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Sem provas, Bolsonaro faz mais uma live eleitoral; não foi bomba, foi traque

Carlos Melo / O Estado de S. Paulo

Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap das suas redes.

Verdade que nada disso importa ao negacionismo nacional, mas os dados do TSE são transparentes, estudiosos os acompanham em detalhe, há fiscalização de candidatos e partidos, observadores internacionais; tudo pode ser auditado, sim. A acirrada concorrência na imprensa não facilitaria silêncios e conluios. Eventos isolados não constroem um fato; nunca se constatou algo relevante. Ainda assim, depois de muito cobrado, Jair Bolsonaro se dispôs a apresentar sua “bomba” contra a Justiça Eleitoral.

A expectativa era mais de forma que de conteúdo: a versão acima dos fatos. E não foi bomba, foi traque. Como tantas lives, foi instrumento eleitoral onde o presidente esconde a realidade do País. Exibiu falsos brilhantes, silogismos, falou em nome de um povo que supostamente o apoia, mas que as pesquisas não comprovam. Investiu na fantasia do complô e não entregou nada além do que está no zap da sua rede.

Tática de escolher um inimigo, atacou o ministro Luís Roberto Barroso. Fez ilações, mas não apresentou provas. Impedida de contestá-lo, a imprensa séria rejeitou a isca e não lhe deu palco. Aos seus fanáticos, sobraram farrapos e desculpas para que contestem, preventivamente, as urnas em 2022.

Até porque não lhes importa a irrefutabilidade das afirmações, reúnem cacos inverossímeis para construir realidade paralela. A partir disso, aprofunda-se o conflito político. Com o ouro de tolo apresentado, semeia-se confusão que, talvez, favoreça o presidente. Contudo, nada é original. Essa pedra bruta já esteve nas mãos de Donald Trump.

Fraude eleitoral é crime, atentado à democracia e ao pacto político. Há mais de ano, Bolsonaro afirma saber de crimes vinculados às eleições de 2018 – recentemente, também ao pleito de 2014. Crimes que, em tese, seriam continuados pois, após isso, houve eleição em 2020. Fica a questão: se houve fraude, o presidente se omitiu; se não houve, o presidente não atentaria agora contra a eleição?

*Cientista político. Professor do Insper


Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo/sem-provas-bolsonaro-faz-mais-uma-live-eleitoral/


Bolsonaro mexe as peças com um só objetivo: salvar o pescoço e garantir reeleição em 2022

O governo virou comitê de campanha de presidente, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho para 2022

Eliane Cantanhêde / O Estado de S. Paulo

Goste-se ou não de Roberto Jefferson, o polêmico político do PTB e do Centrão que detonou a crise do mensalão no governo Lula, ele tem razão: a reforma ministerial do presidente Jair Bolsonaro lembra a manobra de Fernando Collor para salvar o pescoço em 1992, quando mudou o seu governo para ampliar a base de apoio no Congresso. No caso de Collor, foi tarde demais. E no de Bolsonaro?

O fato é que foi uma decisão drástica entregar a “alma do governo” para o senador Ciro Nogueira, do PP, líder do Centrão e aliado do PT em 2018, quando chamava Bolsonaro de “fascista”. O Centrão está com tudo, os militares vão escorregando para o segundo pelotão e Paulo Guedes perde de nacos de poder para Onyx Lorenzoni construir sua campanha durante curtos – ou longos? – oito meses, até se desincompatibilizar para disputar o Governo do Rio Grande do Sul.

Onyx foi da Casa Civil, do Ministério da Cidadania e da Secretaria Geral da Presidência, até Bolsonaro criar o Ministério de Emprego para gerar um único emprego, o dele. E Guedes tinha um latifúndio ministerial, mas nunca teve poder. Agora, não tem um nem outro. Seu ministério vai continuar sendo fatiado para o Centrão e ele desliza para o ostracismo, não pelo que não fez, mas pelo que insiste em fazer: engolir sapos em nome da reeleição.

O argumento de Guedes é o mesmo dos generais que insistem em se submeter ao capitão insubordinado: “espírito de missão”. Heroico, mas não verdadeiro. Ele só fica pela sensação de poder e por resistir a admitir a derrota, ao contrário do também “superministro” Sérgio Moro, que demorou mais do que o razoável, mas mostrou que tinha limite. Guedes não tem limite.

O governo virou comitê de campanha de Bolsonaro, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho da reeleição. Ao atravessar a rua e ir para o Planalto,

Ciro Nogueira anula as chances do seu amigo Arthur Lira abrir um dos 125 pedidos de impeachment, reforça a articulação com o Senado e abre espaço para o filho “01”, Flávio Bolsonaro, virar suplente da CPI da Covid com direito a palavra, impropérios contra a cúpula da comissão e acesso direto a todos os documentos da CPI. Presentão para o papai.

Além de reformar a casa, melhorar os alicerces governistas da CPI e penetrar mais firmemente no Nordeste (Ciro é do Piauí e Lira, de Alagoas), Bolsonaro também cria vales e aumenta as bolsas para o eleitorado mais pobre, e mais numeroso. De quebra, fideliza o núcleo duro do seu eleitorado ao se assumir cada dia mais radical.

Vem daí a foto, às gargalhadas, com a líder de um partido alemão xenófobo e de inspiração nazista, investigado no próprio país por mensagens e práticas ilegais. Não é trivial presidentes receberem deputados estrangeiros. Menos ainda, presidentes de países democráticos receberem parlamentares antidemocráticos.

Além disso, o presidente deu a Michelle Bolsonaro a medalha Oswaldo Cruz, para quem se destaca em ciência, educação e saúde, e o governo comemorou o Dia do Agricultor com uma foto, não de um trabalhador com sua enxada, mas de um jagunço com um rifle. Nem Michelle se destaca em nenhuma dessas áreas, nem o sofrido agricultor é jagunço, grileiro, desmatador, miliciano do campo. O governo estimula a guerra no campo?

O presidente também assinou um decreto para regulamentar a Lei Rouanet e, como tem sido um desastre para a Cultura, boa coisa não sai daí. E ele ainda não vetou o fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões, mas atendeu aos planos de saúde e vetou a lei que os obrigava a custear a quimioterapia oral para pacientes com câncer. É esse Jair Bolsonaro, o verdadeiro, que disputará voto na urna eletrônica em 2022.


Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-mexe-as-pecas-com-um-so-objetivo-salvar-o-pescoco-e-garantir-sua-reeleicao-em-2022,70003794364


Grupos de zap fervem após live de Bolsonaro, mostrando real objetivo do presidente

A longa live de Jair Bolsonaro na noite desta quinta-feira (29), em que desfiou um compêndio de acusações contra o voto eletrônico, cumpriu seu principal objetivo: manter a base de apoiadores do presidente hiperenergizada

Fábio Zanini / Folha de S. Paulo

Bolsonaro e aliados sabem que não há hipótese de o voto impresso (ou “auditável”, como preferem os bolsonaristas) ser aprovado no Congresso Nacional. Os impropérios de Bolsonaro contra o atual modelo, que sempre se provou confiável desde a adoção, há 25 anos, provavelmente terão o efeito contrário: fortalecer no Legislativo a disposição em rejeitar qualquer mudança.

Por que ele insiste, então? A resposta está no efeito quase imediato que a estratégia de Bolsonaro de espalhar suspeitas infundadas contra a urna eletrônica teve em grupos de WhatsApp que este blog acompanha.

O presidente nem havia acabado de falar quando já circulava em grupos bolsonaristas um clipe de sua fala com o título: “Live bomba de Bolsonaro: a urna em xeque”.

“Que live, meus amigos, que live!! Histórica!”, bradou Kim Paim, um ativista defensor do presidente que se declara especializado na montagem de “dossiês” para militantes usarem nas redes sociais.

Na mesma linha, de que foi um pronunciamento definitivo do presidente sobre o tema, manifestaram-se lideranças bolsonaristas como os influenciadores Allan dos Santos e Leandro Ruschel, o comentarista político Rodrigo Constantino e o deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP).

Como sempre acontece, suas falas reverberaram fortemente nos grupos bolsonaristas, acompanhados de convocações para diversos atos previstos para este domingo (1º) a favor do voto impresso.

A expectativa dos organizadores é que haja manifestações nas principais capitais e em um punhado de cidades médias. Em São Paulo, novamente, o palco será a avenida Paulista, e no Rio, a orla de Copacabana.

Outro hit do zapzap dos apoiadores do presidente foi o esculacho ao presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, novo inimigo número 1 dos defensores do voto impresso.

Aqui, um exemplo de imagem que circulou em grupos após a fala de Bolsonaro:

Com o arrefecimento da pandemia e o pit stop da CPI da Covid no Senado, a fervura do tema da saúde baixou um pouco entre bolsonaristas. Em seu lugar, a defesa do voto impresso e o ataque ao sistema eleitoral entraram com força, como se fossem os únicos assuntos relevantes do momento no país.

A mudança reflete muito da estratégia eleitoral do presidente para 2022, que pode ser explicada em dois passos: o primeiro, manter a base de apoiadores unida, e com isso garantir a passagem para o segundo turno.

Neste momento, não interessa a Bolsonaro fazer acenos de moderação ou tentativa de ampliação de seu eleitorado cativo, que soma algo entre 20% e 30%.

É preciso radicalizar em bandeiras palpáveis, e a defesa do voto impresso vem bem a calhar, por três razões: tem um componente de paranoia, que está na base do DNA do bolsonarismo; revitaliza o espírito do presidente de insurgir-se contra “o mecanismo” (novo nome para “o sistema”), que ele tão bem soube usar na campanha de 2018; e, obviamente, fornece um elemento aglutinador para o futuro, em caso de derrota eleitoral.

Basta notar que a grande estratégia do presidente americano, Donald Trump, para se manter relevante no debate político e tentar um retorno em 2024 é a alimentar a ladainha de que foi roubado na eleição do ano passado, em que perdeu limpamente para Joe Biden.

Garantida a passagem para o segundo turno, como espera Bolsonaro, a segunda parte da estratégia é fazer um duelo de rejeições contra seu provável adversário, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A demonização do petista e de seus aliados “comunistas” foi um dos principais componentes da live do presidente.

Bolsonaro, assim, mais uma vez rasga a cartilha da maioria dos candidatos ao Palácio do Planalto, que em algum momento fazem acenos ao centro do tabuleiro político.

Político nada convencional, o presidente aposta em radicalizar de agora até o fim do segundo turno do ano que vem. Para isso, o voto impresso é um instrumento perfeito.

É o que explica sua insistência no tema, mesmo sabendo que a chance de aprovação é menor que a do Brasil ganhar ouro no badminton.


Fonte:
Folha de S. Paulo
https://saidapeladireita.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/grupos-de-zap-fervem-apos-live-de-bolsonaro-mostrando-real-objetivo-do-presidente/


Cristovam Buarque: O espírito do tempo e a educação

Estamos percebendo a necessidade de captar as mudanças adiante, de acordo com o espírito do tempo, as curvas que a história está fazendo

Em janeiro do ano passado, a Unesco criou um grupo de 15 pessoas para elaborar proposta sobre o futuro da educação no mundo. A diferença desta nova proposta para outras duas, décadas atrás, é o espírito do tempo atual. Os relatórios anteriores foram elaborados em momentos de evolução, sem as rupturas que temos em marcha no século XXI. Nos debates do grupo, do qual participo, estamos percebendo a necessidade de captar as mudanças adiante, de acordo com o espírito do tempo, as curvas que a história está fazendo.

Uma mudança diz respeito aos novos recursos tecnológicos, graças à computação, à telecomunicação, aos grandes acervos de imagem e som, à inteligência artificial, às redes sociais digitais e a tudo que permite levar a realidade para dentro da sala de aula, e fazer o ensino-aprendizagem à distância, de forma remota entre professores e alunos. O espírito deste tempo permite e induz à passagem da “aula teatral” – professor e quadro negro na presença dos alunos – para a “aula cinematográfica” - professor usando todos os modernos recursos audiovisuais e computacionais para uma aula dinâmica, presencial ou não. A escola do futuro não será apenas um aperfeiçoamento da atual, será uma “nova escola”. Da mesma forma que, um século atrás, a arte dramática descobriu o potencial do cinema, levando o teatro ao mundo inteiro e com uma linguagem que rompia os limites do palco.

A segunda mudança se refere aos novos conhecimentos a serem desenvolvidos. Os destinos, dificuldades e potenciais de cada ser humano ficaram interligados planetariamente à toda a humanidade. Até pouco tempo atrás, as ideias de planeta e humanidade eram temas limitados a astrônomos e filósofos. No espírito do tempo atual, estes conceitos dizem respeito ao dia a dia de cada pessoa: os alunos do futuro viverão na Terra, não apenas em um país, e a preocupação deles deve ser com toda a raça humana, além da família e dos compatriotas. O ensino deverá tratar dos problemas que ameaçam a humanidade: mudanças climáticas; abismo da desigualdade que está quebrando a semelhança da espécie humana; pobreza e desemprego estrutural; riscos e vantagens da inteligência artificial; o entendimento do papel da ciência na construção de um mundo melhor e mais belo; a prática da solidariedade com todos os seres humanos, especialmente os pobres nacionais, os refugiados apátridas, os migrantes e todos que sofrem exclusão e discriminação; o valor da diversidade social e natural, com respeito às especificidades.

O terceiro desafio é fazer o ensino-aprendizagem em sintonia com o rápido avanço do conhecimento, que evolui e se transforma a cada instante. Esta velocidade faz obsoletos os conhecimentos, as profissões, a concepção de escola e os métodos pedagógicos, inclusive a posição relativa entre professor e aluno. A educação do futuro exige que o aprendizado seja contínuo, não termine ao longo da vida de uma pessoa; diplomas devem ser provisórios. O verbo aprender deve ser usado no gerúndio, sempre aprendendo e aprendendo sempre.

É um desafio também, sobretudo no ensino superior, sair das algemas do conhecimento por disciplina e adotar o conhecimento multidisciplinar, única forma de avançar para novas ciências que estão nascendo nas fronteiras das atuais e de trazer os problemas da realidade para dentro do processo de ensino-aprendizagem. Especialmente os problemas éticos que desafiam a humanidade e as possibilidades da educação de base para construir o futuro, ao formar as novas gerações.

O quinto desafio é a coerência entre o conteúdo humanista e planetário com o compromisso político de assegurar o direito de cada criança desenvolver seu potencial, desde a primeira infância, independente da nacionalidade e do status social, da renda e do endereço; cada criança do mundo tratada como filha da humanidade, com o mesmo direito à educação para seu próprio benefício e para que seu talento beneficie sua família, sua vila, seu país e toda a humanidade. A educação de qualidade - respirar conhecimento -  deve ser um direito tão humano, quanto aspirar oxigênio para estar vivo, aprendendo ao longo de toda a vida. Ninguém deixado para trás na alfabetização para a contemporaneidade: falar, escrever e ler bem seu idioma, falar pelo menos um outro idioma, adquirir um ofício, conhecer história e geografia, filosofia e as bases da matemática e das ciências, ser capaz de usar as ferramentas do mundo moderno.

Certamente que o espírito do tempo exige um plano mundial para dar apoio à educação das crianças do mundo inteiro.

*Professor Emérito da Universidade de Brasília


Fonte:
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/07/4939914-cristovam-buarque-o-espirito-do-tempo-e-a-educacao.html


O fantasma que ronda a democracia brasileira

Um golpe que anteceda as eleições é improvável. Exigiria um cenário de radicalização política extrema e grande conturbação social, o que não é o caso até agora

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

O fantasma que ronda a democracia brasileira não é o do comunismo, como na antológica abertura do Manifesto, escrito em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels. Com o fim da guerra fria e a morte de Luís Carlos Prestes, e dos líderes da luta armada contra o regime militar na década de 1970, como Carlos Marighella, essa narrativa se tornou completamente inverossímil, até por falta de protagonistas, sendo necessário encontrar outros pretextos: o do presidente Jair Bolsonaro é o de um fantasioso plano de fraude eleitoral, tão imaginário quanto fora o plano forjado, em 1937, pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, para legitimar o golpe do Estado Novo, de Getúlio Vargas. General, Mourão seria um dos líderes da deposição de João Goulart pelos militares, em 1964.

Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso voltou a defender o sistema eleitoral brasileiro, que “nunca foi alvo de fraude”, e denunciou o caráter golpista da narrativa de Bolsonaro, ao participar da inauguração da nova sede do Tribunal Regional Eleitoral do Acre. “O discurso de que ‘se eu perder houve fraude’, é um discurso de quem não aceita a democracia”, disse. Barroso também fez referência à denúncia apresentada pelo ex-candidato a presidente do PSDB Aécio Neves (MG), derrotado por Dilma Rousseff (PT) em 2014: “O candidato derrotado pediu auditoria, e o próprio partido reconheceu que não houve fraude. Nunca se documentou fraude. No dia que se documentar, a Justiça Eleitoral vai apurar imediatamente. Ninguém tem paixão por urnas, mas sim por eleições livres e limpas”.

A polêmica alimentada com Barroso é uma estratégia deliberada de Bolsonaro para desacreditar a urna eletrônica e criar um ambiente eleitoral de radicalização, favorável a que não se reconheça o resultado das urnas, caso seja derrotado. As pesquisas de opinião são desfavoráveis à reeleição do presidente por causa de seu próprio radicalismo e do mau desempenho do governo À falta de uma terceira via competitiva, o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), porém, é o verdadeiro motivo da narrativa da fraude. O antipetismo é muito forte na sociedade, principalmente para aqueles que consideram toda a esquerda comunista, a tese predominante entre os bolsonaristas.

Anticomunismo
O anticomunismo no Brasil sobreviveu ao fim da União Soviética e ao colapso dos regimes do Leste Europeu, mesmo tendo a China e o Vietnã adotado uma economia de mercado, baseada no capitalismo de Estado, e os regimes da Coreia do Note e de Cuba terem se estagnado. O preconceito contra os chineses foi explorado por Bolsonaro, mas a realidade da nossa balança comercial com o gigante asiático, que transformou o nosso agronegócio no setor mais dinâmico da economia, acabou se impondo, inclusive durante a pandemia. Restaram as ligações políticas de Lula com o regime castrista de Cuba e o bolivarianismo da Venezuela, que são até um desconforto para o candidato petista. Ambos são um anacronismo político e estão em grave crise econômica e social.

Bolsonaro se opõe a Lula como Carlos Lacerda se opusera à volta de Vargas ao poder, nas eleições de 1950: “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Não repete as palavras, mas seu raciocínio é o mesmo. É aí que a politização das Forças Armadas e seu controle têm um papel fundamental. Existe uma rejeição atávica ao PT por parte dos militares, exacerbada no governo de Dilma Rousseff, muito embora Lula tenha investido muito no reaparelhamento da Marinha, do Exército e da Aeronáutica — mais até do que Bolsonaro. Porém o atual governo tem mais militares em ministérios e cargos comissionados do que todos os governos do regime militar.

Um golpe que anteceda as eleições é muito improvável. Exigiria um cenário de radicalização política extrema e grande conturbação social, o que não é o caso, porque nenhuma força política responsável atua nessa direção, exceto os grupos de extrema direita que apoiam Bolsonaro, uma militância armada. Mas a hipótese de uma tentativa de golpe caso Lula seja eleito não deve ser desconsiderada. Bolsonaro trabalha para isso, apesar de não ter apoio suficiente nas Forças Armadas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-fantasma-ao-redorx/

Novos acordos políticos não resolvem o problema da reeleição

Alon Feuerwerker / Revista Veja

Suponhamos, por exercício intelectual, um Brasil sem a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 no Senado. O cenário para o governo estaria razoável. Os números da vacinação avançam e são expressivos, e as curvas de casos e mortes vêm caindo faz algum tempo. E todas as projeções são de recuperação robusta do produto interno bruto este ano, compensando com alguma margem a retração do ano passado.

Mas há a outra face da realidade. Iluminar o lado escuro da lua mostrará que os casos e mortes pelo novo coronavírus ainda vão em patamares altos. E o sofrimento social nascido do desemprego e da pobreza não dá sinal de arrefecer. Apesar disso, todas as pesquisas demonstram que vetores positivos começam a superar os negativos na resultante de percepção popular.

Falando nela, a política, a avaliação do presidente da República anda algo estacionada. Verdade que o ótimo+bom das pesquisas deslizou para em torno de um quarto do eleitorado, mas o número retorna ao resiliente um terço se juntarmos o “regular positivo”. Um terço que, aliás, tem sido o patamar da aprovação de Jair Bolsonaro e também a intenção de voto nele no segundo turno. Ou seja, o presidente parece ter chegado a um certo piso.

“Sinal de acerto de Bolsonaro é a escolha de Ciro Nogueira ter sido bombardeada pelos adversários”

O “parece” aqui é recurso de prudência, porque a política gosta de trazer elementos que desestabilizam cenários. Entretanto, como já repetido tantas vezes, o imprevisível é muito difícil de prever. O fim do filme só saberemos em outubro de 2022, mas o retrato agora projeta disputa acirradíssima na urna eletrônica daqui a pouco mais de catorze meses. Entre um candidato à esquerda (hoje seria Lula) e um à direita (hoje seria Bolsonaro).

E as alternativas? Outro dado trazido pelas últimas pesquisas: se houvesse um único nome da terceira via, ou “centro”, ele (ou ela) partiria de algo em torno de 15% a 20%. Um número bastante razoável. E aí o desafio seria lipoaspirar o candidato à reeleição em uns pontinhos, passar ao segundo turno e tentar ganhar a disputa surfando na rejeição a Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT. À luz de hoje é difícil, mas não impossível.

Os aspectos objetivos da realidade (contenção da pandemia e aceleração da economia) tendem a favorecer Bolsonaro na resistência contra a ofensiva do centrismo para tirar o incumbente do segundo turno. Mas há os aspectos subjetivos. Até que ponto as confusões e polêmicas que tanto ajudam o presidente a manter agrupado o núcleo duro da base dele vão gerar efeitos centrífugos prejudiciais, e assim facilitar o trabalho de quem disputa com ele o eleitorado à direita?

Bolsonaro fez o movimento by the book ao trazer o senador Ciro Nogueira (PP-PI) para a Casa Civil. Um sinal do acerto é a escolha ter sido bombardeada pelos adversários hoje mais renhidos do presidente. Mas é preciso saber se, como diz o clichê, Bolsonaro vai ajudar Nogueira a ajudá-lo. Pois a operação político-­parlamentar avança bem na solução do desafio imediato de não ser derrubado, mas é insuficiente para resolver outro: a reeleição.

Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749


Fonte:
Revista Veja
"Me ajude a te ajudar"
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/me-ajuda-a-te-ajudar/


Bolsonaro perderia para Lula, Mandetta, Ciro, Haddad e Doria no 2º turno

Pesquisa da Atlas Político mostra que erros na gestão da pandemia e suspeitas de corrupção na compra da vacina elevaram a reprovação do presidente. Vantagem do petista cresce e governador de São Paulo aparece por primeira vez com chances de vencê-lo

Carla Jiménez, do El País

gestão da pandemia e as suspeitas de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 mantêm o desgaste do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mostra pesquisa da Atlas Político, realizada desde segunda, 26, e finalizada nesta quinta, 29. Se as eleições fossem hoje, o presidente perderia para seus principais adversários no segundo turno, incluindo o governador João Doria (PSDB-SP), empatado tecnicamente com Bolsonaro, mas com viés de vantagem. Doria venceria com um resultado de 40,6% a 38,1% do presidente. Como a pesquisa tem 2 pontos porcentuais de margem de erro para cima ou para baixo, eles ainda estão empatados, mas é a primeira vez que o governador paulista aparece no páreo para se eleger. Em maio, Doria ficava 6,1% atrás de Bolsonaro na simulação de segundo turno.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ampliou a vantagem sobre Bolsonaro em comparação à pesquisa anterior e venceria por 49,2% contra 38,1%, num eventual segundo turno, num cenário com 12,8% de votos nulos ou brancos. Em maio, a vantagem de Lula era de 4,7% sobre o presidente. “A tendência é de fortalecimento de Lula”, diz o cientista político Andrei Roman, CEO do Atlas. “Desde o início do ano, Lula vem numa trajetória constante de crescimento”, completa.  

Também Ciro Gomes (43,1% a 37,7%), o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (42,9% a 37,5%), e o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (41,9% a 38,4%) ampliaram sua preferência, e poderiam frustrar o sonho da reeleição do presidente em 2022.

O levantamento confirma o momento de baixa de Bolsonaro, enquanto ele intensifica a campanha contra o sistema eleitoral eletrônico, mesmo sem ter provas para sustentar o que afirma, como mostrou sua live nesta quinta. Segundo a Atlas Político, a rejeição ao presidente subiu e chegou a 62% neste final de julho, contra 36% de aprovação. Trata-se de uma alta de cinco pontos porcentuais em relação a maio, quando a CPI da Pandemia começou. A Comissão Parlamentar apontou irregularidades em contratos de compra de vacinas, como a indiana Covaxin, e suspeitas de pedidos de propina em outras negociações que atingem inclusive militares que ocupavam cargo no Ministério da Saúde.

Roman lembra que o noticiário tem sido negativo para Bolsonaro desde o início do ano, com a pandemia, que teve seu ápice em março e abril, até que a vacinação pegasse velocidade. “Há, ainda, os problemas da vida cotidiana. O impacto econômico da pandemia, com os brasileiros desempregados, a renda menor. E milhares de brasileiros que perderam alguém querido para pandemia”, explica Roman.

As ameaças à democracia, quando sugeriu, no início deste mês, que as eleições poderiam não se realizar , não são fatores captados pelo eleitor ouvido na pesquisa. “Pode ser que isso gere uma polarização maior na sociedade, que neste momento se consolide uma maioria contra Bolsonaro, mas também é algo que mobiliza a sua base”, observa Roman. “Não há derretimento de sua imagem por causa da retórica contra as instituições, nem com a insistência na fraude em eleição, uma tese aventada desde as eleições de 2018”, completa.

Mas seus adversários também se fortalecem. O ex-presidente Lula, por exemplo, que já teve 60% de rejeição em maio do ano passado, hoje tem 54%. Ciro Gomes, pré-candidato do PDT à presidência, também já teve 60% de rejeição em novembro do ano passado e hoje tem 50%. Ciro, porém, ainda avança lentamente no ranking de preferência dos eleitores. Alcança 6,2% da preferência numa simulação de primeiro turno com Lula, Bolsonaro, Mandetta, os apresentadores Danilo Gentile e Luiz Datena, além do governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB). Em maio, Ciro tinha 5,7% das preferências.

Rejeição no Nordeste e no Sul

Na divisão dos eleitores por religião, o presidente tem uma aprovação de 52% dos entrevistados evangélicos, contra 45% que desaprovam o seu desempenho. Entre os católicos, a rejeição vai a 69% contra 29% que o aprovam. Já na divisão por renda, Bolsonaro tem rejeição maior que 50% em todas as faixas. Seu melhor desempenho está entre os eleitores que ganham entre 3000 e 10.000 reais (43% dos entrevistados aprovam sua gestão) e 2.000 e 3.000 reais (42%). Sua maior rejeição vem entre os que ganham até 2.000 reais (69%), e os que ganham acima de 10.000 reais (também 69%, como mostra o quadro abaixo). Os eleitores do Nordeste e Sul do Brasil são os mais refratários ao presidente: 73% e 65%, respectivamente.

O cientista político lembra que apesar do momento de baixa, a rejeição ao presidente não é irreversível. “Quem não votou nele continua rejeitando, mas quem votou, não”, diz Roman. A pesquisa mostra que 70% dos eleitores que votaram nele em 2018 continuam aprovando seu Governo. “Bolsonaro se elegeu com 57,7 milhões de votos. Mesmo com a perda de apoio de parte desses eleitores, ele continua forte”, explica.

Os ‘nem nem’ e Eduardo Leite

Segundo Roman, há 23% do eleitorado que não quer votar nem em Lula nem em Bolsonaro. É nesse espaço que seus adversários tentam construir uma terceira alternativa para o eleitor, por ora, sem sucesso. Na simulação com todos os potenciais candidatos, nenhum alcança dois dígitos nas preferências, até o momento. Não é uma tarefa fácil, explica o CEO da Atlas Político, pois seria necessário um nome que tirasse votos de ambos que têm um eleitorado já consolidado. Juntos, eles somam mais de 70% do eleitorado.“Esse é um espaço que não foi criado, e o potencial candidato precisa mostrar que as suas propostas são melhores que as de Lula e Bolsonaro”, avalia.

Roman vê no governador Eduardo Leite um potencial de crescimento capaz de criar essa alternativa. Seu nome foi testado na pesquisa da Atlas Político em maio, quando alcançou 1,1% das preferências. No início deste mês, Leite ficou no centro das atenções do país após uma entrevista ao jornalista Pedro Bial em que assumiu publicamente sua homossexualidade. Falou também da sua intenção de concorrer as prévias tucanas para ser candidato à presidência, distiaciando-se dos dois líderes nas pesquisas. Depois da exposição, foi entrevistado por jornais de todo o Brasil e seu nome ganhou mais força.

Na pesquisa desta sexta, ele aparece com 3,1% das preferências, logo atrás do governador João Doria, que tem 3,5%. “Ele é o fator novidade. Se ultrapassar o Doria, fica numa posição bem interessante para avançar, com chances do segundo turno”, opina Roman. “Aí, todo o jogo político seria reinventado”, completa.

Leite tem a vantagem de ser desconhecido (43% dos entrevistados não sabiam quem é ele) e portanto com rejeição menor que os outros nomes no páreo: 37% contra 62% de rejeição a Bolsonaro e 54% de Lula. Já o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que está menos exposto ao público nos últimos meses, tem uma rejeição similar à de Lula e numa simulação de segundo turno seria derrotado por Bolsonaro. A um ano e três meses da próxima eleição, ainda é cedo para cravar qualquer resultado, especialmente num cenário em que se desenham cascas de banana com a campanha do presidente contra a urna eletrônica. A pesquisa da Atlas Político foi feita a partir entrevistas online com 2.884 pessoas levando em conta região, faixa etária, gênero e faixa de renda. As respostas são calibradas por um algoritmo de acordo com o perfil do eleitorado.


Fonte:

El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-30/com-rejeicao-de-62-bolsonaro-perderia-para-lula-mandetta-ciro-haddad-e-doria-no-segundo-turno.html


Ministros do TSE e do STF consideram 'patética' live de Bolsonaro e criticam participação do MJ

Presença de Anderson Torres chamou a atenção de magistrados, mas eles avaliam que bate-boca só inflaria objetivo do presidente

Julia Chaib, da Folha de S. Paulo

Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) classificaram, nos bastidores, como "patética" a live nas redes sociais realizada pelo presidente Jair Bolsonaro na noite desta quinta-feira (2/79).

Para magistrados, o presidente revelou-se desesperado diante da perda de popularidade que vem sofrendo e por ser alvo de denúncias de suspeitas de irregularidades e corrupção na compra de vacinas.

Chamou a atenção de integrantes das cortes superiores a participação na live do ministro da Justiça, Anderson Torres.

O fato de o ministro ter sob seu guarda-chuva a Polícia Federal e ter estado ao lado de Bolsonaro em evento para divulgar supostas fraudes nas eleições foi avaliado como um ataque ao pleito. Magistrados estudavam na noite desta quinta se reagiriam à participação específica de Torres.


Apresentação do presidente Jair Bolsonaro aos veículos de imprensa




Bolsonaro havia prometido apresentar provas de que houve fraude na eleição de 2018, como ele já propagou diversas vezes. Na transmissão, porém, o mandatário apenas reciclou teorias que circulam há anos na internet e que já foram desmentidas anteriormente.

Ao longo de sua fala, Bolsonaro mudou o discurso e admitiu que não pode comprovar se as eleições foram ou não fraudadas.

"Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas. São indícios. Crime se desvenda com vários indícios”, declarou. Ao final da exposição, foi questionado por jornalistas se havia mostrado suspeitas ou provas. Respondeu: "Suspeitas, fortíssimas. As provas você consegue com a somatória de indícios. Apresentamos um montão de indícios aqui".

Durante a apresentação, foram veiculados vídeos divulgados na internet que buscam transmitir, sem qualquer embasamento sólido, a mensagem de que é possível fraudar o código-fonte para computar o voto de um candidato para o outro.

A apresentação ocorreu em transmissão no Palácio da Alvorada e foi transmitida pela TV Brasil, rede pública do governo. Bolsonaro usou a transmissão para defender que a população vá a atos marcados para o próximo domingo (1º) em defesa do voto impresso.

Diante das declarações de Bolsonaro, o TSE divulgou uma série de checagens para contestar quase duas dezenas de alegações feitas pelo presidente.

Ministros do STF e do TSE haviam combinado de só se manifestar publicamente caso Bolsonaro apresentasse alguma evidência ou ataque concreto que fugisse a teorias da conspiração.

​A constatação, no entanto, foi a de que o presidente propagou teses velhas. O presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que já foi chamado de "imbecil" por Bolsonaro, só viu o final da live, mas ao longo dela recebeu avisos de que Bolsonaro estava propagando "fake news".

A live de Bolsonaro ocorre numa esteira de rusgas entre o presidente e o Judiciário.

Nesta quinta, antes da live, Bolsonaro afirmou que o STF cometeu crime ao permitir que prefeitos e governadores tivessem autonomia para aplicar medidas restritivas contra a pandemia da Covid-19.

"O Supremo, na verdade, cometeu um crime ao dizer que prefeitos e governadores de forma indiscriminada poderiam, simplesmente suprimir toda e qualquer direito previsto no inciso [do artigo] 5º da Constituição, inclusive o 'ir e vir"', disse Bolsonaro a apoiadores.

A fala foi divulgada por um canal bolsonarista no YouTube.A declaração de Bolsonaro foi uma reação à mensagem postada em uma rede social do STF na quarta-feira (28). No texto, a corte reafirma que não impediu o governo federal de agir no enfrentamento da Covid-19. "O STF não proibiu o governo federal de agir na pandemia! Uma mentira contada mil vezes não vira verdade!", afirmou no Twitter.

Embora tenha partido para cima do tribunal, ministros do Supremo decidiram não responder ao ataque sob a mesma alegação da ausência de reação à live: de que não adianta o Judiciário ficar batendo boca com o mandatário, sob pena de inflar ainda mais as alegações de Bolsonaro. ​

O presidente do STF, Luiz Fux, pretende responder a ameaças golpistas no discurso que fará na semana que vem na reabertura dos trabalhos do Judiciário, conforme antecipou o Painel.​ O magistrado vai pregar que cada ator político atue dentro dos limites institucionais, sem extrapolá-los, para que a democracia fique firme.

A resposta é classificada como tardia por ala do Supremo.

Apesar do clima e da impaciência crescente de magistrados, Fux ainda busca uma forma de estreitar o laço e pacificar a relação entre os Poderes. Para isso, a previsão é que o ministro telefone na próxima segunda-feira (2) para Bolsonaro, e os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), respectivamente, para marcar uma reunião.

O encontro entre os Poderes teria ocorrido neste mês, mas foi cancelado depois que Bolsonaro precisou ser internado com um quadro de obstrução intestinal.


Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/ministros-do-tse-e-do-stf-consideram-patetica-live-de-bolsonaro-e-criticam-participacao-do-ministro-da-justica.shtml


Fux prepara resposta a ameaças de Bolsonaro e Braga Netto às eleições

Presidente descumpriu o acordo firmado com o presidente do STF e voltou a tensionar a relação com a Corte e o TSE em busca do voto impresso

Weslley Galzo, O Estado de S.Paulo

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)Luiz Fux, deve usar o tradicional discurso de retomada dos julgamentos na Corte na segunda-feira, 2, após o recesso do Judiciário, para enviar recados ao Palácio do Planalto, diante das sucessivas ameaças à realização das eleições em 2022. Fux prepara uma resposta à tentativa de intimidação do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Como revelou o Estadãoo ministro mandou um interlocutor avisar aos Poderes que não haveria eleições de 2022 se não fosse aprovado o voto impresso.

O recado chegou para o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que cobrou do presidente Jair Bolsonaro respeito ao processo democrático. Desde a semana passada, Fux vem sendo pressionado a se manifestar sobre as ameaças golpistas que agora também partem da Esplanada dos Ministérios. Segundo apurou o Estadão, o presidente do STF deve discursar em defesa da democracia, destacando que os Poderes não podem extrapolar o seu papel no Estado de Direito.

Em conversas reservadas, o ministro disse que avalia citar nominalmente as Forças Armadas e Braga Netto, que teriam gerado a crise política instalada a partir de acenos golpistas. Há, ainda, a possibilidade de que a declaração seja mais genérica, evitando despertar animosidade no meio militar, mas que, mesmo assim, cumpra o papel de sinalizar aos outros Poderes e à caserna o comprometimento do Supremo com a estabilidade democrática.

A crise entre o Supremo e o Planalto ganhou fôlego depois que ministros da Corte se reuniram com dirigentes de partidos para reverter a tendência de aprovação do voto impresso pelo Congresso. Após a ameaça de Braga Netto, houve reação pública de três magistrados — Gilmar MendesEdson Fachin e Luís Roberto Barroso –, e se chegou a considerar uma nota conjunta a respeito.

Vice-presidente do TSE, Fachin declarou, momentos após a publicação da reportagem do Estadão, que “o sistema eleitoral do País encontra-se desafiado pela retórica flagiciosa, perversa, do populismo autoritário”. Nesta quinta-feira, 29, Barroso fez duras críticas à proposta de adoção do voto impresso como mecanismo adicional de auditagem das urnas eletrônicas. “O discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”, afirmou. A manifestação de Barroso foi feita no mesmo dia em que Bolsonaro prometeu apresentar provas de que as eleições de 2014 e 2018  foram manipuladas. O presidente queria dizer que as do ano que vem também serão. Em transmissão ao vivo nas redes sociais, porém, acabou admitindo não ter provas, mas apenas “indícios”.

Em cerca de duas horas de live, retransmitida pela TV Brasil, ele usou uma série de alegações falsas para contestar a segurança da urna eletrônica, além de repetir ataques ao TSE e ao ministro Barroso, presidente da Corte eleitoral. Durante o discurso de Bolsonaro, o TSE rebateu as acusações por meio de checagens enviadas à imprensa. 

Reunião
O pronunciamento de Fux ocorrerá pouco após um novo episódio de conflito entre as instituições. O discurso na sessão inaugural, no entanto, não será o único ato do presidente do Supremo na tentativa de debelar a crise institucional instalada na Praça dos Três Poderes. Na próxima semana, Fux deve se encontrar com Bolsonaro e com os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

O encontro deveria ter ocorrido no último dia 14, mas foi desmarcado porque Bolsonaro precisou ser submetido a tratamento médico de emergência em São Paulo. Naquele momento, o presidente do STF tentava reunir as lideranças para remediar a crise política entre os Poderes causada, sobretudo, pela atitude beligerante de Bolsonaro em relação à adoção do voto impresso.

No dia 12 deste mês, pouco antes da data prevista para a realização do encontro de líderes, Fux chamou Bolsonaro ao Supremo para selar um acordo de paz. Na ocasião, o magistrado pediu ao presidente que ‘respeitasse os limites da Constituição’. Em resposta, o político teria se comprometido a moderar os ataques aos ministros do STF e do TSE. Esse encontro ocorreu depois que Lira avisou Bolsonaro que não compactuaria com atitudes golpistas, como revelou o Estadão.

A promessa, no entanto, caiu por terra pouco tempo depois da conversa com Fux. No último sábado, 24, Bolsonaro voltou a questionar a lisura do sistema eleitoral brasileiro e a defender o voto impresso. "Na quinta-feira (29) vou demonstrar em três momentos a inconsistência das urnas, para ser educado. Não dá para termos eleições como está aí", disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. Ele ainda afirmou que o povo não aceitaria o pleito sem a possibilidade de imprimir o comprovante do voto.

Horas antes da live prometida, Bolsonaro voltou a atacar o Supremo. Dessa vez, o tensionamento da relação com a mais alta corte do Judiciário ocorreu devido ao vídeo publicado ontem pela Secretaria de Comunicação do STF.

Na peça publicitária que integra a campanha “#VerdadesdoSTF”, é desmentida mais uma vez a versão reproduzida reiteradamente pelo presidente e por aliados do Planalto de que o tribunal teria proibido o governo federal de agir no enfrentamento à pandemia de covid-19.

Parafraseando a famosa frase de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do regime nazista de Adolf Hitler, o Supremo dizia no texto de divulgação do vídeo em resposta a Bolsonaro que “uma mentira contada mil vezes não vira verdade”.

Na manhã desta quinta-feira, 29, o presidente respondeu e subiu o tom em conversa com apoiadores em frente ao Alvorada: “O Supremo cometeu crime ao dizer que prefeitos e governadores podem suprimir direitos”. A afirmação desinformativa foi seguida pela declaração também inverídica e recorrente de que o tribunal o impediu de atuar. “Prefeitos e governadores tinham mais poder do que eu”, disse. Em sua conta oficial no Twitter, Bolsonaro escreveu que o Supremo “delegou poderes para que Estados e municípios” agissem no enfrentamento da doença.

A decisão por unanimidade no plenário da Corte apenas definiu a possibilidade de concorrência entre as instâncias do Executivo na adoção de medidas preventivas à doença. O voto do ministro Edson Fachin, por exemplo, avaliou que a concentração das decisões na figura do presidente da República, sem contrapartida aos prefeitos e governadores, viola a separação dos Poderes.

Em uma medida cautelar que referendou a decisão do Supremo, o ministro Alexandre de Moraes declarou que não cabe ao Executivo tomar qualquer iniciativa “que vise a desautorizar medidas sanitárias adotadas pelos Estados e municípios com o propósito de intensificar ou ajustar o nível de proteção sanitária”. Apesar de não poder evadir a competência de prefeitos e governadores, a decisão não retira os poderes do governo federal “de atuar como ente central no planejamento e coordenação de ações integradas de saúde pública, em especial de segurança sanitária e epidemiológica no enfrentamento à pandemia da Covid-19”, como cabe em suas atribuições.

Uma trégua, se houver, será apenas institucional. Na agenda do tribunal encontram-se pautas importantes, que dizem respeito inclusive a Bolsonaro, como o julgamento previsto para setembro que definirá se o presidente prestará depoimento no inquérito que apura se ele tentou interferir indevidamente nas atividades da Polícia Federal. Em novembro, os ministros votam a criação do juiz de garantias nos processos judiciais do País.

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Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fux-prepara-resposta-a-ameacas-de-bolsonaro-e-braga-netto-as-eleicoes-e-quer-reuniao-entre-poderes,70003794730


Bruno Leal: Departamento de História da UnB transmite aula inaugural sobre Salvador Allende

Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) vai transmitir, ao vivo, a aula inaugural do seu próximo semestre. O convidado é o historiador Alberto Aggio, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (UNESP). A aula vai analisar a experiência do governo de Salvador Allende. Allende foi presidente do Chile entre 1970 a 1973, quando foi deposto por um golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet, chefe das Forças Armadas chilenas, e com apoio do governo dos Estados Unidos.

O evento acontece no dia 28 de julho, às 18h. A transmissão ocorrerá pelo canal do YouTube do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UnB. O evento é gratuito e não é preciso inscrição prévia. Qualquer pessoa poderá acompanhar a aula. A aula ficará disponível no canal do ICH permanentemente.

Aggio é doutor em História pela USP e tornou-se Professor Livre-Docente em História da América em 1999 e desde 2009 é Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Franca. Atuou como professor visitante na Universidade de Valencia (Espanha), onde realizou seu pós-doutorado entre 1997 e 1998. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Política, trabalhando com história política da América Latina contemporânea, cultura política e democracia, intelectuais e pensamento político, Gramsci e América Latina.

O historiador é autor do livro “Democracia e Socialismo: A Experiência Chilena”, que pode ser encontrado na Amazon. A obra também está disponível no formato Kindle.

*Bruno Leal é fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

Fonte:

Café História

https://www.cafehistoria.com.br/departamento-de-historia-da-unb-transmite-aula-inaugural-sobre-salvador-allende/

Agência Lupa: Em live no pior dia de Manaus, Bolsonaro mente sobre Covid no Brasil

Presidente e ministro da Saúde insistiram no tratamento precoce com hidroxicloroquina e questionaram uso de máscara; veja checagem da Lupa

Na quinta-feira (14), enquanto Manaus vivia crise com a falta de oxigênio nos hospitais, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) realizou uma transmissão ao vivo junto com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Na live, os dois repetiram informações falsas sobre a doença, como a existência de um “tratamento precoce” contra a Covid-19.

Bolsonaro também chegou a dizer que há três vacinas em análise pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas foi corrigido pelo ministro. A agência vai se pronunciar no domingo (17) sobre dois imunizantes, produzidos pela Fiocruz e pelo Butantan.

A Lupa analisou algumas das declarações de Bolsonaro e do ministro, que foram procurados para comentar as checagens, mas não responderam até a publicação.

“Qual outro país do mundo disponibilizou o auxílio emergencial? Alguém lembra aí Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, México, Angola, Itália?”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Pelo menos cinco —Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Itália— dos sete países citados pelo presidente Jair Bolsonaro disponibilizaram um auxílio emergencial para sua população durante a pandemia similares ao brasileiro.

A Argentina criou o “Ingreso familiar de emergencia” em março de 2020, com valor de 10 mil pesos, pouco mais de R$ 600. No Paraguai, o programa Pytyvõ — ajudar, em guarani — ofereceu G. 548.210 (R$ 419). A Venezuela criou, em março, o #QuedateEnCasa, mas o governo não informa o valor mensal que cada beneficiário recebe.[ x ]

Na Itália, o “Bonus Covid” foi disponibilizado temporariamente de março a maio. Nos dois primeiros meses, era de € 600 (cerca de R$ 3.800) e no terceiro e último mês, passou para € 1.000 (cerca de R$ 6.000). No final de 2020, jornais brasileiros repercutiram um escândalo de corrupção envolvendo o bônus: cinco deputados receberam indevidamente o auxílio.

O Uruguai criou, em abril, o Fundo Coronavírus, a partir do corte de salários de servidores públicos. Segundo o governo, o fundo usou cerca de US$ 625 milhões em 2020 em medidas de combate ao coronavírus. Desse montante, US$ 120 milhões foram para abonos de famílias e cestas básicas.


“O PSOL entrou com uma ação na Justiça de Porto Alegre para que o município não entregue o kit de tratamento precoce para os portadores de Covid-19”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

VERDADEIRO No dia 12 de janeiro, a bancada de vereadores do PSOL de Porto Alegre ingressou com uma ação, endereçada à Vara da Fazenda Pública, pedindo que a prefeitura da cidade “se abstenha de distribuir, utilizar e/ou adquirir medicamentos de eficácia não comprovada, especialmente a ivermectina e a hidroxicloroquina, para utilização na rede pública de saúde do Município de Porto Alegre”.

Em 4 de janeiro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), flexibilizou as medidas restritivas de combate à pandemia e determinou a disponibilização de “tratamento precoce” contra a Covid-19 à população. O termo é usado por negacionistas científicos para se referir a medicamentos como hidroxicloroquina ou ivermectina, que não têm eficácia no tratamento contra o novo coronavírus.

Na manhã de quinta-feira (14), em encontro com apoiadores, o presidente citou a mesma ação, mas se confundiu, afirmando que o PSOL havia entrado na Justiça proibindo todos os prefeitos do país de distribuírem medicamentos sem eficácia científica contra a Covid-19.


“O uso da máscara, o afastamento social, as medidas de isolamento (...), isso tudo nós temos muita dificuldade de encontrar o que deu certo e o que deu errado.”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Pesquisa publicada em junho na revista The Lancet indicou que o uso de máscaras reduz o risco de infecção por Covid-19 em 85%. Pesquisadores canadenses revisaram 172 estudos observacionais sobre medidas protetivas realizados a partir das características do novo coronavírus e de outras doenças respiratórias, como a síndrome respiratória no Oriente Médio (Mers).

O estudo mostrou que as proteções hospitalares têm um grau maior de efetividade (96%), enquanto as máscaras caseiras eram consideradas 67% efetivas. Dessas, as que mais protegiam eram as que tinham duas ou mais camadas e quando corretamente ajustadas ao rosto.

Outras duas pesquisas, ambas publicadas na revista Nature, também confirmaram que medidas de isolamento social são eficazes em reduzir a disseminação do vírus. A primeira, publicada em junho por pesquisadores do Imperial College London, no Reino Unido, concluiu que essas “intervenções não farmacêuticas” evitaram 3,1 milhões de mortes em 11 países europeus na primeira onda da pandemia.

Outra, realizada por pesquisadores da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, concluiu que a implantação de medidas restritivas de locomoção reduziram a velocidade de contágio do vírus em seis países analisados.


“O tratamento precoce é preconizado pelos conselhos federais [...], se mostrou eficaz em todas as cidades e estados do Brasil”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO De acordo com instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NHI, na sigla em inglês), não há, até o momento, medicamentos que comprovadamente reduzem o risco de infecção pela Covid-19.

No Brasil, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce com qualquer tipo de medicamento. “Os estudos clínicos randomizados com grupos de controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais”, diz a SBI, em comunicado no Twitter na quinta-feira (14).

Em parecer publicado em abril do ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que não há evidências sólidas de efeito de medicamentos como a cloroquina ou hidroxicloroquina no combate à Covid-19. No entanto, “diante da excepcionalidade da situação”, o CFM diz ser possível a prescrição do medicamento em pacientes infectados com o vírus. A decisão, entretanto, deve ser conjunta, entre médico e paciente. O profissional fica obrigado a relatar ao doente “que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga” para o tratamento da Covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.

Diversos estudos publicados já comprovaram que não há eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O Recovery Trial, coordenado pela Universidade de Oxford, suspendeu testes em junho com o remédio ao notar que ele não mostrou benefício no tratamento da doença. Em julho, foi a vez do Solidarity Trial, coordenado pela OMS, encerrar testes com a hidroxicloroquina. Um estudo brasileiro, publicado em novembro no periódico New England Journal of Medicine, também comprovou que a hidroxicloroquina é ineficaz no tratamento de casos leves e moderados da Covid-19.

Em setembro de 2020, a Escola de Medicina Perelman, da Universidade da Pensilvânia (EUA), testou o efeito profilático da hidroxicloroquina para aqueles que ainda não foram expostos à Covid-19. Os resultados mostraram que a ingestão diária da droga não reduziu o risco de infecção. A pesquisa foi publicada na Jama Internal Medicine e analisou 125 profissionais de saúde que atuam na linha de frente de combate ao novo coronavírus. Em agosto, um outro estudo clínico, publicado no The New England Journal of Medicine, mostrou que essa medicação, fornecida por quatro dias, não foi capaz de reduzir a taxa de infecção por Covid-19 nos 14 dias subsequentes ao seu uso, quando comparada com placebo.


“[O número de] Jovens entre 5 e 19 anos (...) sem comorbidade, que perderam a vida ano passado: 36. (...) É uma prova de que os jovens poderiam estar estudando [presencialmente]”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

INSUSTENTÁVEL O Ministério da Saúde não tornou públicas as informações de mortes por Covid-19 com o recorte de faixa etária e existência de comorbidades. Levantamento feito pelo G1 apontou que das 141 vítimas com até 19 anos que morreram de Covid-19 até o dia 26 de maio do ano passado, pelo menos 18 não tinham comorbidades. De acordo com dados do Poder 360, até 27 de junho de 2020, 380 pessoas com menos de 19 anos já haviam morrido no Brasil em função da doença ― no entanto, não há informações sobre comorbidades.

Mesmo que os números apresentados por Bolsonaro estivessem corretos, o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta é que os jovens, ainda que não desenvolvam a doença, podem transmiti-la para pessoas mais velhas e mais vulneráveis. O diretor da OMS para o Pacífico Ocidental, Takeshi Kasai, explicou que, justamente por serem muitas vezes assintomáticos ou apresentarem sintomas leves, os jovens acabam transmitindo a doença.

No entanto, a própria OMS afirmou em setembro que a volta às aulas deve ser prioridade no processo de reabertura das economias. O argumento é que escolas fechadas por muito tempo significa crianças mais expostas à violência física e emocional, vulneráveis ao trabalho infantil e a abusos, além de dificultar quebrar o ciclo da pobreza. A OMS divulgou um guia com recomendações para a volta às aulas.


“Tenho uns 40 processos de impeachment. Alguma acusação de corrupção? De improbidade? De abuso de autoridade? Não, não tem”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO Informações obtidas pela Lupa via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria Geral da Mesa Diretora da Câmara mostram que até esta sexta-feira, 15 de janeiro, havia 55 pedidos de impeachment em tramitação contra o presidente. Vários desses pedidos referem ao Inquérito 4831, sobre suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Neste inquérito, o presidente é investigado por tentativa de influenciar investigações feitas pela instituição.

Um dos pedidos de impeachment, por exemplo, foi apresentado pelo deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ) e outros congressistas em 29 de abril de 2020. O texto fala em “tentativa de interferência ilegal na Polícia Federal, obstrução de justiça, advocacia administrativa, coação no curso do processo”.

Outro pedido, apresentado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) em 21 de maio, acusa Bolsonaro de utilizar “poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais”, em referência ao Inquérito 4831.

O inquérito foi aberto no STF para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro de que o presidente da República tentou interferir na autonomia da PF para proteger familiares e aliados. Em novembro, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou o inquérito por 60 dias, logo depois de o presidente ter informado que não iria depor no caso. Agora, o Supremo vai decidir se Bolsonaro pode depor por escrito ou se precisa comparecer pessoalmente para ser ouvido pelos investigadores. A decisão está marcada para 24 de fevereiro.


“Se fosse um remédio que não fizesse mal comprovadamente, não tivesse efeito colateral, nem assim, eu (...) ia obrigar a tomar aquele medicamento, quem dirá algo emergencial que não foi devidamente comprovado”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

CONTRADITÓRIO Durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro recomendou diversas vezes o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina como formas de tratamento contra o novo coronavírus. Contudo, essas drogas não têm eficácia comprovada para essa infecção e é comprovado que o paciente pode sofrer efeitos colaterais com o seu uso. Como explicado acima, há diversos estudos que mostram que esse remédio é ineficaz no tratamento contra o novo coronavírus.

Em nota, a Sociedade Brasileira de Arritmia Cardíacas (Sobrac) informou que a hidroxicloroquina pode ocasionar alterações cardíacas e pode ter tanto um efeito antiarrítmico quanto provocar o surgimento de arritmias graves. A bula do medicamento recomenda cautela para o seu uso em pacientes com disfunções hepáticas (do fígado) ou renais (dos rins), ou que estejam tomando medicamentos capazes de afetar esses órgãos. Além disso, o uso é contraindicado para grávidas e crianças menores de seis anos.


“Tem dado certo. A hidroxicloroquina, a azitromicina, ivermectina, a Anitta, zinco, vitamina D têm dado certo [no tratamento da Covid-19]
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021

FALSO É falso que os medicamentos citados por Bolsonaro tenham efeito comprovado no tratamento da Covid-19. A Lupa já mostrou que o uso da cloroquina em pacientes internados com a doença não trouxe benefícios, como a redução na letalidade ou no tempo de internação. Além disso, efeitos colaterais como a arritmia cardíaca vêm sendo observados em muitas pesquisas, levando a Associação Médica Americana a emitir um comunicado pedindo que o uso da cloroquina fosse limitado a estudos clínicos e dentro de hospitais, sob rigoroso controle.

azitromicina é um antibiótico que pode ser usado contra infecções bacterianas secundárias em casos de Covid-19, mas não atua diretamente contra o vírus causador da doença.

Também não existe comprovação científica que sustente a recomendação de ivermectina, uma medicação usada contra piolhos, como prevenção ou tratamento da Covid-19. A epidemiologista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ana Luiza Curi Hallal, explica que existe uma diferença entre o uso de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina pré-exposição, ou seja, quando se toma para evitar contágio, e o uso como tratamento precoce, ou seja, por pessoas que tiveram contato com alguém que testou positivo para a doença e busca uma terapia para evitar que a infecção evolua para um quadro mais grave.

“Em ambos os casos, estudos mostraram que não existem vantagens em usar cloroquina ou ivermetcina. O conhecimento evoluiu ao longo dos últimos meses e as dúvidas que tínhamos lá em abril e maio não são as mesmas. Na época, os estudos estavam começando e hoje evidenciam que esses medicamentos não previnem a Covid-19 e nem fazem com que a doença evolua menos”, afirma.

Como explicado pela Lupa, a ivermectina passou a ser disseminada como possível tratamento da doença depois que um estudo, publicado na Antiviral Research, indicou que a droga foi capaz de inibir a replicação do Sars-CoV-2 in vitro. Apesar disso, a OMS excluiu a ivermectina do projeto Estudo Solidariedade, uma iniciativa co-patrocinada para encontrar um tratamento efetivo para COVID-19, porque “estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos.”

Anitta é o nome comercial da nitazoxanida. Não há nenhum estudo publicado em revista científica que comprove a eficácia da ivermectina ou nitazoxanida contra Covid-19, assim como não há comprovação sobre o zinco ou a vitamina D.

Chico Marés , Ítalo Rômany , Marcela Duarte , Natália Leal e Nathália Afonso


Eliane Brum: Quando o vírus nos trancou em casa, as telas nos deixaram sem casa

A cultura do ‘home office’ e das ‘lives’ e dos ‘meetings’ pedalou a nossa porta

Encerro 2020, o ano que anuncia que o tempo das pandemias chegou, com estranhos sintomas. A ideia de fazer mais uma live, mais um meeting pelo Jitsi, Zoom ou Google, ou mesmo pelo WhatsApp, me deixa fisicamente enjoada. Escrever, como faço agora, enquanto as notícias e as mensagens pipocam num canto da tela, me deixa tonta e exausta. Amigos me pedem encontros de Natal, happy hours de Ano-Novo. Quero. Mas não consigo. Que o excesso de telas cansa e pode causar transtornos e até doenças, sabemos. A experiência atual, porém, vai muito além disso. O home office, as lives e os meetings mudaram oconceito de casa. Ou talvez tenham provocado algo ainda mais radical, ao nos despejar não apenas da casa, mas também da possibilidade de fazer da casa uma casa.

A maioria dos que tiveram a chance de ficar entre paredes durante a maior parte do ano para se proteger do vírus vive, como eu, uma experiência inédita na trajetória humana: a de estar 24 horas dentro de casa e, ao mesmo tempo, não ter nenhuma casa. A pandemia nos levou ao paradoxo de nos descobrirmos sem teto debaixo de um teto. Mais do que sem teto, nos descobrimos sem porta. Sem porta, não há chave para nenhum entendimento.

Sim, aqueles que têm a chance de trabalhar no sistema de home office, o que significa trabalhar a partir da sua casa, são privilegiados num planeta encurralado pelo vírus. Pensar sobre a desigualdade no tempo das pandemias é pensar sobre quem pode desempenhar suas funções profissionais “remotamente” e quem não pode. A maioria dos que não podem trabalhar remotamente é composta pelos mesmos que têm mais chances de figurar em todas as piores estatísticas: os mais pobres, os negros, as mulheres.

Afirmar que a pandemia expõe e agrava a desigualdade social, de raça e de gênero é uma obviedade que várias pesquisas comprovaram ao longo de 2020. A iniquidade abissal do Brasil —e, em menor escala, da maioria dos países do planeta— impõe como privilégio aquilo que é um direito básico, o de ser capaz de se proteger de uma ameaça. Assim, é como privilegiada que discuto aqui a experiência de nos descobrir sem casa, uma experiência que não é apenas subjetiva. Apesar das paredes de concreto que nos cercam, nos sentir sem casa é uma experiência bem concreta.

O que é uma casa?

O que é uma casa? Essa pergunta entrou na minha vida de jornalista junto com a imposição de Belo Monte ao rio Xingu e aos seus povos. Para os ribeirinhos expulsos de ilhas e da beira do rio para a construção da hidrelétrica, casa era uma ideia concretizada a partir de uma experiência de viver e de ser floresta. Para os funcionários da Norte Energia SA, a empresa concessionária da usina e outras terceirizadas a seu serviço, assim como para os advogados que consumavam a “negociação” em que nunca se negociou nada, porque tudo foi imposto, casa era algo referenciado na experiência de viver em cidades do centro-sul do Brasil.

Como quem detinha —e detém— o poder era a empresa, o valor da indenização e de outras compensações foi determinado à revelia da experiência cultural e também objetiva de quem vivia um conceito expandido do que é uma casa, um conceito arquitetônico diverso do que é uma casa, um outro tipo de material para criar uma casa. Enfim, para quem vivia uma experiência inteiramente diversa de fazer casa que foi esmagada pelos tecnocratas. Não apenas por ignorância, mas porque, ao ter o poder de determinar que o que era casa não era casa, ou que o que era casa não era uma boa casa, o valor monetário da indenização e também as compensações seriam muito mais baixos ou, em alguns casos, inexistente.

Testemunhar essa violência implantou a questão do que é casa definitivamente na minha cabeça, e eu a expandi para outros territórios objetivos e, principalmente, subjetivos. Em minha experiência como jornalista, já escrevi reportagens sobre um homem que fez uma casa dentro de uma grande árvore, em plena zona urbana de Porto Alegre. Já contei de uma família que fez casa embaixo de um viaduto, convertendo o cotidiano numa experiência onde cabia preparar o café da manhã, arrumar e levar os filhos para a escola todos os dias para garantir que tivessem educação formal. Já testemunhei o que se tornou uma das reportagens mais impactantes da minha vida, na qual um grupo de crianças de rua fez casa nos esgotos da cidade. Chamavam a si mesmos de Tartatugas Ninja, como no filme que então estreava nos cinemas.

Conheci também experiências diversas de casa com diferentes povos indígenas. Algumas coletivas, como a dos Yanomami, outras unidades familiares, sendo que também aí há diferentes entendimentos sobre qual é a teia de relações que constitui o que cada etnia chama de família. As humanidades são variadas e experimentam diferentes formas de tecer relação com a natureza. Ou, no caso da minoria branca e dominante —essa que chama sua experiência de civilização e equivocadamente a considera universal ou até mesmo superior—, romper com a natureza.

Andando pelos tantos Brasis em busca de histórias para contar, vi as pessoas inventarem todo o tipo de casa, até as invisíveis, quando é necessário fantasiar paredes nas esquinas movimentadas de cidades gigantes como São Paulo, para fazer limite simbólico entre a família e o mundo sempre ameaçador para os que pouco têm além do próprio corpo. E, claro, já entrei em mansões e também em palácios. Parte do encanto de ser jornalista é a possibilidade de ter acesso a lugares aos quais jamais teríamos em outras profissões.

Apesar da diversidade de experiências, há algo comum a essas tantas construções do que é uma casa, algo para além das diferenças de tamanho, de material, de arquitetura, de contexto e de geografia. É a ideia da casa como o lugar onde cada um faz seu espaço próprio, o lugar que cada um reserva para si ou para a família ou para o grupo. É a ideia da casa como refúgio. É a ideia da casa como proteção contra chuva e contra sol excessivo, contra animais que podem querer nos converter em jantar, contra aqueles que não conhecemos e por isso não sabemos se querem ou não nos fazer mal. É a ideia da casa como espaço de abrigo e de descanso, como um mundo dentro do mundo onde fazemos aquilo que é mais importante, como nos alimentar, nos reproduzir e amar.

Se há ‘office’, não há ‘home’

Quando a casa deixa de representar esse conjunto de significados, não importa a forma que ela tenha, há um distúrbio. Pode ser porque o abusador mora nela —seja ele o pai, um padrasto ou um tio que molesta, seja um marido ou companheiro violento. E então a casa já não garante mais segurança, proteção e abrigo. Seja porque a casa foi invadida e saqueada, seja porque algo violentamente disruptivo aconteceu desde dentro e a casa passa a guardar uma memória com a qual temos dificuldade de lidar. A casa então já não pode mais ser refúgio. A casa então se descasa, porque sozinhos ou acompanhados somos, de qualquer modo, casados, no sentido de que fizemos casa. E fazer casa é preciso.

Se tornar descasado, no sentido de sem casa, é o que está acontecendo hoje com aqueles que, desde março, fazem home office, expressão em inglês para apontar que a casa, no sentido de lar (home), se tornou também o escritório (office), no sentido de local de trabalho. A expressão home office, porém, é ardilosa. A experiência cotidiana mostra que, se há office, não há home.

Quando o trabalho invade a casa no modo 24(horas)X7(dias) por semana, perdemos a casa. E com ela o descanso, o refúgio, o remanso. E também o espaço de intimidade que só será alcançado pelos de fora se quisermos abrir a porta. Perdemos principalmente a porta. E uma casa sem porta não é uma casa. Mesmo que essa porta seja invisível, caso dos moradores de rua, essa barreira concretizada pela imaginação cumpre o papel simbólico de fazer borda, dar limite. No modo pandêmico, ao contrário. Mesmo que materialmente exista uma porta de madeira ou mesmo de ferro, grossa e cheia de fechaduras complicadas, seguidamente precedida da porta do prédio e ainda da porta externa do edifício, como hoje vive parte da classe média urbana, ainda assim não há porta nenhuma porque já não há limite para o que invade a casa pelas telas —todas as telas— desde dentro.

Essas muitas portas e fechaduras que se multiplicaram para supostamente nos manter seguros só são capazes de botar algum limite nos assaltantes clássicos. Hoje, porém, há outro tipo de assaltante, que pode nos roubar algo muito mais importante, até mesmo insubstituível e seguidamente irrecuperável do que bens materiais. A invasão contemporânea é aquela que nos rouba o tempo e sequestra o espaço da vivência dos afetos, da intimidade, dos prazeres e das subjetividades. Tempo no sentido definido pelo grande pensador Antônio Cândido (1918-2017), tempo como o tecido das nossas vidas, como tudo o que temos, como algo não monetizável. Esse assalto, a médio e longo prazo, pode provocar muito mais estragos no corpo-mente de cada um do que o que convencionamos chamar de assalto.

A tecnologia, e de forma totalmente transtornante e veloz, a Internet, já haviam nos tirado de casa quando em casa. Talvez o primeiro ataque tenha sido o telefone, mas lembro que não era educado telefonar para a casa das pessoas depois de certa hora da noite, em geral cedo, e antes de certa hora da manhã, tampouco na hora das refeições, que costumavam ser feitas na mesma hora em todas as casas. E jamais um chefe ligaria para a casa de um subordinado no fim de semana ou feriado se não fosse literalmente um caso de vida e morte. Mesmo no jornalismo, só éramos perturbados na nossa folga se literalmente caísse um avião ou houvesse um massacre em algum lugar que exigisse uma viagem imediata. E, ainda assim, com um pedido de desculpas por perturbar nossa privacidade e interromper nosso descanso logo na introdução.

A Internet mudou as convenções sociais muito rapidamente, antes que a maioria sequer pudesse compreender a Internet e antes que mesmo seus criadores fossem capazes de entender seu impacto. A Internet, como quase tudo, se fez e se faz na própria experiência. Assim como as pessoas acham que podem escrever nas redes sociais o que lhes vêm a cabeça, sem filtros ou freios, apenas porque o outro supostamente estaria à sua disposição ou, com frequência, seria seu saco de pancada, também se tornou corriqueiro mandar mensagens de WhatsApp a qualquer hora ou por qualquer motivo ou mesmo sem motivo algum. Ninguém enviaria 10 cartas para alguém no mesmo dia, mas quase todos acreditam ser perfeitamente “normal” enviar mensagens e memes e vídeos e links numa só manhã, confundindo poder com dever.

Essa é justamente uma época em que, dos cidadãos aos governantes, todos acreditam que, porque podem, devem. Ou, mais provável, o questionamento sobre dever ou não fazer ou dizer algo foi deletado e, assim, o único verbo a ser exercitado é o “poder”. O tempo da Internet, que é o tempo da velocidade, eliminou para muitos a etapa obrigatória da reflexão. Estamos todos pagando um preço altíssimo por essa mudança brusca e ainda subdimensionada que encolheu ou mesmo eliminou o tempo dedicado à ponderação antes da ação ou reação. Seu impacto é a corrosão de todas as relações, a começar pelos governantes, que passaram a se comunicar pelas redes sociais, conectados diretamente com seus eleitores, em alguns casos com seus fiéis, mas desconectados do ato de responsabilidade que é governar.

Tudo se complica infinitamente mais quando o mundo do trabalho invade a casa. Com a comunicação facilitada e imediata permitida pela tecnologia, os limites que antes eram determinados pela carga horária da jornada passaram a ser ultrapassados ou mesmo ignorados. A precarização das condições de trabalho, o apagamento das fronteiras entre vida privada e profissional, o devoramento do tempo, e com ele, a corrosão da vida, já tinham se tornado uma questão crucial da nossa época.

Com o home office, as condições de trabalho se precarizaram ainda mais. A vida foi transtornada com maior rapidez do que no acontecimento da Internet. Ainda que veloz, a internet foi ao menos progressivamente veloz. Já o home office se impôs literalmente da noite para o dia, determinado pelas necessidades de quarentena ou lockdown. E, para muitos, com o home office do companheiro ou companheira e também com as crianças sem escola.

As crianças, por sua vez, foram convocadas a compreender o incompreensível: que a casa deixou de ser casa para se tornar o lugar de trabalho onde os pais se tornam ainda menos acessíveis e, por todas as razões, com menos paciência e disponibilidade. Os pais estão totalmente presentes e, ao mesmo tempo, quase que totalmente ausentes. Quase que inteiramente em outro lugar, mesmo que inteiramente dentro de casa. Os impactos dessa experiência sobre as crianças de todas as idades estão sendo muito mal dimensionados. É muito difícil para as famílias cuidarem de algo que os pais nem sequer entendem e com o qual também sofrem muito. Também os pais sentem que lhes faltam ferramentas para lidar com a casa transtornada pela pandemia.

Sintomas de “descasamento”

Acompanhando minha própria experiência, assim como a de amigos e conhecidos, percebi que, no início, ficar em casa foi bem interessante. O álibi perfeito para quem já não suportava mais viajar e correr de um lado para o outro, de um mundo pro outro. Para quem vive em cidades grandes, o deslocamento para o trabalho costuma ser estressante, custoso e demorado. Assim, as pessoas acreditaram que, de imediato, ganhariam no mínimo uma hora a mais de tempo para si. Muitos se iludiram que leriam todos os livros empilhados na cabeceira e finalmente ficariam atualizados com os filmes e séries. Trabalhar de pijama ou moletom também soou confortável. A casa oferecia ainda o bônus de manter longe colegas de trabalho chatos e chefes abusivos.

Muita gente já dizia que não voltaria mais ao escritório ou ao consultório ou para o que fosse porque estava provado que era possível e melhor trabalhar de casa. Principalmente, várias empresas começaram a fazer as contas de quanto poderiam economizar quando cada funcionário virasse uma ilha em caráter definitivo. Muitas dessas empresas, inclusive, pouco dispostas a pagar os custos dessa ilha que é, afinal, a casa da pessoa. Defendem, portanto, que deveria ser problema de cada indivíduo pagar as contas de luz, internet etc., mesmo que os custos tenham aumentado pelas necessidades profissionais de uso.

E então começou o império do Big Brother, e a rotina passou a ser determinada pelo agoniante, às vezes enlouquecedor, ruído das mensagens entrando pelo Whatasapp ou dos e-mails se enfileirando na tela. Claro, se pode “emudecer” o som das mensagens, mas quem vai emudecer o chefe, o fornecedor, o fulano que ficou de dar notícias sobre prazos, o sicrano que vai enviar informações importantes, o beltrano que precisa de documentos? As horas foram invadidas além de qualquer precedente. Como emudecer ou mesmo desligar os celulares na hora de dormir se pessoas queridas estão sozinhas no meio de uma pandemia e podem precisar de ajuda a qualquer momento?

Se antes era impossível marcar um número muito grande de reuniões por dia, porque havia o tempo do deslocamento, agora as pessoas estão em casa. Tornou-se possível triplicar o número de encontros (ou desencontros), às vezes sem hora para acabar. As lives e os meetings, que permitiram que o mundo se conectasse para traçar estratégias para enfrentar a pandemia, fazer vaquinhas de solidariedade ou apenas conversar, se tornaram fáceis demais e por isso mesmo excessivos demais. Todos querem fazer meetings e lives por qualquer motivo. Tudo vira imediatamente performance. As horas que se acreditava liberar ao eliminar o tempo de deslocamento entre o trabalho e a casa foram engolidas... pelo trabalho. E outras que não estavam lá foram adicionadas. A desculpa social de “não vou estar em casa” ou “dei uma saidinha” desapareceu. Todos agora sabem onde cada um está. Em casa.

Essa foi a sequência alucinante de acontecimentos que pedalaram a porta da casa. Sem porta, logo a casa deixou de ter paredes e, sem paredes já não fazia mais sentido nenhuma estrutura. Nos tornamos sem porta e com janelas demais, mas um tipo de janelas pelo avesso, na qual somos observados desde dentro, em vez de contemplar o exterior. Reproduzimos a experiência excruciante dos animais confinados em zoológicos, criados em cativeiro.

A tecnologia que nos uniu, essencial para enfrentar essa pandemia, também nos escravizou. Não importa onde estivermos, as telas nos acompanham. No bolso, na bolsa, na mão, no pulso. Os mais sensíveis sentiram primeiro e sofreram mais. Uma amiga passou a não enxergar o que estava na tela. Ou melhor, enxergava, mas um borrão. Nenhuma doença foi constatada. Os relatos em geral apontavam sintomas que impossibilitavam seguir diante da tela. Há pessoas com enxaquecas que nunca antes haviam tido enxaquecas. Gente que se orgulhava de dormir como um cadáver que passou a ter insônia ou sono interrompido. Eu mesma passei a sentir enjoo diante da tela, mas enjoo seletivo. Reuniões de trabalho e meetings com muita gente me provocam náuseas, mesmo quando adoro todos que estão na tela.

Me sinto um corpo que não suporta mais tanta exposição. Minha capacidade subjetiva ainda não encontrou caminhos para criar paredes e portas na minha mente, fazer um refúgio onde não há nenhum, fazer de mim a casa que perdi. Tudo e todos entram casa adentro, na hora que bem entendem, pela tela do computador, pela tela do celular, pela tela do tablet. Informações que não pedi, vídeos que não me preparei para ver, comentários que preferia não ouvir. Gente desconhecida de repente está na minha sala ou mesmo na minha cama. E já não é mais tão fácil desligar todas essas telas porque o trabalho depende delas, as informações que eu realmente preciso dependem delas, a certeza do bem-estar de pessoas que amo e que fazem quarentena sozinhas dependem delas, a vida social depende delas. Nunca socializei tanto quanto nessa pandemia e não sou exatamente alguém que gosta de conversar o tempo todo. Sinto falta de estar realmente sozinha, de estar realmente em silêncio, de estar realmente no meu tempo e no meu ritmo.

Uma porta para importar o que importa

Esses sentimentos e sintomas, porém, são apenas a barbatana que desponta acima da superfície. Abaixo dela, há um tubarão inteiro. Obcecados por planejar a volta de algo que andam chamando de “normal”, esquecemos de olhar para a profundidade da transformação que nossa vida está sofrendo. Somos resultado, como espécie, de um longo processo de evolução e de adaptação, pelo menos dois milhões de anos desde o Homo erectus. Mas, como humanos contemporâneos, nossa existência sofreu uma brutal transformação com a internet e, em 2020, com a primeira pandemia na época das telas.

Nosso corpo não processa uma mudança tão monumental em tão pouco tempo. Desde que o novo coronavírus apareceu, a principal preocupação dos vários setores da sociedade é com os custos financeiros da pandemia. É urgente falar muito mais dos custos psicológicos, das crianças que só conhecem paredes e têm medo de outras crianças porque aprenderam que são ameaças, dos velhos confinados em solidão, dos adultos submetidos a uma pressão inédita e a um nível de convivência também inédito. Esse custo é alto e suas sequelas poderão durar uma vida.

Tratamos a pandemia como uma anomalia, mas a real anomalia é o mundo que criamos dentro do mundo. Ou melhor: o mundo que a minoria dominante dos humanos criou dentro do mundo, submetendo todos os outros, subjugando a maioria. O custo desse mundo ameaça nossa existência no planeta, isso que chamamos crise climática. A pandemia é consequência da corrosão da vida causada pelo capitalismo neoliberal, ao destruir o habitat de outras espécies, e pelo modo de produção em que as mercadorias circulam ampla e velozmente pelo globo, assim como muitos de nós a bordo de aviões altamente poluentes.

A segunda onda de covid-19 mostrou que anomalia produz anomalia. Nosso modo de vida é insustentável, o que fizemos com as outras espécies agora pode nos matar. É uma fantasia perigosa acreditar que é possível voltar à anomalia que chamamos de normal e seguir tocando a vida como se cada ato não tivesse consequências em cadeia.

Em 2020, perdemos definitivamente a casa. Que, além de perder a porta, se tornou também uma prisão, a pior espécie de prisão, aquela que foi criada pelos nossos atos. E o que é uma prisão senão um lugar em que estamos confinados mas não temos privacidade, em que somos acessados a qualquer hora, em que cada gesto é controlado e monitorado, onde as visitas são reguladas e não pode haver toque? O que é uma prisão senão um lugar em que não temos escolha sobre o que pode ou não entrar? Um lugar em que estamos a mercê de todas as outras forças?

Do lado de fora, nas ruas, há três tipos de experiências. A daqueles a quem foi arrancado o direito fundamental de se proteger, porque seu trabalho não pode ser feito em casa e os empregadores e o Estado não os bancam. A daqueles que fazem serviços essenciais, como os profissionais de saúde. E a da maioria de pessoas, que poderia fazer quarentena mas não faz, porque não se importa com a vida de todos os outros, e assim contribui de forma decisiva para a ampliação da contaminação e pelo maior número de vítimas. Esse grupo numeroso de boçais é cínico a ponto de empunhar a bandeira da liberdade, conceito que corrompem ao convertê-lo em liberdade de matar.

Para enfrentar a pandemia é preciso enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies. Para enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies teremos que criar muito rapidamente uma vida realmente sustentável. Para criar uma vida realmente sustentável temos que nos tornar outro tipo de gente.

Diante da magnitude do desafio, podemos começar organizando a casa. Para organizar a casa é preciso recuperar a casa, essa que é refúgio. E então parar de destruir a casa comum que é o planeta. Não é coincidência que no momento em que enfrentamos as consequências da destruição de nossa casa comum também enfrentamos a experiência subjetiva de perder a possibilidade de fazer casa da casa. É o mesmo nó. Para sair dele, precisamos recuperar a porta, e com ela a possibilidade de voltar a importar —colocar para dentro, deixar entrar— apenas o que realmente importa. A porta da casa é a única saída.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum