luiz felipe ponde

Luiz Felipe Pondé: Seria a política sempre objeto, em grande medida, da esfera mítica?

A racionalidade na espécie é uma evolução tardia e não plenamente bem-sucedida

Há muito a análise de comportamento em política sepultou os mitos da democracia.

As pessoas nunca discutiram política pra construírem uma consciência crítica, mas sim pra escorraçar o oponente. Independentemente do nível educacional dos envolvidos. A maioria das pessoas é movida por ideias fixas em política ou por puro e simples desinteresse. E, quando se tornam mais interessadas, pesquisam para reforçar as suas ideias fixas.

Os desinteressados em política justificam a sua ignorância racionalmente: gasto minha energia escolhendo meu celular porque eu decido qual comprar. Meu voto é miseravelmente irrelevante: é um só, nada decide.

A ideia de uma política majoritariamente racional é uma lenda. Nossa relação com a política é mediada por estruturas passionais. Levemos a sério a ideia de que a racionalidade, na espécie, seja uma evolução tardia e não plenamente bem-sucedida.

O filósofo Ernst Cassirer (1874-1945) era membro da chamada escola neokantiana de Marburg, na Alemanha. Fugiu de lá por ser judeu. Neokantianos são uma mistura de Kant com Hegel. Mas deixemos para lá esses detalhes mais técnicos.[ x ]

Trago Cassirer para o nosso debate por causa de sua teoria das formas simbólicas, esquecida por muitos afeitos às modas teóricas de ocasião, mas que pode nos ajudar em muito a entender a política como mito.

Para Cassirer somos um animal simbólico. Abelhas fazem mel; aranhas, teias; nós, símbolos. Pensar o homem como animal simbólico é comum em autores como Carl Gustav Jung, Joseph Campbell e Mircea Eliade, entre outros. Segundo Cassirer, dito de forma sintética, existem três grandes grupos de formas simbólicas, não necessariamente constituindo uma hierarquia entre elas, mas que são bem distintas na sua operação de entendimento da realidade e de ação sobre ela. Entretanto, vale dizer que elas podem operar conjuntamente, não representando obrigatoriamente qualquer exclusão entre elas.

A primeira é a mítico-religiosa. Essa atravessa construções simbólicas como as religiões e suas narrativas cosmogônicas (narrativas de criação do mundo) e míticas, com seus personagens divinos, humanos e heroicos, “explicando” a vida, a política, a moral e a história (ou destino).

A segunda é a estética. Essa se manifesta na arte e afins. Sustentada nas narrativas de fundo sensorial, transita pelas diversas formas artísticas, não só figurativas. É claro que essa dialoga profundamente com a dimensão mítico-religiosa. Para alguns, a primeira seria redutível à segunda na medida em que religiões, mitos e crenças são criações simbólicas estéticas. Entretanto, para a forma mítica, há uma objetividade absoluta no mito e não a subjetiva do artista. O mito é, a arte inventa.

A terceira é a lógico-empírica. Essa implica adentrarmos o espaço do teste empírico da realidade para as construções simbólicas. Isso significa que não podemos construir símbolos aqui sem a contrapartida da comprovação vinda da realidade. A ciência está aqui, evidentemente. Toda a atividade racional, imbuída de testes de realidade ou de encadeamento lógico do raciocínio, como filosofia, deduções lógicas e afins, é característica dessa terceira forma simbólica.

Pois bem. Em 1946 foi publicado, postumamente, uma pequena pérola escrita por Cassirer chamado o “Mito do Estado”. Neste livro Cassirer analisa o nazismo na chave mítico-religiosa em várias das suas dimensões. A impermeabilidade à experiência crítica e à razão é trazida à luz através das suas categorias míticas de pensamento. Para o autor, o mito sempre teve uma função primordial na vida política e social, assim como na psicologia das emoções. O mito não é “pura estupidez primitiva”, ele é uma forma ancestral de organização e de ação no mundo.

Como disse acima, o mito da democracia não resiste ao teste da realidade. Desse mito faz parte a lenda da racionalidade, da crítica e do diálogo. Uma questão que nos lega Cassirer é: seria a política sempre objeto, em grande medida, da esfera mítica? E se isso for verdade, como fazer a democracia resistir à sua desmitologização?Luiz Felipe Pondé

*Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.


Luiz Felipe Pondé: Menosprezamos o vínculo entre retórica científica e regimes de exceção

Exercício ficcional imagina mundo cinco anos depois do surgimento da Covid-19

Esse exercício ficcional do futuro é dedicado a quem defende uma sociabilidade com a Covid-19 baseada em métodos de controle epidemiológicos e a quem faz marketing de si mesmo "torcendo pelo vírus".

Passaram-se cinco anos desde que a hoje chamada "gripe coronial" surgiu. No início achava-se que começara na China, hoje já não se tem mais certeza de nada acerca da sua origem. Uns creem ter sido lançada no mundo pelos seres extraterrestres que nos criaram e que desistiram do experimento. Outros defendem que a natureza decidiu dar um basta em nossa ganância.

Ilustração em tons amarelos representa um homem de óculos deitado sobre um divã. Sobre sua cabeça uma câmera de vigilância com um olho o observa. Pela janela um grande olho o observa pela janela pairando sobre a cidade do lado de fora

A verdade é que muito se escreveu sobre a epidemia nesses cinco anos. Mas, pela saturação de narrativas, depois de algum tempo, esse acúmulo de dados científicos circulando em meio a um público sem nenhuma condição de avaliá-los acabou por se transformar na nova normalidade. Quase ninguém mais se interessa por nada que não tenha a ver com a segurança epidemiológica.

Agora começa a ficar claro como menosprezamos o vínculo entre retórica científica e regimes de exceção.

No Brasil de cinco anos atrás, o então presidente, um idiota desastrado, clamava por violência contra a democracia. Esse fato ridículo nos distraiu para o verdadeiro processo transformador em curso: a aceitação tranquila do regime em que agora vivemos, onde nada se pode fazer que não seja posto sob modelos epidemiológicos de segurança. Não há um nome para esse regime. Não ouso mentir.

Os primeiros indícios surgiram quando os cidadãos conscientes começaram a brigar nas ruas cobrando pessoas irresponsáveis que não usavam máscaras. Depois passaram a cobrar roupas especiais de segurança (que hoje são objetos da nova moda, batizada de "estilo cuidado"), assim como não dizer "bom dia" para as outras pessoas se tornou a norma, já que alguns artigos afirmaram por um tempo que o vírus podia entrar pela boca enquanto você falava.

Mesmo que esses artigos hoje tenham desaparecido no mapa infinito de produções científicas, a memória social os manteve ativos. Agora o silêncio social é uma prova de adesão aos modos corretos, e artistas postam fofamente #fiquedebocafechada.

Outro indício foi a decisão que grupos de riscos perderiam o direito a liberdade de ir e vir. Depois de sucessivas tentativas de controlar o vírus, governos, munidos de todas as formas do que agora chamamos de "tecnologias democráticas do cuidado" (em inglês, CDT) chegaram, graças ao desenvolvimento tecnológico dentro da nova normalidade, a uma capacidade de gestão quase absoluta da mobilidade urbana.

No começo, esse controle era feito por pessoas mobilizadas pela causa da luta contra o vírus, mas agora os aplicativos do cuidado avisam onde existem grupos de riscos rompendo o novo contrato social. Não se sabe ao certo aonde vão essas pessoas, mas, seguramente, creem os crentes, devem ir a lugares onde serão cuidadas apropriadamente e onde não colocarão em risco o sistema mundial de cuidado em que todos vivemos.

Um problema, mas que hoje parece pertencente ao passado (a sensação de aceleração da nova normalidade foi muito alta nos primeiros dois anos), foi a superação do modelo familiar patriarcal, como era chamado.

As pessoas que agora chegaram aos 30 anos moram basicamente sozinhas com seus pets. Essa tendência, que antes era uma questão de escolha, se radicalizou quando a ciência determinou definitivamente que animais não eram transmissores do vírus.

A vida atualmente é controlada remotamente. O mercado, como sempre, se acomodou à nova normalidade. Onde estará a vacina?

O grande debate agora é a submissão da reprodução humana aos novos modelos epidemiológicos de segurança. Já que o sexo praticamente não existe (atividade de risco, identificada como tal logo no primeiro ano), a reprodução assistida hoje é objeto de ceticismo por parte das autoridades, já que, possivelmente, novos seres humanos seriam novos hospedeiros para o vírus.

A pobreza generalizada, finalmente, encerrou o hábito de consumo. A vida é simples agora. As pessoas hoje praticam mindfulness remotamente, livres do "fetiche do presencial". Lindo, né?

*Luiz Felipe Pondé é escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.


Luiz Felipe Pondé: Sentimento oceânico da política

As mídias sociais podem pôr em risco a estrutura política de representação

“Sentimento oceânico” é uma conhecida expressão que Freud tomava emprestada para se referir a uma sensação religiosa ou mística que muitos sentiam, mas ele, não. Esse sentimento descrevia um pertencimento a um todo maior (o mundo, o universo, a natureza) carregado de prazer. Para Freud, não passava de um resto da célula narcísica.

Fiquemos por aqui na crítica psicanalítica à religião. Seria, talvez, necessário ir adiante e aplicar a mesma suspeita à adesão de muitos à ideia de povo e suas manifestações sociais e políticas.

Temo que o mesmo tipo de crítica seria possível. As pessoas que ficam à busca de um grande sentido histórico quando o povo sai às ruas estão afogadas em restos narcísicos infantis. Não é à toa que essas pessoas falam de movimentos sociais e políticos populares com os olhos cheios de emoção. O gozo narcísico é evidente.

Nesse sentido, esperar alguma redenção do mundo a partir dos movimentos populares é uma expectativa imatura e narcísica. Como ler os sinais em busca do apocalipse. A diferença é que quem faz essas leituras é gente ignorante e crente e quem analisa movimentos sociais e políticos é gente culta e especializada.

Entretanto, a infantilidade é a mesma.

Mas o que fazer quando grandes gurus dessa expectativa, como o próprio Marx, alimentavam os mesmos sentimentos? Nada a fazer, a não ser perceber que o próprio Marx seria regredido em matéria psicológica.

Daí a política regredida que alimenta a nossa época.

Não acho que podemos ir tão rápido assim, mas a hipótese vale uma maior reflexão. Por hoje, fiquemos na mera aplicação do sentimento oceânico às expectativas redentoras que muitos identificam nos últimos movimentos populares no mundo e no Brasil.

Alguns acham que existe um fundo histórico hegeliano em movimentos como a Primavera Árabe (termo que ilumina o ridículo de grande parte dos intelectuais e da mídia), as jornadas de junho ou os coletes amarelos franceses de agora.

Buscar um fundo histórico hegeliano é buscar um sentido histórico de evolução (esse sentido histórico também pode ser marxista). Esse “fundo” nada mais seria do que a presença do sentimento oceânico aplicado à história, à política e à sociedade. É projetar seu gozo narcísico primitivo nas ações humanas no “tempo”. Incrível como psicanalistas e afins pensam “dentro” dessa projeção.

Alguns entram em êxtase com islandeses fazendo escolhas política via Facebook! A Islândia é um país de uma natureza impressionantemente linda e impactante. Mas seu clima é hostil, sua população vai um pouco além de 300 mil habitantes e seu isolamento é profilático para com as misérias do mundo (por isso, lá tudo é “lindo”, sua primeira ministra anda pela rua, não tem exército e a polícia é ociosa), mas ainda assim tem gente que acha que a Islândia pode ser um “modelo” a ser seguido pelo Brasil... Risadas?

Afinal, o que reúne movimentos “semelhantes” como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, as jornadas de junho, a greve dos caminhoneiros ou os coletes amarelos? Nada!

A não ser as mídias sociais e seu poder de impacto que se move na velocidade da luz, seu caráter disperso e, finalmente, sua capacidade de agenciar ressentimentos e demandas justificadas e/ou delirantes. Logo, o denominador comum é uma ferramenta e não um conteúdo.

A presença, no passado, de líderes organizadores dos movimentos sociais e políticos encobria o que hoje está descoberto: o “povo” não é uma entidade única, a não ser por suas queixas, fantasias e disposição para a violência.

Hoje, as inteligências celebram a inexistência de líderes e o caráter descentralizado desses movimentos.

Arriscaria dizer que se trata da mesma projeção narcísica que alguém pode fazer acerca da divindade de uma erupção vulcânica (aliás, vulcão é o que não falta no paraíso social e político que é a Islândia).

As mídias sociais podem pôr em risco a estrutura política de representação por conta de sua capacidade de agenciar pessoas banais “liderando” processos de geração de violência.

Uma conclusão primeira e, para alguns, assustadora, é a existência de um componente narcísico primitivo em operação na idealização da democracia, que seria o regime por meio do qual o povo faz sua história. O “povo histórico” aqui é exatamente o objeto do sentimento oceânico.

O povo não faz história nenhuma, apenas corre atrás, para lá e para cá, e em círculos, de seu bolso, de suas taras e de seus ressentimentos.

*Luiz Felipe Pondé é escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.