Lava-Jato

Raul Jungmann: 'As Forças Armadas não aceitam uma aventura antidemocrática'

Ricardo Chapola, Revista IstoÉ

A carreira política de Raul Jungmann, de 69 anos, passou por extremos. Nascido em berço esquerdista, Jungmann lutou contra a ditadura militar quando ainda era universitário ao ingressar no MDB. Depois, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Sua trajetória começou a mudar quando integrou o governo de Fernando Henrique Cardoso. 

Durante esse período, Jungmann estreitou relações com as Forças Armadas, o que se intensificou durante seus mandatos como deputado federal, até transformá-lo em ministro da Defesa no governo Temer. Foi nessa época também que passou a defender a proibição da venda de armas no País. Por essa razão, virou ministro da Segurança Pública em 2016. 

Atualmente, Jungmann continua militando pela regulação de armas e pela democracia. Em entrevista à ISTOÉ, o ex-ministro criticou a política armamentista de Bolsonaro, sugeriu que o presidente tenta formar milícias para se sustentar no poder e afirmou que o ex-capitão é o principal responsável pela grave situação do País na pandemia “Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje”.

As trocas de ministros e de comandantes das Forças Armadas, além das mudanças na PF, feitas por Bolsonaro, configuram uma tentativa de o presidente interferir nessas áreas?

É privativo do presidente a substituição de cargos comissionados. Sob o aspecto legal é normal. O que parece anormal é o fato de termos tantas mudanças na PF. Isso sim caracterizaria uma intervenção na PF, que é descabida. A PF é a Polícia Judiciária da União. Evidentemente ela tem que ter autonomia, sobretudo face às funções que ela tem. Esse excesso de intervenção mostra interesse de dar uma direção política a um órgão de Estado e que não pode ser politizado. Essa sequência de mudanças e essa busca de politizar a PF desserve aos critérios constitucionais da impessoalidade e da imparcialidade que um órgão como esse tem que ter. Isso significa uma tentativa de intromissão no domínio legal. Não contribui para a democracia e tampouco para a independência dos poderes.

O Ministério da Justiça fez uso da LSN para abrir inquérito contra críticos a Bolsonaro. Qual a opinião do senhor sobre o assunto?

O Congresso tem falhado desde a redemocratização em dar ao País uma lei de defesa do Estado Democrático. Para mim, a principal responsabilidade é do Congresso. Na medida em que a legislação que você tem de defesa do Estado é uma lei do regime militar, ela termina sendo usada. Evidentemente que ela está sendo empregada abusivamente. E também acho que vem sendo usada com finalidade política. O Congresso já deveria ter aprovado uma lei do Estado Democrático.

Polícias estaduais também usaram a LSN para prender pessoas. Como o senhor classifica essa relação que Bolsonaro estabelece com as polícias nos Estados?

Eu fui companheiro de Bolsonaro na Câmara durante 12 anos. A clientela dele eram os militares e os policiais. Uma parte dessa polícia é base do presidente, que comunga dos mesmos valores e das percepções dele. O que acontece é que isso leva, às vezes, a excessos, como é o caso dos rapazes presos por policiais do DF em Brasília. De fato, é um exagero você necessitar prender manifestantes com base na LSN. E isso, inclusive, tem sido repelido e negado pelo Judiciário, que não tem dado guarida a isso. Existe, de um lado, a falha do Congresso. De outro, existe um uso excessivo e político da legislação. Mas, ao mesmo tempo, pelo fato de não termos outra lei, terminamos utilizando uma legislação que é obsoleta. A liberdade de expressão existe e tem que ser respeitada.

O STF mandou o Senado instalar a CPI da Covid-19. Qual deve ser o foco das investigações da CPI?

O Senado não tem mandato para investigar estados e municípios. É inconstitucional. O que cabe é investigar a transferência de recursos federais para estados e municípios. Em termos de responsabilidade, a maior é do governo federal, sem a menor sombra de dúvida. Porque Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje. Acho também que o principal foco da CPI deve ser o de investigar o papel do governo federal, da Presidência da República e do Ministério da Saúde, os principais responsáveis pelo caos.

O senhor acha que Bolsonaro agiu corretamente quando escalou o presidente do Senado para articular a montagem do comitê de emergência da Covid-19?

A relação administrativa entre as esferas da União não são delegáveis a outros poderes. Quem tem atribuições constitucionais para estabelecer essa coordenação, obviamente, é o governo federal. Na prática, essa comissão é uma comissão natimorta. Esse papel é do Executivo. Não é do Legislativo, por melhor que seja a boa vontade do presidente do Senado. Essa comissão rapidamente desapareceu. O presidente tinha que criar uma unidade nacional. Tinha que promover um movimento que congregasse os poderes, União, estados, municípios e oposição em torno da questão de salvar vidas. E Bolsonaro faltou com esse papel de forma equivocada. Preferiu litigar, se contrapor a governadores e prefeitos, politizando algo que é inadmissível. Estamos lidando com a vida das pessoas. Não estamos numa causa política. Falta visão de estadista a Bolsonaro.

Mesmo assim essa tentativa de união veio tarde demais, não?

Sim, veio tarde. Já perdemos um ano e dois meses e quase 400 mil vidas. Mas sempre é hora para minimizar danos. Em que pese as críticas que faço, espero que o presidente reveja sua posição. Porque têm vidas em jogo. É uma dor que o Brasil carrega. É insuportável. Outra coisa é o desemprego, a fome e a falta de vacinas. Quando a necessidade ultrapassar o medo, aí sim nós teremos problemas sociais. Por isso que a gente tem que cuidar da vacina. Essa é a grande saída. De outra parte, precisamos reativar a economia. Não adianta separar as duas coisas. Tem que salvar as duas coisas. Mas a locomotiva disso é a vida.

Como o senhor classifica as acusações contra o presidente sobre o suposto uso da Abin para orientar a defesa de Flavio Bolsonaro no caso Queiroz?

A Abin é o órgão central do sistema de inteligência nacional. É um órgão da presidência para manter o presidente informado e apoiá-lo na tomada de decisões. Esse sistema de inteligência tem que estar submetido a critérios rígidos de controle. Como órgão de Estado, a Abin jamais pode estar a serviço de qualquer interesse privado, seja familiar do presidente, ou de quem for. Caracterizaria como crime caso fosse usada dessa forma. A Abin é um órgão de Estado. Não compete a ela nenhum tipo de atividade que seja em benefício de interesses privados. Isso significaria desvio de função, o que é inaceitável.

Qual é sua opinião sobre o projeto armamentista de Bolsonaro? Não seria arriscado defender que a população seja armada durante a pandemia?

Isso me preocupa. Sempre me posicionei que as armas fossem controladas. Mais armas significa mais mortes. Esse debate sempre foi feito na esfera da segurança pública. O presidente trouxe essa questão para a esfera político-ideológica. Fez isso ao dizer que precisávamos armar os brasileiros para que eles defendam a liberdade e não sejam escravos. Ele quebrou o monopólio da violência legal, que pertence ao Estado. Ele está ferindo o Estado, que é a parte que representa a soberania da nação. Bolsonaro está também ferindo o papel constitucional das Forças Armadas. Se o Estado tem o monopólio da violência legal, a última trincheira, a defesa que tem o Estado, são as Forças Armadas. Se você quebra o monopólio, você está criando um poder paralelo que tende a se contrapor às Forças Armadas.

O senhor está se referindo às milícias?

Sim, às milícias, bandos e grupos insurgentes. Não interessa. Se você arma brasileiros sem que exista qualquer ameaça ao Brasil ou à democracia, você está armando brasileiros contra os próprios brasileiros. Isso tem um nome horripilante: guerra civil. Na história, todas as vezes que alguém armou a população teve genocídio, massacre, golpes de estado. Por isso, foi tão importante a reação da ministra Rosa Weber. Os decretos representam exatamente a massificação do derrame de armas e munição para a população. Entre 2019 e 2020, a PF verificou um crescimento de 90% no registro de armas. Além do mais, grande parte dessas armas acaba parando nas mãos do crime organizado. Isso me preocupa, sobretudo quando a gente pensa no que aconteceu no Capitólio, nos Estados Unidos. E nós temos eleições presidenciais em 2022.

Bolsonaro entrou em atrito com os militares ao trocar o ministro da Defesa e o comando das Forças Armadas. O senhor acha que Bolsonaro tentou dar um autogolpe?

Não foi uma tentativa de golpe, porque não existe golpe no Brasil sem o apoio das Forças Armadas. O que Bolsonaro tentou fazer foi motivar as Forças Armadas a endossarem seus atos e ações, inclusive para constranger os outros Poderes. Como o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas não concordaram com isso, o presidente os demitiu. Não existe nenhuma razão para ele ter feito isso. A explicação é que foi uma intervenção política e uma punição às Forças Armadas, que não endossaram uma aventura autoritária. As Forças Armadas estão totalmente indisponíveis e não aceitam qualquer tipo de aventura antidemocrática no Brasil. O efeito foi o contrário. Um sonoro, uníssono, sólido “não”.

O senhor acha que a democracia corre riscos?

Temos aqui o presidencialismo de coalizão. Mas Bolsonaro aderiu ao presidencialismo de colisão. É o presidente da antipolítica. Preferiu optar por constranger outros Poderes. Dizendo ter a espada e ter apoio dos militares. O que ele não tinha. E dizendo também que tem o apoio das massas. Com esse presidencialismo baseado no constrangimento de outros Poderes, Bolsonaro fracassou redondamente. O STF não se dobrou. O Congresso tem um projeto autônomo, apesar de o presidente ter passado a negociar com o Centrão. E isso está manifestamente demonstrado no caso desse orçamento inadministrável. Esse orçamento é a expressão acabada de que o governo perde a capacidade de governar. Chegar nessa situação é a demonstração clara de perda de capacidade de governar. Independentemente de seus interesses, de seus desejos, o presidente vem tendo das instituições brasileiras uma resposta muito clara: de que elas não aceitarão qualquer tipo de desvio do rumo democrático. Não há disposição, nem vontade de ninguém para embarcar em qualquer aventura autoritária.


Armando Castelar Pinheiro: À espera da inflexão

Há que resistir à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa

A realidade tem se mostrado mais complexa que as previsões. Novas cepas, múltiplas ondas de casos e mortes, efeitos colaterais das vacinas, tudo eleva a incerteza sobre quando se controlará a pandemia da covid-19 e, não menos importante, como será o novo normal depois disso. Fica claro, também, que os países ricos não conseguirão controlar a epidemia vacinando só suas populações, enquanto no resto do mundo a pandemia segue solta, facilitando o surgimento de novas e mais virulentas variantes do vírus.

Isto posto, tudo indica que 2021 verá uma inflexão nesse processo, fruto do gigantesco esforço de vacinação em curso. E de que, os dados mostram, as vacinas estão funcionando. Até aqui foram aplicadas quase 900 milhões de doses globalmente, quase uma dose para cada seis pessoas com 20 anos ou mais. Na última semana, mais de 100 milhões de doses foram administradas e a tendência é esse ritmo acelerar, conforme suba a produção de vacinas. Mesmo que isso não ocorra, mantido esse ritmo o ano fechará com 4,5 bilhões de doses aplicadas, o suficiente para vacinar boa parte dos mais vulneráveis.

A vacinação avançou mais em alguns países ricos, como os europeus e os EUA, com grandes emergentes como Brasil, Argentina, China, México e Índia vindo atrás, nessa ordem, em termos de vacinas aplicadas por habitante. Onde a vacinação andar mais rápido, a atividade econômica e o emprego também se recuperarão mais ligeiro e significativamente. Os EUA são o grande caso de sucesso na economia, para o que os redobrados estímulos fiscais também contribuem.

No Brasil, tudo parece meio parado, à espera que a vacinação avance o suficiente para a normalização, ainda que parcial, para usar o jargão da moda, da economia. Já se aplicaram cerca de 35 milhões de doses e o ritmo tem ficado, com alguma volatilidade, perto de um milhão de doses por dia. Isso permitirá vacinar, com duas doses, todos os brasileiros com 20 anos ou mais até o fim do ano. Se conseguirmos mais vacinas, poderemos atingir essa “normalização parcial” no terceiro trimestre, com o ano fechando com uma retomada mais firme da atividade.

O problema é que há muito mais com que se preocupar, o que não parece estar ocorrendo. O que me fez lembrar da frase de Samuel Johnson: “Confie nisso, senhor, quando um homem sabe que está em vias de ser enforcado, concentra sua mente maravilhosamente”. Quem sabe a forca ainda não está apertando tanto quanto parece, mas a impressão é de rompimento com o padrão das últimas décadas, quando a proximidade da crise concentrou as mentes e levou à aprovação de ajustes fiscais. Não vemos isso agora, como ficou claro na confusão, ainda em curso, com o orçamento público deste ano.

O drama humanitário - mais de 20 mil mortes por semana - explica em parte essa apatia com a deterioração do quadro fiscal. É na saúde pública que as mentes estão concentradas. Parte da explicação também está, porém, em muito da deterioração futura vir de maiores despesas com juros, e não do mais visível déficit primário.

Entre fevereiro de 2020 e o mesmo mês este ano, a Dívida Bruta do Governo Geral saltou de 75,2% para 90% do PIB. A despeito desse salto, a despesa com juros sobre essa dívida caiu de 5,5% do PIB nos 12 meses até fevereiro de 2020 para 4,7% do PIB um ano depois. Isso porque, na média dos 12 meses terminados em fevereiro último, a taxa de juros implícita incidente sobre essa dívida foi de apenas 5,7%, contra 7,5% um ano antes.

Essa taxa de 5,7% é a menor registrada na série histórica disponibilizada pelo Banco Central (BC). Essa excepcionalidade fica ainda maior quando se olha para essa taxa em termos reais, descontando a variação acumulada pelo IPCA: nos 12 meses até fevereiro de 2021, a taxa real ficou em 0,5%, contra uma média de dez vezes esse valor em 2007-20 (5%).

Nos próximos meses a taxa de juros real incidente sobre a dívida pública vai continuar caindo, indo para valores negativos. Porém, olhando um pouco mais à frente, parece inevitável que ela suba, possivelmente de forma significativa. Isso por dois fatores.

Um, a alta dos juros pagos pelo Tesouro americano, que deve continuar conforme a economia do país se recupere, dado que o governo americano necessita emitir altos volumes de dívida para financiar seu elevado déficit. O processo será gradual, oscilando com as ondas da pandemia, mas deve ganhar força com a recuperação da atividade e a queda do emprego.

Outro, a necessidade de controlar a escalada inflacionária doméstica, que fará o BC continuar a elevar a taxa Selic, indexador de 45% da dívida pública, provavelmente para além do que projeta o analista mediano do Focus (6% ao final de 2022). A inflação segue surpreendendo para cima e o risco de o BC perder o controle das expectativas inflacionárias tem aumentado.

Torço que se resista à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa. É hora de começar a se preparar para esse novo desafio fiscal.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro pode perder corrida pelo dinheiro para governadores

Presidente se mostrou no encontro como um aliado arrependido do trumpismo

Dezessete chefes de Estado e a presidente da Comissão da União Europeia falaram antes do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula dos Líderes pelo Clima. O presidente do país “detentor da maior biodiversidade do planeta”, como Bolsonaro definiu o Brasil, começou a falar quase duas horas depois de a conferência virtual ter começado. E não pôde, a exemplo de Angela Merkel (Alemanha), Emmanuel Macron (França), Ursula Leyen (UE) e Cyril Ramaphosa (Africa do Sul), saudar, com uma estocada da boa diplomacia, a volta dos Estados Unidos, anfitrião do encontro, ao esforço contra o aquecimento global.

Os americanos voltaram ao Acordo de Paris um mês depois da posse do presidente Joe Biden e três anos e sete meses depois de o ex-presidente Donald Trump tê-lo denunciado. Os líderes europeus e da África do Sul não deixaram passar a oportunidade de lembrar Biden do passado muito recente do país que agora se arvora à liderança global do ambientalismo na tentativa de reconquistar um viés de “superioridade moral” perdido na era Trump. Bolsonaro, porém, não pôde fazer o mesmo porque, de todos os 40 chefes de Estado convidados para a conferência, foi o mais estreito aliado de Trump.

E foi assim que o presidente brasileiro se mostrou no encontro. Como um aliado arrependido do trumpismo, incapaz até mesmo de adotar a linha de outros infratores das metas ambientais, como o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. No comando de um país que, a exemplo do Brasil, não cumpriu o que havia acordado no Acordo de Paris, em 2015, Trudeau colocou o combate ao aquecimento global como prioridade que secunda o enfrentamento da covid-19. Como a pandemia nunca foi sua prioridade, Bolsonaro preferiu centrar seus esforços numa única mentira, a do empenho nacional pela redução dos gases do efeito-estufa.

Os argumentos foram os mesmos apresentados na carta enviada, na semana passada, ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. A carta parece ter sido tão pouco convincente que o presidente americano esperou a vez de David Kabua, presidente das Ilhas Marshall, país minúsculo do Pacífico que tende a desaparecer pelo avanço dos oceanos, mas não Bolsonaro. Biden deixou a sala da conferência virtual antes de o brasileiro começar a falar. A mensagem brasileira foi mais ponderada do que as da era Ernesto Araújo, mas distorce a responsabilidade do país pela emissão de gases estufa, traça meta de redução baseada numa pedalada (para trás) sobre as conquistas anteriores e comemora a matriz limpa do parque energético como feito de seu governo.

A conferência deixou claras as dificuldades de Bolsonaro em limpar a imagem do Brasil depois da devastação e do desmonte das instituições de fiscalização promovidas por seu governo. Por razões inversas, Biden também pisou em ovos em seu discurso, que abriu a conferência. Ciente de que uma parte importante do eleitor americano rejeita o discurso ambiental, falou mais em emprego do que em clima. Ancorou a necessidade de mudar a matriz energética do país com o desenvolvimento de novas tecnologias como meio para a geração de emprego. O temor do eleitorado se estende ao mercado. À tarde, de volta à tela, mal acabara de falar da necessidade do esforço conjunto para o financiamento das ambiciosas metas ali traçadas, as bolsas despencaram, alarmadas com aumento de impostos.

O presidente chinês, Xi Jiping, citado por Merkel, Macron e pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em função dos esforços na pauta ambiental que precedem os dos EUA, também tratou de seus interesses sem subterfúgios. Ao enfatizar o multilateralismo, deixou claro que as conquistas não decorrerão do novo protagonismo americano mas do conjunto das nações. Xi insiste em se apresentar como liderança dos países em desenvolvimento propugnando o reconhecimento dos esforços que estes têm feito no sentido de buscar o desenvolvimento sustentável.

Todos os chefes de Estado exibiram esforços maiores do que aqueles que têm sido efetivamente feitos. E todos se comprometeram com metas ambiciosas para 2030 a serem acordadas na conferência das Nações Unidas sobre o clima, em Glasgow, em novembro. Nenhum deles, porém, enfrenta descrédito tão grande sobre a distância a ser percorrida entre os esforços e as metas quanto Bolsonaro.

O primeiro teste se dará no acesso ao fundo de US$ 1 bilhão, mobilizado a partir da coalizão de EUA, Noruega e Reino Unido e de empresas como Amazon, Airbnb, Bayer, Nestlé, Unilever, Boston Consulting Group, McKinsey, Salesforce e GKS (ver reportagem na página A5). É um dinheiro a ser destinado para o mundo inteiro e não apenas para o Brasil como desejava o Palácio do Planalto. E até mesmo os governos subnacionais estarão elegíveis. Como o pagamento se dará por meio de resultados, e não antecipadamente para armar a Guarda Nacional, como desejava o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, as chances de o governo federal são mais reduzidas do que, por exemplo, as do Consórcio Amazônia, que reúne os nove Estados da região.

Por meio um plano chamado “Recuperação Verde da Amazônia Legal”, os governadores apresentaram projetos como apoio na certificação de produtos sustentáveis para acesso aos mercados nacional e internacional, incentivo à pecuária intensiva, redução de carbono nas atividades de mineração e fomento ao turismo ecológico. Os desembolsos se dão mediante averiguação, por consultores independentes, do desempenho acordado. Depois de carregar sozinho o fardo da herança trumpista na cúpula, Bolsonaro ainda corre o risco de ser ultrapassado, em casa, pelos governadores, no acesso ao dinheiro.


Murillo de Aragão: Dificuldade em enxergar o óbvio

Estamos perdendo a capacidade de valorizar o que existe de bom

O Brasil é uma das últimas fronteiras do mundo para investimentos. Há necessidades gigantescas na área de infraestrutura e existe um mercado de mais de 200 milhões de pessoas educadas para o consumo.

As oportunidades existentes são únicas. Talvez nós, brasileiros, não tenhamos uma clara noção do nosso potencial devido à nossa irresistível vocação para falar mal do país. Na linha do que é ruim a gente mostra; o que é bom a gente esconde.

O setor imobiliário, por exemplo, pode avançar de forma extraordinária com a expansão do crédito. Somos uma das sociedades mais interconectadas do planeta, sistema que resistiu mesmo com o aumento de 50% do tráfego na internet durante a pandemia.

No campo ambiental, além de possuirmos uma das melhores matrizes energéticas do mundo, somos um dos maiores produtores de alimentos do planeta, mesmo com uma cobertura florestal que representa mais de 50% do território nacional. O agronegócio no Brasil, em sua imensa maioria, segue uma rígida legislação ambiental.

Com todo o fuzuê em torno das queimadas em nossas florestas, somos responsáveis por pouco mais de 3% das emissões globais de carbono. Os Estados Unidos, país campeão das narrativas em torno da defesa do meio ambiente, contribuem com mais de 14%. O pequeno Japão colabora com mais de 8% das emissões globais. E nenhum dos dois países é perseguido pela opinião pública mundial por questões ambientais.

 “No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece”

No campo político, apesar da lentidão exasperante, fomos além do que a maioria dos países de nossa dimensão consegue em termos de reformas. E continuamos a avançar, com a nova lei de saneamento, a lei de recuperação judicial, o marco do gás e a autonomia do Banco Central.

Em 2019, tínhamos pouco mais de 700.000 investidores na bolsa de valores. Hoje são mais de 3 milhões de brasileiros. E esse número deve triplicar nos próximos anos. Temos mais de 300 fintechs em operação e um consistente processo de desbancarização em curso.

No campo institucional, os atritos entre os poderes da República representam mais a impossibilidade de uma hegemonia antidemocrática do que a possibilidade de uma ruptura institucional. O Brasil vive um sistema político compartilhado que ajuda a impedir a violência política arbitrando os conflitos.

No entanto, existe uma infeliz preponderância do conflito político estéril sobre a solução para nossos principais desafios. O desejo de destacar o atrito prevalece sobre a vontade de resolver nossos problemas. As good news de nosso país são soterradas pelas más notícias, fazendo com que percamos uma visão mais precisa da realidade.

No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece. Isso, porém, não parece interessar a boa parte de nossa opinião pública nem às nossas autoridades, que se concentram mais no conflito do que nos desafios. Disse Clarice Lispector, “o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735


Ricardo Noblat: Como de hábito, Bolsonaro mente da manhã à noite

Quem o pariu que o embale

O presidente Jair Bolsonaro acordou e foi dormir ontem mentindo, que é o que ele sempre sabe fazer de melhor.

De manhã, mentiu ao mundo na abertura da Cúpula do Clima ao dizer que “o Brasil está na vanguarda no enfrentamento ao aquecimento global”. Não está, já esteve.

Mentiu à noite nas redes sociais ao recomendar a cloroquina como remédio eficaz contra a pandemia do coronavírus.

A MM (mentira matinal) parece ter sido bem aceita por diplomatas que servem ao presidente Joe Biden, o organizador e anfitrião da cúpula. Eles gostaram do tom do discurso de Bolsonaro.

A MN (mentira noturna) pode ter agradado os devotos que a escutam como prova de coerência, mas somente a eles.

“Eu tomei um negócio ano passado, não vou citar o nome para não cair a live, mas se eu tiver um problema, vou tomar de novo”, prometeu Bolsonaro.

O desmatamento só cresce. Ao contrário do que disse, ele não está dobrando o orçamento das atividades de fiscalização ambiental.

À falta de vacinas porque o governo não as providenciou a tempo, o vírus segue matando. A culpa, segundo Bolsonaro, é de governadores e prefeitos que adotam medidas de isolamento.

Como o discurso da manhã foi lido, Bolsonaro não se enrolou. Como nas redes sociais ele improvisa, foi uma confusão só.

“Impressionante como só se fala em vacina”, reclamou Bolsonaro, que em seguida comparou a doença do vírus com os cânceres de mama e de próstata que ele considera tão mortais quanto.

Bolsonaro tomou emprestado aos governos que antecederam ao seu as ações em prol da preservação da natureza no Brasil.

Escondeu que o país é o campeão em perdas de florestas no mundo. Só de 2019 para 2020, foram eliminados 1,7 milhão de hectares de floresta primária no Brasil.

Isso é mais do que três vezes o que perdeu o segundo colocado, a República Democrática do Congo.

Comprometeu-se a eliminar “o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal” em vigor há 9 anos. Malandragem pura e direto na veia.

Na prática, pediu 19 anos de carência para cumprir a lei. E joga tudo nas costas dos próximos quatro governos.

Chega ou quer mais?


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro vende um Brasil imaginário na Cúpula do Clima

Jair Bolsonaro tentou vender um Brasil imaginário na Cúpula de Líderes sobre o Clima. Nas palavras do presidente, o país está “na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global”. Nem parecia o chefe do governo que mutilou a fiscalização ambiental e permitiu o avanço do desmatamento da Amazônia.

Na defensiva, Bolsonaro sustentou que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta e promoveu uma “revolução verde” no campo. Se tudo vai bem, o mundo estaria perdendo tempo ao se preocupar conosco.

O capitão abusou da boa-fé dos estrangeiros. Sem corar, ele disse ter determinado o “fortalecimento dos órgãos ambientais”. Na vida real, seu governo pilota uma operação de desmonte, executada pelo ministro Ricardo Salles.

No início da semana, mais de 400 servidores do Ibama denunciaram que as atividades de fiscalização estão paralisadas. Eles explicaram que uma nova instrução normativa inviabilizou a aplicação de multas aos infratores.

É verdade que houve uma mudança de estilo na fala de Bolsonaro. No passado recente, ele ameaçou abandonar o Acordo de Paris, espalhou mentiras contra o movimento ambientalista e declarou que poderia trocar a saliva pela pólvora se Joe Biden chegasse à Casa Branca.

Ontem o capitão se disse “aberto à cooperação internacional” e adotou um tom dócil ao se dirigir ao novo presidente americano. Para seu azar, o democrata já havia deixado a reunião quando ele começou a rastejar diante da câmera.

A distância entre o discurso e a prática não foi o único problema que impediu o presidente de ser levado a sério. Numa reunião em que diversos líderes prometeram sacrifícios para reduzir as emissões de gases poluentes, Bolsonaro estendeu o pires e pediu dinheiro.

“Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata”, afirmou.

Só faltou apresentar a conta de US$ 1 bilhão em troca da preservação da Amazônia, como fez na véspera o ministro Salles.


Vera Magalhães: Jair sem Trumpinho

'Alvorada sem alambrado/ Pão sem leite condensado/ Sou eu assim sem você. Ema sem cloroquina/Dudu sem carabina/ Sou eu assim sem você.'

Na hora e meia em que esperou sua vez de falar sem convicção na Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada por Joe Biden, Jair Bolsonaro bem poderia cantarolar essa versão negacionista do sucesso de Claudinho & Buchecha.

Não que o clássico do funk carioca mereça ter seus versos solares e meigos substituídos pelo lamento do presidente brasileiro sobre o isolamento a que foi relegado no tabuleiro mundial depois que seu amigo Trumpinho foi derrotado nas urnas. Mas sua visível falta de ambiente na reunião em que teve de ler, a contragosto, um papel com o contrário daquilo que pensa e pratica em termos de política ambiental me lembrou os versos “Eu não existo longe de você/ E a solidão é meu pior castigo”.

Antes, quando era Trump, e não Biden, o anfitrião, Jair, família e agregados eram recebidos com alegria galhofeira. A caravana dos puxa-sacos exóticos dos Trópicos vestia boné, ganhava tapinha nas costas e se achava a tal. Podia mandar às favas os indicadores vergonhosos de desmatamento e queimadas. Afinal, primo Donald não estava nem aí para esse mimimi.

Agora, as coisas mudaram. Biden, vejam que amolação, resolve fazer uma Cúpula do Clima e, ainda por cima, exigir metas concretas. Jair não pode nem ler o mesmo discurso de sempre, como gostaria, porque os chatos do Itamaraty, depois da saída do Ernesto, vêm estragar o almoço do costelão e dizer que talvez seja melhor propor alguma coisa com cara de concreta.

Então toca colocar terno e gravata verde (ainda se tivesse o escudo do Palmeiras, talkey?) e fazer cara de sério ao lado do Salles, esquecer a Anitta e desenterrar aquele discurso “comunista” dos governos do PT e do PSDB.

Bolsonaro deve ter ensaiado diante do espelho para repetir palavras como biocombustíveis, biomassa, bioma e biodiversidade sem intercalar com um palavrão ou falar que aquilo é tudo coisa de maricas.

Do lado de lá da tela do computador, Biden (que até saiu da sala, dado o climão da Cúpula do Clima) e os demais líderes mundiais devem ter achado certa graça em ver o antes destemido presidente brasileiro prometer com a voz baixinha dobrar recursos para a fiscalização de crimes ambientais, uma semana depois de mandar exonerar o superintendente da Polícia Federal que ousou combatê-los por meio de uma operação.

Até Trump, onde quer que esteja curtindo seu merecido oblívio, deve ter soltado uma gargalhada e exclamado: “Quem é esse cara?”. Nem parecia aquele que até ontem estava disposto a lhe fazer companhia na bravata de abandonar o Acordo de Paris. Que deixou de sediar a COP-25, que se recusou a conversar com a diretora do Greenpeace, Jennifer Morgan, quando a encontrou em Davos em 2019. Seria o mesmo cara? Aquele do filho de boné que não sabe falar inglês, mas queria ser embaixador?

Eventos como os desta quinta-feira evidenciam a absoluta inadequação de alguém como Jair Messias Bolsonaro para presidir o Brasil, e de auxiliares como Ricardo Salles para gerir qualquer coisa que não seja destinada à destruição.

Ao conseguir, em três minutos de fala, prometer o oposto do que praticou ao longo de dois anos e quatro meses de desgoverno, Bolsonaro assinou diante de um mundo livre do trumpismo o atestado do desastre que é sua gestão.

Resta verificar o dia seguinte da Cúpula em que o Brasil e seu presidente ficaram nus diante do mundo com sua incompetência. Parece difícil que, diante de todas as evidências de que Bolsonaro apenas fez malabarismo retórico para pedir um trocado no final, Biden esteja disposto a financiá-lo. Assim como Trump só enrolava o “amigo”, os Estados Unidos sob nova direção devem continuar a dar chá de cadeira no Brasil.


Alon Feuerwerker: O cachorro do Pavlov

Os reflexos condicionados contra uma frente ampla de oposição

Na culinária e na política, nem sempre quem faz o bolo come o bolo. Em 1992, o PT ofereceu a base popular para depor o presidente Fernando Collor de Mello. Certa hora, achou-se que Luiz Inácio Lula da Silva emergiria do processo imbatível em 1994. Mas Fernando Henrique Cardoso reagrupou as tropas dispersas do collorismo, pegou o trem do Plano Real e matou o sonho do PT de surfar a onda do impeachment rumo ao poder.

Deu-se o mesmo na queda de Dilma Rousseff. PSDB e PMDB (hoje MDB) decretaram o fim do quarto governo petista, reuniram-se em torno de Michel Temer e projetaram poder ir adiante no tempo. Mas a entropia trazida pela Lava-­Jato foi além da conta e acabaram ambos tragados pelo tornado bolsonarista. O antipetismo trouxe junto a antipolítica e o antitudo, e tucanos e emedebistas viram o bolo escapar na undécima hora.

Esse fenômeno não se dá só em situações contaminadas por derrubadas de governos. Acontece também em transições normais, decorrentes de eleições convencionais. Quantas vezes se viu a polarização eleitoral, antes resiliente, ser atropelada por um azarão de última hora? Aí o oposicionista que fez de tudo e consumiu as melhores energias para minar o incumbente fica na poeira. Pois se tem algo difícil de combinar antecipadamente com o eleitor é o resultado de uma eleição.

“Na pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente”

Assiste-se agora à ofensiva da esquerda e da ex-direita, rebranded como centro, contra Jair Bolsonaro. No momento, o objetivo de ambas é enfraquecê-lo para derrotá-lo na urna. Até porque Hamilton Mourão não tem sido, por enquanto, um replay de Itamar Franco ou Michel Temer. Não dá esperanças aos políticos hoje excluídos do poder. Nem esses andam dispostos a cozinhar o bolo e, de novo, ficar a ver navios. E Bolsonaro vai navegando…

Mas os mares andam cada vez mais turbulentos. Inclusive por certos incômodos que a condução governamental desencadeou e fez crescer na pandemia. Um deles, importante: pela primeira vez a elite sente algo parecido com as gentes do povão quando ficam doentes e não têm certeza de que vão encontrar um leito vazio de hospital ou UTI.

Atenção, eu disse “algo parecido”. Mesmo hoje, continuam situações no limite incomparáveis.

Na tempestade da pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente, mas sempre com um olho no peixe, Bolsonaro, e outro no gato, o aliado de momento e já garantido adversário de amanhã. E, ao contrário de situações históricas anteriores, desta vez nem tentam disfarçar. Não é mais um jogo de dois, bolsonarismo e antibolsonarismo, ou petismo e antipetismo, mas de três.

Jogo de três é sempre mais complicado de operar. Se até o cachorro do Pavlov aprendeu, desenvolveu reflexos condicionados, não é difícil supor que os políticos também tenham aprendido. De viver, estudar ou ouvir falar, tanto faz. Entrar de gaiato numa “frente ampla” para confeitar o bolo e correr o risco de ficar sem nenhum pedacinho dele na hora de comer talvez não atraia mais tantos incautos como no passado.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735


Itamar Garcez: O maniqueísmo ideológico dos inimigos da Lava-Jato

É humana a tendência de encarar nossas paixões com fervoroso maniqueísmo. Ou é bom, pleno de virtudes; ou é mal, infesto de defeitos. Este dualismo (ir)refletido, ao lado de inconfidências vazadas e interesses políticos difusos, esvanece o combate à corrupção

O desmanche da Operação Lava-Jato caminha a passos lentos e seguros. Sua desmoralização representará um novo golpe no combate à corrupção no Brasil, como a Operação Castelo de Areia, anulada pelo STJ, em 2011.

A Lava-Jato, no entanto, foi mais longe. As condenações poderão ser anuladas, quiçá os valores roubados e devolvidos pelos malfeitores restituídos. Mas restará histórico que um grupo de homens brancos, ricos e poderosos se organizou para surrupiar bilhões de reais de dinheiro do erário.

Por um punhado de anos foi possível acreditar que não somente pobres e negros mofariam nas masmorras de Cardozo. “Se tanta gente rica e poderosa foi encarcerada, por que não eu?”

Esta expectativa de novos tempos foi embarreirada pelos inimigos, méritos e erros da Lava-Jato. Entre os méritos, o giro excessivo de sua metralhadora, acertando gente demais nem sempre com um tiro fatal. Os erros foram a soberba e o desejo justiceiro. Juízes e promotores deveriam moldar-se pelo equilíbrio, pela sobriedade e pela fidelidade a leis justas. Justiceiros movem-se pela cegueira de convicções pessoais.

Larápios, uni-vos

Os colóquios vazados não representam novidade no mundo jurídico. Se alguém acredita que juízes, promotores e delegados não compartilham suas ações é candidato a viver na Venezuela democrática ou na Amazônia preservada. Causídico de sucesso não é apenas o que sabe os números das leis, mas o telefone de autoridades da Justiça brasiliana. Interações incestuosas indicam a distância entre o Judiciário e a justiça.

A indiscrição hackeada acionou o esprit de corps dos larápios apanhados pela Lava-Jato. A deixa à sobrevivência em liberdade conduziu bolsonaristas e petistas ao mesmo trem rumo à impunidade. PT e seus parceiros, como PP e MDB, acionaram a nata cara da advocacia patrícia. Condenados em busca da ficha-limpa; causídicos atrás dos fartos caraminguás jorrados, de acordo com a Lava-Jato, dos oleodutos irrigados pela corrupção nunca antes desvendada no Brasil, que virou commodity.

Aos acusados juntaram-se togados que, travestidos de promotores, assanharam-se em defesa dos que outrora sentenciaram. Xerifes de ocasião. Com despudor, como uma biruta ao léu, desdisseram-se e o dito passou a não dito. Diante das escancaradas provas dos roubos – R$ 4,3 bilhões devolvidos de R$ 15 bilhões ajustados -, a tática é desmerecer o acusador e desprezar os fatos. Reviravolta e contradições tamanhas, difíceis de explicar a um juiz ou investidor vindos de uma democracia civilizada.

Todo mundo faz…

Se condenados e seus defensores têm motivos palpáveis para se opor aos paladinos da Lava-Jato, o que dizer da militância sequaz que aplaude o desmoronamento da inédita operação policial? Não há aqui resposta única.

Parte dela acredita que nada foi roubado por seus líderes. Parte acha que o assalto ao erário foi praticado por outros companheiros, não pelos seus. Parte crê que o assalto foi por uma causa maior, quando o pecado de hoje justifica o paraíso vindouro. Parte considera que todos se aproveitam dos cofres públicos escancarados, não seria justo que apenas um punhado fosse punido.

Não há, nem de um lado nem do outro, paladinos impolutos. Um lado errou pelo excesso e pela empáfia, largamente respaldados por instâncias legais superiores; o outro, pela rapinagem despudorada e incontida, a qual certamente teria se avolumado inda mais não fosse a contenção lavajatista.

O diretor da Petrobras Marcelo Zenkner disse ao jornalista Eduardo Kattah que o alvo do antilavajatismo é criar um “processo de desmoralização” para fazer crer que toda a operação policial foi “fruto de mera ficção”. Hoje, este processo tem no STF seu bastião irrecorrível. Aos poucos, a Lava-Jato vai derretendo, como visto nos discursos enraivecidos do xerife Gilmar Mendes.

Malfeitos? Não vi

Se é desconhecida a razão da fúria do sufeta supremo, o método adotado para a desconstrução da rara operação policial, que mirou gente muito graúda, é o do maniqueísmo ideológico. Não se trata de algo necessariamente planejado, mas de um mecanismo que cega o raciocínio.

Humanos têm a tendência de enxergar um único lado de suas paixões. A depender de nossos sentimentos ou interesses, superdimensionamos características alheias. Nada mais comum do que o ex-amante que passa a encarar o ex-ser-amado, antes pleno de virtudes, um humano vil e desprezível, onde sobejam defeitos. Sentimento teorizado por Roland Barthes (“O sujeito vê a boa imagem repentinamente se alterar e se inverter”) e poetizado por Chico Buarque (“Amanhã há de ser / Outro dia / Você vai ser dar mal“).

A maior parte da sociedade não reconhece as contradições do Parlamento. “Nada pode haver de positivo num colegiado que rouba e se locupleta”. Generaliza-se que todos os políticos roubam, logo nada de bom pode surgir dali.

O maniqueísmo empalidece a lucidez – ironicamente, um dos pecados fatais dos próceres da Lava-Jato, a sanha de despolitizar a política a partir da politização da Justiça. O Parlamento legou leis avançadas em diversos setores, como o meio ambiente, a proteção a minorias, o direito dos consumidores. “Mas como quem rouba e saqueia os cofres públicos pode produzir algo positivo?” Porque a Terra não é linear, é redonda, e não para de girar em torno de si mesma. Sim, a vida é contraditória.

O maniqueísmo ideológico gera discursos irracionais. “O Congresso Nacional só aprova boas leis porque é pressionado pela opinião pública”. Se assim o faz cumpre bem seu papel, pois, dos três poderes, o único que deve ser plenamente permeável à opinião popular é o Legislativo.

Impunidade estimulada

A Lava-Jato se enquadra neste dualismo excludente, entre o bem pleno e o mal absoluto. À medida que as artimanhas de seus integrantes vazavam, os crimes revelados pela operação eram paulatinamente esvaziados. O roubo que estava ali, escafedia-se. Como provas e evidências dos malfeitos são abundantes, prudente ignorá-las. Detratores da Lava-Jato – os quais, indiretamente, estimulam a impunidade – concentram-se nas intenções malévolas dos investigadores.

Parte desta interpretação polarizada jaz inconsciente. Se não é certo, é errado, fim de papo. Ao mesmo tempo, o maniqueísmo serve como tentativa de evitar que, em 2022, o hodierno mandatário siga à frente da nação. Parece patente, para uma parcela esclarecida e expressiva dos eleitores, que o presidente Jair Bolsonaro representa um retrocesso à democracia a ao desenvolvimento brasilianos. Não é possível contabilizar o valor que o maniqueísmo ideológico, e oportunista, legará aos velhos e novos larápios dos dinheiros públicos.


Malu Gaspar: Anular processos não apaga a história

É dos anos 90 uma das mais bem-sucedidas operações-abafa de um escândalo de corrupção na história brasileira. Numa quinta-feira de 1993, agentes da Polícia Federal descobriram no banheiro da casa de um diretor da Odebrecht em Brasília pilhas de documentos incriminadores. Havia de tudo nas 18 caixas e centenas de disquetes levadas pelos policiais: relatórios sobre negociações subterrâneas, contabilidade de doações não declaradas para campanhas eleitorais, listas de obras com os nomes de políticos, acompanhados de porcentagens e valores, até pedidos de liberação de verbas com assinaturas de prefeitos e governadores, já prontos para ser apresentados pelas próprias empresas à Caixa Econômica Federal.

Vivia-se o auge da CPI do Orçamento. A papelada deu origem a um relatório bombástico, lido em plenário pelo senador José Paulo Bisol, do PSB do Rio Grande do Sul. Bisol, porém, cometeu um erro primário ao propagar que um documento com o organograma formal da empreiteira era, na verdade, um mapa de organização criminosa. 

Em sua reação, Emílio Odebrecht explorou o deslize ao máximo. Numa entrevista coletiva tão performática quanto a leitura de Bisol, acusou o senador de perseguição, ignorância e má-fé. O argumento colou na imprensa da época e mobilizou mais de 300 deputados e senadores para enterrar a CPI. Conseguiram. A única consequência prática do escândalo foi a popularização da expressão “trezentos picaretas”, cunhada pelo então oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva para designar os parlamentares.

Dezesseis anos e um mensalão depois, em 2009, os alvos da Polícia Federal foram executivos e dirigentes de outra empreiteira, a Camargo Corrêa. A operação, batizada Castelo de Areia, pilhou um esquema de pagamento de propinas e desvios de recursos de obras como a Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. Segundo a investigação, o dinheiro desviado era remetido ao exterior por doleiros, usando empresas de fachada e contas offshore em paraísos fiscais. Mas a investigação acabou anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A corte considerou que as provas coletadas não eram válidas porque a apuração começara a partir de uma denúncia anônima.

Em 2014, o esquema voltou à tona. Descobriu-se, de novo, que as empreiteiras patrocinavam campanhas eleitorais e interesses particulares de políticos de todos os calibres e partidos com o dinheiro desviado de estatais como Petrobras, Eletrobras e Transpetro. Batizado petrolão, o escândalo deu impulso à Operação Lava-Jato.

Dessa vez, as investigações foram mais longe. Renderam 295 prisões, 140 delações premiadas, a devolução de R$ 4,3 bilhões aos cofres públicos e impulsionaram um processo de impeachment. Mas, como nos outros casos, o dia da desforra chegou. A revelação dos desvios indicados nas mensagens de celular trocadas por procuradores — e captadas ilegalmente por um hacker — criou um clima favorável à anulação de condenações e denúncias.

Sob o argumento de que o foro em que tramitavam não era o correto, foram anuladas as condenações dos ex-presidentes Lula e Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco. O mesmo argumento levou à suspensão de ações contra o atual presidente da Câmara, Arthur Lira. Questões processuais já tinham enviado para a gaveta o processo contra o senador José Serra.

Todas essas decisões, comemoradas efusivamente por uns, discretamente por outros, têm enorme serventia político-eleitoral, ajudam a construir narrativas. Mas, embora a morte dos processos por inanição seja bastante provável, ainda é cedo para dizer que a Justiça tenha decretado a inocência de quem quer que seja. Fernando Collor de Mello, afastado da Presidência da República em 1992, só foi declarado inocente pelo Supremo — por falta de provas —em 2014.

Por ora, tais desfechos só provam mesmo duas coisas. 

A primeira é que, no Brasil, quando o assunto é corrupção, a história se repete. Escândalos abalam a política, as investigações apontam culpados e, mais cedo ou mais tarde, os processos são sepultados por decisões judiciais que raramente entram no mérito das acusações. 

A segunda, e mais importante, é que a história não se anula, muito menos a canetadas. Por mais que se queira esquecê-la ou distorcê-la, de tempos em tempos ela volta a nos assombrar. Quando isso acontece, acumulam-se os prejuízos, aumenta a insegurança jurídica e se reforçam narrativas políticas cada vez mais simplistas e muitas vezes irresponsáveis.

A história cobra um preço alto quando se ignoram suas lições. Quem paga somos todos nós. E não só com dinheiro, mas com um pedaço do nosso futuro.


Merval Pereira: Cabeça de juiz

A novela do julgamento de Lula pode chegar a um fim hoje, se o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que a Segunda Turma, que decidiu pela suspeição do então juiz Sergio Moro, poderia fazê-lo mesmo antes de ser definida a questão da competência da Vara de Curitiba nos julgamentos da Lava-Jato.

Mas, como em cabeça de juiz ninguém sabe o que se passa, a dizer que julgam com independência — a evolução da tecnologia médica não permite mais dizer que não se sabe o que tem em barriga de grávida nem em fralda de bebê —, existem algumas situações peculiares neste julgamento de hoje.

O decano do STF, ministro Marco Aurélio, não concordou com a afetação do processo ao plenário, mas, vencido pela “douta maioria” — nesse caso não tão douta assim, na sua opinião —, já votou a favor da manutenção dos processos em Curitiba, e pode votar outra vez, já que disse que a suspeição de Moro é bem mais importante. O ministro é sempre elogioso ao trabalho de Moro na Operação Lava-Jato e, com seu voto, pode ajudar a impedir que seja confirmada a suspeição dele.

O ministro Alexandre de Moraes disse na sessão anterior que não é possível afirmar que o julgamento pelo plenário significa desrespeito ao princípio do juiz natural: “A estrutura da Corte privilegia o plenário, e as turmas só foram criadas devido ao excesso de trabalho do tribunal”. Com essa posição, é provável que defenda que o plenário tem preferência às turmas. Mas não significa que concorde ou não com a suspeição de Moro.

A ministra Rosa Weber convocou para assessorá-la durante o julgamento do mensalão o juiz Sérgio Moro, que era famoso apenas no círculo jurídico como especialista em combate à corrupção, não a celebridade de hoje. Ela tem melhores condições que qualquer outro para julgar se Moro é um juiz suspeito.

O ministro Nunes Marques é contabilizado como um dos quatro votos certos a favor de que a Segunda Turma tinha condições de julgar a suspeição naquela sessão, pois votou na ocasião, embora contra, para surpresa do ministro Gilmar Mendes. Mas pode alegar que, hoje, com a decisão tomada pelo plenário sobre a incompetência da Vara de Curitiba, considera que aquela questão se sobrepõe à suspeição.

Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia, o plenário não é órgão revisor das turmas. Mas, nesse caso, seria uma análise técnica, não uma revisão. *

Nesse caso, o resultado é imprevisível. Já temos três votos pela suspeição dados na Segunda Turma —Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — e um a favor de Moro, por Nunes Marques. Alguns ministros já se pronunciaram favoravelmente em várias oportunidades sobre a Operação Lava-Jato, como o presidente Luiz Fux e os ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello. Assim como fizeram, contra, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Na visão de Fux, a discussão envolvida no caso é relevante, pois pode afetar outros processos da Lava- Jato e “atingir um grande trabalho feito pelo Supremo Tribunal Federal no combate à corrupção”. A sombra que paira sobre o julgamento, os diálogos entre os procuradores de Curitiba e o juiz Sergio Moro divulgados depois de ter sido roubados por um hacker, sofreu um golpe com o laudo da Polícia Federal afirmando que não há possibilidade técnica de atestar sua veracidade ou origem. O laudo não apagou da mente dos ministros a impressão causada, mesmo que digam que não o usaram nas decisões, mas colocou concretamente a possibilidade de que tenham sido alterados.

A suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá criará uma situação esdrúxula: o ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro, que confessou ter dado o apartamento a Lula em troca de benefícios recebidos durante seu governo, será também absolvido, assim como o ex-executivo Agenor Franklin Medeiros, ambos condenados no mesmo processo. O mesmo acontecerá nos demais processos contra Lula, caso o benefício seja estendido a eles pelo ministro Gilmar Mendes, novo relator da Lava-Jato na Segunda Turma do STF.


Marco Aurélio Nogueira: Descoordenação geral

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente.

Enquanto o presidente da República exibe seu peculiar estilo de criar caso e agredir, afundando seu governo no desgoverno, a crise segue corroendo as esperanças brasileiras, sem sinal de superação.

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente. A crise sanitária e a crise econômica são grandes, terríveis, têm pinta de que se estenderão. A crise da educação mistura-se com  elas, e vai ceifando a inteligência nacional a partir de baixo, dos mais jovens, o que sugere a criação de um legado arrasador, que se espalhará pelo tempo. Pode-se dizer o mesmo da crise do saneamento, cujos déficits são escandalosos.

Somente elas são suficientes para explicar por que o País não está dando certo. São crises que se enraízam no chão profundo da história nacional, como se tivessem a ser criadas intencionalmente por mãos humanas. Servindo de base para todas elas, a desigualdade social obscena, chaga exposta a céu aberto, da qual muito se fala mas que segue se reproduzindo.

Nesse tronco principal enroscam-se outras crises, que eventualmente são mais fáceis de serem contornadas. Por comodidade vou chamá-las de “média intensidade”: a crise da federação e a crise dos poderes de Estado. As tensões que estão a ser reprisadas dia após dia têm a ver com isso. Há defeitos de formatação sistêmica no presidencialismo federativo, mas o que mais chama atenção é a ausência de um centro gestor eficiente, com um governante central interessado em defender o País mediante a harmonização de poderes e entes federativos. Nos últimos dias, o Judiciário entrou em rota de colisão com o Senado. O Senado reagiu à altura e assimilou o problema, mas não mostrou saber como processá-lo. Confusão à vista. O Executivo fez questão de deixar suas digitais. Com aquele jeito Bolsonaro de ser, resolveu conspirar com um senador (o inacreditável Kajuru) para pressionar os senadores e o STF simultaneamente. Para além da demonstração de desrespeito à Constituição, à ética pública, à decência e às boas maneiras, a iniciativa presidencial se dedicou, na verdade, a soprar as brasas de uma fogueira que libera gases tóxicos sem cessar. Uma fogueira que lhe queima as penas e o isola, mas que também cria um alvoroço que a todos confunde. Serviu, ao meno

Chamo essas crises de “média intensidade” porque podem ser enfrentadas com os recursos da política prática: a inteligência, a responsabilidade, a seriedade, a disposição ao diálogo, o jogo democrático. Se continuam a latejar é porque tais recursos não estão sendo empregados. Ressentimo-nos da falta deles, da falta de elites políticas dotadas de capacidade de iniciativa e proposição. Talvez não haja uma cultura política (um ethos, um conjunto de valores e convicções) que dê sustentação a boas elites, talvez os partidos não estejam sendo a “escola de formação” de que se necessita, talvez a classe política seja covarde de mais e lúcida de menos. Pode ser tudo isso. O fato é que as instituições democráticas, que se supõe fortes e estáveis, não estão produzindo respostas que amenizem crises e dificuldades, que avancem pactos e soluções positivas. Donde a sensação crescente de descontrole, descoordenação, desgoverno.

O País está sem diretrizes, sem políticas. O meio ambiente é uma tragédia, o Itamaraty marchou para trás, não há política externa, a Cultura foi jogada na sarjeta, o desarranjo atinge todos os segmentos da gestão pública. Carecemos de muitas coisas.

Até onde um País assim conseguirá chegar é uma incógnita. Não há futuros predeterminados. Há muitos caminhos abertos na encruzilhada da História. O fato é que os motores estão engasgando e não se vislumbra no horizonte próximo quem poderá voltar a fazê-los funcionar.