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José Goldemberg: Licenciamento e desastres ambientais

É possível ser mais rigoroso e proteger a população sem impedir o desenvolvimento

Os desastres ambientais de Mariana e Brumadinho põem na ordem do dia, com alta prioridade, o problema do licenciamento ambiental. Isso significa uma séria inversão de prioridades do governo federal.

A reorganização administrativa promovida em janeiro levou à extinção e realocação de várias áreas ligadas a questões ambientais, o que indicava uma visão desenvolvimentista em que o licenciamento ambiental parece ser um obstáculo ao desenvolvimento.

Essa era explicitamente a visão do governo militar em 1972, por ocasião da primeira Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, que levou à criação de Ministérios do Meio Ambiente (ou órgãos equivalentes) na maioria dos países do mundo. A visão do governo na época era a de “desenvolver primeiro” e se preocupar depois com as consequências sociais e ambientais decorrentes.

Apesar disso, o professor Paulo Nogueira Neto, da Universidade de São Paulo (USP), conseguiu convencer o presidente Médici a criar, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema) no Ministério do Interior, à frente da qual permaneceu até 1985 e onde conseguiu introduzir toda a legislação e os órgãos administrativos da área ambiental no País.

A criação da Sema deveu-se mais ao prestígio pessoal de Paulo Nogueira Neto, integrante de tradicional família paulista, e sua reputação científica do que a uma compreensão clara da necessidade do governo militar de conciliar desenvolvimento com proteção ambiental.

Ele era visto com reservas por grupos interessados na expansão da ocupação da Amazônia, mas com seu perfil não confrontacional conseguiu introduzir no País legislação ambiental moderna, copiada de países da Europa e dos Estados Unidos. O melhor exemplo é o da criação da Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb), em São Paulo. O sucesso em resolver o problema ambiental de Cubatão, no governo Montoro (1986-1989), deu à Cetesb estatura e prestígio para enfrentar outros desafios.

Isso não ocorreu, contudo, em muitos outros Estados e certamente não no governo federal, em que órgãos como o Ibama frequentemente não tiveram apoio para pôr em prática a excelente legislação criada por Paulo Nogueira Neto.

Estamos pagando hoje o preço disso com os desastres de Mariana e Brumadinho. E o governo Bolsonaro não ajudou nada, até agora, a resolver os problemas reais do setor ao reduzir o status do Ministério do Meio Ambiente (que até cogitou de extinguir) e tolerar entrevistas e declarações de membros de sua administração desqualificando a defesa do meio ambiente como inspirada por agentes internacionais e de modo geral “xiita” nas suas reivindicações.

A realidade é outra e esta é uma boa hora de recolocar o problema nos termos corretos.

A legislação atual tem basicamente dois instrumentos para forçar o cumprimento das normas ambientais adequadas: multas e interdições. A aplicação de multas revelou-se insuficiente, como o próprio presidente Bolsonaro tem declarado, porque a judicialização dos processos tornou-a inoperante. O único instrumento eficaz é o poder das agências ambientais de interditar empreendimentos. Foi o uso dela que permitiu à Cetesb “limpar” Cubatão, 40 anos atrás.

Sucede que a decisão de interditar é suscetível a influências políticas: se os órgãos ambientais não tiveram respaldo e apoio ativo dos prefeitos (nos municípios), dos governadores (nos Estados) e do presidente da República (na área federal), a interdição não é eficaz.

Exemplo na área federal é dado pela redução dramática do desmatamento na Amazônia conseguida pela ministra Marina Silva entre 2005 e 2010, que contou com o apoio entusiástico de setores importantes da sociedade, o que intimidou os promotores do desmatamento. Algo semelhante ocorreu no governo Collor, em 1991, quando a ação da Polícia Federal e o monitoramento do desmatamento feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - que foi tornado público - levaram a uma redução do desmatamento, que recomeçou a subir no governo Fernando Henrique. Em ambos os casos foi a firmeza e a coragem do governo federal que apoiou os técnicos da área ambiental a cumprir suas tarefas. Não foi preciso criar novas leis, mas decidir cumpri-las.

Esta é uma situação parecida com a Operação Lava Jato e o papel do juiz Sergio Moro. A legislação anticorrupção, com delação premiada e outros dispositivos legais, já existia, mas foi a coragem do juiz em aplicá-la que fez toda a diferença.

Isso não significa que a legislação ambiental não possa ser aperfeiçoada e simplificada - sem perder o rigor -, sobretudo definindo melhor as características específicas dos empreendimentos. Licenciar uma pequena central hidrelétrica numa fazenda no interior não precisa ter a complexidade de licenciamento de uma grande usina hidrelétrica.

Para evitar novos desastres, como em Mariana e Brumadinho, o governo federal precisa demonstrar claramente que vai aplicar as leis vigentes, “doa a quem doer”. Somente assim os técnicos e engenheiros responsáveis pelos projetos e pela fiscalização ambiental se sentirão respaldados para propor a interdição de projetos inadequados e não conceder novas licenças sem a permissão de medidas protetoras da população.

Licenciar uma barragem como a de Brumadinho, permitindo que abaixo dela fossem instalados uma pousada e um refeitório da Vale, ultrapassa as raias do absurdo na sua irresponsabilidade. E poderia ter sido evitado por uma simples medida administrativa.

Não é possível, como querem alguns, resolver os problemas da pobreza no País mantendo a natureza intocada. Mas é possível fazer um licenciamento ambiental mais rigoroso e ágil, que proteja a população sem impedir o desenvolvimento.

* José Goldemberg, professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo


El País: 2,6 milhões de dólares, o valor de uma vida exposta ao risco das barragens da Vale

Documento da mineradora estima indenização de potenciais vidas perdidas em rompimento de barragens. Estudo é utilizado na avaliação de companhias sobre quais os riscos elas estão dispostas a aceitar

Uma morte em caso de rompimento de barragem da Vale tem o valor de 2,6 milhões de dólares 9,8 milhões de reais, no câmbio atual. É o que aponta um documento interno no qual a mineradora analisa os riscos de suas barragens e quantifica uma série de consequências econômicas de um eventual rompimento, incluindo as indenizações por morte. Este tipo de estudo é um procedimento normal das empresas cujas atividades são consideradas de risco e é utilizado na avaliação e valoração das companhias sobre quais os riscos de suas atividades que elas estão dispostas a aceitar. Nele, são avaliadas desde as implicações econômicas e ambientais até os prejuízos à imagem da empresa e os custos com saúde e segurança em caso de um eventual rompimento. A empresa estimou em 1,5 bilhão de dólares o custo de um rompimento hipotético.

Segundo a Vale, todas as informações contidas no documento, produzido em 2015, partem de "situações hipotéticas" e o valor da indenização que a empresa deverá pagar às famílias das vítimas fatais de Brumadinho ainda está em discussão com as autoridades brasileiras. A empresa insiste que a barragem I da Mina do Feijão, que ruiu no último dia 25 de janeiro, não apresentava riscos de ruptura e que nos últimos quatro anos aumentou em 180% o investimento em segurança nas suas barragens. Até a última quinta-feira, haviam sido contabilizadas 166 mortese 155 desaparecidos por conta do desastre.

O documento em que a empresa estima o valor das potenciais vidas humanas que podem ser perdidas no caso de rompimento de barragens é intitulado Análise Quantitativa de Riscos em Barramentos  Definição das Consequências. Ele registra que a “indenização por perdas de vidas humanas é o tema com maior divergência de opiniões, elevado grau de incerteza e questões éticas associadas”. E discute três metodologias para chegar a um valor de indenização. No fim, a Vale adota como base a chamada "curva de tolerabilidade de riscos", uma abordagem proposta pelo engenheiro norte-americano Robert Whitman na década de 1980 e que leva em consideração um gráfico que inclui consequências tanto em termos financeiros quanto em termos de potencial de perda de vidas humanas.

Com base nisso, essa metodologia instituiu na década de 1980 que o valor de uma vida é igual a um milhão de dólares. A própria Vale, no seu documento interno de 2015, corrige o valor para aquele ano e determina que a indenização por perdas de vida a ser considerada pela empresa deve ser de 2,6 milhões de dólares. "Esse valor deve ser convertido de dólar americano para reais conforme a cotação da moeda norte-americana na data de realização do cálculo do custo da indenização", aponta o documento. Com isso, a indenização por morte conforme os cálculos admitidos pela Vale poderia chegar a 9,2 milhões reais na cotação atual. Este cálculo, porém, não inclui uma correção monetária para 2019.

Os cálculos da Justiça brasileira

O valor estipulado pela mineradora é superior às indenizações determinadas pela Justiça brasileira em casos de morte, que têm variado entre 300 a 500 salários mínimos nos últimos anos (ou de 15.000 reais a 152.000 reais). Esta foi uma das opções ventiladas pela Vale no seu estudo, mas a própria empresa avaliou o valor pequeno. "Observa-se que, considerando a política e valores da Vale, nas quais a vida humana está em primeiro lugar, cabe destacar que os valores que vem sendo arbitrados são bastante reduzidos", argumenta a própria empresa no documento. A terceira metodologia considerada pela empresa tem como base de cálculo a quantia gasta para reduzir o risco ou quantia compensatória para se aceitar o risco, mas os valores eram tão discrepantes se aplicados a casos históricos que foram rechaçados pela mineradora.

Apesar de prever um valor superior de indenização à média determinada pela Justiça, não há como estimar o valor real das indenizações pagas pela Vale. No caso do rompimento da barragem de Mariana em 2015  de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale— foi feito um acordo extrajudicial para indenizar as vítimas que determina a confidencialidade dos valores. Parte das vítimas espera há três anos a reconstrução de suas casas. Também não é possível saber se o cálculo antes projetado pela Vale será considerado para indenizar os familiares das vítimas de Brumadinho. Questionada pelo EL PAÍS sobre isso, a mineradora disse apenas que "os estudos de risco e demais documentos elaborados por técnicos consideram, necessariamente, cenários hipotéticos para danos e perdas". E insistiu, em nota: "Não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Pelo contrário, a barragem possuía todos os certificados de estabilidade e segurança, atestados por especialistas nacionais e internacionais".

Impasses na negociação para indenizar vítimas

Chegar a um acordo sobre como será a indenização dos parentes das vítimas de Brumadinho não tem sido fácil. A Vale diz que os cálculos contidos no seu documento interno são apenas hipóteses e que os valores ainda estão em discussão com as autoridades. Na semana passada, o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais propôs à mineradora uma indenização de 2 milhões de reais ao grupo familiar dos trabalhadores mortos ou desaparecidos. Apesar do valor ser bem inferior aos 9 milhões de reais considerados em 2015 pela empresa em seu documento, a Vale não aceitou e fez uma contraproposta com o pagamento de indenização por danos morais de acordo com o parentesco com as vítimas. Seriam 300.000 reais ao cônjuge e a cada filho, 150.000 a cada pai e mãe e 75.000 a cada irmão. A empresa também pagaria plano de saúde para os familiares da vítima fatal, além de dois terços do salário líquido do trabalhador por mês até a data em que ele completaria 75 anos. Os familiares, porém, não aceitaram essa proposta. Nesta sexta-feira, a Vale acordou com os familiares que os salários dos funcionários mortos e desaparecidos continuarão sendo pagos até que se chegue a uma definição sobre as indenizações, cujos valores ainda estão em aberto.

O professor de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Carlos Edison Monteiro, lamenta que empresas que desenvolvem atividades que podem pôr em risco a vida de pessoas quantifiquem as indenizações por mortes e muitas vezes usem este dado simplesmente como uma das referências para tomar decisões econômicas, aceitando riscos. "A vida humana não pode ser objeto de precificação, não pode ser [tratada como] um fator econômico que as empresas considerem para realizar atividades que põem em risco a vida das pessoas", afirma. "O sistema jurídico brasileiro repudia o entendimento de que a morte de seres humanos vale a pena. É muito errado fazer este cálculo e assumir o risco por questões econômicas. Infelizmente, isso faz parte da cultura do país", acrescenta.

Monteiro explica que o Código Civil brasileiro prevê na indenização material uma compensação por dano emergente (que inclui as despesas dos familiares logo após a morte, como despesas médicas anteriores ao óbito e funerais) e outra por lucro cessante (que visa compensar financeiramente os dependentes da pessoa que morreu). Mas a legislação prevê outra indenização, mais difícil de ser mensurada, que são os danos morais. Neste cálculo, há condicionantes. Em relação ao dever do responsável pela morte ao sustento dos dependentes, deve ser considerado quanto a vítima ganhava. Esse valor vai ser maior para dano material para alguém com um salário elevado que outro que ganhava apenas um salário mínimo, por exemplo. Já o dano moral é o mesmo para todas as vítimas.


O Estado de S. Paulo: Oito funcionários da Vale são presos; mandados são cumpridos em MG, SP e RJ

São cumpridos também 12 mandados de busca e apreensão. Pedidos de prisão foram feitos pelo Ministério Público Estadual de Minas e estão relacionados com a tragédia em Brumadinho

Por Renata Batista , Juliana Diógenes e Daniela Amorim, de O Estado de S.Paulo
RIO E SÃO PAULO - Oito funcionários da Vale foram presos na manhã desta sexta-feira, 15, em Minas Gerais e Rio de Janeiro. As prisões foram em Belo Horizonte (MG), Itabira (MG) e Rio de Janeiro (RJ). Ao todo, são 14 mandados de busca e apreensão, e oito de prisão. O pedido foi do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

O rompimento da barragem de Brumadinho, no dia 25 de janeiro, deixou 166 mortos e 147 desaparecidos até esta quinta-feira, 14, segundo números atualizados da Defesa Civil de Minas Gerais.

Entre os presos, estão quatro gerentes (dois deles, executivos) e quatro integrantes das respectivas equipes técnicas. Segundo o MPMG, todos são diretamente envolvidos na segurança e estabilidade da Barragem 1. As prisões temporárias foram decretadas pelo prazo de 30 dias.

Um dos presos nesta sexta-feira é Alexandre Campanha, executivo da Vale, que foi preso na região centro-sul de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Ele prestou depoimento em 7 de fevereiro à força-tarefa que investiga o rompimento da barragem 1 na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte.

Campanha foi citado pelo engenheiro Makoto Namba, da Tüv Süd, que disse ter se sentido pressionado pelo executivo a assinar documento atestando a estabilidade da barragem. Em depoimento, Campanha negou ter travado o diálogo com o responsável pelo laudo da barragem.

Alexandre Campanha é gerente executivo corporativo da Vale e, segundo depoimento de Namba à Polícia Federal, fez pressão para que assinasse o documento. "A Tüv Süd vai assinar ou não", teria dito Campanha, segundo Namba.

O engenheiro, então, disse ter respondido que assinaria se a Vale adotasse recomendações que fez em revisão periódica de junho de 2018. Namba afirmou ainda ter assinado o laudo e que se sentiu sob risco de perder o contrato.

Busca e apreensão
Segundo o Ministério Público, foram, ainda, alvos de busca e apreensão nesta sexta, em São Paulo e Belo Horizonte, quatro funcionários (um diretor, um gerente e dois integrantes do corpo técnico) da empresa alemã TÜV SÜD, que prestou serviços para a Vale, referentes à estabilidade da barragem rompida. Também foi cumprido mandado de busca e apreensão na sede da empresa no Rio de Janeiro.

Em nota, a Vale informou que "está colaborando plenamente com as autoridades" e que "permanecerá contribuindo com as investigações para a apuração dos fatos, juntamente com o apoio incondicional às famílias atingidas."

Questionada pelo Estado, a Vale não respondeu se os funcionários terão respaldo jurídico.

Procurada, a TÜV SÜD ainda não se manifestou.

A operação contou com o apoio das Polícias Militar e Civil do Estado de Minas Gerais e, ainda, com atuação dos Ministérios Públicos dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

Todos os presos serão ouvidos pelo Ministério Público Estadual, em Belo Horizonte. Também são apurados crimes ambientais e de falsidade ideológica.

Presos
Veja a lista dos presos:

Joaquim Pedro de Toledo

Renzo Albieri Guimarães Carvalho

Cristina Heloíza da Silva Malheiros

Artur Bastos Ribeiro

Alexandre de Paula Campanha

Marilene Christina Oliveira Lopes de Assis Araújo

Hélio Márcio Lopes da Cerqueira

Felipe Figueiredo Rocha

Outras prisões
Esta não é a primeira vez que são presos funcionários da Vale por suposto envolvimento no caso Brumadinho. Em 29 de janeiro, dois engenheiros da empresa alemã TÜV SÜD que atestaram a segurança da barragem e três funcionários da Vale foram presos por suspeita de homicídio qualificado.

Eles foram soltos uma semana depois após decisão favorável do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os magistrados não viram fundamentos legais que justificassem a prisão temporária dos presos.

A decisão colocou em liberdade os engenheiros André Jum Yassuda, Makoto Namba, Rodrigo Artur Gomes de Melo, gerente executivo operacional da Vale, Ricardo de Oliveira, gerente de meio ambiente da Vale, e Cesar Augusto Paulino Grandchamp.

Troca de e-mails
A Polícia Federal identificou em e-mails trocados por funcionários da Vale e da consultoria alemã Tüv Süd que a empresa de mineração já sabia de problemas com sensores da barragem.

No depoimento aos policiais, ao ser questionado sobre o que faria se tivesse um filho no local e soubesse das informações contidas na troca de e-mails, Namba disse que o mandaria sair imediatamente. E afirmou que acionaria a Vale para disparar o plano de emergência.

A barragem de Brumadinho se rompeu em 25 de janeiro. Os e-mails foram trocados entre os dias 23 e 24, antevéspera e véspera da tragédia e citam dados “discrepantes” colhidos no dia 10 de janeiro, ou seja, 15 dias antes da tragédia.


Folha de S. Paulo: Em documento, Vale projetou mortes, custos e até causas possíveis de colapso

Empresa afirma que fazia manutenção de barragem e defende que estrutura não estava em risco

Lucas Vettorazzo, Nicola Pamplona e Thiago Amâncio, da Folha de S. Paulo

RIO DE JANEIRO e SÃO PAULO

Um documento interno da Vale estimou em outubro de 2018 quanto custaria, quantas pessoas morreriam e quais as possíveis causas de um eventual colapso da barragem de Brumadinho (MG), que acabou se rompendo no dia 25 de janeiro, deixando ao menos 165 mortos.

O relatório é usado pelo Ministério Público de Minas Gerais em ação civil pública em que pede a adoção de medidas imediatas para evitar novos desastres, já que dez barragens, incluindo a de Brumadinho, estariam em situação de risco, segundo o documento da própria mineradora.

Vale questiona a Promotoria e diz que o estudo indica estruturas que receberam recomendações de manutenção, as quais já estariam em curso. A empresa defende ainda que a barragem de Brumadinho não corria risco iminente.

O estudo projeta que um eventual colapso provocaria mais de cem mortes —até o momento, as autoridades contabilizam 165 mortos e 155 desaparecidos. O número considera um cenário de rompimento durante o dia e com funcionamento dos alertas sonoros instaladospara evitar emergências.

De acordo com o estudo da Vale, chamado Resultados do Gerenciamento de Riscos Geotécnicos, os custos de um eventual rompimento na barragem 1 da Mina do Córrego do Feijão poderiam chegar a US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 5,6 bilhões, ao câmbio atual).

A empresa também projetava como causas prováveis de rompimento erosão interna ou liquefação. Inspeções já tinham encontrado indícios de erosão na ombreira (lateral da barragem) e indícios de alagamento.

O documento inclui a estrutura que se rompeu entre dez barragens em uma zona de atenção. As outras são: Laranjeiras (em Barão de Cocais), Menezes 2 e 4-A (em Brumadinho), Capitão do Mato, Dique B e Taquaras (Nova Lima) e Forquilha 1, Forquilha 2, Forquilha 3 (Ouro Preto).

A análise de estabilidade exigida pela legislação atestou as condições de segurança da barragem que se rompeu, mas indicou uma série de problemas que deveriam ser resolvidos pela mineradora.

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Sala do comando de operações de segurança da mina, após o rompimento da barragem - Isis Medeiros

Procurada pela Folha, a Vale afirmou em nota que "os estudos de risco e demais documentos elaborados por técnicos consideram, necessariamente, cenários hipotéticos para danos e perdas".

A Vale disse que "não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da barragem" e reafirmou que a estrutura tinha "todos os certificados de estabilidade e segurança".

Em entrevista nesta terça (12), o gerente-executivo de planejamento da área de minério de ferro e carvão da empresa, Lúcio Cavalli, disse que "em momento algum essa estrutura deu sinais de que estava com problema".

De acordo com a Vale, a "zona de atenção" compreende barragens em que os técnicos apontaram recomendações, mas não risco iminente.

A Justiça de MG determinou uma série de ações preventivas nas barragens citadas. A Vale diz que todas as exigências já vinham sendo cumpridas.

A empresa questionou ainda versões dadas por funcionários de que os equipamentos apontaram aumento súbito no nível do lençol freático, dizendo que quatro dos piezômetros (instrumentos que medem esse indicador) apresentaram problemas de configuração e enviaram dados errados ao sistema. A barragem tinha 94 piezômetros.

Segundo a Vale, ainda não é possível identificar as causas da tragédia. Uma comissão formada por especialistas internacionais está investigando o caso, disse o diretor de Finanças e Relações com Investidores da companhia, Luciano Siani.

O executivo disse que a empresa está fazendo um levantamento das áreas habitadas próximas às suas barragens, mas que ainda não há um plano para reduzir o dano potencial em eventuais colapsos.

 


Sérgio Abranches: 'Brumadinho, uma Guernica mineral'

Brumadinho é um espanto. Uma Guernica mineral. Um desalento. Porque não é um só. Antes veio Mariana. Matou um rio, 19 humanos, fraturou a cultura ribeirinha do povo krenak das margens do Rio Doce, destruiu o modo de vida dos pescadores. Soterrou patrimônio natural, cultural, modos de vida e de sobrevivência. Antes ainda que as feridas profundas de Mariana se fechassem e sem reparação à altura das perdas e danos, veio o desastre da Mina Córrego do Feijão. Que vergonha e que indignação!

Mariana e Brumadinho não estão sós. Nem são apenas quatro, como os cavaleiros do Apocalipse. São quatrocentas. Ou mais. Uma delas, dependurada sobre a joia artística que é Congonhas, em Minas Gerais, ameaça com 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama fatal, um extraordinário patrimônio artístico-cultural e a vida inestimável de milhares de pessoas. Ali, a Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos coroa o mais espetacular complexo arquitetônico e estatuário do Brasil. Não é exagero. O conjunto paisagístico e artístico representado pelo santuário não tem paralelo no país.

Abaixo da basílica, sob o olhar dos 12 profetas esculpidos pelo gênio Aleijadinho, coreograficamente distribuídos pelo adro, derrama-se a via-sacra, também do artista, em capelas nas quais as cenas talhadas em madeira em tamanho natural encantam e enternecem. Além da beleza das esculturas, os profetas do adro da igreja e as cenas da Paixão de Cristo nas capelas revelam uma cenografia deliberada e expressiva. É o principal legado escultórico de Aleijadinho, tombado e abandonado. A filha de um maestro amigo meu, ao vê-las aos 8 anos de idade, exclamou: “Estão vivas, papai!”. E estão, mas por quanto tempo?
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Esse santuário artístico, que contou com os gênios de Aleijadinho e outros grandes artistas do Brasil colonial, como o insuperável Mestre Ataíde, Francisco de Lima Cerqueira e João Nepomuceno Correia e Castro, está emoldurado por um cenário natural espetacular e cercado por sobrados que não se fazem mais. Sobre esse precioso bem coletivo está uma barragem como essas que se romperam, porém ainda maior. A Casa de Pedra contém 100 milhões de metros cúbicos de rejeitos, de lama tóxica, prontos para soterrar o legado de Aleijadinho, eliminando-o do mundo e da memória. Em Mariana, foram 50 milhões; em Brumadinho, 12 milhões.

Brumadinho pode ter matado mais de duas centenas de seres humanos. Liquidou negócios e criações. Está matando o Rio Paraopeba. O Paraopeba é um rio sertanejo como eu e, enlameado, caminha para minhas paragens curvelanas. Pode enlamear parte do grande sertão e das veredas de Guimarães Rosa, tirando-lhes até o sentido metafísico. O Doce, rio serrano, tem uma de suas nascentes ao lado, Barbacena, cidade de meu pai, de meu irmão e de minha infância. Conheço as vítimas, cresci com elas. E como dói.

Em São Joaquim das Bicas, os pataxós da aldeia Hã-hã-hãe foram evacuados. Estão ameaçados por Brumadinho do mesmo destino dos krenak do Rio Doce. Hoje, nas margens do rio morto, os velhos krenak contam para os jovens sobre os animais e a vida ribeirinha perdidos na lama, para que mantenham suas referências, agora meras abstrações. O canal Futura tem uma série de documentários pungentes sobre o drama dos krenak do Doce morto.

Essas tragédias não foram incidentais. Elas tiveram causas e autores humanos. O autor principal chama-se Vale. Uma empresa que se apresenta como verde, mas esse verde é camuflagem de predador. Como disse Drummond, o vale é doce, a Vale, amarga. O autor coadjuvante chama-se Estado. Ambos, empresa e Estado, têm uma característica genética comum: suas ações dependem das escolhas de seus gestores, a diretoria, num caso, o governo, no outro. Escreveram essa tragédia a várias mãos, a empresa, suas subsidiárias, as consultoras, os governos estadual e federal, com más decisões, colocando a taxa de lucro acima do valor das vidas humanas e do patrimônio cultural, ambiental e paisagístico.

Há um outro autor político. O Congresso, que se rendeu ao lobby das mineradoras e seus dinheiros de campanha, afrouxou a fiscalização e engavetou as providências legais apresentadas após Mariana. O ex-deputado (deixou a Câmara demitido pelos eleitores) Leonardo Quintão (MDB-MG), relator do projeto que criava novas regras para a mineração, reescreveu-o à imagem e semelhança dos desejos do lobby mineral. Agora vai para o novo governo, manter-se ativo no Gabinete Civil. Brasil surreal, onde tudo muda para ficar na mesma. Exemplos de irresponsabilidade política e corporativa. Deputados deveriam estar a cuidar do bem público e não dos vícios privados. As mineradoras deveriam estar a corrigir seus vícios e buscando novos modos, para minimizar os riscos que impõem à sociedade, à qual nada retornam, se não magros royalties e buracos, quando não cadáveres e desolação.

Falou-se muito, e nem sempre com precisão, sobre risco. No primeiro dia do curso que costumava oferecer sobre risco político, explicava a meus alunos alguns conceitos básicos, igualdades e diferenças. Começava por dizer que a noção de risco é a mesma, na engenharia, no ambiente, na economia e na política. Os dados e os parâmetros é que se alteram. Usava o quadrinho abaixo para ilustrar essa igualdade e distinguir o que faz parte da matriz de riscos e o que não faz.

Risco
É simples. O conceito básico de risco – ele pode ser sofisticado e ficar mais complexo a partir daí – nasce da interseção entre a probabilidade de ocorrência de um evento e a severidade do dano que pode causar. O quadrante inferior esquerdo – baixa probabilidade e baixo dano – não requer muita atenção. O quadrante superior esquerdo – alta probabilidade e baixo dano – requer providências regulares. O quadrante superior direito – alta probabilidade e dano severo – não faz parte da matriz de risco. Primeiro, antes de uma situação chegar ali, uma empresa responsável já teria tomado providências preventivas, para evitar sua progressão até essa condição quase irremediável. Caso o tivesse feito, não estaria enfrentando um risco, que supõe incerteza, mas um quadro a exigir providências imediatas e radicais. O quadrante inferior direito é o que caracteriza o verdadeiro risco – baixa probabilidade e dano severo — que impõe vigilância permanente.Continua depois da publicidade

Se imaginamos que cada evento pode ser situado em pontos distintos dentro de cada quadrado, indicando variações na probabilidade de ocorrência e severidade do dano, teremos uma escala contínua que irá da probabilidade muito baixa até muito alta e dano de baixa severidade até dano de severidade máxima. As barragens de alteamento a montante, como as de Mariana e Brumadinho, jamais estariam na categoria de baixo risco. A probabilidade de rompimento vai aumentando a cada alçamento, que reduz a resistência estrutural original. Portando, nos dois casos, exigiam monitoramento 24/24, isto é, 24 horas por dia, de segunda a domingo, de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com sensores e instrumentação adequados e em permanente manutenção, além de verificações de campo diárias.

O laudo no qual se ampara a Vale para se dar ao direito, que não tem, de dizer que foi pega de surpresa pelo rompimento de Brumadinho é um exemplo de como a atividade tem regulação inadequada. Uma barragem de rejeitos fluidos é dinâmica. O fato de estar estável em setembro de 2018, nada diz sobre sua estabilidade em janeiro de 2019. Mesmo que estivesse desativada – a empresa precisa provar que não aumentou o volume de rejeito desde de 2014 porque em Mariana houve informação inverídica sobre isso –, a chuva, a acomodação progressiva do rejeito ainda liquefeito e sua consolidação progressiva alteram os parâmetros determinantes da estabilidade. Só o monitoramento 24/24 e a inspeção diária podem determinar a estabilidade a cada momento. Barragens não rompem de supetão, avisam. Se não souberam identificar esses avisos, além de negligentes eram incompetentes.

Mais ainda, a trajetória de um possível rompimento deveria ser objeto de simulações, para impedir construções a montante, e, até mesmo, a implantação da barragem. Para toda a área de impacto definida pelos trajetos possíveis da lama, planos de contingência deveriam prever a evacuação, medidas de contenção e proteção. Há áreas em que a remoção é possível e outras, em que ela não é. São investimentos que as empresas evitam, para preservar sua margem de lucros e controlar custos. Como resultado, aumentam os custos públicos. A velha socialização das perdas e privatização dos lucros. Com o progresso rumo a novos materiais de baixo impacto ambiental e climático, o preço dos produtos que vão ficando obsoletos cai e as empresas resistem ainda mais a fazer investimentos de precaução. É ainda pior, porque tentam compensar a perda de valor do produto com a ampliação do volume de venda, aumentando a pressão sobre as barragens, reduzindo as medidas de cautela. Por isso os vícios privados jamais se tornam virtudes públicas. Nessas atividades de risco, não se pode abrir mão da regulação estatal nem terceirizar a palavra final. Por isso o sucateamento e a politização das agências reguladoras, na última década e meia, foram tão lesivos ao interesse público.

Não há outro caminho para a atividade mineral no Brasil se não a proibição do beneficiamento a úmido. Mesmo as barragens de alteamento a jusante, mais seguras, são muito danosas ao ambiente. Além do risco, nunca pequeno, o beneficiamento a úmido causa danos ambientais severos, mesmo em operação normal. Além da devastação que a atividade em si produz, como no Pico do Cauê, tão dolorosamente documentado por Carlos Drummond de Andrade, o consumo de água é absurdo. Só deveriam permanecer em atividade as minas que comportassem beneficiamento a seco.

Isso é o que faria uma sociedade madura, civilizada, que valoriza a vida humana acima de tudo e preza seu patrimônio cultural, artístico e natural. Uma sociedade que não confunde desenvolvimento a qualquer custo com progresso. Um povo que quer transitar para uma vida pessoal e coletiva de mais qualidade, que busca a felicidade, não apenas o prazer fugaz e a alegria passageira.

* Mineiro de Curvelo, o sociólogo e escritor Sérgio Abranches é especialista em ecopolítica


Elio Gaspari: As mineradoras precisam chamar os oncologistas

O diretor da Agência de Mineração mostrou a fonte do desastre de Brumadinho: a barragem do cartel das empresas

Eduardo Leão, diretor da Agência Nacional de Mineração, reconheceu numa entrevista ao repórter Nicola Pamplona que "tanto a questão de barragens quanto a questão das multas já foram pauta no Senado e realmente não andaram". Ele acredita que "tenha tido algum lobby para arquivar esses projetos".

Ex-funcionário da Vale, Leão acrescentou: "Infelizmente, tem empresas sérias, que a gente conhece, que em algum momento acabam formando um cartel que não permite esses avanços".

Não podia ter sido mais claro. As mineradoras blindaram-se. Um projeto que elevaria o teto das multas para R$ 30 milhões foi arquivado, e elas continuaram fazendo o que acham melhor, com multas de R$ 3.600. (Um motorista que bebeu paga R$ 2.934.)

Num paralelo que vem do comportamento das empreiteiras quando começou a Lava Jato, o cartel das mineradoras precisa se livrar do pessoal da gastrite, ouvindo os oncologistas.

Os poderosos empresários tinham dores no estômago e tratavam da gastrite até que foram todos para a cadeia. Diante da realidade da Lava Jato, foram aos oncologistas e tiveram outro diagnóstico: "Os senhores têm câncer no estômago, precisam passar por uma cirurgia e em seguida irão para a quimioterapia. Será um sofrimento e não posso dizer que ficarão curados".

Sofreram o diabo, mas estão soltos.

Horas depois do desastre de Brumadinho, o presidente da Vale, FábioSchvartsman, deu uma entrevista na qual admitiu que não sabia porque as sirenes da barragem ficaram em silêncio. Sete dias depois, informou que "a sirene foi engolfada pela queda da barragem antes que ela pudesse tocar". Schvartsman entrou no modo gastrite, pois sirenes tocaram dois dias depois, quando houve risco de rompimento de outra barragem.

Os doutores da gastrite não põem a cara na vitrine e escalam os marqueses para o papel de bobo. Essa atitude decorre de um sentimento de onipotente impunidade. (Quem se lembra das respostas arrogantes de Marcelo Odebrecht no início da Lava Jato sabe o que é isso.)

Na sua primeira entrevista, Schvartsman mostrou que a empresa alemã Tüd Sud atestou em dezembro a estabilidade da barragem de Brumadinho. Era verdade, e o laudo jogou a Tüd na lama. Agora, o engenheiro Makoto Namba, signatário do parecer, diz que se sentiu pressionado pela Vale para assiná-lo. Até aí, tudo seria uma questão subjetiva. A Polícia Federal mostrou a Namba uma troca de mensagens inquietantes de funcionários da Vale para colegas da Tüd, ocorrida dois dias antes do desastre, e perguntou-lhe o que faria se o seu filho estivesse na barragem. Ele respondeu: “Após a confirmação das leituras, ligaria imediatamente para seu filho para que evacuasse do local bem como que ligaria para o setor de emergência da Vale responsável pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração para as providências cabíveis".

A Vale está atarantada no varejo porque seu comportamento no atacado orienta-se pelo protocolo da gastrite. O problema das empreiteiras estava no câncer do cartel, acima do varejão das propinas. Felizmente, quem usou a palavra demoníaca pela primeira vez foi o diretor da Agência Nacional de Mineração.

O passado e o futuro da imprensa
Para quem se preocupa com o futuro da imprensa ou sente sono quando ouve que o cheiro de tinta é agradável, saiu nos Estados Unidos um bom livro. É "Merchants of the Truth" ("Mercadores da Verdade - O Negócio da Notícia e a Luta pelos Fatos"), de Jill Abramson. Ela dirigiu o New York Times de 2011 a 2014, quando foi demitida.

O livro está debaixo de chumbo, mas é uma competente narrativa do que aconteceu com a imprensa desde que surgiram a internet, os sites e o iPhone. Abramson conta as histórias no New York Times, do Washington Post e dos sites BuzzFeed e Vice. De um lado estavam os donos do mundo, investido-se de um direito divino para decidir o que devia ser lido. Do outro, adoradores da internet, cabeludos, alguns bêbados ou drogados e quase todos pobres. O New York Times chegou à beira da falência, e o Post foi vendido a Jeff Bezos. Os cabeludos viraram bilionários e pareciam os senhores de um novo tempo.

Quando a internet era uma criança, um dos editores de Post lembrou que, se um sapo for colocado numa panela com água aquecida aos poucos, ele será cozinhado sem mover uma pata, pois seu sistema nervoso não registra a lenta evolução da temperatura. Ninguém o ouviu, e ele foi trabalhar num site. Centenas de jornais ferveram.

O New York Times luta bravamente para sair da panela e conseguiu 3,3 milhões de assinantes digitais. O Post voltou a ser um grande jornal. Com frequência, festeja-se que Bezos contratou cem jornalistas. Falta lembrar que ele teve 80 engenheiros na empresa.

A internet mudou a cabeça dos editores, quebrou barreiras na publicidade, impôs a métrica de audiência para as redações e, onde se falava em leitor, fala-se em clique. Jornalistas passaram a enfeitar eventos.

Abramson conta essa história com graça e a dose certa de fofocas. Tudo isso e mais a campanha de Donald Trump. Seu rancor da demissão é contido e ela circulou num evento junto com o patrão que a mandou embora. Se Jill Abramson tivesse conhecido Zózimo Barroso do Amaral, diria: "Enquanto houver repórteres, haverá esperança".

Faz tempo, o bilionário Warren Buffet ensinou que quando aparece uma tecnologia nova é arriscado investir nela, pois quase todos os primeiros fabricantes de automóveis faliram. O que se deve fazer é abandonar a velha. No caso, vender os cavalos das carruagens. Buffet recusou-se a salvar o Times quando ele estava quebrando. (Salvou-o o bilionário mexicano Carlos Slim.)

Abramson mostra como o Times e o Post estão na luta, sem tentar fabricar carros puxados por cavalos ou alimentando os bichos com gasolina.

CNPJ geral
De um sábio que entende de leis:

"Ao nominar o PCC e outras facções de criminosos, o ministro Sérgio Moro deu-lhes um verdadeiro CNPJ".

Solução popular
Pode-se estimar que a proposta de importação do mecanismo americano das soluções negociadas entre os réus e o Ministério Público tem o apoio de 9 entre 10 magistrados.

Registro
O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, anunciou que o governo não conseguirá zerar o déficit fiscal neste ano.

Ele sempre soube disso, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi avisado ao vivo e a cores que a sua promessa de campanha era inviável.

Fantasias
O Carnaval vem aí, mas os hierarcas da República já criaram um código de fantasias.

Em ocasiões solenes, vestem faixas acetinadas. O governador Wilson Witzel mandou fazer uma, azul celeste.

Quando querem mostrar que estão trabalhando, vestem coletes. O de Witzel é laranja.

 


Fernando Gabeira: Algumas reflexões diante da lama

Nem tudo será esquecimento; 348 pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias

Difícil não ser caótico para descrever uma catástrofe.

“O Rio? É doce/ A Vale? Amarga/ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga” (Carlos Drummond de Andrade).

Viajei triste para Brumadinho. Estou cansado de desastres. Conheço até sua lógica: tristeza, indignação, medidas urgentes para acalmar os ânimos e logo depois o esquecimento.

A única forma de suportar o que veria era levar a obra de Drummond na viagem. Ninguém melhor do que ele descreveu as relações das mineradoras com a paisagem e mesmo com as almas. Talvez seja o melhor caminho para entender toda essa história.

Drummond era ao mesmo tempo a testemunha e o profeta. Morreu antes do desastre de Mariana, não viveu a fase trágica que se completa agora com o desastre em Brumadinho. A maneira como descreve Itabira é um desastre em câmera lenta.

Depois de Mariana, passei a seguir o trilho da mineração. Cobri um vazamento de alumínio nos igarapés de Barcarena, no Pará. Em seguida, o rompimento do mineroduto em Santo Antônio do Grama.

Não foram em barragens, onde se situa o maior perigo, sobretudo a do tipo de Mariana, que deveria ser proibida. Era uma decorrência do desastre. Mas onde estavam governo e Parlamento? Muito próximos da indústria, muito longe das pessoas e da natureza.

Onde estava a Justiça no caso de Mariana? Por que tão lenta? No ano passado, estive lá e nos escombros comentei a decisão de um juiz de suspender o processo contra a Samarco. Chicanas.

Tenho um pouco de escrúpulo em dizer: isto não pode se repetir. As coisas se repetem tanto. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu o cargo com o slogan “Mariana nunca mais”. Agora, a Vale quer prometer Mariana e Brumadinho, nunca mais. É só ir empurrando o nunca mais para o fim e acrescentando alguns nomes antes dele.

Lembra-me dos trens italianos, rapido, molto rapido, rapidissimo .

Acreditamos demais na palavras. O presidente da Vale estava na plateia em Davos quando o presidente Bolsonaro afirmou que o Brasil é o país que mais protege o meio ambiente no mundo. Falava apenas da relação das florestas com agricultura e pecuária.

Isso é um problema antigo com Bolsonaro. Ele teve a ideia de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente. Argumentei que o meio ambiente era mais amplo, crise hídrica, saneamento básico, estendia-se até o licenciamento no pré- sal.

A pressão de todos os lados o fez recuar: manter o Ministério do Meio Ambiente. Mas, ao falar em Davos, de novo ele abstraiu o meio ambiente e o reduziu à questão do campo.

Bolsonaro dizia na campanha que o Ibama é uma indústria de multa. O Ibama não recebeu, por exemplo, nenhum centavo da multa de R$ 250 milhões aplicada à Samarco. É uma indústria completamente falida. Seus devedores não pagam.

Não vou argumentar mais, o desastre fala por si: toneladas de lama, bombeiros rastejando no barro fétido, uma vaca atolada, uma antena de TV flutuando, uma caixa-d’água, o desespero das famílias.

A sirene que não tocou, e a lama levou os hóspedes da Nova Estância, a própria pousada foi arrastada. Eles tinham um plano de fuga. E a sirene não tocou. Eram 34, ao que me consta. E mais um bebê na barriga da mãe, mulher de um arquiteto brasileiro que vivia na Austrália e veio conhecer Inhotim. E a sirene não tocou.

A resposta geral do governo Bolsonaro foi rápida. Vem aí um Plano de Segurança das Barragens. Faltou aparecer o responsável pela Agência Nacional de Mineração. Pode ser que não tenha visto, estava no meio do desastre.

O que mais temo no pós-desastre é o esquecimento. Triste como a música do Piazzolla “Oblivion”. É um país se esquecendo de si próprio. Essa talvez seja a resposta para a pergunta mais adequada. Por que o que não pode se repetir tem se repetido? Esquecimento. Mas, pelo menos, a obra de Drummond lembrará para sempre as origens do drama:

“Quantas toneladas exportamos/ De ferro?/ Quantas lágrimas disfarçamos/ Sem berro?”

Nem tudo, entretanto, será esquecimento. Trezentos e quarenta e oito pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias, dos amigos, dos bombeiros de vários pontos do Brasil, dos soldados israelenses, voluntários, repórteres amadores, todos que se aproximaram física ou emocionalmente da tragédia. Carregam na memória o capítulo trágico do testemunho poético de Drummond.


El País: A tensa contagem regressiva das cidades à espera da lama da Vale

Expectativa é que a água turva pelos rejeitos chegue à última fronteira para o rio São Francisco após 10 de fevereiro. Chuva pode mudar cálculos. “O cenário é menos para o rio, mas, em termos de biodiversidade, as perdas são incalculáveis”

Quando a barragem da mineradora Vale estourou na sexta-feira, a cidade de Juatuba, às margens do rio Paraopeba, entrou em estado de alerta. Localizada a apenas 36 km de Brumadinho, o município fez o melhor que pode para se preparar para a chegada da pluma, a forma palatável com que algumas autoridades e técnicos chamam a lama de rejeitos e água que avança sobre o rio. “Orientamos as pessoas para retirarem barcos da água e destinamos uma escola para receber ribeirinhos, caso tivéssemos elevação do rio”, afirmou Wagner Majesty, secretário de Governo e do Meio Ambiente da cidade.

A concessionária Águas de Pará de Minas divulgou que já no domingo, 27, foram identificadas alterações nos padrões de qualidade da água bruta do Paraopeba em Juatuba. A lama chegou mudando a turbidez da água, mas os peixes, por enquanto, continuam por lá. “Não vimos em nossa região mortandade de peixes, os que encontramos mortos vieram de Brumadinho”, afirma um tanto aliviado o secretário. Majesty afirma que as primeiras análises feitas mostram que imediatamente após a passagem da lama o nível de turbidez da água subiu de uma média de 80 e 90 NTU (unidade nefelométrica de turbidez, quanto maior, maior turbidez) para 130 NTU. “Após o desastre em Mariana, por exemplo, a turbidez do rio Doce chegou a 5.000 NTU, o que mostra que nossa situação não é alarmante”, explica.

De acordo com o Serviço Geológico do Brasil, a turbidez acima de 2.500 NTU dificulta o tratamento em estações de tratamento de água convencionais. “Estamos monitorando. Sabemos que diminuiu o nível de oxigênio da água caiu, mas ainda não sabemos o nível de metais pesados”, afirma. Apesar de Juatuba não depender do Paraopeba para o abastecimento de água potável, outras atividades estão sendo sendo comprometidas. A cidade orientou que a água do rio não seja utilizada para consumo nem irrigação. “É um efeito cascata. O problema da irrigação afeta principalmente a agricultura familiar, que são os principais fornecedores de alimento para a merenda escolar”, diz.

A tensa contagem regressiva das cidades à espera da lama da Vale

Com 22 mil habitantes, Juatuba está fazendo um cadastro dos pescadores que vivem do rio Paraopeba para poder calcular o impacto ambiental e econômico e cobrar da Vale. A mineradora informou que está instalando membranas e cortinas de contenção de rejeitos próximo à cidade de Pará de Minas, que fica à frente de Juatuba no curso do rio. “A lama está avançando muito lentamente dentro da calha do rio. Ela está a cerca de 40 km de Pará de Minas. Existe a expectativa de que em 48 horas a lama chegue à cidade, mas essas cortinas são de instalação muito rápida e nossa expectativa é que elas serão suficientes para conter esse rejeito e assim não permitir nenhum problema para a captação de água do rio”, afirmou Luciano Siani Pires, direito executivo de finanças e relações com investidores, em uma coletiva de imprensa.

Majesty garante que os municípios entendem que a Vale deve priorizar o resgate das vítimas. Mas a lentidão da companhia em compartilhar seu plano de contingência para desastres ambientais preocupa. “A Vale se comprometeu, tardiamente, em colocar as cortinas de contenção em Pará de Minas, por que não fez isso antes, logo na saída de Brumadinho, se é uma ação rápida, como eles mesmo disseram?”. Nesta quarta-feira, a companhia apresentou ao Ministério Público e aos órgãos ambientais seu plano para conter os rejeitos no Rio Paraopeba, que contempla um trecho total de 210 quilômetros. Barreiras de retenção serão instaladas ao longo de um trecho de 170 quilômetros do rio.

Imagem do Paraopeba, antes e depois da lama, em Juatuba.
Imagem do Paraopeba, antes e depois da lama, em Juatuba. ARQUIVO PESSOAL

Também no caminho da lama, São José da Varginha, com 5 mil habitantes, se organiza sozinha para tentar mitigar os danos. Localizada a pouco mais de 90 km do local da tragédia, a cidade deve receber a lama nesta quinta-feira. “Organizamos um comitê com técnicos, veterinários e especialistas em meio ambiente”, afirma o Vandeir Paulino da Silva. A maior preocupação é mapear o impacto ambiental e econômico para os produtores que utilizam a água para irrigação, já que a água de consumo não vem do Paraopeba. “Por enquanto, não veio ninguém da Vale aqui”, diz o prefeito.

Os comitês brasileiros de bacia hidrográfica acompanham de perto o avanço da lama pelas cidades. Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, afirma que há uma perspectiva que quando a água contaminada pelos rejeitos da barragem chegar ao lago do Sobradinho, já na Bahia, ela estará diluída e não deva afetar os usos do rio. “Este é o melhor cenário, que aponta impacto praticamente aceitáveis. Mas é muito cedo para fazer previsões. Se chover muito, tudo pode mudar”, diz Miranda. As características do rio Paraobepas, mais plano do que o rio Doce, por exemplo, e as características da lama de rejeitos, são alguns dos fatores que podem ser considerados positivos para que o estrago não seja tão grande quando no desastre da Samarco, em Mariana.

A previsão do Serviço Geológico do Brasil é que a pluma comece a chegar à Usina Três Marias, a fronteira para entrar no rio São Francisco, localizada a cerca de 300km de Brumadinho, entre os dias 5 e 10 de fevereiro. A expectativa é que a própria contenção da represa ajude a mitigar os danos. “A velocidade da água está diminuindo. Estávamos em 1 km por hora, e hoje não passamos de 0,8 km”, afirma Miranda. Ele acredita que existe a possibilidade de a lama ficar pelo caminho. “O cenário para o São Francisco é bem menos ameaçador do que se imaginava, mas, em termos de biodiversidade, as perdas são incalculáveis.”


O Globo: Samarco deve R$ 350 milhões ao Ibama por desastre em Mariana

Empresa não pagou nenhum centavo ao órgão ambiental por rompimento de barragem há três anos

Por Mateus Coutinho, de O Globo

BRASÍLIA - Três anos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), a mineradora Samarco , que tem a Vale como uma de suas acionistas, ainda não pagou nenhum centavo de multa ambiental ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ( Ibama ). As informações são do próprio órgão, que informou ter instaurado 25 autos de infração que resultaram em multas da ordem de R$ 350,7 milhões à mineradora.

Os dados revelam a dificuldade que o governo federal tem para punir grandes empresas, mesmo após desastres, como o rompimento de barragens de rejeitos em Brumadinho (MG), que já levou a pelo menos 65 mortes e 279 desaparecidos. No episódio da última sexta-feira, o Ibama já multou a Vale em R$ 250 milhões, por meio de cinco autos de infração.

No caso de Mariana, a dificuldade para receber o valor das multas ambientais, segundo o próprio Ibama, vem dos recursos apresentados pela Samarco. De acordo com o órgão, a mineradora recorreu de todos os autos de infração e, mesmo após o órgão confirmá-los no âmbito administrativo, a empresa insiste em recorrer “buscando afastar sua responsabilidade pelo desastre”, afirmou o Ibama em nota.

“Nenhuma das multas ambientais foi paga até o momento. Medidas legais e necessárias à cobrança dessas multas estão sendo tomadas, inclusive a remessa dos débitos para inclusão na Dívida Ativa da União”, seguiu o órgão.

Considerado o maior desastre ambiental do país, a tragédia da Samarco levou a um número menor de mortos do que a de Brumadinho, o total de 19, mas envolveu um volume muito maior de rejeitos que impactaram 39 cidades ao longo da Bacia do Rio Doce.

No caso da Samarco, além das multas ainda não pagas, o Ibama expediu 73 notificações para exigir, dentre outras, a adoção de medidas de regularização e correção de conduta. Fora da esfera administrativa, a empresa também ainda não teve nenhum executivo condenado criminalmente, e o processo contra 21 réus acusados de envolvimento na tragédia corre na Justiça Federal em Minas e ainda está na fase de ouvir testemunhas.

A empresa também firmou no ano passado um Termo de Ajustamento de Conduta com os ministérios público federal e estadual em Minas, dos governos de Minas e do Espírito Santo além das defensorias públicas dos estados e da União.

Homologado pela Justiça Federal, o TAC prevê que uma ação civil cobrando R$ 20 bilhões da mineradora seja extinta e que outra ação movida pelo MPF cobrando R$ 155 bilhões fique suspensa por dois anos.

De acordo com o TAC, a Samarco deu garantia à Justiça do cumprimento de obrigações de custeio da organização dos atingidos e organização de fiscalização dos órgãos ambientais e financiamento de programas no valor de R$ 2,2 bilhões.

No caso de Brumadinho, além do Ibama equipes da Agência Nacional de Mineração (ANM) e dos órgãos de fiscalização estaduais, além do Ministério Público Federal, estão acompanhando o desenrolar da tragédia.


Míriam Leitão: Trem descarrilado da mineração

Por Alvaro Gribel (A colunista está de férias)

Para um setor que dobrou de tamanho em pouco mais de uma década e só no ano passado gerou US$ 20 bilhões em exportação, é inaceitável o jogo de empurra diante dos crimes ambientais em Mariana e Brumadinho. Em 2015, Vale e BHP tentaram se eximir de responsabilidade pela operação da Samarco, apesar de a empresa ser uma joint venture entre as duas gigantes da mineração, com 50% de participação de cada. Há um ano, o presidente da Vale, Fabio Schvartsman, dizia em um evento para investidores em São Paulo que o trabalho de recuperação do Rio Doce era “uma história extraordinária” e que a “resposta das duas companhias estava à altura do desastre”.

O que as reportagens mostravam era uma realidade diferente: muita reclamação, atrasos e um dano ambiental incalculável. Ontem, a bateção de cabeça envolveu o vice-presidente, Hamilton Mourão, que falou que o comitê de gestão de crise poderia recomendar a destituição da diretoria da Vale, apesar de não ter certeza de que isso era possível. Por se tratar de uma empresa privada com ações em bolsa, a afirmação causou estranheza. Certamente, não é esse o caminho para eventuais punições aos executivos da mineradora.

Logo em seguida, foi a vez do advogado Sergio Bermudes falar que a Vale não reconhecia responsabilidade pelo acidente e que pediria o desbloqueio de todos os seus bens. O sentimento de perplexidade foi generalizado, e a companhia se viu obrigada a soltar dois comunicados oficiais para desdizer o advogado. A Justiça criminal ficou parada após Mariana, os órgãos de fiscalização continuaram esvaziados diante da crise fiscal. A mineração no Brasil cresceu demais, e parece que não há ninguém no controle.

O DOBRO EM 15 ANOS
A produção de minério de ferro da Vale saltou 117% em 15 anos, como mostra o gráfico abaixo. Os relatórios anuais da companhia mostram que a extração saltou de 169 milhões de toneladas, em 2002, para 367 milhões em 2017 (o balanço de 2018 ainda não foi divulgado). O crescimento foi acelerado principalmente nos anos 2000, quando teve início o chamado “boom” das commodities. A demanda chinesa por produtos primários aumentou, e isso fez disparar os preços nos mercados internacionais. A maior parte desse aumento de produção, porém, aconteceu no chamado Sistema Norte, puxado por Carajás, no Pará, que tem um minério mais rico e não utiliza barragens como as de Minas Gerais.

QUEDA LIVRE NA BOLSA
A perda de valor da Vale na bolsa — a maior da história em um único dia segundo a Economática —mostra que o investidor entendeu que ela tem responsabilidade na tragédia. A opinião contrária do advogado da companhia não convenceu. Karel Luketic, analista-chefe da XP, conta que a atenção dos investidores está voltada para as repercussões na Justiça, aqui e lá fora. As perdas não serão só financeiras, já olhadas com lupa pelas agências de classificação de risco. A investigação poderá manchar ainda mais a imagem da empresa. Ontem, a Fitch rebaixou a mineradora.

EM MINAS, PREOCUPAÇÃO FISCAL
Em Minas, além do choque com a tragédia, há a preocupação com a crise fiscal. No ano passado, somente a extração de minério de ferro gerou R$ 914 milhões em receitas ao governo, sem contar os efeitos indiretos sobre a cadeia de fornecedores. Um forte abalo nessa indústria poderia agravar ainda mais as contas estaduais. O orçamento mineiro já prevê R$ 11,5 bilhões de déficit este ano.

Com Marcelo Loureiro


Hélio Schwartsman: Sirenes que não soam

Andar de bicicleta sem capacete só mudou após aprendermos mais sobre traumas

Nossa espécie é péssima em avaliar riscos. Um ser humano típico tem medo de cobras e tubarões, mas não hesita muito em fumar ou acelerar seu carro. Nos EUA, onde as estatísticas são mais confiáveis, cobras e tubarões matam, respectivamente, cinco e 0,5 pessoas por ano, enquanto o cigarro e os acidentes de trânsito geram 480 mil e 35 mil óbitos anuais.

Nossa sirene interna dispara diante de ameaças que perderam relevância no ambiente urbano, mas é cega para perigos produzidos pela modernidade, como morar a jusante de barragens ou construir cidades em zonas de terremoto.

Imagino que a fiscalização precária e sede de lucros contribuíram para a tragédia em Brumadinho, mas o ingrediente que mais me chama a atenção é que os dirigentes da Vale acreditavam que a barragem era segura, tanto que instalaram o refeitório da empresa bem abaixo dela. De algum modo, a noção de que todo projeto de engenharia carrega risco e a informação de que operavam com uma tecnologia ultrapassada, cuja avaliação de segurança está repleta de pontos cegos, não foram assimiladas pela cúpula da empresa —o que é assustador para uma companhia que lida essencialmente com problemas de engenharia.

Espero que o desastre sirva para arrefecer o clima de “liberou geral” que o governo Bolsonaro prometia levar à área ambiental. Olhando para a frente, seria importante desenvolver mecanismos para que empresas e a própria legislação não se acomodem com as tecnologias antigas e busquem continuamente aprimoramento na segurança, mesmo que a um sobrepreço.

A garotada da minha geração andou de bicicleta e skate sem capacete e isso era visto como normal. À medida que aprendemos mais sobre traumas, o comportamento foi reclassificado como de risco e hoje poucos pais deixam os filhos brincar sem proteção. Essa cultura de busca constante por mais segurança precisa ser disseminada.


Gil Castello Branco: Mariana, Brumadinho e...

No triste fim de semana passado, lembrei-me de um texto de George Santayana, filósofo e poeta espanhol. Uma das frases é instigante: “...quando a experiência não é retida, como acontece entre os selvagens, a infância é perpétua.”

De fato, três anos após a tragédia de Mariana, apesar das inúmeras advertências da academia, dos ambientalistas e do Ministério Público, o que aprendemos?

Foram 19 mortos e nenhuma condenação; empresas envolvidas em desastres ambientais quitaram apenas 3,4% dos R$ 785 milhões aplicados em multas; das 24.092 barragens cadastradas no país, apenas 3% foram vistoriadas em 2017 e, dentre essas, 723 apresentam riscos de acidentes e danos potenciais altos; famílias que tiveram suas vidas destruídas pelo rompimento da barragem do Fundão (2015) ainda aguardam indenizações, pois o acordo entre a promotoria e as mineradoras foi fechado apenas em outubro do ano passado, quase três anos após a tragédia.

Na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, somente um dos três projetos de lei apresentados pela Comissão Extraordinária de Barragens foi aprovado. Dormem em gavetas os outros dois, que preveem restrições para a construção de barragens e direitos para os atingidos. No Senado, projeto que endurecia a política de segurança de barragens foi arquivado.

Muitas perguntas objetivas continuam sem respostas consistentes: o que foi feito para recuperar o Rio Doce? Quais as medidas adotadas para aprimorar a fiscalização das barragens?

Nesse marasmo irresponsável, lamentavelmente a história se repetiu em Brumadinho. A impunidade em relação ao que ocorreu na barragem do Fundão, em Mariana, é certamente uma das causas da tragédia de Brumadinho. O rompimento da barragem da Vale na Mina do Feijão não foi, obviamente, um acidente ocasional. Em Mariana e Brumadinho, o que ocorreu foram crimes, praticados pelas empresas que negligenciam na construção, manutenção e no monitoramento desses empreendimentos e pela leniência do Estado na concessão de licenciamentos e na fiscalização. Dessa forma, além da indignação e da vergonha que sentimos como brasileiros, precisamos cobrar as punições dos agentes privados e públicos.

O enredo e o filme são conhecidos. As autoridades sobrevoam a área devastada, declararam estado de calamidade e prometem providências e recursos. Os dados orçamentários, porém, também espelham o descaso do poder público.

Conforme dados pesquisados pela Associação Contas Abertas, com base em critérios de um estudo de técnicos do Senado, nos últimos 19 anos (2000 a 2018) dos R $444,4 milhões autorizados no Orçamento da União para ações destinadas às barragens, efetivadas pelos ministérios da Integração, Minas e Energia e Meio Ambiente, somente R$ 167,3 milhões (37,6%) foram realmente pagos. Logo após o maior acidente ambiental do país, em Mariana, em 2015, no auge da consternação, o orçamento conjunto das pastas destinado às barragens praticamente dobrou, passando de R$ 62,3 milhões para R$ 121,9 milhões (2016). No entanto, no fim de 2016 o valor efetivamente gasto somou apenas R $22,7 milhões, praticamente o mesmo de 2015. Em 2017, o gasto efetivo ficou no mesmo patamar, tendo aumenta dopara a casados R $32,8 milhões em 2018. Para 2019, pasmem, o valor autorizado é de apenas R$ 67,9 milhões, praticamente o mesmo de 2015, o ano da tragédia de Mariana!

Para que o leitor tenha uma ideia de quanto são insignificantes esses dispêndios, o valor pago no ano passado (R$ 32,8 milhões) é inferior às despesas da União com festividades e homenagens (R$ 40,4 milhões).

O minguado orçamento para ações relacionadas às barragens é mais uma evidência de que não absorvemos as experiências passadas. Assim, vale a pena reler as frases finais de um parágrafo do texto do espanhol George Santayana, publicado em “A vida da razão” (1905): “...quando a experiência não é retida, como acontece entre os selvagens, a infância é perpétua. Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Quando irá acontecer a próxima tragédia?