Justiça Eleitoral

Alberto Fraga, ex-deputado federal: Militar não tem habilidade política

Ex-parlamentar considera o grande problema de Bolsonaro a má condução da pandemia de covid-19 e avalia como desastrosa a participação dos generais com congressistas

Denise Rothenburg e João Vitor Tavarez / Correio Braziliense

O ex-deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF) fez uma dura análise, ontem, ao CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília — sobre a participação dos militares nas várias áreas do governo de Jair Bolsonaro. Por não serem talhados para a política, cometem erros para questões que precisam ser tratadas com habilidade. Ele aponta, particularmente, a Casa Civil, que já foi ocupada pelo general Luís Eduardo Ramos, e o Ministério da Saúde, que este sob o comando do general Eduardo Pazuello.

“O (senador José) Serra não era médico. Mas veja os secretários executivos e a equipe: eram todos técnicos. O Pazuello levou, ao que parece, 17 militares. E trata-se de um ministério em que sempre houve muita corrupção”, destacou.

Fraga também afirmou que, para as eleições de 2022, apoiaria novamente Bolsonaro se fosse contra o candidato do PT — que possivelmente será o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, mesmo assim, demonstra insatisfação com o enfrentamento à pandemia da covid-19 por parte do governo. A seguir os principais trechos da entrevista.

Como o senhor avalia a indicação do senador Ciro Nogueira para a Casa Civil?
É o reconhecimento de que a articulação política do governo não estava dando certo, visto que a Casa Civil é um dos ministérios mais importantes, pois dá um norte para viabilizar votações no Congresso.

Em que ponto pode dar certo?
Não se sabe qual o preço que o governo Bolsonaro vai pagar por essa articulação política. Não tenho dúvida de que vai melhorar. Foi um desastre a política praticada pelos generais, que não são habilidosos com a política. A formação do militar não está habilitada para essa área.

Falta habilidade?
Falta traquejo dos militares ao articular emendas com parlamentares. A base do governo, no Congresso, não é consolidada. Até mesmo porque foi alcançada à custa de muito dinheiro de emendas. Passei 20 anos naquela Casa e nunca tive R$ 5 milhões ou R$ 6 milhões em emendas. Hoje, há deputado de primeiro mandato que recebeu R$ 40 milhões. Algumas prefeituras por aí estão devolvendo dinheiro, porque não têm projetos. Foi muito dinheiro distribuído, visto que o articulador político na época, general (Luís Eduardo) Ramos, precisava ter a simpatia dos parlamentares.

O que Ciro Nogueira vai fazer de diferente?
Ele tem muita experiência. Foi deputado por muito tempo, além de senador. É diferente quando você não tem o convívio com a pessoa para você convencê-la a ajudar o governo. Mas, quando existe amizade, isto é, esse tipo de relacionamento, as coisas fluem com mais rapidez e sucesso. Alguém que não conhece o parlamento, como é que vai chegar numa Casa onde há 513 deputados e 81 senadores? É preciso ter vivência política e maturidade suficiente para saber trabalhar com essas pessoas.

O presidente Jair Bolsonaro aponta fraudes no sistema de votação por urna eletrônica, mas não apresenta provas. Como o senhor avalia isso?
Acredito que seja a forma como o presidente colocou isso. A ideia é que, após a votação, caso haja contestação, o voto possa ser recontado. Por que não batem na tecla de que as eleições no Brasil, hoje, não são sujeitas a auditoria? É um sistema falho. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não pode ser tão resistente à mudança, o que gera desconfiança. Muitas pessoas não entendem a forma como Bolsonaro defende essa questão. Não se quer mudar absolutamente nada (no sistema eleitoral). O objetivo é que, após apertar o botão “confirma”, o voto fique registrado em algum local. Qual a dificuldade? Não enxergo nenhum problema nisso para as próximas eleições.

O senhor vai ser candidato pelo Democratas no ano que vem?
Tenho conversado com algumas lideranças políticas da cidade, como Eliana Pedrosa, Alírio Neto, Reguffe e o PTB, que tem o Fadi Farad. Penso que, no período de pandemia, é muito prematuro falar em eleições. Vamos esperar até outubro. Até porque, posso garantir ao governador Ibaneis Rocha que essa moleza que ele enfrentou com dois anos e meio sem nenhuma oposição, fazendo uma bobagem atrás da outra e sem ninguém a lhe cobrar, na hora certa virá à tona. E, certamente, com um grupo de oposição, o que nós estamos trabalhando para montar.

O governador do DF está próximo de Bolsonaro. O MDB está dividido entre aqueles que apoiam e os que não, e o mesmo ocorre com o seu partido. Como o senhor fica diante dessa divisão?
O DEM não toma decisão nenhuma sem discussão coletiva com a executiva nacional. Essa virtude e mérito é do ACM Neto (presidente do partido). Ele faz isso com muita destreza e ouve a todos. Sabemos que o Onyx Lorenzoni é muito ligado ao Bolsonaro, assim como eu posso dizer que sou, embora meio afastado do presidente — isso não quer dizer que esteja rompido. Simplesmente me afastei em decorrência de problemas pessoais, até mesmo para não magoar o presidente com a minha situação emocional. Agora, eu penso que o DEM deve caminhar para apoiar (Bolsonaro). Temos dois possíveis nomes para se candidatarem à Presidência: o (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique) Mandetta e o (senador) Rodrigo Pacheco. Ambos não têm, hoje, a mesma densidade política dos dois principais nomes polarizados (Bolsonaro e Lula). Caso uma terceira via se consolide, vai ser difícil para um dos dois vencer.

O senhor vai apoiar Jair Bolsonaro?
Se for contra o PT, apoio de olho fechado. Quero que o governo Bolsonaro dê certo, mas não posso deixar de externar minha insatisfação com algumas questões, como a demora na aquisição da vacina e a presença de membros no governo, hoje, que não trabalharam na candidatura do presidente. Você acha que os militares foram às ruas pedir voto para Bolsonaro?

Militar deve fazer campanha eleitoral?
Quando se quer, os militares são os melhores cabos eleitorais que alguém pode imaginar, sobretudo policiais e bombeiros militares. Por exemplo: se chega algum idoso e fala com um militar, este pode ajudar a indicar. Ainda que seja crime, acontece de maneira natural, não ostensiva. Quando um militar é bom vizinho, quando vota não o faz sozinho. No mínimo, 90% dos militares estaduais votaram em Bolsonaro. E o que o presidente fez para esse segmento? Absolutamente nada até agora. Fizeram foi perder garantias. Então, isso precisa ser corrigido, sob o risco de esse pessoal debandar.

O senhor acredita em um candidato alternativo, entre Lula e Bolsonaro, nas eleições de 2022? Apoiaria uma terceira via?
É muito difícil falar, pois o governo Bolsonaro está perdendo muito. Sobretudo, por conta de posicionamentos parciais da mídia, onde a população fica sem entender o real posicionamento do presidente. Eu, se vejo em uma cidade de 500 mil habitantes, uma parcela de 500 pessoas gritando “mito, mito, mito”, não quer dizer que aquela cidade vai apoiá-lo totalmente. Bolsonaro tem reconhecidamente, hoje, de 25 a 30% de eleitores fiéis a ele.

A gestão da pandemia foi o principal fator de desgaste do presidente?
Não tenho dúvida. Até porque, em relação à corrupção, até agora por parte do Bolsonaro duvido que ele esteja envolvido em rolo. Agora, dizer que em um governo, em que há tanta capilaridade, não tenha corrupção, eu não diria isso.

Militar em cargo civil, como no Ministério da Saúde, pode ocorrer ou não?
Se o (o ex-ministro da Saúde Eduardo) Pazuello tivesse sido médico nas Forças Armadas, eu não teria nada contra. Mas era do apoio logístico. Não dá para colocar um ministro da Saúde que não seja médico. Isso não cabe em lugar nenhum.

Mas (o hoje senador) José Serra foi ministro da Saúde e não era médico.
Quer dizer que ele foi bom? Isso é muito relativo. Tudo bem, o Serra não era médico. Mas veja os secretários executivos e a equipe: eram todos técnicos. O Pazuello levou, ao que parece, 17 militares. E trata-se de um ministério em que sempre houve muita corrupção. Acredito que a intenção do Bolsonaro era estancar esse tipo de problema, que aconteceu ao longo de muitos anos. Quando o presidente colocou os militares, era para barrar, sobretudo porque eles têm disciplina e fidelidade. Mas habilidade política não é a praia dos militares.

* Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi


Fonte:
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4941416-alberto-fraga-ex-deputado-federal-militar-nao-tem-habilidade-politica.html


TSE faz ofensiva contra ataques de Bolsonaro: Entenda motivos e cronologia da crise

Em meio a novas declarações de Bolsonaro em defesa do voto impresso, tribunal abriu investigação sobre ataques do presidente às urnas e pediu ao STF que apure caso no inquérito das fake news

Filipe Vidon / O Globo

RIO — Após uma série de ataques às urnas eletrônicas e ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, o presidente Jair Bolsonaro sofreu seu primeiro revés formal. Por unanimidade, a Corte abriu um inquérito administrativo para apurar os ataques sem provas que ele vem fazendo ao sistema eletrônico de votação, e pediu que ele seja investigado também em um inquérito já aberto no Supremo Tribunal Federal (STF).

A gota d'água para o Judiciário, que vinha respondendo às declarações com notas de repúdio, foi a live realizada na última quinta-feira em que Bolsonaro prometeu apresentar provas de fraudes nas eleições, mas não o fez. Ao contrário: utilizou vídeos de internet previamente desmentidos pelo próprio TSE, e admitiu que “não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas".

Em sua cruzada pelo voto impresso, o presidente escalou os ataques à medida que a pressão aumentava na Praça dos Três Poderes. Bolsonaro é alvo da CPI da Covid, tem baixa popularidade e aparece atrás nas pesquisas eleitorais para 2022. O chefe do Executivo, reiteradamente, também ameaça não reconhecer o resultado caso perca as eleições em 2022 com o sistema atual.

Em cinco pontos, entenda entenda os motivos e a cronologia da crise:

O que o presidente disse em live?

Depois de convocar a imprensa e apoiadores para uma live onde apresentaria as provas das supostas fraudes eleitorais em 2018 e 2014, Bolsonaro disse com todas as letras não ter como sustentar as acusações. Em transmissão ao vivo em suas redes sociais e na TV Brasil,  ele fez ataques ao sistema de votação usado no Brasil e disse que há "indícios fortíssimos em fase de aprofundamento". Os indícios citados pelo presidente foram vídeos antigos que circulam na internet e trechos editados de programas de TV.

Na transmissão de mais de duas horas, Bolsonaro atacou o TSE e o ministro Barroso, que defende a segurança e transparência do sistema eletrônico. A Corte ainda realizou a checagem  em tempo real das afirmações do presidente com conteúdos sobre as eleições no Brasil que foram produzidos ao longo dos últimos anos e que desmentem as alegações de Bolsonaro. Foram 17 pontos rebatidos pelo TSE.

Por que Bolsonaro aumentou o grau dos ataques?

A escalada de ataques ao sistema eleitoral vem na esteira da queda de popularidade de Jair Bolsonaro. A pesquisa IPEC mostrou um aumento de 10 pontos percentuais na reprovação do presidente, que totalizou 49% no último levantamento. Além disso, o atual presidente aparece atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas eleitorais.

Outro ponto de tensão é o avanço da CPI da Covid no Senado Federal. A comissão foi instalada em meio ao pior momento da pandemia do novo coronavírus no país, em que o número de mortes e casos batia recordes diários. Os senadores apuram ações e possíveis omissões do governo Bolsonaro no enfrentamento ao vírus, e revelaram possíveis irregularidades nas negociações de várias vacinas que contaram com intermediárias não autorizadas pelas farmacêuticas estrangeiras.

A Comissão Especial que avalia a PEC do voto impresso na Câmara dos Deputados também foi esvaziada, e o próprio presidente reconheceu que não acredita mais que o projeto será aprovado na Casa. Depois de fecharem questão contra o projeto, partidos iniciaram uma articulação para mudar os integrantes da comissão que analisa a proposta. A ideia era impor uma derrota antecipada, antes que a pauta chegasse ao plenário da Câmara dos Deputados.

O que o TSE e partidos dizem sobre as urnas?

O Tribunal Superior Eleitoral desenvolveu diversas campanhas de comunicação para esclarecer possíveis dúvidas dos eleitores sobre o sistema de voto eletrônico. Em vídeos e entrevistas, Barroso reafirmou que “o sistema é seguro, transparente e auditável”. O ministro declarou, reiteradamente, que existem diversos mecanismos de segurança — como o boletim de urna, impresso ao final da votação, e o Registro Digital do Voto —, além da participação de partidos e órgãos como a Polícia Federal, Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em momentos críticos do processo.

— Eu sou juiz, e o TSE é um tribunal. Lidamos com fatos e provas, não com retórica política. Nunca, desde a introdução das urnas em 1996, houve qualquer denúncia de fraude documentada e comprovada — disse o ministro ao GLOBO.

Presidentes de 11 partidos políticos, incluindo legendas aliadas ao governo Jair Bolsonaro, também se posicionaram contra a adoção do voto impresso na eleição brasileira. Em encontro virtual, os líderes confirmaram a confiança no sistema e defenderam que mudar as regras do jogo, a essa altura, poderia gerar incertezas no processo.

O que o TSE definiu nesta segunda?

Por unanimidade, o TSE tomou duas medidas contra o presidente Jair Bolsonaro: abriu um inquérito administrativo interno para apurar as acusações sem provas, e pediu que ele seja investigado também em um inquérito já aberto no Supremo Tribunal Federal (STF).

Na avaliação da Corte, Bolsonaro teve "possível conduta criminosa" na live da última quinta-feira e, por isso, acatou a sugestão do corregedor do TSE, ministro Luis Felipe Salomão, de abrir um inquérito. Em junho,  ele já havia determinado que Bolsonaro explicasse as acusações que fez contra as urnas eletrônicas. O prazo para resposta vence nesta segunda-feira, mas, até agora, Bolsonaro não se manifestou.

 “A preservação do Estado democrático de direito e a realização de eleições transparentes justas e equânime demandam pronta apuração e reprimenda de fatos que possam caracterizar abuso de pode econômico, corrupção ou fraude, abuso do poder politico, o uso indevido dos meios de comunicação social, uso da máquina administrativa e ainda propaganda antecipada", pontuou Salomão.

No STF, a investigação ocorrerá no âmbito do inquérito das "fake news", conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes. O pedido de investigação na Suprema Corte tem como base o mesmo objeto: os constantes ataques, sem provas, às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral do país com uso de fake news.

Quais consequências da decisão do TSE?

De acordo com o advogado eleitoral Fernando Neisser, presidente da comissão de direito eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), o inquérito administrativo não gera punição por si só, mas pode produzir elementos de prova para uma ação do Ministério Público Eleitoral ou de partidos políticos.

— Poderia haver uma ação de tutela, em que partidos pedem para ele parar de atacar a normalidade eleitoral, sob pena de aplicação de multa. Apresentando o pedido de registro de candidatura no ano que vem, ele estaria sujeito a uma ação que pode levar a uma cassação de candidatura e, caso reeleito, do próximo mandato.

No Supremo, Alexandre de Moraes deve aceitar o pedido de inclusão de Jair Bolsonaro nas investigações do inquérito das “fake news”. Em votação no TSE, colegiado da qual também faz parte, Moraes votou a favor dos requerimentos.


Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/tse-faz-ofensiva-contra-ataques-de-bolsonaro-entenda-motivos-cronologia-da-crise-1-25138162


Bolsonaro e ministro da Justiça serão convocados a depor no TSE

Ministro Luís Felipe Salomão deve começar nesta terça (3) a chamar todos participantes de live presidencial contra as urnas

A corregedoria do TSE deve começar já nesta terça (3) os trabalhos no inquérito aberto nesta segunda (2) como resposta às falas de Jair Bolsonaro.

O foco são os ataques sem prova contra as urnas eletrônicas e ameaças contra eleições.

O órgão deve começar chamando para depor os participantes da live da última quinta (29), incluindo o presidente e seu ministro da Justiça, Anderson Torres. A investigação pode levar à inelegibilidade dos que atentam contra o sistema eleitoral.

A sugestão de abrir um inquérito administrativo partiu do corregedor-geral Eleitoral, ministro Luís Felipe Salomão.

O TSE tomou duas medidas simultâneas para tentar frear Bolsonaro. Além desse caso, a corte mandou a live para o inquérito de fake news, que corre no STF, sob relatoria de Alexandre de Moraes.

As decisões do TSE encurralam Jair Bolsonaro nas esferas criminal, ao incluí-lo formalmente na apuração sobre fake news, e eleitoral, em que pode acabar inelegível se a investigação a ser conduzida pelo ministro Salomão avançar.

A resposta do TSE, considerada a mais dura até aqui aos ataques de Bolsonaro, veio logo depois de discurso mais ameno do presidente do STF, Luiz Fux, e mostrou que será a corte eleitoral e seus ministros, em especial Luis Roberto Barroso, Salomão e Moraes, os responsáveis por tentar conter as investidas do presidente.

Como mostrou o Painel no mês passado, em outra frente, Moraes autorizou o compartilhamento de provas das fake news e dos atos antidemocráticos com ações do TSE sobre disparos de mensagens que podem, no limite, levar à cassação de Bolsonaro.


Fonte:
Folha de S. Paulo / Painel
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2021/08/jair-bolsonaro-ministro-da-justica-e-participantes-de-live-contra-as-urnas-eletronicas-serao-chamados-para-depor-no-tse.shtml


Leão sem dentes contra o fundo eleitoral

Malu Gaspar / O Globo

Já virou padrão: toda vez que é pego em contradição com o que ele mesmo defendia em 2018, Jair Bolsonaro diz que não teve escolha. Do contrário, “viriam para cima” dele. Foi o argumento que o presidente da República tirou da cartola ao explicar a seus seguidores, no cercadinho do Alvorada, o recuo sobre o fundo eleitoral de 2022, aprovado pelo Congresso há duas semanas — que pode chegar a R$ 5,7 bilhões.

Depois de reagir indignado ao valor, que classificou como “enorme”, uma “casca de banana”, uma “jabuticaba”, Bolsonaro surgiu nesta segunda-feira no cercadinho bem mais manso e circunspecto. “Vou deixar claro (sic) uma coisa: vai ser vetado o excesso do que a lei garante, tá? É de quase 4 bilhões o fundo. O extra de 2 bilhões vai ser vetado. Se eu vetar o que está na lei, eu tô incurso na lei de responsabilidade.”

Todo mundo sabe que o presidente é pródigo em espalhar desinformação, mas essa aí constaria fácil numa coletânea de melhores momentos. Primeiro porque, hoje, não há nenhuma lei dizendo que o fundo eleitoral para 2022 tem de ser de R$ 4 bilhões.

Nos últimos dias, consultei especialistas em legislação eleitoral e deputados de vários partidos. Não encontrei ninguém que soubesse apontar de que lei o presidente Bolsonaro está falando. Portanto, se não há lei, evidentemente não há excesso de R$ 2 bilhões.

Segundo os limites estabelecidos pelas fórmulas em vigor hoje, o valor obrigatório para o fundo eleitoral é de R$ 800 milhões (reembolso estatal às redes de TV pelo horário eleitoral), mais uma porcentagem do total destinado às emendas de bancada, decidida a cada ano eleitoral.

No último dia 15, os parlamentares decidiram que a fatia das emendas a ser destinada ao fundo eleitoral de 2022 deverá corresponder a 25% do orçamento de dois anos da Justiça Eleitoral. Somando o reembolso das TVs com essa cota, mais correção pela inflação, chega-se a R$ 5,7 bilhões para 2022. Em 2020, o total foi de R$ 2 bilhões.

Sejam esses critérios casca de banana, jabuticaba ou pequi roído, eles foram aprovados com a participação e o aval de todos os líderes do governo no Congresso.

Apesar do que disse no Alvorada, o que Bolsonaro tenta agora, nos bastidores, é encontrar uma maneira de vetar essa forma de cálculo, mantendo sua narrativa, e de, ainda assim, contentar os parlamentares com um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões. É disso que se trata.

Se quisesse, o presidente poderia fazer isso de modo transparente, liderando um debate adulto com a sociedade brasileira sobre de onde deve vir o dinheiro que financia as campanhas, quanto os cidadãos estão dispostos a pagar em forma de impostos e quanto aceitam que venha de outras fontes, como empresas e pessoas físicas.

Num momento de tantos ataques à democracia, em que o próprio presidente da República dissemina desconfianças sobre a lisura do processo eleitoral, uma discussão aberta, civilizada e consequente sobre financiamento de campanha seria muito bem-vinda.

Mas é claro que Bolsonaro não está interessado em nada disso. Seu único objetivo é continuar fingindo que o país é um grande cercadinho onde ele pode disseminar suas confusões nada aleatórias, enquanto tenta garantir sua sobrevivência política.

É só por isso que, às claras, ele insiste em dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, mesmo sem apresentar prova alguma — mas, por debaixo dos panos, avaliza acordos que multiplicam o orçamento dessas mesmas eleições, elevando o fundo eleitoral a valores recordes

A verdade que nem mesmo o cercadinho é capaz de esconder é que, depois de passar os primeiros meses de mandato enchendo a boca para dizer “sou eu que mandoo presidente sou eu”, Bolsonaro gasta cada vez mais tempo justificando decisões impopulares com o “se eu não fizer, vão vir para cima de mim”.

Tudo o que ele tem para brandir a seus seguidores é o mito do herói ameaçado pelos inimigos. Na segunda-feira, ele encerrou a explicação sobre o fundo eleitoral com o apelo: “Espero não apanhar do pessoal aí, como sempre, né? Porque, se começar a bater muito, vai ter de escolher no segundo turno Lula ou Ciro”.

Por enquanto, esse tipo de ameaça ainda funciona para uma parcela dos eleitores. Mas nenhum fingimento dura para sempre. Quanto mais o tempo passa, mais fica claro que o mandatário que hoje se expõe ao cercadinho é um leão sem dentes, domesticado pelos profissionais — da política, do lobby, dos negócios.

Nesse contexto, o “excesso” do fundo eleitoral é só um detalhe.


Dualidade de políticas marca comunicação do governo Bolsonaro nas redes sociais

Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Um episódio emblemático demonstra que o governo Bolsonaro passará a ter duas políticas, que podem se antagonizar no decorrer do processo. No mesmo dia em que o novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), sentava na cadeira de ministro, a Secretaria de Comunicação da Presidência divulgou nas redes sociais uma mensagem comemorativa do Dia do Agricultor, com uma foto de um homem armado com um rifle, em vez das tradicionais imagens de agricultores exibindo as mãos calejadas, suas ferramentas de trabalho ou mesmo um trator. Diante da repercussão negativa, a nota foi substituída por uma tabela com indicadores de invasões de terra. Para bom entendedor, foi um recado subliminar de que a paz no campo seria obtida fazendo justiça pelas próprias mãos.

Sabe-se que Bolsonaro governa com um grupo de generais de sua confiança — Luiz Ramos, transferido para a Secretaria-Geral da Presidência; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); e o general Braga Netto, ministro da Defesa — e o clã formado com os filhos Flávio (senador), Eduardo (deputado federal) e Carlos (vereador), o verdadeiro responsável pela política de comunicação do governo e operador das redes sociais de Bolsonaro. Foi dele, provavelmente, a ideia de publicar a foto. Como em outros momentos do governo, toda vez que Bolsonaro se afasta da narrativa de sua campanha eleitoral, como agora, ao empoderar o Centrão no Palácio do Planalto, logo surge alguma coisa que sinaliza para a base bolsonarista que o presidente não abandonou seus compromissos de extrema-direita.

Político profissional habilidoso, Ciro Nogueira não é ingênuo e sabe muito bem o que vai enfrentar na Casa Civil para mudar o eixo de atuação do governo. Trata-se de abandonar a radicalização e o confronto com os demais Poderes e optar por uma política de formação de maioria no Congresso e reaproximação com os eleitores que se afastaram de Bolsonaro, por causa do seu radicalismo e do mau desempenho do governo. Sua presença na Casa Civil não terá nenhum sentido se tudo continuar como antes. Bolsonaro até tentou retroceder do convite, mas não lhe foi possível, porque seria uma desfeita com Nogueira e o PP oferecer-lhe outra pasta de menor importância. Políticos profissionais não são como generais que aceitam ordem unida, tudo tem algum tipo de barganha.

O novo ministro da Casa Civil, porém, precisa fazer uma demonstração de força política. Até agora, seu maior trunfo é o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). A oportunidade para isso será a cerimônia de posse no cargo, prevista para o próximo dia 3, à qual pretende convidar os velhos caciques do PP remanescentes da antiga Arena e do PDS, como Delfim Neto e Francisco Dorneles, e seus aliados dos demais partidos do Centrão. Nos bastidores no Senado, o Palácio do Planalto tenta se reaproximar da maioria da bancada do MDB, que tem dois líderes de governo, o do Senado, Fernando Bezerra (PE), e o do Congresso, Eduardo Gomes (TO). A ideia é forçar uma reunião para desautorizar o líder, Eduardo Braga (AM), e o relator da CPI da Covid, senador Renan Calheiros (AL). Não é da tradição da legenda confrontos dessa ordem, porque o MDB é uma confederação de caciques regionais, que convivem na divergência, uns na oposição e outros na base do governo.

Verdades e mentiras
A maior demonstração de que há uma dualidade de políticas no Palácio do Planalto foi dada pelo próprio presidente Bolsonaro, que voltou a responsabilizar o Supremo Tribunal Federal (STF) pela desastrosa atuação do Ministério da Saúde, ao afirmar que uma decisão da Corte impediu que o governo combatesse a pandemia. A resposta do STF foi inédita e pelas redes sociais, o que assinala uma mudança de postura.

Seu presidente, ministro Luiz Fux, mandou divulgar um vídeo no qual parafraseou o chefe de propaganda do regime nazista de Adolf Hitler, Joseph Goebbels: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade? Não. É falso que o Supremo tenha tirado poderes do presidente da República de atuar na pandemia. É verdadeiro que o STF decidiu que União, estados e prefeituras tinham que atuar juntos, com medidas para proteger a população. Não espalhe fake news! Compartilhe as #Verdades-doSTF”. Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-dualidade-de-politicas/

'Confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema', diz Arthur Lira

Presidente da Câmara dos Deputados defende manutenção do calendário eleitoral

Raphael Di Cunto / Valor Econômico

BRASÍLIA - O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou ontem que é completamente comprometido com a democracia no país e que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, já desmentiu qualquer ameaça à realização das eleições em 2022 se não for aprovada a proposta de emenda constitucional (PEC) do voto impresso.

“[Eu] Não precisava ser claro [ao negar o caso nas redes sociais] porque o próprio ministro, em nota oficial, desmentiu o acontecido. Eu não participei da conversa”, disse Lira, em entrevista à GloboNews. “O ministro deixou claro que não fez e, naquele momento, a mim, de maneira muito coerente, não cabia tocar fogo num momento de recesso. Cabe, sim, tratar do que interessa: teremos sempre a eleição como forma de escolher nossos dirigentes no Brasil”, reforçou.

O jornal “O Estado de S. Paulo” publicou na semana passada que um presidente de partido levou a Lira, no começo de julho, uma ameaça feita pelo ministro da Defesa, ao lado dos comandantes das Forças Armadas, de que não ocorreriam eleições em 2022 se a PEC que exige a impressão de um comprovante do voto para futura auditagem não fosse aprovada pelo Congresso. Braga Netto negou em nota a ameaça e disse que não se comunica com presidentes dos Poderes através de intermediários, mas defendeu o debate “legítimo” sobre a PEC. Lira respondeu a matéria nas redes sociais e não negou que tenha ouvido a ameaça, mas defendeu que o julgamento dos eleitores sobre os políticos ocorrerá nas urnas.

Ontem o presidente da Câmara não fez comentários específicos sobre a defesa de Braga Netto do voto impresso, mas, em outro trecho da entrevista, quando comentava sobre a reforma eleitoral e dizia que não influenciaria na decisão dos deputados sobre o tema, o presidente da Câmara afirmou que “muitas pessoas opinam muito sem poder opinar porque deveriam se restringir ao seu mister constitucional”.

“Não entro nessa briga de dizer que o sistema não é confiável, mas, por confiável que seja, não vejo nenhum problema em ter regras de auditagem se parte da população e dos parlamentares pede esse debate”, afirmou Lira. “Mas repito: confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema pelo qual fui eleito oito vezes.”

A votação da PEC deve ocorrer na comissão especial no dia 5 de agosto e a tendência é pela rejeição após presidentes de 11 partidos se reunirem com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e defenderem a confiabilidade das urnas eletrônicas. Aliados do presidente Jair Bolsonaro marcaram manifestações no dia 1º de agosto a favor da PEC. Lira disse ontem que os partidos decidirão democraticamente e que, independentemente do resultado, “ocorrerão eleições em outubro de 2022, de 2024 e 2026”.

Ele afirmou que a nomeação do presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), para ministro-chefe da Casa Civil “demonstra que o caminho” escolhido por Bolsonaro “é o do diálogo e não há nenhum risco à democracia”. Na opinião dele, o aliado conseguirá melhorar a articulação política do governo com o Congresso, o Judiciário e até internamente, com “mais firmeza nas proposições em que o governo tem que demonstrar unidade” e uma negociação mais efetiva no Senado.

O presidente da Câmara voltou a defender que não há condições políticas e sociais para abertura de processo de impeachment contra Bolsonaro e afirmou que as propostas da oposição que repassam ao plenário o poder de decidir sobre a instauração do processo são “casuísmo”. “Casuísmo é isso, é ficar discutindo situação de querer mudar uma regra quando já existe e persiste há vários anos”, afirmou, citando que presidentes da Câmara do PT e do PSDB seguraram processos contra seus governos.

Segundo Lira, a Câmara começará a analisar na primeira semana de agosto os projetos de reforma do Imposto de Renda, privatização dos Correios e reforma eleitoral. Se a PEC que muda o sistema de eleição para deputado for rejeitada, serão votados projetos para valorizar o voto em mulheres e reservar vagas para elas no Legislativo.


Amigos de Israel se necessário, amigos do antissemitismo sempre que possível

A verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias

Rarael Kruchin e Sebastião Nascimento

Nos últimos dias, a sorridente recepção de Jair Bolsonaro, seu gabinete e deputados da base governista a Beatrix von Storch, representante do partido neonazista alemão AfD (Alternativa para a Alemanha), foi o “último suspiro” para aqueles que ainda achavam que Jair Bolsonaro e seus seguidores tinham qualquer apreço pelos judeus.

Mas não é de hoje que o governo Bolsonaro vem nos familiarizando com algo que se mostra cada vez mais comum nos círculos da extrema direita mundo afora: é possível defender simbolicamente Israel e, ao mesmo tempo, quando o assunto é a memória do Holocausto e as vidas e preocupações dos judeus de carne e osso, ter uma postura negacionista e próxima ao antissemitismo.

Observadores da política brasileira há muito destacam o uso sistemático de símbolos ligados ao Estado de Israel por parte do atual governo. Já durante a campanha eleitoral de 2018, a bandeira israelense tremulou em inúmeros comícios tanto do candidato à Presidência da República quanto de postulantes a cargos do Legislativo próximos a ele. E ainda tremula em manifestações pautadas pelo negacionismo da tragédia da pandemia e de ameaças renitentes ao processo democrático. O próprio Jair Bolsonaro e os chamados “bolsonaristas” têm utilizado estridentes declarações de um suposto apoio a Israel para se defenderem quando veem denunciada sua proximidade a ideias, figuras e expressões do nazifascismo europeu.

MAIS INFORMAÇÕES

Com a mesma profusão das bandeiras agitadas, avolumam-se os episódios de declarações de membros e aliados do governo que emulam, evocam ou aludem ao legado nazifascista. O Museu do Holocausto, em Curitiba, já se declarou estarrecido por não passar sequer uma semana sem que se veja obrigado a denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou um ato supremacista.

Alguns desses momentos assustaram pela desfaçatez com que foram acolhidos e normalizados,

  • como o slogan da campanha presidencial de 2018 (Brasil acima de tudo), paráfrase direta do slogan nazista Deutschland über alles;
  • ou quando Ernesto Araújo em dezembro de 2018 afirmou que a cerimônia de posse de Bolsonaro representava o “triunfo da vontade” do povo, rigorosamente o mesmo slogan celebrizado no filme de propaganda nazista de 1934 Triumph des Willens, que retrata o grande comício de Nuremberg, considerada a cerimônia de entronização de Hitler como Führer da Grande Alemanha;
  • ou a homenagem do Exército em julho de 2019 ao major nazista von Westernhagen;
  • ou a difusão pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência em maio de 2020 de uma versão local do infame bordão Arbeit macht frei,que adornava os portões de entrada de Auschwitz e de tantos outros campos nazistas de extermínio;
  • ou quando, em janeiro deste ano, o vice-presidente Hamilton Mourão, após ter sido acusado de tramar para derrubar o presidente, renovou seu compromisso com Bolsonaro proclamando “minha honra está ligada à lealdade”, ligeira paráfrase do bordão hitlerista “Meine Ehre heißt Treue”, adotado como lema pela SS para se contrapor às hostes da SA acusadas de tramar contra a liderança do partido nazista.

Outros momentos, porém, assombraram o mundo, como o vídeo oficial de lançamento do Prêmio Nacional das Artes publicado em janeiro de 2020 pelo então secretário de cultura Roberto Alvim — no qual não só a estética nazista é celebrada como são solenemente reproduzidas passagens inteiras do discurso do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels — e mais recentemente a visita a Brasília de Beatrix von Storch, representante do partido alemão de extrema direita AfD, agremiação reconhecidamente racista e xenofóbica, que abriga grande número de destacadas figuras do neonazismo alemão e que é investigada em diversos processos pelo Estado alemão por conta de sua atuação para minar a ordem democrática do país.

Na Alemanha, provocações da extrema direita com o intuito de acolher ou normalizar o legado nazista e testar os limites da ordem constitucional democrática não foram recebidas com a mesma leniência que no Brasil. Vêm-se acumulando contra a AfD, desde sua fundação em 2013 e mais intensamente desde sua entrada no Parlamento Federal em 2017, investigações, processos e condenações judiciais, além de declarações formais de repúdio e chamados para o isolamento e o boicote ao partido da parte de todo o espectro da sociedade civil organizada na Alemanha. Praticamente todas as entidades representativas da comunidade judaica declararam formalmente a AfD como agrupamento antidemocrático, racista e antissemita, dedicado a reviver a ideologia nazista. Movimentos similares e com alcance igualmente amplo foram observados da parte das comunidades católicas, evangélicas e muçulmanas, das entidades atuantes na proteção de pessoas com necessidades especiais e psiquiatricamente vulneráveis, dos grupos de defesa da comunidade LGBTQIA+, das entidades representativas das comunidades sinti e roma e engajadas no combate ao anticiganismo, todos unidos na denúncia dos esforços do partido em promover a ideologia nazista e de sua incompatibilidade com o convívio numa sociedade plural e democrática.

Na Alemanha, nenhum outro partido no Parlamento Federal ou nos parlamentos estaduais admite negociar com a bancada da AfD, nenhuma figura pública alemã que preze a democracia e o humanismo se digna a ser fotografada ou sequer a apertar a mão de seus representantes. No Brasil, porém, foi com fraternos abraços e amplos sorrisos, que Beatrix von Storch e seu marido foram recebidos na semana passada pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação Marcos Pontes (que, diante da repercussão negativa, apressou-se em remover os registros do encontro), pelos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF) e pelo próprio presidente.

Fora da Alemanha, são raríssimos os casos de autoridades de Estado que recebem representantes da AfD. Antes da calorosa recepção em Brasília, as poucas ocasiões em que seus emissários realizaram encontros oficiais com altos escalões governamentais mundo afora haviam sido ao visitar membros do regime genocida de Bashar al-Assad em Damasco em 2018 e 2019 e em viagens à Rússia em 2020 e 2021, no auge da reação internacional à repressão e eliminação física dos opositores, para demonstrar a prontidão que têm em emprestar seu apoio de duvidoso valor a regimes contestados e isolados.

Embora a AfD mobilize fortes e inegáveis elementos neonazistas, costuma também enaltecer Israel e o sionismo. Foi justamente essa a retórica que Bia Kicis utilizou para se defender das acusações de ter se encontrado com a representante de um partido racista, xenófobo e neonazista. Contrariando as críticas, ela disse que a AfD é, no fundo, um partido amigo de Israel. Mas a verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias. Até porque, a Israel que professam apoiar não condiz com a realidade local. Ao contrário, trata-se de uma construção quase ficcional, que ignora por completo a pluralidade e os elementos progressistas e seculares do Estado de Israel contemporâneo.

Uma pesquisa realizada em 2017, às vésperas da entrada da AfD no Parlamento Federal alemão, procurava avaliar o posicionamento dos candidatos mais viáveis de todos os partidos diante da relação entre Alemanha e Israel. Em todos os tópicos que diziam respeito à política israelense, a AfD se colocava como pró-Israel. Porém, quando o assunto era a situação dos cidadãos judeus na Alemanha, a migração, a responsabilidade alemã sobre o Holocausto e o imperativo da educação das novas gerações sobre o tema — tópicos estes que contavam com posição 100% favorável dos membros de todas as outras agremiações políticas —, ao chegar à AfD, esbarrava em uma posição dividida e ambígua. Ou seja, em meio a todo o espectro político-parlamentar alemão contemporâneo, há um só partido disposto a atentar contra um tema tão sensível na Alemanha, assumindo-se “reticente” em relação ao passado nazista, que foi o partido que o governo brasileiro abraçou.

É nesse sentido que os abraços trocados com Beatrix von Storch constituem o registro mais recente e palpável de que o suposto apoio a Israel, de ambos os lados, não representa apoio algum aos judeus ou à comunidade judaica. Isolados no cenário global, Storch e seu partido, tanto quanto Bolsonaro e seus seguidores, tentam se agarrar à simbologia de Israel como quem se agarra a uma bóia de salvação num abraço de afogados.

Rafael Kruchin é mestre em sociologia pela USP, coordenador executivo do Instituto Brasil-Israel e pesquisador colaborador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) da Unicamp

Sebastião Nascimento é mestre em direito internacional pela USP, doutorando em ciências sociais pela Universität-Flensburg, na Alemanha, e pesquisador do CEMI-Unicamp


Ditaduras não começam com tanques nas ruas, mas com o estupro da linguagem

Eliane Brum / El País

O que você acha? Vai ter golpe ou não?”. Esta é a pergunta recorrente, do sul ao norte do Brasil. Diferentes grupos têm marcado reuniões privadas pela Internet para debater o assunto. Encontros virtuais com a família, a versão pandêmica do famoso almoço de domingo, desde a eleição de 2014 mais perigoso do que um vidro inteiro de pimenta malagueta, foi tomado pelo tema. Eu mesma ouço essa pergunta várias vezes por dia. Há pessoas respondendo a convites internacionais com um texto padrão: “Atualmente, a média de mortes por covid-19 no Brasil é de mais de 1000 por dia, a variante Delta está se espalhando pelo país, a vacinação é lenta e Jair Bolsonaro pode dar um golpe a qualquer momento. Assim, torna-se difícil confirmar minha presença com tanta antecedência. O mais prudente seria confirmar o mais perto possível da data....”. Quando se torna corriqueiro falar sobre a possibilidade de um golpe de Estado e planejar os dias já incluindo essa “variável” é porque o golpe já está acontecendo —ou, em grande medida, já aconteceu. O golpe já está.

Já sabemos como morrem as democracias, é assunto exaustivamente esmiuçado nos últimos anos. Mas precisamos compreender melhor como nascem os golpes. A morte de uma e o nascimento do outro são parte da mesma gestação. Os golpes não acontecem mais como no século 20, ou não acontecem apenas como no século 20. Tenho trabalhado com o conceito de crise da palavra para analisar as duas primeiras décadas do século 21 no Brasil. Me parece claro que o estupro da linguagem é parte fundamental do método. Não apenas um capítulo do manual, mas uma estratégia que o atravessa inteiro.  

Escrevo há mais de um ano que o golpe de Bolsonaro está em curso. O golpe de fundo começou antes de Bolsonaro assumir o poder no Brasil e se realiza e aprofunda a cada dia de Governo. Se o caso brasileiro é o mais explícito, a formulação atual dos golpes de Estado pode ser percebida em diferentes partes do globo, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria. É importante perceber isso porque, se não o fizermos, não teremos como barrá-los.

No caso dos Estados Unidos, é verdade que, no último momento, as instituições, muito mais sólidas do que em qualquer outro país das Américas, mostraram-se capazes de impedir a tentativa de golpe de Trump. Mas também é verdade que, mesmo com Joe Biden no poder, o trumpismo cumpriu o objetivo de produzir um impacto profundo sobre a estrutura do país, impacto que segue ativo. Conseguiu, principalmente, produzir uma imagem, corrompendo a linguagem da democracia americana para sempre ao realizar o impensável, na cena da invasão do Capitólio. A porta agora está aberta.

No Brasil, o esgarçamento da linguagem é muito anterior à eleição de 2018, aquela que formalmente colocou a extrema direita no poder. É possível localizar pelo menos três momentos decisivos para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), apontado por grande parte da esquerda como um golpe “branco” ou “não clássico”. Quando a presidenta é chamada de “vaca” e de “puta” em estádios de futebol, na Copa de 2014; quando, em 2015, um adesivo com sua imagem de pernas abertas se populariza nos tanques de combustível dos carros, de forma que a mangueira a penetre, simulando um estupro; e, finalmente, em 2016, durante a sessão que aprova a abertura do impeachment, em que Jair Bolsonaro, então deputado, dedica seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”.

Ao evocar a tortura da presidenta durante a ditadura civil-militar (1964-1985), Bolsonaro a tortura mais uma vez, cometendo o crime (artigo 187 do Código Penal) de apologia à tortura, e conecta explicitamente os dois momentos históricos, o da ditadura e o do impeachment, expondo a ruptura democrática que os une. “Puta” e “vaca” na boca da massa espumando ódio (e também de algumas jornalistas), estuprada na traseira dos carros da classe média, torturada mais uma vez pelo elogio à sua tortura feito por Bolsonaro em pleno parlamento. Depois disso, qual seria a dificuldade de arrancar Rousseff do poder? Se tudo isso já tinha sido aceito como “normal”, qual seria o empecilho para aceitar o impeachment?

É isso que chamo de estupro, corrosão ou esgarçamento da linguagem. A preparação do golpe é primeiro um investimento nas subjetividades. Pela capacidade de viralização dos discursos nas redes sociais, assim como pela velocidade na produção e reprodução de imagens na Internet, a sociedade vai “aceitando” o inaceitável. Em seguida, passa a assimilá-lo —e finalmente a normalizá-lo e até mesmo a reproduzi-lo. Aquilo que até então era considerado regra básica de civilidade, fundamental para permitir a convivência, é convertido em “politicamente correto” —e o politicamente correto passa a ser maliciosamente tratado como “censura” ou “cerceamento da liberdade”. Quando o golpe formalmente se efetiva, o inaceitável já está aceito e internalizado.

O mesmo fenômeno permitiu a Bolsonaro executar seu plano de disseminação do coronavírus, espalhando mentiras para atacar primeiro as máscaras e o isolamento físico, depois as vacinas, resultando (até agora) em mais de 550.000 mortos. Afirmando publicamente, como figura pública máxima, o inconcebível, Bolsonaro tornou corriqueiro milhares de pessoas desaparecem da vida da família e do país a cada dia. Hoje, a média atual de mil mortes por dia, depois de já ter ultrapassado 4.000, é motivo de comemoração. Pelo mesmo esgarçamento da linguagem, Bolsonaro tornou possível a volta dos militares ao poder em um país ainda traumatizado pelos torturadores nas ruas, assim como a rearticulação da direita que sustentou a ditadura militar no passado. Ao romper os limites primeiro no discurso, ele abre espaço e prepara o terreno para o ato.

É também pela corrosão da linguagem que, aperfeiçoando o roteiro de Trump, Bolsonaro se prepara para 2022, atacando o sistema eleitoral para contestar a eleição em que poderá ser derrotado. Quando a eleição chegar, a repetição do discurso de fraude já terá corrompido a realidade. Nessa operação sobre a subjetividade coletiva, a fraude acontece antes, fazendo com que o que efetivamente acontecerá na eleição, o voto, não importe. É assim que o direito constitucional de eleger o presidente do país vai sendo roubado de mais de 200 milhões de brasileiros sem nenhum tanque na rua. A narrativa da fraude se infiltra e se realiza nas mentes antes de qualquer ato, descolando-se dos fatos. O que importa é a crença na fraude. Que ela não se comprove porque não aconteceu não faz a menor diferença. “Acreditar se tornou um verbo muito mais importante do que “provar” —e essa distorção é apresentada como virtude. O principal papel de figuras como Bolsonaro e outros, e antes deles Trump, é pronunciar o impronunciável, abrindo um caminho subjetivo para a concretização do assalto ao sistema democrático.

A corrosão da linguagem culmina com a corrosão da própria verdade. Este é o ataque final ao “comum”. Já vimos outros bens comuns essenciais para a vida da nossa e de outras espécies —como ar puro e água potável, por exemplo— serem privatizados, mercantilizados e reembalados para a minoria que pode pagar por eles. A estabilidade do clima, outro bem comum, foi destruída. Os novos velhos golpistas fizeram —e seguem fazendo— o mesmo com o conceito compartilhado de verdade. Assim como acontece com os teóricos da conspiração nos Estados Unidos e em suas versões brasileiras, a autoverdade —ou o poder auto-ortorgado de escolher a verdade que mais convém ao indivíduo ou ao grupo— se torna mais “real” do que os fatos. De certo modo, é um retorno a um tipo de teocracia. No caso, a “verdade” é corrompida e controlada pelos sacerdotes deste novo tipo de seita.

Obviamente, a verdade se afirma e acaba por se impor no plano da realidade, como a emergência climática acabou de demonstrar, colocando países como a Alemanha debaixo d’água e deixando o Canadá mais quente do que o deserto do Saara. Mas, enquanto isso, charlatões como Bolsonaro e outros provocam uma destruição acelerada do comum que, em grande parte, é irreversível, comprometendo não só o futuro das novas gerações, mas também o presente.

Bolsonaro é protagonista, sim, mas é também instrumento. Conhecido como uma metralhadora giratória de asneiras violentas e violências boçais durante seus sete mandatos no parlamento, seu “dom” foi instrumentalizado. A destruição do tecido social por uma operação na linguagem aposta nas chamadas “guerras culturais”. É na desumanização dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ que começa o ataque. É na chamada “pauta dos costumes” que a violência vai sendo formulada como se fosse seu oposto. Quando Bolsonaro afirma preferir um filho morto em acidente de trânsito a um filho gay, por exemplo, ele coloca a abominação na homossexualidade, encobrindo a abominação que é sua afirmação. O inaceitável é ser gay —e não defender a morte de gays. O inaceitável é o aborto de um embrião —e não a morte de uma mulher com história e afetos por complicações em procedimentos sem cuidado. E assim por diante. A cada afirmação de extrema violência, Bolsonaro foi destruindo o conceito de inviolabilidade da vida e normalizando a destruição dos corpos. A principal função de figuras como Bolsonaro é tornar tudo possível —primeiro na linguagem, em seguida no ato.

Neste momento, Bolsonaro já cumpriu sua missão maior, o que pode eventualmente torná-lo descartável. Ele claramente vai se tornando um incômodo para os grupos que agora mais uma vez se rearticulam e que, com ele, conquistaram avanços inimagináveis até então, como os próprios militares, os representantes e lobistas do agronegócio, os evangélicos de mercado e o campo da direita. Assim como Fabrício Queiroz se tornou descartável e um incômodo para a quadrilha familiar dos Bolsonaro, ele mesmo se torna perigoso para os articuladores do projeto maior, que o reconhecem como uma peça importante do jogo, mas jamais como o dono do tabuleiro. Muito vai depender da capacidade de Bolsonaro se adequar, uma capacidade que nele parece inexistente. Suspeito que é esta parte de seu próprio fenômeno que Bolsonaro não compreende. Ao miliciarizar o Governo central, acreditou que estava no comando absoluto.

As democracias morrem por muitas razões, na minha opinião a mais importante delas é o fato de serem seletivas, em diferentes graus: só funcionam para determinada parcela da sociedade, deixando outras de fora. As democracias morreriam então pela corrosão provocada pela sua própria ausência. Ou morreriam pelo tanto de arbitrariedade com que são capazes de conviver. No Brasil, o nível de exceção que a minoria dominante da sociedade é capaz de tolerar é uma enormidade. Desde que as arbitrariedades sejam contra os pretos e contra os indígenas, contra as mulheres e contra os LGBTQIA+ está tudo “dentro da normalidade”. A possibilidade de as forças de segurança do Estado derrubarem portas, invadirem casas e executarem suspeitos e não suspeitos nas periferias e favelas urbanas durante todo o período democrático é, sem dúvida, o exemplo mais evidente do caso brasileiro.

As ditaduras nascem em diferentes tempos e espaços. Assim como as parcelas da sociedade beneficiadas pela democracia convenceram-se durante décadas de que viviam numa democracia, mesmo sabendo que grande parte da população era submetida a uma rotina diária de arbitrariedades, estas mesmas parcelas têm hoje dificuldade para enxergar que a ditadura já está consolidada em várias partes do Brasil, onde pessoas precisam abandonar suas casas para não morrer e as forças de segurança e o judiciário estão a serviço dos violadores. Hoje, nas áreas “nobres” das capitais e cidades, os ataques autoritários usam o judiciário e a Polícia Federal para se realizar, como nas recentes ofensivas a colunistas da imprensa tradicional, a mais recente delas contra Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S. Paulo e professor da prestigiosa faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Há outras partes do Brasil em que os ataques são a fogo e bala, como na floresta amazônica, onde casas de indígenas como Maria Leusa Munduruku são queimadas e lideranças camponesas como Erasmo Alves Theofilo têm a cabeça a prêmio. Na floresta e nas periferias urbanas, corpos humanos tombam sem provocar alarde e as execuções pelas forças policiais explodem.

A percepção de golpe se alastra quando os que não costumam ser atacados passam a ser atacados, no Brasil a minoria branca e mais rica. É uma percepção legítima, porque é ela que mostra que o tecido social se rasgou em partes consideradas até então intocadas e intocáveis. A quebra destes limites sinaliza que outras forças se moveram, ameaçando o precário equilíbrio mesmo dos mais privilegiados. Em 2017, ao testemunhar a execução de um morador de rua pela polícia no bairro nobre de Pinheiros, a classe média se mobilizou para denunciar e protestar, celebrando uma missa na simbólica Catedral da Sé. Era ainda o Brasil de Michel Temer (MDB), mas a ditadura foi largamente lembrada. Ali, o “limite” estabelecido pela lei não escrita de que o Estado pode executar pessoas, mas apenas em bairros de periferia, havia sido rompido. A quebra demandava reação, pelas melhores razões e também para impedir que a violência policial rompesse outro limite e o próximo a tombar fosse alguém que habitasse não as ruas, mas os apartamentos e casas com um dos metros quadrados mais caros da cidade.

Ao se infiltrar no imaginário coletivo, o debate do “será que vai ter golpe” cumpre ainda outra função estratégica: a de interditar e ocupar o espaço do debate urgente do impeachment de Bolsonaro. Sobre isso, há um flagrante assalto à linguagem, ao normalizar o fato de Arthur Lira (Progressistas), o corrupto presidente da Câmara de Deputados, ter seu traseiro esparramado sobre mais de 120 pedidos de impeachment ou sobre o superpedido de impeachment. Pela repetição, a crítica legítima a Lira vai se esvaziando e passa a se assimilar que assim é: a mobilização da sociedade pela democracia, traduzida em pedidos de impeachment mais do que legítimos, é pervertida e usada como instrumento de chantagem do Centrão para tomar os cofres públicos. Sempre que aceitamos o abuso de poder e de função como inevitável, acostumando-nos às arbitrariedades, o golpe avança.

Hoje, com Bolsonaro, vários limites foram ultrapassados. Limites que, mesmo para um país de marcos civilizatórios tão elásticos como o Brasil, até bem pouco tempo atrás seria impensável tê-los rompido. Quando o assunto principal é se haverá golpe ou não, tema abordado com a mesma naturalidade do aumento do preço do feijão, o último jogo do Corinthians ou a mais recente série da Netflix, o que resta de democracia? O golpe já pedalou a linguagem, infiltrou-se no cotidiano e está ativo. O golpe já foi dado. A dúvida é só até onde ele será capaz de chegar.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Míriam Leitão: Incutir a dúvida, colher a certeza

Quando o presidente da República diz que houve fraude nas eleições de 2018, ele está acusando a Justiça Eleitoral de cumplicidade ou negligência com o crime. Ou a Justiça fez parte da fraude ou não foi capaz de garantir a lisura do processo eleitoral. Diante disso, o que fazer? A Procuradoria- Geral da República (PGR) teria que notificar o presidente para a apresentação das provas, dado que ele está publicamente dando a notícia de um crime. O PGR nada faz que incomode o presidente.

Tudo se passa no Brasil como se a democracia não pudesse se defender de um ataque que está sendo preparado lenta e consistentemente. Em parte, me explicou uma autoridade do Judiciário, “porque tudo é muito inusitado”. Em parte, porque o PGR foi neutralizado. O presidente Jair Bolsonaro não está agindo por impulso. Está repetindo há dois anos fatos sem comprovação. Ele está incutindo a dúvida para colher a certeza. E nada se faz, além das notas de repúdio, porque é inusitado que um presidente da República conspire contra a democracia. Só que está acontecendo. Aqui e nos Estados Unidos.

Bolsonaro age de caso pensado e de forma coerente. Ele tem um plano e dois anos pela frente para executá-lo usufruindo da imunidade que o cargo lhe dá. O objetivo dele no final todos conhecem. A democracia brasileira não tem sabido usar os instrumentos para se defender. Esta semana ele deu um passo adiante ao fazer uma ameaça. A de que ocorreria aqui algo mais grave do que o que houve nos Estados Unidos caso o voto não seja impresso.

O presidente brasileiro justificou o que houve nos Estados Unidos. Bolsonaro disse que foi causado por fraude, e ela surgiu porque “potencializaram a tal da pandemia”. Com isso ele está alimentando duas mentiras. A de que a pandemia foi “criada” com um propósito. E a de que houve fraude nos Estados Unidos. Isso justificaria o ataque ao capitólio, pelo que se depreende dessa fala. De forma terminativa, garantiu: “ninguém pode negar isso aí.” Todos os tribunais americanos recusaram as alegações de Trump de que houve fraude, todos os estados, mesmo os governados pelos republicanos, certificaram a eleição. Ou seja, todo mundo pode negar isso aí que o presidente brasileiro está afirmando.

A democracia americana tem 200 anos e foi alvo de um ataque. Trump estimulou durante semanas a invasão do capitólio. E mesmo sendo um lame duck, um governante em fim de mandato e com poderes declinantes, as instituições dos fundadores da Pátria americana não foram capazes de evitar o assalto. Foi preparada a conspiração à luz do dia e pelas redes sociais. O presidente usou o aparato da presidência para falar aos seus seguidores no dia mesmo do atentado. E toda a reação é a posteriori.

Nós temos uma democracia jovem que já passou por duros testes. O general Etchegoyen, que foi ministro do governo Temer, disse numa entrevista a Andréa Jubé do “Valor” que o Brasil despreza a força da nossa democracia. “A cada tosse, achamos que ela não vai aguentar.”

Mas como não ter dúvidas se o próprio general é capaz de fazer a seguinte afirmação: “Qual a atitude efetiva de Bolsonaro de desapreço à Constituição Federal, comparável a de alguns ministros do STF que não se constrangeram em agredir a gramática para dar sustentação à esdrúxula tese de apoio à reeleição, na mesma legislatura, dos presidentes das duas Casas do Congresso?”

No STF, venceu o respeito à proibição da reeleição na Câmara e no Senado. Alguns ministros queriam ignorar o sentido da palavra “vedado”. Mas o general usa esses votos, que acabaram derrotados, para abonar o que Bolsonaro já fez. Ele não acha que seja atitude efetiva de desapreço pela Constituição o presidente participar de passeatas pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Mesmo quando Bolsonaro foi para um desses eventos no helicóptero da Aeronáutica, tendo o ministro da Defesa a bordo, e disse que as Forças Armadas estavam com eles. O difícil, general, é encontrar demonstrações de apreço de Bolsonaro pela Constituição. Desapreço, há muitas. Etchegoyen é um general de pijama, hoje na iniciativa privada. Mas defende que Bolsonaro nunca mostrou desapreço pela democracia.

Diante dessa falta de sensibilidade para as afrontas à lei por parte de líderes políticos e militares, o presidente continua semeando dúvidas sobre o sistema eleitoral para colher o caos quando for a hora.


Bernardo Mello Franco: Um alerta do que vem por aí

As batidas policiais nas universidades foram um alerta do que pode vir por aí. Quem teme uma escalada autoritária ganhou novas razões para se preocupar

A democracia brasileira enfrentará uma prova de fogo se as urnas confirmarem o favoritismo de Jair Bolsonaro. O capitão reformado fez carreira exaltando a ditadura militar, um regime que amordaçou a imprensa e perseguiu opositores. Agora seus impulsos liberticidas vão testar a resistência das instituições e da Constituição de 1988.

Nos últimos dias, quem teme uma escalada autoritária ganhou novos motivos para se preocupar. Ao menos 20 universidades públicas foram alvo de operações da polícia e de fiscais eleitorais. A pretexto de coibir a propaganda irregular, as batidas suspenderam aulas, impediram a realização de debates e apreenderam faixas e cartazes.

O caso da Universidade Federal Fluminense resume os abusos da ofensiva. Uma juíza determinou a retirada de uma faixa laranja com a inscrição “Direito UFF Antifascista”, sem referência a partidos ou candidatos. Acrescentou que a polícia deveria prender o diretor da Faculdade de Direito em caso de descumprimento da ordem.

Em Minas Gerais, uma juíza ordenou a retirada de uma nota publicada no site da Universidade Federal de São João del Rei. O texto censurado também não citava o nome de nenhum candidato. Era um manifesto “a favor dos princípios democráticos e contra a violência nas eleições”. Em Mato Grosso do Sul, policiais federais entraram no campus da Universidade Federal da Grande Dourados para impedir uma aula pública com o tema “Esmagar o Fascismo”.

Os agentes fotografaram e coletaram nomes de estudantes que organizavam a atividade. A ação foi autorizada por um juiz eleitoral que milita contra o PT nas redes. As batidas nas universidades servem como um alerta do que pode vir por aí. Bolsonaro ainda não vestiu a faixa e já surgem autoridades ansiosas para restabelecer a censura. Desta vez, houve reação da Procuradoria-Geral da República e do Supremo Tribunal Federal.

Na noite de sexta, a procuradora Raquel Dodge pediu a suspensão das ações nas universidades. Apontou ofensa a princípios fundamentais como os “direitos de crítica, de protesto e de discordância decorrentes da livre manifestação do pensamento, assim como a liberdade de expressão”.

A ministra Cármen Lúcia aceitou o pedido e concedeu a liminar. “Sem liberdade de manifestação, a escolha é inexistente. O que é para ser opção, transforma-se em simulacro de alternativa. O processo eleitoral transforma-se em enquadramento eleitoral, próprio das ditaduras”, afirmou. Ela acrescentou que as batidas afrontaram o princípio da autonomia universitária. “Pensamento único é para ditadores.

Verdade absoluta é para tiranos. A democracia é plural em sua essência. E é esse princípio que assegura a igualdade de direitos individuais”, escreveu a ministra. O episódio pode ter sido um ensaio para futuros choques entre o Executivo e o Judiciário. No domingo passado, Bolsonaro sugeriu que os opositores teriam que escolher: “Ou vão para fora ou vão para cadeia”. Ontem ele voltou a abrandar o tom e prometeu “obediência à Constituição”.


Ricardo Noblat: O dia que só mal começou

A toga repressora

A sexta-feira 26 de outubro de 2018 poderá passar à história como o dia em que o Brasil, escandalizado, descobriu que a Justiça criara uma nova arma de repressão à liberdade – a Polícia do Pensamento Acadêmico (PPA).

A nova sigla poderá juntar-se a outras de triste memória – entre elas, DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), SNI (Serviço Nacional de Informações) e DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social).

Sem falar de siglas horrendas e criminosas como DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) e CENIMAR (Centro de Informações da Marinha).

Entre quinta-feira e ontem, a polícia bateu às portas das universidades e não foi para estudar. Mais de 40 delas foram alvo de operações da Justiça Eleitoral e da Polícia a pretexto de impedir atos políticos a favor de candidatos.

Desde o fim da ditadura militar de 64 nada de parecido jamais se vira. Na Universidade Federal da Paraíba, por exemplo, foi apreendida uma faixa onde estava escrito simplesmente: “Mais livros, menos armas”.

O prédio da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) amanheceu com uma faixa em que se lia “Censurado”. Ali, até a véspera, havia uma bandeira com as inscrições “Direito UFF” e “Antifascista”.

A bandeira havia sido retirada a mando do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio de Janeiro que ameaçara prender o reitor se sua ordem fosse desrespeitada. Estudantes protestaram diante do prédio do tribunal.

“Não é permitida a propaganda eleitoral partidária em bens de uso comum”, disse o tribunal em nota. Por que, diabos, uma bandeira contra o fascismo, sem alusão a candidato algum, pode ser considerada propaganda?

“A Justiça está consagrando o entendimento de que há uma candidatura fascista e de que quem é contra o fascismo está praticando algum tipo de desobediência”, comentou Wilson Machado, diretor da faculdade.

Uma nota oficial da Universidade Federal de São João Del-Rei “a favor dos princípios democráticos” foi proibida pela Justiça Eleitoral de Minas Gerais. Ela também não mencionava nomes de candidatos.

Tão absurdo quanto essas coisas foi a notificação pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco ao bispo auxiliar de Olinda e Recife, dom Limacêdo, para que não falasse de política em missas que celebre hoje ou amanhã.

Há exatos 50 anos, a casa de dom Hélder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife, foi metralhada e pichada com os dizeres “Comando de Caça aos Comunistas”. Por nove anos, a imprensa não pôde falar sobre dom Hélder.

Quem a Justiça Eleitoral pretendeu beneficiar com suas incursões policiais às universidades? Onde está escrito que o debate político foi interditado dentro das universidades e fora delas, antes ou depois de eleições?

Um Juiz de Petrópolis, Rio de Janeiro, mandou apreender a lista de estudantes inscritos para participar naquela cidade de um congresso sobre Direito. Por que ele quis conhecer os nomes dos inscritos? Para fazer o quê depois?

A maior fake news destas eleições não foi produzida por ninguém, mas pela Justiça quando somente em cima de hora decidiu que Lula não poderia ser candidato a presidente porque fora condenado e estava preso.

Lula foi condenado em segunda instância em janeiro último. E preso em abril. Desde então, ministros dos tribunais superiores diziam que ele não poderia ser candidato porque se tornara um ficha suja e a lei quanto a isso era clara.

Mas só na madrugada de 1º de setembro foi que a Justiça recusou o pedido de registro da candidatura de Lula. Tamanha demora prejudicou os demais candidatos, confundiu os eleitores e afetou o destino das eleições.

Quando se imaginou que a Justiça poderia ter aprendido alguma coisa com seus próprios erros, resta provado que não. Seu alforje de erros é inesgotável, e os próximos turbulentos anos se encarregarão de demonstrar.


El País: Teste para as instituições às vésperas do voto, batidas nas universidades alarmam o STF

Ministros e procuradora-geral demonstram alarme com medidas das autoridades eleitorais que retiraram faixas "contra o fascismo" e interromperam aulas considerando haver propaganda política irregular. Especialistas apontam violação de liberdades

As ações ordenadas por Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) para fiscalizar supostos casos de campanha irregular em ao menos 35 universidades no país desencadearam uma dura reação da cúpula do sistema de Justiça, num embate institucional que acirra os ânimos às vésperas da eleição presidencial mais polarizada da história recente. Integrantes do Supremo Tribunal Federal, incluindo o presidente Antonio Dias Toffoli, do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, condenaram, com mais ou menos ênfase, as batidas nos campi, dizendo que as ações, que chegaram a interromper aulas e retiraram frases "contra o fascismo" sem referência direta a candidatos, podem ter desrespeitado os princípios da liberdade acadêmica e de expressão.

Dodge entrou com um pedido de liminar no Supremo para garantir tanto a liberdade acadêmica como de reunião dos estudantes. Para a procuradora-geral, as ações dos TREs "abstraíram desenganadamente os limites de fiscalização de lisura do processo eleitoral e afrontaram os preceitos fundamentais" da Constituição. O (TSE), responsável por supervisionar o processo eleitoral, teve uma reação inusual e enérgica: em nota, disse que vai coibir "eventuais excessos" e que "a atuação do poder de polícia —que compete única e exclusivamente à Justiça Eleitoral— há de se fazer com respeito aos princípios regentes do Estado Democrático de Direito". A corregedoria da instituição abrirá procedimentos para analisar as decisões localizadas e deve esclarecer se houve coordenação entre elas ou não.

As batidas em série, que afetaram especialmente as manifestações contra o fascismo lidas como referência ao candidato ultradireitista Jair Bolsonaro (opositores e alguns acadêmicos veem em seu discurso traços fascistóides), provocaram uma onda de mal-estar. "Diversos atores do sistema de Justiça tiveram a compreensão de que não havia propaganda eleitoral e de que os atos estão ou estavam no campo da liberdade de expressão e de cátedra, como fica claro na ação da PGR", disse ao EL PAÍS a subprocuradora-geral da República, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen.

O desconforto ficou evidente nas declarações de vários ministros do Supremo. As ações acabaram por simular uma espécie de primeiro "teste de estresse" democrático para a instituições num país que pode eleger um candidato de extrema direita no domingo. Poderia a polarização política ter contaminado também os integrantes das principais instituições? Se sim, até que ponto?

Nesta sexta, a Folha de S. Paulo destacava que o juiz eleitoral Rubens Witzel Filho, autor da proibição da aula pública sobre o fascismo na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), no Mato Grosso do Sul, critica frequentemente o PT em suas redes sociais, por exemplo. No entanto, dois policiais federais, dois procuradores e um juiz ouvidos pela reportagem –em condição de anonimato– disseram ao EL PAÍS não ver um componente político claro nas operações em massa contra atos em universidades públicas, ainda que avaliem que boa parte dos membros de suas instituições atualmente demonstrem simpatia pela candidatura de extrema direita.

Inconsistências

Foram registrados ações de policiais que impediram a realização de aulas ou que retiraram faixas ou cartazes em pelo menos 35 instituições públicas federais em todo o Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, uma decisão judicial determinou que fosse retirada da fachada da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense uma faixa com os dizeres "Direito UFF Antifascista". O juiz que assinou a ordem afirma que a faixa traz conteúdo negativo a Bolsonaro. Na Paraíba, policiais federais foram à sede da Associação dos Docentes da Universidade Federal da Campina Grande para cumprir um mandado que determinava o recolhimento de exemplares de um "Manifesto em defesa da democracia e da universidade pública", bem como suposto material de campanha em favor de Fernando Haddad, candidato pelo PT ao Palácio do Planalto.

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, considera que as ações registradas nas faculdades violam o princípio de autonomia das universidades. "Elas [as universidades] são contempladas por um artigo constitucional no sentido do pleno gozo de sua autonomia didático-científica, administrativa e financeira", afirmou Ayres Britto à reportagem. "Num contexto normativo que as tornam um típico espaço de elaboração e manifestação do pensamento crítico. Por lógico desdobramento são detentoras da mais ampla liberdade de expressão".

Há outras inconsistências nos mandados expedidos pelos tribunais regionais, alertam especialistas. Para Roberta Maia Gresta, professora de Direito Eleitoral da PUC Minas, embora a lei eleitoral proíba que se realize campanha dentro das universidades públicas e privadas no país, a Justiça eleitoral não pode confundir manifestações políticas nesses espaços com propaganda de candidatos.

"A partir do momento em que não há menção específica a um partido ou candidato, torna-se delineado um risco, no sentido de que os atos que foram cerceados não correspondem a proibições da legislação", diz a professora. Ela cita como exemplo a retirada da faixa da Universidade Federal Fluminense: "A nossa Constituição é por si só antifascista. Manifestações que apenas endossem uma conduta antifascista nada mais fazem do que atuar nas diretrizes constitucionais", diz.

Alberto Rollo, professor de direito eleitoral do Mackenzie, tem opinião parecida. Se não há vinculação direta com um candidato ou partido, não pode-se falar em campanha irregular. "Se tem uma faixa lá contra o fascismo, não há conotação eleitoral. Se isso aconteceu só porque estava [escrito] 'não ao fascismo', me parece um abuso, um excesso de zelo. Se houver a vinculação a um candidato específico, como o Bolsonaro, aí não pode", afirma.

Tanto Roberta Gresta, da PUC Minas, quanto Cristiano Vilela, especialista em direito eleitoral, apontam ainda que o alcance dessas ações em diferentes universidades representa um caso "inédito" no país. “São decisões que ferem os princípios constitucionais mais valiosos”, ponderou Vilela.