kamala harris

El País: Heróis negros esquecidos pela História do Brasil

Enciclopédia reúne biografias de 550 intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... que foram escravos ou descendentes

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

A cor da pele é provavelmente a única coisa que a vereadora de esquerda Marielle Franco, assassinada há três anos no Rio de Janeiro, e Chico Rei, um membro da família real do Congo que foi sequestrado com a família e alguns súditos para serem escravizados nas minas de ouro brasileiras no século XVIII, têm em comum. Graças à sua perícia no ofício, conseguiu comprar sua liberdade, a de outros e voltar a ser reconhecido como alguém importante. Ambos estão entre os 550 protagonistas da Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), recentemente publicada no Brasil, que resgata histórias de mulheres e homens negros e mestiços esquecidos no relato sobre a construção nacional.

Mais da metade dos 210 milhões de brasileiros é composta atualmente por negros ou mestiços. Graças às cotas, no ano passado superaram os brancos nas universidades. Sempre viveram pior do que seus compatriotas brancos, apesar de a igualdade estar consagrada na lei e ao fato de que não houve segregação legal em tempos recentes como nos Estados Unidos. E agora o coronavírus vitima especialmente os afro-brasileiros. Sem o trabalho forçado de seus antepassados, as imensas riquezas geradas pelo açúcar, o ouro e o café nunca teriam existido.PUBLICIDADE  

A historiadora Lilia Schwarcz, uma das coautoras, explica por telefone: “Queremos dar alma e rosto a esses heróis cotidianos que foram silenciados e apagados pela história”. A obra “é parte do ativismo negro para recontar de maneira mais plural a chamada história universal, que é muito colonial, muito branca e muito masculina”, acrescenta Schwarcz, considerada uma referência no Brasil.

A enciclopédia começa com Abdias do Nascimento (1914-2011) e termina com Zumbi (1655-1695) em um percurso que vai do século XVI ao XXI. Ou seja, de um intelectual, artista e deputado que criou o Teatro Experimental do Negro e deu aulas nas Universidades de Yale e Ifé (Nigéria) até um ex-escravizado do Brasil colonial que liderou uma república de libertos que foi convertido séculos depois no grande símbolo da resistência negra aos portugueses e holandeses. Todo dia 20 de novembro, data da execução de Zumbi, o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra.

Junto com personalidades conhecidas que entraram nos livros escolares nos últimos anos, os autores incluíram um rico mosaico de pessoas desconhecidas representando os milhões de pessoas escravizadas e seus descendentes. A ideia dos autores é contar “a potência de tudo o que fizeram, que foi muito mais do que sobreviver”. Alertam que em alguns casos os fatos se confundem com a lenda.

Os protagonistas, apresentados em ordem alfabética, são intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... As conquistas, façanhas e vitórias descritas compõem uma avassaladora diversidade de trajetórias e origens, coisa pouco frequente neste país continental muitas vezes ensimesmando no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.

Afra Joaquina Vieira Muniz, que está na capa do grosso volume, ilustra como era complexa a rede da escravidão no último dos países das Américas a aboli-la, em 1888. Nascida em Salvador, era uma pessoa escravizada cuja liberdade lhe foi dada por um antigo senhor ao casar-se com ela. Quando este morreu, por volta de 1870, legou-lhe todos os bens e duas mulheres que ficavam livres com a condição de cuidar da viúva até sua morte. As duas denunciaram Afra Joaquina à Justiça por maus-tratos, mas perderam a ação e tiveram de ficar com ela.

Pretextato dos Passos abriu em 1885 a primeira escola para crianças negras, que não eram aceitas nas escolas de brancos; Benjamim de Oliveira foi o primeiro palhaço negro; a professora Antonieta Barros, deputada pioneira em 1935 na muito branca Santa Catarina. Luiz Gama, que o próprio pai vendeu como pessoa escravizada, foi revendido, conseguiu fugir para se tornar funcionário público e depois advogado. Obteve nos tribunais a liberdade de outras pessoas antes de morrer em 1882 aos 52 anos.

Claudia Silva Ferreira, uma faxineira que tinha quatro filhos, se tornou uma das milhares de vítimas de balas perdidas em tiroteios durante operações policiais em 2014. Ferida, foi colocada por alguns policiais no porta-malas do carro patrulha dizendo que a levariam ao hospital. Mas a tampa se abriu e ela caiu. Foi arrastada por 400 metros até que os policiais perceberam. Morreu antes de chegar ao hospital e estava prestes a se tornar mais um número de uma volumosa estatística. Mas, como aconteceu agora com George Floyd, alguém filmou a cena macabra e essa morte adquiriu importância social.

Alguns dos resenhados são personalidades destacadas que durante décadas foram brancas aos olhos de seus compatriotas. O caso mais marcante é o de Joaquim Machado de Assis (1839-1908), o grande romancista, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras, que em sua imagem mais conhecida foi imortalizado como um branco. Enorme foi a surpresa de muitos quando descobriram a verdade graças à campanha de uma universidade.

A historiadora destaca que queriam publicar a Enciclopédia Negra exatamente agora porque 2022 é um ano importante. O Congresso tem previsto avaliar as cotas universitárias, que nos últimos anos engendraram uma geração de graduados negros e pobres, o que representa uma profunda mudança nesta sociedade racista e classista. Também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. E o centenário da Semana de Arte Moderna, que deu personalidade própria à arte moderna brasileira, mas excluiu o escritor Afonso Lima Barreto pela cor da pele.

As biografias são resultado da pesquisa de Schwarcz e de seus coautores —o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano— e, sobretudo, de centenas de teses de doutorado inéditas. O livro foi publicado por uma das principais editoras do Brasil, a Companhia das Letras, cofundada pela historiadora.

As mulheres são maioria e todas as 550 têm nome, mas em alguns casos foi impossível saber seus sobrenomes. E como não havia imagem alguma de muitos, encarregaram a 36 “artistas, negras, negros e negres”, nas palavras dos autores, que lhes dessem um rosto. Esses retratos de protagonistas que abrangem profissões, origens, gêneros e orientações sexuais diversas serão apresentados em uma exposição na Pinacoteca de São Paulo assim que a pandemia permitir.


Folha de S. Paulo: 'Somos parte do legado de Floyd', diz Kamala Harris após veredicto de ex-policial

Para Joe Biden, condenação de Derek Chauvin pode ser 'grande passo adiante' nos EUA

Patricia Pamplona, Folha de S. Paulo

Legado foi a palavra que permeou o discurso da vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, e do mandatário americano, Joe Biden, sobre a condenação de Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd, nesta terça (20).

ex-policial foi considerado culpado pelo assassinato e condenado em três categorias de homicídio. A duração da pena será anunciada em até oito semanas, e ele pode pegar até 40 anos de prisão.

Primeira mulher negra na Vice-Presidência americana, Kamala falou primeiro e afirmou que o veredito é um passo, mas ainda há trabalho a fazer e insistiu que o Senado aprove a Lei George Floyd de Justiça no Policiamento, apresentada em agosto do ano passado.

“Precisamos reformar o sistema. Essa lei é parte do legado de George Floyd”, disse a vice, descendente indiana e jamaicana. “Somos todos parte do legado de George Floyd, é nosso dever honrá-lo.”

Kamala sublinhou ainda as difíceis condições de pessoas negras no país. “Americanos negros e homens negros em especial têm sido tratados como se fossem menos que humanos”, afirmou a vice. “Suas vidas precisam ser valorizadas em nossos sistemas educacional, de habitação, judiciário e na nossa nação.

Na sequência, o presidente também insistiu na necessidade de reformas. “[O caso] Abriu os olhos para o racismo sistêmico que é uma mancha na alma da nossa nação”, disse Biden. “Esse pode ser um grande passo adiante.”

O democrata reconheceu a importância do veredito, apesar de criticar que não deveria levar um ano para que o caso fosse concluído, e ressaltou que o resultado é uma raridade nesses tipos de casos.

“Esse veredito não traz George de volta, mas por meio da dor, sua família encontrou propósito. Precisamos fazê-lo por sua memória”, disse Biden. “Vamos fazer com que esse seja seu legado, um legado de paz, não de violência."

O presidente condenou ainda protestos violentos que tentam atrapalhar o caminho para a justiça racial. “Não podemos deixar que tenham sucesso. Não pode haver um porto seguro para o ódio nos EUA.”

No ano passado, durante as manifestações antirracismo que se espalharam pelo país, indivíduos que eram contra os atos investiram contra ativistas com atropelamentos, armas de fogo, motosserra e até arco e flecha.

Em um dos casos, em junho do ano passado, um homem branco usou o carro para entrar no meio de uma manifestação em Seattle, no estado de Washington. Um dos ativistas, um homem negro, tentou impedi-lo e acabou baleado no braço.

Empunhando a arma, o motorista deixou o carro e correu entre a multidão até se entregar à polícia. Segundo autoridades locais, o manifestante baleado foi levado ao hospital em condições estáveis, e ninguém mais ficou ferido.

Na conclusão de sua fala, Biden lembrou as últimas palavras ditas por Floyd: “Eu não consigo respirar”. “Não podemos deixar que elas morram com ele”, disse o presidente. “Temos a chance de começar uma mudança na trajetória desse país. Espero fazer jus ao seu legado. Esse pode ser um momento de mudança significativa.”


Dorrit Harazim: Pente finíssimo

Esta foi a semana inaugural da vice-presidente pinçada por Joe Biden para estar a seu lado — ou no seu lugar — no comando do país até 2025. Foi de Kamala Harris o voto de minerva no Senado que permitiu a tramitação do pacote emergencial de estratosféricos US$ 1,9 trilhão (R$ 99,5 trilhões) destinado a reparar a devastação nacional causada pela Covid-19. A votação durou 15 horas, terminou às 5h30m da madrugada de anteontem, e sua tramitação recheada de 40 emendas volta agora para a Câmara dos Representantes. Um marco e tanto.

A partir de terça-feira, quando o segundo pedido de impeachment de Donald Trump aportar no mesmo Senado rachado em 50-50, a inquisitiva ex-senadora Harris fará falta nas arguições — se arguição houver. É mais provável que nem sequer haja condenação, pois, para ser aprovada, são necessários dois terços dos votos. Na improvável hipótese de que seja aceita uma votação extra, por maioria simples, sobre Trump ser proibido de exercer qualquer cargo público futuro, Kamala estará a postos em caso de empate na votação. Ao longo da história, o voto de minerva que compõe as atribuições da Vice-Presidência já foi exercido 268 vezes.

A equipe de Biden que garimpou Kamala Harris trabalhou em duplas por três meses durante a campanha. Da primeira seleta de 23 sabatinadas, e da avaliação das montanhas de documentos por elas fornecidos, haviam sobrado 11. Várias chegaram a classificar o questionário de mais de 120 perguntas como “invasivo” e “extenuante”. Ao final de 120 horas de entrevistas, sobraram Kamala e Susan Rice, a assertiva ex-assessora de Segurança Nacional de Barack Obama, também negra. Biden só foi chamado a tomar sua decisão histórica na reta final. E, sendo quem é, telefonou pessoalmente às 11 descartadas para atenuar o desapontamento e agradecer a dedicação.

A cortesia e civilidade do 46º ocupante da Casa Branca são inerentes a sua índole. Mas o rigor na seleção de quem deve ou não se juntar à equipe, Joe Biden aprendeu com Barack Obama, seu chefe e parceiro inseparável por oito anos. O presidente americano de número 44 entrará para a história com uma marca invejável: permaneceu no cargo por dois mandatos sem um só grande escândalo financeiro, ético ou moral por parte de sua equipe. Obama traçara essa linha vermelha por saber que o grande teste de liderança para qualquer presidente começa na escolha dos que ocuparão cargos críticos no governo. O Brasil e Jair Bolsonaro que o digam.

O método Obama foi impiedoso com os postulantes. Tinha como pedra fundamental um questionário de 63 itens que não deixavam nada insepulto. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um presidente submetia a crivo tão invasivo candidatos aos 15 cargos do primeiro escalão e aos 800 postos executivos que dependem de aprovação pelo Senado. No total, o questionário contemplou todos os cerca de 7 mil postos do governo federal sujeitos à indicação do presidente. Vários postulantes de renome acabaram desistindo no meio do caminho. Outros recorreram a advogados próprios para se aconselhar sobre os riscos de omitir algum pecadilho por e-mail, alguma distração financeira, alguma referência acadêmica imprecisa.

E aquela contratação de doméstica sem registro, dez anos antes? Sim, porque o tal questionário esquadrinhava retroativos a uma década. Qualquer presente de mais de US$ 50 recebido de pessoa fora do círculo familiar ou amical precisava ser listado. O propósito do questionário não era montar um governo reservado a virgens de qualquer pecado. Para Obama, tratava-se de conhecer os riscos da contratação. Não era necessariamente um veto, serviria de norte. E funcionou.

À época, o advogado E. Pendleton , sabatineiro de candidatos na era Ronald Reagan, indignou-se: “Não entendo como alguém com um mínimo de autoestima possa se sujeitar a tudo isso... É apavorante, qualquer candidato que preencha o questionário fica em pânico de ter cometido algum engano”. Os sabatineiros da era Obama trabalhavam seguindo o mantra do “se nós achamos algo, alguém mais também vai acabar achando”.

Biden conhece como poucos as armadilhas do poder, em particular as do Legislativo, onde atuou por mais de 30 anos. Estava atento quando Trump, a poucas horas de partir da Casa Branca, deu uma última carteirada braba: aboliu a quarentena de cinco anos que impedia ex-funcionários federais de exercer a profissão de lobista. Uma das primeiras ordens executivas de Biden ao se sentar no Salão Oval foi restabelecer a proibição por pelo menos dois anos. Também vetou a difundida prática conhecida como “paraquedas dourados”, que permitia aos novos nomeados receber mimos de ex-patrões do setor privado.

Fred Dombo é especialista em legislação de lobby e ética de compliance num grande escritório de advocacia de Washington. Sua avaliação da questão é de veterano. Acha louvável a retificação de curso acenada por Biden, mas conclui que, no final das contas, o decisivo acaba sendo sempre o indivíduo — picareta não se torna honesto por implementação de normas. Nem quem é honesto vira picareta diante de oportunidades.

Em tempo: o link para o Questionário Obama é https://cutt.ly/kkxCcUO

Vale dar uma espiada e imaginar sua aplicação no Brasil. 


Cristina Serra: A democracia nas Américas

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar

As imagens de celebração nos Estados Unidos mostram um carnaval incomum. Uma explosão de alegria e alívio por se verem livres do governante que exerceu o poder com doses extremadas de ódio, mentira e violência.

Biden venceu porque conseguiu convencer a maioria dos eleitores de que será capaz de restaurar a civilidade no jogo político. O jogo é bruto, mas para ter sua legitimidade reconhecida precisa ser exercido com algum nível de lealdade e respeito às regras. Fora isso, é a barbárie, que seria aprofundada num segundo mandato de Trump.

Sua derrota é o triunfo de uma percepção de sociedade em que se espera que haja lugar para todos, em que pese a profundidade do abismo que separa as classes. Por isso, a palavra "possibilidade" tão presente nos discursos de vitória da dupla Biden-Harris.

Mais do que palavras, porém, a poderosa figura de Kamala Harris é a tradução concreta dessa possibilidade. Mulher, negra e filha de imigrantes, ela chegou lá, na chapa com o político branco e rico, há 50 anos no mainstream da política.

A dupla vencedora é a imagem síntese das contradições e das possibilidades na sociedade norte-americana. Se isso vai se refletir em políticas de redução ou contenção das desigualdades, só os próximos quatro anos vão dizer.

A chapa eleita também encarna a vitalidade da política identitária. No seu discurso, Biden deu ênfase à necessidade de erradicar o racismo sistêmico e destacou a participação de gays, transgêneros, latinos, asiáticos e populações nativas na aliança que o alçou à vitória. Um contraste notável com seu oponente.

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar, bem como os acontecimentos recentes no Chile e na Bolívia. A extrema direita conta com a apatia e o cansaço da população com a política. É contra esse desânimo que as forças progressistas no Brasil têm que lutar. Não inventaram nada melhor que a democracia para derrotar a barbárie.


Ana Cristina Rosa: Yes, we can'

Kamala Harris tem significado enorme em termos de representatividade

As Américas estão vivendo em 2020 um ano memorável para as mulheres na política. Depois das conquistas femininas na Bolívia e no Chile, pela primeira vez uma mulher, negra de ascendência asiática, chega à Vice-Presidência de um dos países mais influentes do planeta.

A vitória da chapa Biden-Harris é um marco dos mais significativos na luta pela igualdade de gênero e de raça não só nos Estados Unidos, mas também no mundo. Como vice-presidente, Kamala será também a pessoa que irá presidir o Senado.

O ineditismo da eleição de Kamala Harris para Vice-Presidência dos Estados Unidos tem significado enorme em termos de representatividade. Por representatividade, entenda-se permitir que as pessoas, sobretudo as que integram grupos que estão à margem das esferas de poder e de decisão, se reconheçam no outro.

E isso não diz respeito necessariamente a minorias quantitativas, mas também a grupos numerosos que são minorizados em termos de representação. É sentir-se capaz a partir da linha do exemplo, independentemente de rótulos e preconceitos.

A mensagem é clara por si, mas foi reforçada e explicitada por Kamala em seu primeiro discurso como vice-presidente eleita ao dirigir-se às crianças do país e recomendar que "sonhem com ambição, liderem com convicção e se vejam onde os outros podem não ver, simplesmente porque eles nunca viram antes".

Esta não é a primeira vez que Kamala Harris desbrava e conquista espaços, ajudando a abrir o caminho para as mulheres que seguramente virão depois. Como ela mesma afirmou, "serei a primeira vice-presidente dos Estados Unidos, mas não serei a última". Ela foi a primeira pessoa negra a assumir a procuradoria-geral da Califórnia e uma cadeira no Senado por aquele estado.

A eleição de uma mulher negra para o segundo mais alto cargo eletivo da maior potência do mundo ocidental traz à memória o slogan de campanha do primeiro negro eleito presidente dos EUA: "Yes, we can".


Ricardo Noblat: No “debate da mosca”, a vice de Biden engole o vice de Trump

Pesquisa confere vitória a Kamala

A senadora Kamala Harris, a vice na chapa de Joe Biden, candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos, é uma jiboia: pega sua presa, prende, aperta, se enrosca nela e a tritura até o último osso. Foi o que fez, ontem à noite, com Mike Pence, o vice de Donald Trump e candidato à reeleição.

Foi por uma diferença de sete pontos percentuais que Biden venceu Trump no primeiro debate entre os dois. O segundo e último debate será travado na próxima semana se Trump puder comparecer, uma vez que se recupera do vírus que o infectou. Pegar o vírus, segundo ele, foi “uma benção de Deus”.

Divulgada pela rede de televisão CNN no início desta madrugada, a primeira pesquisa sobre o debate entre Kamala e Pence apontou uma vitória da senadora pelo elástico placar de 59% contra 38% de Pence – diferença de 21 pontos percentuais. Se não foi um massacre, foi quase isso, e nada teve a ver com a mosca.

Por pouco mais de dois minutos, uma mosca, certamente de origem chinesa, passeou sobre os cabelos brancos de Pence que não passou recibo – por não tê-la visto ou porque fingiu não vê-la. Como os americanos têm mania de dar nome a tudo, certamente esse será conhecido no futuro como o “debate da mosca”.

Acima de tudo, foi um debate bem educado, à moda antiga, nada que lembrasse o quase não debate entre Trump e Biden marcado pela estupidez do presidente que interrompeu por mais de cem vezes, durante uma hora e meia, a fala do seu adversário, e a do mediador que tentava pôr ordem à discussão.

Pence jogou para os eleitores cativos de Trump. Kamala, para os eleitores ainda indecisos. Houve momentos, principalmente quando a Economia estava em cena, que Pence foi melhor. Mas no resto, Kamala dominou o debate. Ela é carismática, Pence não. Ela fala com a boca e o corpo, ele parece um robô programado.

A senadora teve o cuidado de não ser agressiva, pois entre os eleitores brancos são muitos os que acusam as mulheres negras de serem agressivas. Mas usou palavras duras para criticar Trump e seu vice. Acusou-os de racismo e de subestimar a pandemia que matou mais de 200 mil pessoas nos Estados Unidos.

E repetiu duas vezes, de olho na câmera, a frase que pode ter ficado na memória de muitos que assistiram ao debate:

– Eles sabiam o que estava acontecendo e não lhe contaram.

Bolsonaro detona a Lava Jato e Fux sai em socorro dela

Quem mandou acreditar no ex-capitão…

E agora que Jair Bolsonaro decretou o fim da Lava Jato, o que dirão os que votaram nele por acreditar que em seu governo a Lava Jato seguiria em frente, para o alto, e cada vez mais forte?

Opinião é direito de todo mundo, mas fato é fato. Bolsonaro se elegeu pegando carona na Lava Jato. Fez de Sérgio Moro, o líder da Lava Jato, seu ministro da Justiça (fato).

Até desentender-se com ele por tentar intervir na Polícia Federal, sempre falou bem da Lava Jato. Para ontem, finalmente, anunciar que acabou com a Lava Jato (fato).

Não lhe cabe acabar com a Lava Jato. Quem pode fazê-lo é a Procuradoria-Geral da República. Assim, o anúncio trai sua intenção de ver a Lava Jato no buraco, mas não passa disso.

A Procuradoria virou um puxadinho do Planalto (opinião, embora compartilhada por grande parte dos procuradores). Augusto Aras, seu chefe, quer extinguir a Lava Jato.

Por que Bolsonaro virou um inimigo da Lava Jato? Porque virou um inimigo de Moro e teme que ele possa atrapalhar sua reeleição (fato). Mas não só por isso. Tem mais.

Bolsonaro nasceu para a política dentro do Centrão, cresceu dentro do Centrão, trocou oito vezes de partidos, todos eles do Centrão, e chamou o Centrão para ajudá-lo a governar. São fatos.

É fato: o Centrão está repleto de deputados e senadores denunciados pela Lava Jato. Os que não foram, a detestam. Bolsonaro agrada o Centrão em troca de votos.

Quanto ao que afirmou, que não precisa da Lava Jato porque o seu é um governo sem corrupção, não é fato. É fake – no caso, para ver se diminui a insatisfação dos bolsonaristas órfãos de Moro.

Trump não teve o descaramento de proclamar nas últimas horas que contraiu o Covid-19 de tanto se expor a ele em defesa da saúde dos norte-americanos? Charlatanice pura!

Bolsonaro copia Trump. Mente sem receio. Falsifica fatos. Nega o impossível, porque aposta que sempre haverá uma parcela de público disposta a lhe dar crédito. E haverá, sim.

Sob nova administração, a do ministro Luiz Fux que sucedeu na presidência a Dias Toffoli, aliado de Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal decidiu dar mais um respiro à Lava Jato.

Doravante, caberá ao plenário, formado por 11 ministros, julgar as ações da Lava Jato, não mais à Segunda Turma composta por apenas cinco ministros. Em Fux, Moro sempre confiou.

Celso de Mello, o ministro que sai, faz parte da Segunda Turma, o endereço mais provável do novo ministro que chegará ali para votar como Bolsonaro quiser, e depois ir beber tubaína com ele.

Fux deu um chega pra lá em Bolsonaro, nos seus colegas Gilmar Mendes e Toffoli, padrinhos do ministro que Bolsonaro escolheu, e fixou limites ao aparelhamento do tribunal.

No final de maio último, Bolsonaro quis fechar o Supremo. Agora, quer dominá-lo.


Dorrit Harazim: O fator Kamala

Biden precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump

Que ninguém se engane: a indicação de Kamala Harris como vice do candidato democrata Joe Biden, que em novembro próximo disputa a Presidência com Donald Trump, é coisa grande. Não por ter sido surpresa — Harris sempre esteve entre as primeiras da lista de 11 finalistas sabatinadas para o cargo. É coisa grande por abrir caminho, algum dia e com séculos de atraso, a um autorretrato mais verdadeiro da sociedade americana em acelerada mutação.

Para Donald Trump e sua América nostálgica dos anos 1950, a indicação da senadora multirracial é desconcertante. Por um lado, fica difícil acenar com o fantasma do crime e caos urbano dominarem o país em caso de vitória democrata. O currículo de Harris, quando procuradora-geral da Califórnia, foi notoriamente durão — demais, até, para muitos jovens negros da época. Trump também não irá muito longe com seu bordão apocalíptico de uma “América comunista”, dado que Harris nunca foi da ala mais radical/progressista do Partido Democrata. Por fim, acusar a adversária de chapa, abertamente, de ser mulher, negra e de ascendência asiática, pode ser arriscado demais. Trump até tentou, em entrevista à rádio Fox Sports. Sugeriu que “algumas pessoas” diriam que “homens” poderão se sentir “insultados” com a indicação de uma mulher — tudo em fraseado indireto e no condicional, não atribuível a ele.

Kamala, como a candidata a vice prefere ser identificada em campanha, encarna tudo o que desestabiliza a escassa autoconfiança do ocupante da Casa Branca. Ela sabe quem é e domina o poder que deriva desse autoconhecimento. É debatedora afiada, capaz de desconcertar pesos pesados como o ex-ministro da Justiça Jeff Sessions e o ministro do Supremo Brett Kavanaugh, em sabatinas no Congresso. Foi impiedosa com o próprio Biden no primeiríssimo debate entre a plêiade de candidatos à indicação democrata, o que lhe valeu críticas de deslealdade partidária.

Ainda assim, Biden não a teme, precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump e servir de transição para tempos mais civilizados. Será presidente de um só mandato, se eleito e empossado aos 78 anos. Precisa de alguém capaz de substituí-lo desde o dia de sua posse.

Kamala Harris, de 55, é uma assombração para Mike Pence, o atual vice-presidente que mantém fidelidade ladina a Trump, pois pretende sair candidato solo em 2024. Seu debate televisivo com a adversária democrata tem tudo para ser tão faiscante quanto os dois confrontos agendados entre Trump e Biden. Sobretudo quando se sabe que 1 em cada 3 vice-presidentes da história dos Estados Unidos tornou-se chefe da nação, comparado a apenas 1 em cada 145 governadores ou 1 em cada 124 senadores.

Onipresente em defesa do chefe, Pence tem sido o contraponto perfeito para a destemperança errática do presidente. Monocromático no visual e monocórdio na fala, o máximo que Pence se permite é um ligeiro levantar de sobrancelha em sinal de lamento, nunca de rancor ou raiva. Divergiu publicamente de Trump uma só vez, às vésperas da eleição de 2016, quando veio à tona a famosa gravação chula, sexista e cafajeste do candidato. Na ocasião prevaleceu sua fidelidade à fé evangélica que norteia seu cotidiano — em 2002 ele afirmara nunca sentar-se à mesa para jantar com uma mulher que não fosse sua esposa, nem participar de eventos sem Kate em que bebidas alcoólicas seriam servidas. É esse personagem que eleitores americanos verão em confronto com uma adversária assertiva e incômoda em tudo.

Kamala tem dupla função. Uma, na atual campanha : bater em Trump sem receio de prejudicar o papel tiozão de Biden. Cabe-lhe apontar, através de dados e retórica, a incapacidade do presidente para liderar a nação, seja na guerra à pandemia seja na pacificação racial e social do país. Embora candidatos a vice tenham pouco impacto efetivo sobre a base eleitoral já constituída do presidenciável, talvez Kamala até consiga garantir o voto de mulheres negras em estados cruciais como Michigan e Pensilvânia, que tanta falta fez a Hillary Clinton em 2016.

Sua segunda função é mais duradoura e independe de vitória: apressar a urgente adequação do país a suas muitas gentes. Kamala Devi, filha de imigrantes , tem sangue negro e indiano, é casada há 6 anos com um advogado branco e judeu de Nova Jersey e tem duas enteadas adultas que a chamam de Mamala. Abriu caminho a fórceps, empurrada por pais que valorizavam educação, formação e atitude. Tem a cara, as cores e o vigor que a esclerosada máquina do Partido Democrata fingia ter, mas não abraçava de fato. Agora terá de ser na marra.

Kamala também tem a cara, cores e vigor que Donald Trump precisa deslegitimar a qualquer custo. O primeiro tiro indica o estado de alarme do 45º presidente dos EUA. Foi de um pódio da Casa Branca que Trump levantou a falsa hipótese de Kamala Harris não preencher os requisitos de cidadania americana para o posto. “Me falaram disso ainda hoje”, comentou meio en passant durante a coletiva de quinta feira. “Não tenho ideia se é isso mesmo …”, acrescentou com a habitual vileza de isentar-se de qualquer responsabilidade pelo que diz. Conseguiu, assim, colocar em roda uma falsa discussão sobre o que diz a 14ª Emenda de 1868, que concede cidadania americana a quem é nascido dentro de suas fronteiras territoriais — a jus solis que já ameaçara abolir por decreto. Pela Constituição dos EUA, são apenas dois os requisitos para se tornar presidente ou vice: ter nascido em solo americano e ter idade acima dos 35 anos. Kamala preenche ambos.

Outros tiros virão, mas as Kamalas já são muitas, e muitas mais virão. O que não muda é o medo que o presidente dos EUA tem de mulheres fortes e do poder que elas emanam.