josé roberto afonso

Felipe Salto e José Roberto Afonso: Um orçamento para a guerra

Proposta que cria regime excepcional fiscal e financeiro é arma poderosa

A gravidade da crise disparada pelo espalhamento da Covid-19 requer ações contundentes do Estado. Em tempos de guerra, gastos públicos vultosos serão necessários e precisarão ser planejados e executados com uma eficiência incomum. É recomendável ter um orçamento apartado para dar total transparência a fontes e usos de recursos e para blindar as contas públicas do risco de desarranjo e insustentabilidade.

A flexibilidade já está contemplada na Lei de Responsabilidade Fiscal e no teto de gastos (exceção para créditos extraordinários). Após a aprovação da calamidade pública pelo Congresso, endossada pelo STF, causou perplexidade a demora do governo federal em agir. Medidas provisórias criaram dotações extras para gastos com saúde com a intenção de tentar preservar empregos e distribuir renda mensal temporária, além de reforçar fundos de participação. A emergência certamente as justifica, mas está claro que falta um conjunto consistente de ações, de atos, de gastos e de dívidas.

Uma melhor ordenação desse esforço de guerra é regulada pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A PEC propõe um regime especial fiscal e financeiro para combater desde o coronavírus até os seus efeitos colaterais sobre a sociedade e a economia. Possibilitará a alocação e a aplicação céleres de recursos públicos na saúde (inclusive compra e requisição de bens e serviços), na proteção social e na reação à recessão econômica.

Um comitê gestor comandará todas as ações da crise, composto por representantes das três esferas de governo. O Congresso deverá emitir parecer sobre todas as medidas provisórias de aumento de despesas em até 15 dias. A regra de ouro será suspensa durante a calamidade, já que é inevitável contrair dívida pública para financiar custeio da saúde e transferências assistenciais.

Proposições legislativas ficarão imunes às amarras, desde que não criem compromisso permanente do gasto público. Não se poderá, por exemplo, contratar novos servidores permanentes ou reajustar salários.

Além das matérias fiscais, a PEC proposta contempla alterações na atuação do Banco Central e em suas relações com o Tesouro Nacional para promover uma intervenção emergencial. Permitirá a concessão direta de crédito para empresas, em linha com o que outros países têm feito.

A construção do orçamento de guerra pode ser reforçada e complementada por outras propostas de lei complementar, ordinária e decreto legislativo. Elas podem dar mais fluidez ao processo de contratação e fiscalização das despesas, na crise, e, ao mesmo tempo, assegurar conforto aos gestores compatível com atos tomados em caráter emergencial, sem prejudicar a transparência.

Em particular, há um projeto do senador José Serra (PSDB-SP) que cria um fundo para estruturar o arcabouço orçamentário, podendo incluir até recursos privados para financiar a construção de hospitais e leitos de UTIs, contratar médicos, comprar remédios e testes, dentre outras ações.

É importante atentar que o SUS é organizado de forma descentralizada. Especialmente na assistência médica, cerca de 95% do gasto é executado diretamente pela rede hospitalar estadual e municipal. A guerra é sempre nacional, e um orçamento unificado permitirá integrar e conciliar o financiamento centralizado com ações descentralizadas.

Traçar uma fronteira entre as contas públicas de guerra contra o coronavírus e o orçamento regular dará a agilidade necessária para enfrentar a emergência e assegurará o controle e a transparência. Serão várias frentes de batalha: saúde, proteção social, produção e crédito.

A proposta iniciada pela Câmara dos Deputados para criar um regime excepcional fiscal e financeiro é uma arma poderosa para o Brasil vencer essa guerra pela vida.

*Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal e autor do livro ‘Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade’ (ed. Record)

*José Roberto Afonso, doutor em economia pela Unicamp, professor do Instituto de Direito Público (IDP) e conselheiro da IFI


Folha de S. Paulo: Brasil tem que estruturar economia de guerra durante crise do coronavírus, defende economista

Para José Roberto Afonso, empresas devem se adaptar para suprir demandas e superar pandemia

Camila Mattoso e Mariana Carneiro, da Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - O economista José Roberto Afonso, 58, professor do IDP, afirma que o coronavírus vai transformar a economia em digital de forma antecipada e investir nessa mudança é uma forma de manter o mercado vivo em tempos de isolamento sanitário.

Ele defende que o Brasil estruture, durante a crise, o que ele chama de economia de guerra, na qual empresas mudam suas atividades para ajudar o país.

Fabricantes de automóveis poderiam fazer ambulâncias e fabricantes de roupas, equipamentos para profissionais de saúde.

Especialista em contas públicas, Afonso sugere ainda que governo, estados e prefeituras organizem o desconto de impostos sob pena de o mercado resolver pelo caminho da inadimplência.

Para o economista, que defende a criação de um comitê para coordenar a crise, como o do apagão, em 2001, o coronavírus tem uma peculiaridade: trata-se de uma recessão de serviços e, por isso, as prefeituras vão sofrer mais.

Como vê essa dicotomia que Jair Bolsonaro vem colocando, entre a economia e as medidas protetivas de saúde?
Essa discussão está no mundo inteiro, mas não tão politizada. Pessoalmente, não quero ficar falando de política, mas tenho uma posição simples e radical sobre isso. Nenhum economista e nenhuma autoridade pública tem o direito de escolher quem vai morrer.

A esses profissionais, cabe escolher pela vida. O que a gente tem que fazer é lutar para conciliar a guerra da saúde, a guerra social e a guerra econômica. A gente tem de aproveitar essa crise para transformar em uma oportunidade.

O coronavírus veio acelerar uma tendência que já vinha de antes, de transformar a sociedade em digital. Muito do nosso dia a dia vai ser dentro do celular. O que ocorreria em dois ou três anos, vai ser agora. Coisas impensáveis vão virar realidade mais rápido. Temos que nos organizar e parte disso tem de vir do governo. Eles precisam dar crédito para essa migração, investir em pesquisas.

De que tipo?
A maneira mais rápida de você ter UTI, por exemplo, é fazendo uma ambulância UTI. Na minha opinião, a indústria automobilística tinha que estar já há muito tempo trabalhando nisso e produzindo. Ao mesmo tempo que você está ajudando na saúde, você está ajudando a economia, porque tem trabalhadores ali.

Isso chama economia de guerra e a gente já viu isso algumas vezes, nas guerras. Na Europa tem empresa de roupas que está produzindo equipamento de proteção para médicos. Você não para a produção e consegue olhar para a saúde. Tem vários outros casos que podem ser assim.

E no caso de informais?
A minha secretária do lar vendia cosméticos, todo mundo hoje está na internet, pobres e ricos, por que você não pega essa vendedora e coloca ela para vender online? A gente só precisa que as empresas de logística estejam funcionando. Tem enormes oportunidades, mas é o governo que tem que organizar. E não só a grande produção.

A proteção social tem de estar ligada ao empreendedorismo social. Eu acho que o Bolsa Família, por exemplo, tem que ficar com o pobre. Tem muita gente que está perdendo o emprego, ou perdendo o trabalho, e tem condições de estudar e de trabalhar. O que o governo tem que fazer é contratar essa gente e dar serviço.

A cozinheira que hoje está em casa, eu contrato ela para ela fazer merenda escolar. Por que ela não pode fazer a marmita em casa e eu distribuo nas escolas? Isso que parece pequeno, não é pequeno. São milhões de pessoas.

Mas o governo tem capacidade de agir com a capilaridade que esse tipo de política necessita?
Não é nada difícil de fazer. Os militares, por exemplo, sabem fazer isso direitinho e rapidinho. Eu falo de economia de guerra porque precisa de disciplina. Esse exemplo que eu dei, da cozinheira, passa sobretudo pelas prefeituras do interior.

Eu iria além. Você poderia ter o Bolsa Social e o Bolsa Família. Pergunta para o trabalhador o que ele quer: um dinheiro a fundo perdido ou trabalhar? Nem todo mundo pode entregar quentinha, tudo bem. Tem um que tem um salão, mas ninguém tá cortando o cabelo. Coloca ele pra fazer um curso de informática.

Chama os empresários de educação particular e compra deles os cursos que eles têm. O cabeleireiro pode aproveitar isso. O estado vai ter que fazer isso, queira ou não queira. Se não sabe, vai ter que aprender. Tem que ter disposição e criatividade. A criatividade que faz piada do coronavírus nas redes sociais tinha que se converter para a gente conseguir conciliar o isolamento social e a economia.

Os empresários têm pedido coordenação, está faltando?
Nós temos uma das experiências mais bem sucedidas do mundo para enfrentar uma emergência, ainda que não sanitária, que foi a do apagão. Havia uma comitê que tinha poder para decidir rápido. Pega tudo que estava escrito na comissão do apagão, apaga a palavra apagão e usa.

A crise é igual a do apagão?
Tem uma peculiaridade nessa crise. Não há uma função pública no Brasil mais descentralizada do que a Saúde. Como é o financiamento da saúde pública? 40% do governo, 40% dos estados e 30% dos municípios. Quando você vai ver quem executa, 15% é União, 35% os estados e 55% os municípios. Mas o que você precisa agora é de hospital. A União só gasta 5% com hospitais, 50% são os estados e 45% os municípios.

Então, não é hora de ter briga. Mesmo que o governo federal queira, é impossível ele dar a assistência médica. A função dele é coordenar a execução. Além disso, tem a rede privada. O governo brasileiro é um dos que menos gasta do mundo [em relação ao gasto das famílias]. Você tem que aproveitar esse momento pra fazer a coordenação, não só do ponto de vista administrativo, mas com a federação. Tanto pra saúde, quanto pro social. Eu tinha comentado com prefeitos que a federação brasileira nasceu de cima para baixo. Agora tem uma oportunidade única de se fazer de baixo para cima.

Enquanto o governo federal está meio perdido, estados e municípios estão agindo, até porque eles têm que agir, não têm nem muita opção. O doente está batendo lá.

As empresas estão pedindo desconto de impostos. Como pode fazer isso sem que os governos fiquem sem dinheiro para pagar médicos?
Primeiro, para pagar médico nessa hora, se você não tiver [desconto de] imposto, é só você rodar a maquininha. Depois você resolve. Acho que a primeira providência que o mundo inteiro fez e o governo brasileiro está demorando a fazer é adiar o pagamento dos impostos de forma organizada. Basicamente, mundo afora, o que está sendo feito é jogar para frente, não é renúncia. Faz isso com microempresa, basicamente, que é quem gera emprego.

Qual é a consequência desta demora?
Tem dois problemas:

1) o mercado resolve com a inadimplência. Mas se acontece isso, quem não vai pagar é todo mundo, inclusive a grande empresa, e nem toda grande empresa está mal. Tem setor que a grande empresa está mal. Setor aéreo, por exemplo, tem de suspender o recolhimento de impostos. Turismo também, que é muito afetada imediatamente. Em outras áreas você libera microempresa. E aí, quem não tá pagando, você faz o que? Processa na Justiça? Nesse momento?

2) As atividades atingidas pelo coronavírus, basicamente o setor de serviço, ele não vai ter lá na frente imposto a pagar, porque o faturamento vai ser zero. Essa é uma recessão de serviços. E o setor de serviços é chave para o ISS. As prefeituras vão sentir um baque muito maior que os estados, a arrecadação deles vai derreter muito mais rápido que o ICMS [dos estados].

Como resolver esse problema?
Em relação aos estados e municípios que não podem emitir dívida pública, e nem devem, e não podem emitir moeda, cabe ao governo federal emitir e repassar a eles. Eu vou além, eu não defendo suspender o pagamento da rolagem da dívida [com a União], eu defendo que os estados e municípios paguem a rolagem da dívida em serviços de saúde e em serviços sociais.

Tudo isso é quantificável. Até agora falou, falou, falou, e até agora nada. E o cara da ponta está comprando. Dá pra fazer direitinho isso, vai no tribunal de contas e mostra o que fez de novo e abate da dívida. Quando a gente fez lá trás a rolagem da dívida a gente criou um negócio chamado de moeda podre, que eram créditos passados das empresas.

Agora a gente tem que criar a moeda viva, moeda social. Gaste e o governo reembolsa —ou abate ou transfere.

O governo pode transferir dinheiro neste momento?
Tenho ouvido coisas absurdas. Não posso transferir recursos para os municípios porque é transferência voluntária e é ano de eleição. Aí vai pra outro extremo, acaba com a eleição. A transferência é compulsória, não é voluntária.

Para comprar leito de UTI e respirador, é compulsório. Aliás, o Congresso deu ao Ministério da Saúde um principio legal que chama requisição compulsória de bens e serviço. Isso vem de um decreto lei de 1942, que tava em vigor. O que o Ministério da Saúde tem de fazer com isso, é comprar serviço compulsoriamente. Chegar e ver quanto precisa e comprar. Pode sair comprando. Compra tudo que for possível produzir.

O que o orçamento de guerra ajuda nisso?
É um orçamento apartado. Tem que apartar o que é o dia a dia, que está meio abalado mas vai voltar a funcionar, e para esse dia a dia eu não tenho que suspender as regras. No orçamento de guerra, você separa, e vai comprar com fast track. Outro dia disseram que a exceção é para fazer gastança. Não, é abrir exceção para que o ordinário siga em regras.

Dizem que os prefeitos querem contratar médicos e enfermeiros para se reeleger... a maioria dos médicos não quer trabalhar em hospitais, por isso vai ter que requisitar compulsoriamente o trabalho de médicos. Não precisa contratar como servidor, pode ser como pessoa jurídica. Nem é despesa de pessoal, é contratação de serviço, não mexe em nada da lei. Estão fazendo uma confusão desnecessária.

Municípios dizem hoje ter dinheiro mas não conseguir comprar equipamentos.
O governo federal tem que coordenar. Como estamos falando de 27 governadores que sempre brigaram e agora estão juntos? Prefeitos de todos os lugares e de todos os partidos... tem que coordenar. Não só com uma postura de liderança mas com medidas econômicas sensatas. Primeiro, sair do negacionismo. Não tem crise? Tem crise, é uma guerra. Vamos resolver? Quando não se faz isso, veja o que virou a questão dos respiradores. É semelhante a uma guerra fiscal, o governo federal não faz política de desenvolvimento é cada um por si, Deus por todos.

Como o BNDES e os outros bancos podem agir?
Ou adia o pagamento de crédito, e não só para o BNDES mas geral, ou não serão dois ou três bancos quebrando, mas vários bancos quebrando. O Banco Central está fazendo o papel correto. Está dizendo aos bancos: pode adiar o pagamento e não precisa levar isso à provisão de devedores duvidosos.

Estão tímidos?
O BNDES pode e deve entrar no esforço de reconversão produtiva, porque tem técnicos que sabem tudo de cada setor, de saúde, da indústria de farmacêutica. E nesse papel de reconversão e de migrar para a economia digital, os bancos públicos têm que tomar a dianteira.

Outra coisa, tudo isso só vai acabar quando tiver vacina. Deus e todo mundo está pesquisando. O Brasil está pesquisando. Dá tempo de descobrir a vacina? Eu acho que não. Mas o Brasil é um dos maiores mercados de vacina do mundo. O que temos que fazer? Ir aos países que estão na dianteira e perguntar: quer vacinar no Brasil? Vamos fazer lá na Fiocruz, no Brasil. Eu pago royalty, tudo certinho. Mas não para trazer vacina lá da China, não.