Keigo Higashino

RPD || André Amado: Uma nova narrativa em histórias policiais

Em tempos de isolamento social por conta dos riscos do coronavírus Covid-19, André Amado nos presenteia com um pouco da obra de Keigo Higashino em seu artigo, onde analisa o livro Malice

Como muitos de minha geração, integrantes contrariados de um tal grupo de risco, cumpro isolamento impiedoso. No meu caso, vigiam-me a inflexível D. Paula e minhas cinco filhas. Aproveito, então, para ler, escrever, pensar, dormir e, torcendo para que as filhas menores não consigam escapar das atividades/incumbências orquestradas pela sempre criativa mãe, não fazer nada, absolutamente nada.

O último livro que li foi Malice (1996), de Keigo Higashino. A escolha foi influenciada pela lembrança festiva de outra obra dele, The Devotion of Suspect X (1994), que lhe valeu a referência mercadológica, para mim mais do que justificada, de “The Japanese thriller phenomenon”.

Em The Devotion of Suspect X, Higashino ambienta a história na cidade de Tóquio, mas como se estivesse em uma planície. A narrativa se desdobra em linha reta, sem trepidação nem sacolejos, a tal ponto que cheguei algumas vezes a pensar em fechá-lo. E, de repente, como se fosse uma serpente bravia, a história enrosca a trama, o Norte vira Sul, o Leste, Oeste, e o leitor é sacudido na poltrona, fascinado pela surpresa, agradecido de não ter interrompido a leitura, sorvendo o desfecho como uma taça de vinho de fina cepa.

Foi assim esperançoso que abri Malice. Nada a ver com a obra anterior, porém, embora tivesse suas qualidades. A se confiar na qualidade da tradução do japonês para o inglês, o que, de resto, é a regra com best-sellers, o livro é bem escrito, obedece à recomendação de ouro do gênero policial, de usar estilo ágil e direto, apresenta personagens críveis, com perfis psicológicos intrigantes, e se desenrola em trama que oculta mais do que revela, em sintonia com os cânones das boas histórias de detetives.

É possível que Higashino tenha lido The Chamber, de John Grisham (1994), antes de escrever Malice, porque o escritor norte-americano leva o leitor às últimas gotas da angústia à espera de uma reviravolta jurídica que corrija uma injustiça e livre Sam Cayhall da pena de morte. Quem ler o livro saberá como Grisham resolveu a situação e, mais tarde, quando for a vez de Malice, poderá embarcar em sofreguidão semelhante. É que, mesmo depois de o suspeito de assassinar seu amigo de infância confessar o crime, declinar os motivos de seu ato, o detetive japonês encarregado do caso, qual um pastor alemão, aceita a confissão de morte, mas se encrespa quanto aos motivos e passa a investigar a vida pregressa e presente do acusado.

Agora, o leitor está dividido. Deve esperar um desfecho surpreendente, à la The Devotion of Suspect X, torcendo para que as novas investigações revelem até mesmo que o acusado seja inocente, ou, ao contrário, acompanhar de coração apertado que o nó da forca se contraia ainda mais em torno do pescoço do alegado assassino?

Higashino decidiu não facilitar a vida do leitor. Recorre a um expediente ficcional não muito frequente. Alguns escritores alternam a voz narrativa entre a primeira e a terceira pessoa, em função do efeito dramático que pretendem emprestar ao relato – mais objetivo, no caso da terceira pessoa, e mais humano, senão mais confiável, com o personagem intervindo com sua própria voz, acrescentando talvez credibilidade à sua fala. Garcia-Roza, entre tantos outros, usou esse expediente desde seu primeiro romance, O silêncio da chuva (1996).

Mas Higashino vai mais longe. Ele entrega todo um capítulo aos personagens centrais, que se alternam na função de narrador do romance. A. S. A. Harrison, em The Silent Wife (Penguin Books, 2013), e Gregg Olsen, em Lying Next to Me (Thomas & Mercer, Amazon, 2019), adotam o mesmo procedimento. Confesso que eu me perco um pouco.

Na tradição das histórias de detetives, o narrador não pode saber mais do que os personagens, porque cada um deve estar no universo de sua ação. Tal conduta ajudaria a evitar que o narrador possa julgar seus personagens, atitude pouco admirada por alguns críticos literários. É verdade que, nos romances de Agatha Christie, Hercule Poirot monopoliza a cena no final das histórias assumindo a função de narrador e desvendando, para sua audiência cativa, dentro da qual estará o assassino (no plural, no caso de Expresso do Oriente), a identidade do criminoso, os motivos de seu ato e a maneira como o perpetrou.

Mas a técnica de Higashino é diferente, a ponto, por exemplo, de o último capítulo de Malice ser, na verdade, um monólogo do detetive para benefício do acusado – e, claro, do pobre leitor –, que só então se inteirarão do resultado das investigações, um volume demolidor de provas e fundamentações jurídicas terminais, organizadas precipuamente na cabeça do detetive.