso assim que um colegiado de desembargadores de tribunais regionais o condenasse, como estava estabelecido antes da decisão contrária do Supremo, o apelo a recursos seria obviamente menor.

Os clientes constitucionais do Supremo são o presidente, seu vice, os membros do Congresso, os ministros de Estado, os ministros dos tribunais superiores e do TCU, o procurador-geral da República, os chefes das três Forças Militares e os chefes de missões diplomáticas. Somam mais ou menos 900 pessoas. Ocorre que qualquer cidadão que responde por crime em ações em que membros desse grupo estiverem envolvidos acaba sendo julgado também pelo STF. Eventualmente, um ministro pode desmembrar uma ação e remeter para instância inferior o denunciado sem foro privilegiado, mas nem sempre é assim.

O Supremo também faz mal uso da súmula vinculante, preceito constitucional que dá ao tribunal prerrogativa de considerar já julgadas todas as ações que tratam de crimes reiteradamente debatidos e punidos pelo tribunal. O expediente poderia reduzir o volume de ações em curso. Mas, é absolutamente corriqueiro o atropelamento desta regra. Na semana passada, o próprio Fux pediu vista em julgamento que deveria aprovar uma súmula vinculante em questão de narcotráfico. No caso, não importa o teor da ação, mas o princípio que foi ignorado.

Há ainda questões acessórias e mesmo triviais que tornam chatos e demorados os julgamentos do STF. Como a TV Justiça, que foi criada em em 2002 em nome da transparência. Ela deixou os ministros mais maleáveis, o que é perigoso. Com a transmissão ao vivo das sessões, juízes podem ser levados a julgar de acordo com a orientação da galera, o grito das ruas. Com julgamentos públicos, muitos de importância crucial para a vida política e institucional do Brasil, os ministros podem ser constrangidos pela pressão política e popular que sofrem em tempo real.

A TV Justiça ajudou a produzir o que Fux chamou de “protagonismo deletério, que corrói a credibilidade dos tribunais, especialmente do STF”. De certa forma as sessões do Supremo viraram espetáculo e os ministros passaram a gastar muito mais tempo para ler seus votos, que foram engordados em páginas e citações. Alguns tomam horas para serem lidos e comentados. O componente “vaidade humana” é quase palpável de tão vivo nos julgamentos do tribunal. E é evidente que isso colabora com a morosidade do tribunal e o acúmulo da pauta.

Desgoverno
O governo anunciou que pode extinguir alguns ministérios, como o do Turismo, por exemplo. Não farão nenhuma falta num governo que em diversas áreas não governa mesmo. A turma do Bolsonaro não governa na Cultura, todos sabem. Aliás, se lixa para ela. Também não governa no Meio Ambiente, não se incomoda com a derrubada de árvores na Amazônia e muito menos com queimadas no Pantanal. Tampouco governa para as mulheres e para os direitos humanos e mal governa na saúde e na educação. Pode fechar ministérios à vontade, excelência, eles pouco importam.

Pauta para Lira
O centrão quer fazer o deputado Arthur Lira (corrupção, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito, violência doméstica) presidente da Câmara. Com o aval do Planalto, já está oferecendo cargos no governo aos que votarem nele. O agrupamento suprapartidário também tem prontos alguns pontos da pauta do mandato de Lira: finalizar a Lava-Jato; reduzir o papel do Ministério Público; e introduzir carência de quatro a oito anos para magistrado poder se candidatar a cargo eletivo. Um ataque explícito a quem combate a corrupção.

Agora, sim
O estado que já teve cinco governadores presos e tem um sexto ameaçado de prisão, pode agora inovar e eleger um prefeito previamente detido. É o Rio inovando e surpreendendo o Brasil e o mundo. A candidatura de Cristiane Brasil, do PTB, presa preventivamente em caso de corrupção, teve sua candidatura homologada pelo Tribunal Regional Eleitoral. O partido insistiu em indicar a encarcerada porque ela é filha do dono, quer dizer, do presidente do partido, o mal afamado Roberto Jefferson. Nada de mais, na verdade. Afinal, não foi aqui que vereadores foram eleitos dentro da cadeia?

Recomendo livros
Três bons livros que merecem sua atenção. O jornalista Pedro Doria acaba de publicar “Fascismo à brasileira”, que conta a história da criação do partido integralista brasileiro e mostra suas muitas semelhanças com o bolsonarismo. O jornalista e ex-candidato a deputado federal Ricardo Rangel colocou nas livrarias “O destino é o caminho”, em que narra sua jornada de 800 quilômetros pelo Caminho de Santiago de Compostela. E o escritor e cientista político Sérgio Abranches lançou “O tempo dos governantes incidentais”, onde conta como populistas se aproveitaram de frustrações políticas acumuladas para se eleger e em seguida ameaçar a democracia e as instituições.

Paulo Freire, 99
Paulo Freire, o mais importante educador brasileiro e um dos maiores do mundo, completaria hoje 99 anos. Inúmeras homenagens e palestras sobre o professor e sua obra serão realizadas nos próximos 12 meses em comemoração ao seu centenário. Ele é o brasileiro com mais títulos de doutor Honoris Causa. São 41, inclusive das superuniversidades de Harvard, Cambridge e Oxford. Autor de 19 livros, com edições em incontáveis línguas, Paulo Freire dá nome a 31 ruas e praças no Brasil, além de 302 escolas, municipais, estaduais e privadas. Respeitem Paulo Freire.

Fazendas e incêndio
Além da evidente má vontade da União com o meio ambiente, da falta de fiscalização adequada, da seca, dos ventos e do difícil acesso, um fator econômico serve de combustão para as queimadas do Pantanal. Diversas fazendas foram divididas ao longo dos últimos anos e muitas pararam de produzir, demitiram peões e fecharam suas porteiras. Essas áreas são as mais desguarnecidas e descuidadas, por onde o fogo se alastra sem impedimento. Outras fazendas, cinco no Mato Grosso do Sul, são investigadas pela Polícia Federal por queimadas intencionais.

Dando linha
Fabricantes de linhas do interior de São Paulo tiveram queda nas vendas de até 80% no início da pandemia. Apavorados, fizeram muitas demissões achando que a crise demoraria e a recuperação econômica só teria início em 2021. Cinco meses depois, uma dessas fábricas já opera no azul, ou no azulão, com vendas 120% maiores do que antes da crise sanitária. A concorrência chinesa ficou muito cara.

EUA desbancados
Para quem acha que o problema alcança somente países pobres, este dado pode surpreender. O Federal Reserve dos Estados Unidos, o FED, similar ao nosso Banco Central, informou na semana passada que um em cada quatro americanos não tem conta bancária ou tem apenas uma conta pagamento. Significa que 82 milhões são desbancarizados nos EUA.

Correção
Não é do MDB o ex-prefeito de Cocal (PI) João Maria Monção, que disse em discurso gravado que roubou, sim, mas não tanto quanto o seu adversário na próxima eleição. Ele era do PTB, que o expulsou após a declaração.


Luiz Fux: Mensagem ao cidadão brasileiro

Poder Judiciário deve contas à sociedade

Honra-me servir o nosso país como presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça pelos próximos dois anos, após mais de 40 anos de vida pública, tendo percorrido todos os degraus da carreira da Magistratura.

O sentimento de dever público é redobrado neste momento de soerguimento da vida nacional, em meio a uma pandemia que levou por ora mais de 130 mil vidas humanas, testando a capacidade de resiliência dos brasileiros e de nossas instituições como nunca na história contemporânea, e nos imbuindo de solidariedade para com as vítimas e seus familiares.

O meu sentir, como cidadão e como juiz, é que a nossa Constituição sairá mais fortalecida desta crise. Como o mais importante documento do povo brasileiro, ela permanece a âncora do Estado Democrático de Direito e a bússola que guia as nossas aspirações de presente e de futuro.

À frente do STF, preservaremos a sua função precípua como instituição de jurisdição maior, defendendo a Constituição e conjurando das nossas deliberações temas afeitos aos demais Poderes. Meu norte será a lição mais elementar que aprendi no exercício da Magistratura: a deferência aos poderes Executivo e Legislativo no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e vigilância na tutela dos direitos fundamentais.

Com efeito, o STF não detém capacidade institucional — nem é o legítimo oráculo — para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação. Tanto quanto possível, os poderes Legislativo e Executivo devem resolver interna corporis seus conflitos e arcar com as consequências políticas de suas decisões. Reduzir a judicialização excessiva da política requer um compromisso coletivo que se revela fundamental para a autoridade de Constituição.

Por outro lado, se cabe ao Judiciário guiar-se pelas virtudes passivas, não podemos abrir mão da independência judicial atuante por um ambiente político probo. De forma harmônica e litúrgica, em diálogo permanente com os demais Poderes, o Judiciário não hesitará em proteger as minorias e a liberdade de expressão, bem como em preservar a democracia.

Calcada nessas premissas, nossa gestão compreenderá cinco eixos, todos alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU. São eles: 1) proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; 2) incremento da segurança jurídica conducente à otimização dos negócios; 3) combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos; 4) acesso à justiça digital; e 5) fortalecimento da vocação constitucional do STF.

A vocação constitucional do STF merecerá especial atenção nos próximos dois anos, porquanto não se justifica que sejamos a Corte Suprema que mais julga processos no mundo. Em 2019, foram 115.603 processos julgados, em contraposição aos 70 casos julgados pela Suprema Corte americana. Julgar muito não significa necessariamente julgar bem. Destarte, o fortalecimento do sistema de precedentes permitirá a redução dos processos que chegam desnecessariamente ao STF.

Outrossim, as excelentes gestões que me antecederam criaram as bases para consolidarmos a Revolução Digital do Poder Judiciário, o que nos permitirá desenvolver soluções criativas e baratas, porém com alto impacto estrutural, em direção a um acesso à justiça digital. O STF caminha para se tornar a primeira Corte Constitucional 100% digital do planeta, com perfeita integração entre inteligência artificial e inteligência humana. Nas demais instâncias, entre outras iniciativas, criaremos varas virtuais e incentivaremos soluções alternativas de conflitos em plataformas eletrônicas.

A tecnologia também será instrumento para aprimorar o sistema de combate à corrupção e de recuperação de ativos. Ampliaremos parcerias estratégicas com organismos nacionais e internacionais e adequaremos o país às recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional, mecanismos essenciais para o ingresso do Brasil na OCDE.

Por outro lado, não basta um Poder Judiciário tecnológico e eficiente, se os direitos básicos do cidadão não forem protegidos e concretizados pelas decisões judiciais. Nessa perspectiva, o destinatário central do nosso trabalho diário será o cidadão brasileiro. O exercício da judicatura requer a consciência de que o Poder Judiciário deve contas à sociedade e de que a autoridade de nós, juízes, repousa na crença de cada brasileiro em que as nossas decisões decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.

Daqui em diante, é hora de pouco falar e muito agir, sempre com um olhar otimista e propositivo sobre o Poder Judiciário. As boas mudanças são geracionais. Por vezes, elas não ocorrem no tempo e no ritmo desejados. No entanto, ao lado dos 18 mil juízes brasileiros, inicio esta jornada sem a ilusão de conceber que em dois anos teremos resolvido todos os problemas do Poder Judiciário, mas com a motivação infinita de empreender transformações positivas no modo de fazer a justiça em nosso país. Não há milagres nem subterfúgios. O motor da história é olhar para frente, sempre com prudência, diálogo, senso de realidade e consciência de que devemos honrar e preservar os ideais de futuro que a Constituição do Brasil prometeu.

*Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal


Reinaldo Azevedo: Fux chega ao topo com a advocacia sob a vara da Lava Jato

Que o ministro contribua para banir das terras nativas o direito criativo

Luiz Fux assumiu nesta quinta (10) a presidência do STF em meio a mais um espetáculo da Lava Jato-RJ, que vive seus dias de parceria física e metafísica com o bolsonarismo. Fez um strike contra Wilson Witzel e promete não deixar um só pino em pé com a Operação E$quema S, com esse cifrão que encanta os tiozões do WhatsApp que pedem golpe, com polo verde, ventre protuberante e meias e tênis pretos.

Leio que uma das missões do ministro seria manter as conquistas da Lava Jato, sua autonomia, seu poder, sei lá… Os objetos diretos variam de acordo com o entusiasmo do redator. Tomara que seja conversa mole. Sua tarefa é fazer valer a Constituição. Só.

Naquilo em que a Carta é explícita, deve fazê-lo sem margem para interpretações. Dou um exemplo: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Que seja em relação a isso tão aborrecido como o juiz de futebol que manda cobrar tiro de meta quando o atacante faz a bola escapulir pela linha de fundo do campo adversário —se for o defensor a fazê-lo, é escanteio.

Regras 16 e 17 da International Board. No caso da Carta, trata-se do inciso LVII do artigo 5º, cláusula pétrea que o próprio Fux ignorou ao validar um gol de mão da Lava Jato, que conseguiu manter Lula na cadeia contra a regra do jogo, num exercício de criatividade jurídica.

Que o ministro contribua para banir das terras nativas o direito criativo, que se assenta ou no solipsismo ou nas vagas de opinião que tornam a sociedade refém de facções organizadas, contra as quais Madison já chamava a atenção no artigo 10 de “O Federalista”. Elas destroem a República.

Ouso sugerir que leia também o artigo 51. Fôssemos anjos, não seria necessário haver governos. Como não somos, estes têm de ser dotados de instrumentos para exercer seu ofício. Dado que os próprios governantes seres angelicais não são, têm de ser obrigados a controlar a si mesmos —e, pois, não podem ser eles a comandar os tribunais por vias oblíquas.

Preservar a Lava Jato? Exatamente o quê? O conluio entre juiz e órgão acusador? A subordinação da agenda anticorrupção a candidaturas? A condenação sem provas? O uso das prisões preventivas como instrumento para obter delações? A entrega dos destinos do país a um criminoso premiado, que decidirá quem vive e quem morre na República?

Hora de retomar um fio lá do primeiro parágrafo. O “Espetáculo da Corrupção” —título de um livro do advogado Walfrido Warde— viveu um de seus dias de gala nesta quarta (9), agora que o próprio direito de defesa está sendo alvejado junto com sem-vergonhices óbvias. É certo que houve pilantragens na Fecomércio. O bandido da hora, Orlando Diniz, o admite para se safar. Ocorre que a operação já nasce sob o signo da exceção.

A Lava Jato sustenta, por exemplo, que o advogado Eduardo Martins, filho de Humberto Martins, presidente do STJ, recebeu entre R$ 40 milhões e R$ 82 milhões —a denúncia-cartapácio tem tantas ilações e alvos que permite ao leitor o livre exercício da calculadora— para influenciar decisões da corte.

Se Eduardo comprava sentenças no STJ, ministros as vendiam. Se o escândalo tem esse grau de comprometimento, o foro não é a Justiça federal de primeira instância, mas o STF. “Ora, Reinaldo, trata-se de tráfico de influência, não de compra de sentença”. É mesmo? A R$ 40 milhões? Ou R$ 78 milhões? Ou R$ 82 milhões? Ou é piada ou é má-fé.

Bolsonaro ri de orelha a orelha. A Lava Jato já depôs um inimigo seu e agora intimida um tribunal superior. No passado, impediu que ele tivesse de concorrer com Lula, que volta a ser alvo, agora por intermédio do advogado Cristiano Zanin.

“Ah, não importa! Aconteceu a sacanagem na Fecomércio, Reinaldo?” Certamente sim. Dada a denúncia, essa não é, no entanto, tarefa para a Lava Jato-RJ, mas para a PGR, uma vez que, obviamente, ministros do STJ estão sob investigação, o que desloca o foro da 7ª Vara Federal do Rio para o STF.

Qual Lava Jato Fux pretende preservar? O livro de Warde a que me referi tem um subtítulo: “Como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país”.